UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “Julio de Mesquita Filho” Instituto de Artes - Campus São Paulo PAULI CARVALHO FERREIRA O TRAUMA PÓS–MODERNO E AS INVESTIGAÇÕES DA FERIDA EM HAL FOSTER São Paulo 2024 PAULI CARVALHO FERREIRA O TRAUMA PÓS–MODERNO E AS INVESTIGAÇÕES DA FERIDA EM HAL FOSTER Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” como requisito parcial para obtenção do título de bacharel em Artes Visuais. Orientador Prof. Dr. Sérgio Mauro Romagnolo São Paulo 2024 Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. F383t Ferreira, Pauli Carvalho, 2001- O trauma pós-moderno e as investigações da ferida em Hal Foster / Pauli Carvalho Ferreira. -- São Paulo, 2024. 42 f. : il. color. Orientador: Prof. Dr. Sérgio Mauro Romagnolo. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado e Licenciatura em Artes Visuais) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes. 1. Arte moderna - Séc. XXI. 2. Estética. 3. Pós-estruturalismo. 4. Foster, Hal. I. Romagnolo, Sérgio (Sérgio Mauro Romagnolo). II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 701.18 Bibliotecária responsável: Laura M. de Andrade - CRB/8 8666 PAULI CARVALHO FERREIRA O TRAUMA PÓS–MODERNO E AS INVESTIGAÇÕES DA FERIDA EM HAL FOSTER Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” como requisito parcial para obtenção do título de bacharel em Artes Visuais. Dissertação aprovada em: 24/11/2023 Banca Examinadora ______________________________ Prof. Dr. Sérgio Mauro Romagnolo ______________________________ Prof. Dr. Carlos Eduardo Riccioppo Freitas ______________________________ Profa. Dra. Renata Pedrosa Romeiro RESUMO O presente trabalho parte da transição entre o moderno e o contemporâneo, marcada pela virada textual e o apagamento das fronteiras interdisciplinares e interdiscursivas – além da ampliação do campo da prática – e elabora as relações da arte contemporânea com o mundo sistemático de mercadorias e signos do capitalismo avançado, tais como as novas práticas críticas e seus obstáculos. O texto pretende, sobretudo, enunciar a postura abjeta da arte das últimas décadas, em um momento de crítica reificada e da construção do contemporâneo como pós-histórico: as abordagens da ferida, do trauma e do cadáver amplamente relacionadas à investigação das diferenças sexuais, étnicas e sociais. Há uma grande força na produção de artistas que desafiam a ordem simbólica através da perversão e exploram o trauma do sujeito contemporâneo mobilizado contra a fantasia capturada pelo consumismo: por fim, o mote é a preocupação contemporânea com o trauma em tempos de bem estar social destruído e a produção que expõe a crise da ordem (simbólica), registra seus pontos de colapso e as possibilidades abertas por esses. Palavras-chave: estética; teoria e crítica; psicanálise; Hal Foster; condição pós-moderna; abjeção. ABSTRACT The present work departs from the transition between the modern and the contemporary, marked by the turn to language and the erasure of interdisciplinary and interdiscursive borders – in addition to the expanding field of artistic practice – and elaborates the relations between contemporary art and the systematic world of commodities and signs on the late capitalism, new critical practices and their obstacles. The text aims, above all, to enunciate the abject stance of art in recent decades, in a moment of reified criticism and the construction of the contemporary as post-historical: the approaches to the wound, the trauma and the corpse largely related to the investigation of sexual, ethnic and social differences. There is great strength in the production of artists who challenge the symbolic order through perversion and explore the trauma of the contemporary subject mobilized against the fantasy captured by consumerism: finally, the navel is the contemporary concern with trauma in times of destroyed social well-being and the production that exposes the crisis of the (symbolic) order, captures its points of collapse and the possibilities opened by them. Keywords: aesthetics; theory and criticism; psychoanalysis; Hal Foster; postmodern condition; abjection. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Fotografia 1 - Desastre Branco [Acidente de Carro Branco 19 Vezes] 25 Fotografia 2 - Os Kaminhas Sutrinhas 29 Fotografia 3 - Étant Donnés 30 Fotografia 4 - Untitled [Your gaze hits the side of my face] 31 Fotografia 5 - Bullet Hole / Buraco de Bala 34 Fotografia 6 - Untitled #153 / Sem Título #153 36 Fotografia 7 - Untitled #345 / Sem Título #345 36 Fotografia 8 - Immersion [Piss Christ] / Imersão [Cristo no Mijo] 38 Fotografia 9 - Arena #7 [Bears] / Arena #7 [Ursos] 43 Fotografia 10 -Mad Dog 43 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 8 2 O PROJETO MODERNISTA E A NEOVANGUARDA 12 3 A CONDIÇÃO PÓS-MODERNA, A ESQUIZOFRENIA E A LINGUAGEM 17 4 O RETORNO DO REAL E O DISCURSO DO TRAUMA 23 5 CONCLUSÃO / A ABJEÇÃO 35 REFERÊNCIAS 44 REFERÊNCIAS DAS ILUSTRAÇÕES 46 8 1 INTRODUÇÃO A transição difusa, não-tão-clara e arbitrária entre o modernismo e o pós-modernismo foi marcada pela virada textual da arte nos anos 1960. A lógica dominante do modernismo tardio requeria a autonomia da arte; havia um outro imperativo, pós-estruturalista, de ampliar o campo da arte – e a linguagem tornou-se de extrema importância para a operação pós-moderna: “essa tensão entre a autonomia do signo artístico e sua dispersão em novas formas e/ ou sua combinação com os signos da cultura de massa regia a relação não só entre o minimalismo e a pop, digamos [...]”1 O pós-modernismo pós-estruturalista operava na missão de ultrapassar as categorias estéticas formais e as distinções culturais tradicionais com um novo modelo de arte como texto: um momento de apagamento de fronteiras disciplinares (entre pintura e escultura, por exemplo), das diluições categóricas entre alta cultura e cultura de massa, arte autônoma e arte utilitária – dialética mais tarde transformada em uma nova economia política do signo-mercadoria. À medida que a abstração modernista suspendeu a representação, a simulação pós-modernista subverteu-a, crítica da representação e perturbadora de sua ordem conceitual. A abstração modernista é também apropriada num movimento de ridicularização às suas aspirações a originalidade e sublimidade, em um jogo com o fracasso – alguns defendem que a crítica da pintura, por exemplo, só poderia continuar dentro da pintura, desconstrutivamente. As barreiras entre desconstrução e cumplicidade foram diluídas, entretanto: assim, enquanto parte da produção contemporânea é comprometida com a subversão (arte conceitual, crítica institucional, arte feminista…), outra parte tornou as técnicas desconstrutivas programáticas, transformando a análise conceitual do objeto da arte, seus discursos e instituições em um dispositivo fechado2 – enquanto o primeiro movimento ramifica a crítica, o segundo a implode na forma da mercadoria. A arte dos anos 1980, por exemplo, aproxima-se da arte de apropriação, frequentemente adotando uma distância irônica em relação à sua própria tradição recebida como um estoque de ready-mades a serem apropriados, por vezes resgatando-os criticamente: Essa elaboração é um trabalho coletivo que atravessa gerações inteiras de artistas neovangardistas: desenvolver paradigmas como o ready-made a partir de um objeto que se pretende transgressor em sua própria facticidade até se transformar em uma posição que explora a dimensão enunciativa de uma obra 2 Ibid., p. 101. 1 FOSTER, Hal. O retorno do real: A vanguarda no final do século XX [1996]. Tradução de Célia Eduardo. São Paulo: Ubu Editora, 2017. p. 79. 9 de arte (como na arte conceitual), em um procedimento que lida com o serialismo de objetos e imagens no capitalismo avançado (como no minimalismo e na arte pop), em um distanciamento da presença física (como na art-specific dos anos 1970), em uma forma de mímica crítica de diversos discursos (como na arte alegórica dos anos 1980, envolvida com as imagens míticas da grande arte e dos meios de comunicação em massa), e, por fim, numa investigação das diferenças sexuais, étnicas e sociais de hoje…3 Muitos artistas pós-modernistas tendem a tratar imagens da história da arte e da cultura de massa como fetiches, como outros tantos significados independentes a serem manipulados.4 A fragmentação pós-modernista na arte (apropriação, site-specificity, impermanência, acumulação, discursividade, hibridização) corre ao lado do descentramento pós-estruturalista na linguagem5: a arte pós-modernista é alegórica, enfática nos espaços em ruínas e nas imagens fragmentárias apropriadas da história da arte e dos meios de comunicação em massa, à medida que subverte as normas estilísticas, redefine categorias conceituais e desafia o ideal modernista de totalidade simbólica, por fim, explorando a lacuna entre o significante e o significado. Nos anos 1970, as consequências da virada textual da arte e da expansão do campo da prática eram uma grande força: “isso, em parte, desfetichizou as formas estabelecidas da prática, mas logo vieram novos fetichismos para substituir os antigos.”6 A arte contemporânea passa a se relacionar com o mundo sistemático de mercadorias e signos do capitalismo avançado através de uma produção em série introduzida pelo minimalismo e a pop, que acarretou uma forma diferente de consumo, “cujo objeto não é tanto o uso dessa mercadoria ou o significado daquela imagem, mas sua diferença como signo de outros signos; é essa diferença que fetichizamos, o aspecto ‘factício’, diferencial, codificado, sistematizado’7 do objeto.”8 As práticas críticas foram parcialmente interrompidas nos anos 1980 com a ascenção do neoliberalismo: a arte contemporânea e a estética, agora, orientadas pela lógica da mercadoria e do consumo. Com a desaparição das unidades sensíveis de tempo e espaço sob os efeitos das tecnologias eletrônicas e de informação, instrumentalizadas pela indústria cultural e dos meios de comunicação em massa, o sentido da cultura como ação histórica é debilitado.9 Existia, de um lado, a manipulação pós-histórica das convenções; do outro, uma 9 CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia. Crítica y Emancipación, Buenos Aires, n. 1, junho de 2008. p. 62. 8 FOSTER, 2017, p. 106-107. 7 BAUDRILLARD, Jean. Para uma crítica da economia política do signo [1981]. Tradução de Artur Mourão. Rio de Janeiro: Elfos, 1995. p. 85. 6 FOSTER, 2017, p. 99. 5 OWENS, Craig. The Allegorical Impulse: Toward a Theory of Postmodernism. October, Massachusetts, n. 12, 1980. p. 92. 4 Ibid., p. 99. 3 FOSTER, 2017, p. 42-43. 10 transformação histórica das práticas: a impossibilidade de transcendência na arte e de transgressão na sociedade parecia parte do apocalipse distópico da condição pós-moderna. O movimento de uma postura irônica a uma postura fracassada, patética e até mesmo abjeta acentua-se na arte do começo dos anos 1990, naturalmente, em um momento no qual os artistas recebem a crítica reificada – na economia política do signo-mercadoria – que construiu o contemporâneo como pós-histórico: a partir daqui, muitos artistas abraçaram o fracasso como forma de proteção, como defesa paradoxal do já derrotado, já morto. A insatisfação com a condição pós-moderna, entretanto, também movimentou uma grande força crítica que pode ser localizada na produção dos artistas que desafiam a ordem simbólica através da perversão. Do pré-guerra nos importa aqui o surrealismo por ter virado à simulação em suas cenas simulacrais de fantasia10 – e o simulacro perturba as categorias da representação porque “põe em questão as próprias noções de cópia… e de modelo”11 O contra-projeto que respondia à reificação e à uniformização da arte no contexto do alto modernismo é retomado por parte da produção contemporânea que reafirma a crítica da representação da revolta surrealista. Algumas condições evocadas na arte recente – fratura do corpo, olhar devorando o sujeito, o sujeito tornando-se espaço – lembram o ideal perverso da beleza redefinido nos termos do sublime propostos pelo surrealismo, atualizados em novas imagens perturbadoras e ameaçadoras que não apenas traduzem a desilusão do terceiro milênio como exploram o trauma do sujeito sob o capitalismo avançado. Os contemporâneos, também insatisfeitos com a realidade, se mobilizam agora contra a fantasia que foi capturada pelo consumismo: o real, reprimido no pós-modernismo pós-estruturalista, retorna como traumático. A impossibilidade da descarga do trauma perturba a organização cultural. Um distanciamento das calculadas e irônicas estratégias do pós-modernismo, frequentemente escoradas na apropriação e no pastiche, é relacionado (na cultura contemporânea) à êxtase no colapso imaginado do anteparo-imagem e/ou da ordem simbólica e um horror diante desse acontecimento fantasmático seguido por desespero12; muitos artistas exploravam os simulacros e pastiches históricos no início da década de 1980, extáticos com o boom econômico do governo Reagan – Jameson apontava, como sintoma primordial pós-moderno, um colapso esquizofrênico da linguagem e da temporalidade, que provocou um investimento 12 FOSTER, 2017, p. 156. 11 DELEUZE, Gilles. Platão e o simulacro. In: Lógica do Sentido [1969]. Tradução de Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 2001. p. 260. 10 FOSTER, 2017, p. 103. 11 compensador na imagem e no instante13 –, seguidos pela melancolia associada à recessão do fim da década e do início da década seguinte. Em enunciações do tempo em que Foster escreve “O retorno do real”, a estrutura melancólica domina os discursos na arte. Para Jameson, esquizofrênico, para Foster, bipolar: o artista pós-moderno seria movido pela ambição de “habitar um lugar de afeto total ou ser completamente esvaziado do afeto, de possuir a vitalidade obscena da ferida ou ocupar a niquilidade radical do cadáver.”14 A preocupação contemporânea com o trauma, em tempos de bem-estar social destruído, movimenta uma produção que expõe a crise da ordem simbólica, registra seus pontos de colapso e as possibilidades abertas por esses. 14 FOSTER, 2017, p. 156. 13 JAMESON, Frederic. Postmodernism and Consumer Society. In: FOSTER, Hal (org.) The Anti-Aesthetic: Essays on Postmodern Culture. Port Townsend, Washington: Bay Press, 1983. p. 111-125. 12 2 O PROJETO MODERNISTA E A NEOVANGUARDA O projeto modernista desenvolveu, de um lado, as esferas da ciência, da moralidade e da arte de acordo com suas lógicas internas: investindo na tautologia – ou seja, em uma arte que se explicasse dentro de seu próprio campo, em seus termos – ainda em curso, tensionando a ideia de pureza de cada arte e a autonomia da cultura como um todo. Esse projeto, entretanto, naturalmente é incapaz de reificar e uniformizar: existia um contra-projeto na forma das vanguardas anárquicas (do dadaísmo e do surrealismo, por exemplo), retomado no modernismo tardio e pela arte pós-moderna que reafirmou a crítica da representação esboçada pela revolta surrealista. Nos importa o surrealismo por ter virado à simulação em suas cenas simulacrais de fantasia – e o simulacro perturba as categorias da representação porque “põe em questão as próprias noções de cópia… e de modelo”15 Os surrealistas opunham-se radicalmente à perspectiva lógica e racional do modernismo dominante no início do século XX, em práticas guiadas pelo inconsciente, o subconsciente e o onírico, posto que a realidade não poderia ser totalmente compreendida pela razão e a lógica: assim, operaram no automatismo psíquico que valorizou a espontaneidade e permitiu que impulsos e imagens do inconsciente fossem desencarcerados, e na desautomatização, ou seja, no questionamento das formas convencionais de olhar e perceber o mundo: isso resultou em uma produção inovadora caracterizada por imagens perturbadoras e desconcertantes que desafiavam as noções tradicionais de representação. A neovanguarda buscou muitas vezes manter a dimensão histórica da arte e o rompimento com a tradição em coordenação crítica: remodelando os procedimentos da vanguarda para fins contemporâneos recorrendo aos paradigmas do passado para construir o possível no presente.16 O valor vanguardista que questiona os limites culturais no presente, efetuando movimentos das formas intrínsecas da arte em direção aos problemas discursivos sobre a arte, “envolve a arte e a teoria em lugares e audiências há muito afastados e abre dimensões históricas outras para o trabalho criativo.”17 Sobre o valor investido nos cânones da arte do século XX, Hal Foster, em “O retorno do real”, escreve: “esse valor não está estabelecido: existe sempre uma invenção formal a ser redesdobrada, um significado social a ser ressignificado, um capital cultural a ser reinvestido. Simplesmente desistir desse valor é um grande erro do ponto de vista estético e estratégico.”18 18 Ibid., p. 9. 17 Ibid., p. 9. 16 FOSTER, 2017, p. 8. 15 DELEUZE, 2001, p. 260. 13 A prática transforma o objeto em si e a natureza da arte, fazendo necessário que o objeto da crítica também: o artefato é tratado, como consequência da influente teoria continental, do estruturalismo e do pós-estruturalismo, menos como trabalho nos termos modernistas de único, simbólico e visionário e mais como texto (e, em termos pós-modernistas, “já-escrito”, alegórico, contingente). Se Barthes e Lévi-Strauss são grandes forças do pensamento sobre a cultura, essa é refletida como um corpo de códigos e mitos e, também, um cenário de resoluções imaginárias para contradições reais. A crítica vanguardista da arte burguesa é relacionada por Peter Bürger, mencionado por Habermas e Foster em ambos os textos, a três estágios19 do desenvolvimento dessa: o primeiro trata-se do ideal da autonomia da arte no Iluminismo do fim do século XVIII; no segundo momento, final do século XIX, essa autonomia se torna o próprio tema da arte em um distanciamento estético do mundo; no terceiro e último, começo do século XX, esse distanciamento estético é atacado pela vanguarda histórica que ou exige que a arte recupere um valor de uso ou reconheça seu valor de inutilidade.20 O historicismo de Bürger, simplista em termos de causa e efeito, impregna, ainda, a história da arte, especialmente os estudos modernistas, e julga a arte contemporânea atrasada, redundante e repetitiva: a história torna-se pontual e final. Portanto, se os ready-mades e as colagens desafiavam os princípios burgueses do artista expressivo e do trabalho de arte orgânico, os neoready-mades e as neocolagens reafirmam esses princípios, reintegram-nos por meio da repetição. Da mesma maneira, se o dadá ataca igualmente a audiência e o mercado, os gestos neodadá são adaptados a estes, uma vez que os espectadores estão não só preparados para esse choque como sedentos de seu estímulo. E mais: para Bürger, a repetição da vanguarda histórica pela neovanguarda só pode converter o antiestético em artístico, o transgressivo em institucional. É óbvio que existe alguma verdade aí [...] mas essa não é toda a história da neovanguarda, nem termina aí [...] no entanto, para Bürger a história termina aí, principalmente porque ele não é capaz de reconhecer a arte ambiciosa de sua época, um defeito fatal de muitos filósofos da arte. Em consequência, só pode ver a neovanguarda in toto como fútil e degenerada em relação romântica com a vanguarda histórica.21 Não servem mais causa e efeito, antes e depois, origem heróica e repetição farsesca. A “tragédia seguida por farsa” (Marx em “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte”), empregada cinicamente como modelo teórico, “primeiro constrói o contemporâneo como pós-histórico, um mundo de simulacros feito de repetições malogradas e pastiches patéticos, e então o 21 Ibid., p. 30-31. 20 Ibid., p. 28. 19 FOSTER, 2017, p. 28. 14 condena como tal a partir de um ponto mítico de escape crítico para além de tudo isso.”22 O crítico enuncia que a fixação ao passado dos crentes da pós-história é fundamentada por um cinismo sedutor que os protege de muitas ironias históricas – e existe um mesmo cinismo em relação ao presente – endereçado também à escola de Frankfurt em seu “páthos da melancolia”: o passado obscuro que é o objeto perdido do crítico melancólico, como na fórmula freudiana, para Foster, não é de todo consciente.23 O neo-conservador, na verdade, desloca os efeitos da modernização econômica capitalista e os atribui à modernização cultural: É que o tipo de reações em que o neo-conservadorismo hoje se pode apoiar não resulta de modo algum de uma doença provocada pelas consequências antinômicas de uma cultura que ultrapassasse o quadro dos museus para irromper na vida. Essa doença não foi suscitada pelos intelectuais modernistas, mas enraiza-se mais profundamente nas reações induzidas por uma modernização social que, debaixo da pressão dos imperativos próprios do crescimento econômico e das intervenções organizadoras do Estado, afeta cada vez mais a ecologia de formas de vida nascidas de um crescimento orgânico, a estrutura comunicacional intrínseca de contextos históricos da existência. [...] Ora, os neo-conservadores desviam precisamente a sua atenção destes processos sociais; as causas que eles não esclarecem projetam-as numa cultura que seria intencionalmente subversiva e nos defensores dessa cultura.24 Entre todos os neos e pós da arte do pós-guerra, o campo estético é marcado por grandes alusões históricas e resgates enquanto prática reflexiva de consciência crítica da história, contestando os princípios burgueses de arte autônoma e artista expressivo: o “objeto encontrado” dos anos 1950 e o ready-made dos anos 1960, por exemplo, por incluir objetos cotidianos e uma postura de indiferença estética, ou o construtivismo russo, pelo uso de materiais industriais e a transformação da função do artista. Dois movimentos de resposta ao modernismo dominante da época (Roger Fry, Clive Bell, Clement Greenberg, Michael Fried) buscam definir a instituição da arte em uma investigação epistemológica de suas categorias estéticas e destruí-la num ataque anarquista a suas convenções (dadá), ou transformá-las por práticas materialistas de uma sociedade revolucionária (construtivismo russo) – “se a maioria dos artistas da década de 1950 havia reciclado os procedimentos da vanguarda, os artistas da 24 HABERMAS, Jürgen. A Modernidade: Um projeto inacabado? [1980]. Tradução de Nuno Ferreira Fonseca. Crítica - Revista do Pensamento Contemporâneo, Lisboa, n. 2, novembro de 1987. p. 10-12. 23 Ibid., p. 32-33. 22 FOSTER, 2017, p. 32. 15 década de 1960 tiveram que elaborá-los criticamente; a pressão da consciência histórica não permitia nada menos do que isso.”25 O “efeito a posteriori”26 é elaborado na psicanálise: um acontecimento só é registrado como traumático mediante um acontecimento posterior que o recodifica retroativamente. Foster faz uso do efeito para defender a importância da vanguarda – cujos acontecimentos são produzidos de maneira análoga, mediante uma “complexa alternância de antecipação e reconstrução”27 – que, recodificada enquanto articulação e resistência / alternativa política, poderia impugnar o golpe neoconservador dos anos 1980 que interrompeu as práticas críticas e entabulou a estética da mercadoria na arte do fim da mesma década: aqui, tratamos das mudanças culturais e econômicas marcadas pelas políticas de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, a ascensão do neoliberalismo em diversas partes do mundo (que promoviam o livre mercado, a desregulamentação e a redução do papel do Estado na economia), e, naturalmente, suas consequências para a arte: a expansão de galerias, leilões e mercado fez crescer a comercialização da arte, tornada ainda mais uma mercadoria valiosa para colecionadores e investidores; em resposta, artistas passam a produzir obras destinadas às tendências do mercado, fator que ameaça a expressão crítica e autêntica. Em síntese, a estética da arte contemporânea foi orientada pela lógica da mercadoria, assim como a cultura também passou a ser mais orientada para o consumo nos anos 1980, com a proliferação da publicidade e da comunicação visual, também influências para a arte contemporânea. Tal problema parece consequência dos entendimentos comuns de teoria como ornamento na arte (aplicável arbitrariamente, convenientemente), de que a arte em si mesma não produz conceitos críticos, e, por último, de que a política é exterior. Pensemos, então, em arte contemporânea nos termos de paradigmas, não teleologias e, por vezes, nos termos da psicanálise, se consideramos que a imagem é regida por projeções psicanalíticas à medida que a cultura é regida por pressupostos antropológicos.28 A neovanguarda não apenas inverteu a crítica pré-guerra da instituição da arte mas empenhou-se em ampliá-la, produzindo novas experiências estéticas, conexões cognitivas e intervenções políticas. A vanguarda mimetiza o mundo degradado da modernidade capitalista não para aderir a ele, mas o ridicularizar, e também tem dimensão utópica, mas dessa vez propõe menos o que pode ser e mais o que não pode ser, como uma crítica ao que é, em uma relação retórica contextual e performativa (elabora criticamente o lugar e o tempo em que está inserida, e em relação a suas linguagens, 28 Ibid., p. 14. 27 Ibid., p. 10. 26 Ibid., p. 44-49. 25 FOSTER, 2017, p. 23-28. 16 instituições, estruturas de significado, expectativas e recepção): é aqui que a ruptura e a revolução da vanguarda se situam.29 29 FOSTER, 2017, p. 35. 17 3 A CONDIÇÃO PÓS-MODERNA, A ESQUIZOFRENIA E A LINGUAGEM Os pós-modernistas que emergem em reação contra as formas institucionalizadas do alto modernismo (contra o modernismo dominante que conquistou as universidades, o museu, a rede de galerias e as fundações culturais), devem, para fazer algo novo, destruir os velhos estilos uma vez subversivos, escandalosos e chocantes para a geração anterior, agora monumentos reificados e canonizados. Como existem muitos tipos de pós-modernismo (assim como existem muitos do modernismo), nos parece importante reconhecer que houve uma erosão da velha distinção entre a “alta cultura” e a chamada “cultura popular” ou “de massa”, e a academia naturalmente ainda investe muito interesse em preservar um campo da alta elite cultural contra o ambiente ao redor de “kitsch” e “bugiganga”. Muitos dos contemporâneos vêm se interessando precisamente por todo o ambiente dos anúncios, do lado B e da paraliteratura (aqui, o prefixo para indica formas não canônicas): esses artistas não mais citam os textos, mas os incorporam de forma cada vez mais difícil de distinguir a linha entre alta arte e formas comerciais. Da mesma maneira que a fronteira textualista é rompida, a teoria contemporânea é: se anuncia o destronamento das velhas categorias de gênero e discurso. Frederic Jameson, em “Postmodernism and Consumer Society”, escreve: Uma geração atrás, ainda existia um discurso técnico de filosofia profissional – os grandes sistemas de Sartre ou dos fenomenologistas, o trabalho de Wittgenstein ou a filosofía analítica – no qual alguém ainda poderia distinguir o discurso específico de uma ou outra disciplina – ciências políticas, sociologia ou crítica literária, por exemplo. Hoje, cada vez mais, temos uma escrita simplesmente chamada ‘teoria’ que é nenhuma e todas essas de uma vez. Esse novo discurso, geralmente associado com a teoria francesa, se espalha e marca o fim da filosofia como uma só. O trabalho de Foucault, por exemplo, é chamado filosofia, história, teoria social ou ciência política? Não se pode dizer, e eu sugiro que o ‘discurso teórico’ deve ser também incluído nas manifestações do pós-modernismo.30 É proposto que o “novo discurso” não seja reduzido a um estilo particular mas que seja um conceito periodizante cuja função seria correlacionar a emergência de novas características formais na produção cultural e a emergência de um novo tipo de vida social e uma nova ordem econômica: esse novo momento (pós industrial) marcado pelo período transicional dos anos 1960 no qual a nova ordem internacional, sustentada pelo neocolonialismo e pela revolução eletrônica, é implementada e, simultaneamente, chacoalhada por suas próprias contradições e por resistência externa. O pós-modernismo 30 JAMESON, 1983, p. 112. 18 expressa a verdade interna dessa nova ordem social do capitalismo tardio em duas características significantes: pastiche e esquizofrenia, empregadas pelo autor para a elaboração da experiência pós-moderna do espaço e do tempo. O pastiche é comumente confundido com paródia enquanto imitação ou mimese de maneirismos de outros estilos: a paródia, entretanto, capitaliza o “único” do estilo que parodia, produzindo uma imitação que aproveita suas idiossincrasias e excentricidades para zombar do original. Em Jameson, uma boa paródia precisa ter uma simpatia secreta pelo original, o que nos permite concluir que por trás de toda paródia existe uma norma de linguagem que contrasta com os altos estilos – aqui nos cabe o grande modernismo. Pastiche é, como a paródia, a imitação de um estilo único e peculiar, é vestir uma máscara estilística, mas sem o motivo ulterior da paródia: o impulso satírico, o sentimento de que existe algo normal comparado ao que está sendo imitado. Mas o que aconteceria se não mais acreditássemos na existência da linguagem normal, do discurso ordinário, da norma linguística (o tipo de claridade e poder comunicativo celebrado por Orwell)? Talvez uma imensa fragmentação e privatização da literatura moderna – sua explosão em diferentes estilos e maneirismos privados. Supondo que, em décadas desde a emergência dos altos estilos modernos, a sociedade tivesse começado a se fragmentar dessa forma, cada grupo se comunicando através de uma curiosa linguagem privada de seu grupo, desenvolvendo códigos e idioletos, e, finalmente, cada indivíduo se tornando uma espécie de ilha linguística, separado de todos os outros? Nesse caso, a própria possibilidade de qualquer norma linguística em termos quais alguém poderia ridicularizar linguagens privadas ou estilos idiossincráticos desapareceria e não teríamos nada além de diversidade estilística e heterogeneidade. Nesse momento o pastiche aparece e a paródia é impossível.31 Os grandes modernistas se dirigiram à invenção de um estilo pessoal e privado, mas isso significa que as estéticas modernistas seriam organicamente ligadas à concepção de um “Self” único e de uma identidade privada, uma personalidade e uma individualidade que gerassem sua própria visão – e estilo – única do mundo. Muitos teóricos sociais, psicanalistas e linguistas, além dos que trabalham com as amplas áreas da cultura, exploram a noção de que esse tipo de individualismo e identidade pessoal são algo do passado, que esse velho sujeito individualista está morto, até mesmo que sua base teórica é ideológica. Na posição pós-estruturalista, mais radical, o sujeito individual burguês não é nem uma coisa do passado, mas nunca existiu: é um mito pois nunca houve sujeito autônomo desse tipo. Tal construção seria apenas uma mistificação filosófica e cultural a fim de persuadir pessoas de que tinham 31 JAMESON, 1983, p. 114. 19 uma identidade pessoal única e eram sujeitos individuais, nos tempos do clássico capitalismo competitivo, da burguesia enquanto classe social hegemônica e da idade de ouro da família nuclear. Hoje esse indivíduo não mais existe.32 Se a experiência e a ideologia do Eu único que informou a prática estilística do modernismo clássico está acabada, não é mais claro o que artistas e escritores do presente devem fazer. Mas modelos velhos não mais funcionam, já que ninguém tem esse mundo único e privado para expressar. Existe também o senso de que escritores e artistas do presente não podem mais inventar novos estilos e mundos porque estes já foram inventados; apenas um número limitado de combinações seria possível: os mais únicos já foram pensados. Toda a tradição estética modernista – agora morta – pesa como um pesadelo.33 O pastiche seria inevitável, pois: “em um mundo onde a inovação estilística não é mais possível, tudo o que resta é imitar velhos estilos, falar por máscaras e com as vozes dos estilos no museu imaginário. Mas isso significa que a arte contemporânea é sobre a ‘arte em si’ de um novo jeito, significa que uma de suas mensagens essenciais envolve o fracasso necessário da arte e da estética, o fracasso do novo e o aprisionamento no passado.”34 É claro que a visão de Jameson nos direciona a um cinismo muito presente na arte contemporânea, corroborado pelo fatalismo do “fim da história”. Mas uma prática particular do pastiche, mais presente (quase onipresente, na verdade) na “cultura de massa” do que na “alta cultura” é o filme de nostalgia que, longe de ser uma sátira de formas agora mortas, satisfaz um profundo desejo reprimido de experienciar um passado perdido – e que não reinventa a imagem como uma totalidade vivida, mas um sentimento de passado. Os recursos usados são quase sempre os mesmos, não coincidentemente: o cenário de cidade pequena, por exemplo, tem a função estratégica de permitir que um filme opere sem sinalizadores e referências que temos do mundo contemporâneo e da sociedade de consumo (uma narrativa num passado nostálgico indefinível além da história, sintomático de termos perdido o senso de presente histórico e das representações estéticas de nossa experiência imediata). A nostalgia invade e coloniza até cenários contemporâneos: o sujeito não mais observa o mundo real diretamente através de seus olhos, em busca do referente, mas, como na caverna de Platão, traça imagens mentais do mundo em suas paredes confinadas: se existe algum realismo restante aqui, é um realismo traumático que surge do choque de agarrar esse confinamento e perceber que estamos 34 Ibid., p. 115-116. 33 Ibid., p. 115. 32 JAMESON, 1983, p. 115. 20 condenados a buscar o passado histórico através de nossas próprias imagens pop e estereótipos deste passado, para sempre escapando de nosso alcance.35 A segunda categoria básica do pós-modernismo em Jameson é a “textualidade” (ou écriture) em termos das teorias contemporâneas da esquizofrenia. A “esquizofrenia” é usada pelo crítico, entretanto, de forma descritiva, não diagnóstica – não pretende ser clinicamente preciso, mas considera a originalidade do pensamento de Lacan. Lacan opera precisamente na linguagem, ponto subestimado da concepção da psique freudiana, nos dando uma versão linguística do Complexo de Édipo na qual a rivalidade entre a criança que compete com o pai pela atenção da mãe existe, na verdade, entre a criança e uma autoridade paterna agora considerada uma função linguística, o “Nome-do-Pai” – Função simbólica e linguística do pai, não a figura paterna literal, para a entrada do sujeito na ordem simbólica, ou seja, na ordem da linguagem, da cultura e das normas sociais. Em uma sociedade patriarcal, representa a lei, a autoridade e a norma – ampliado nos próximos capítulos enquanto “lei paterna” por razões estratégicas. Retemos que a esquizofrenia em um primeiro momento trata-se, então, de uma desordem da linguagem, ou, ao menos, a experiência esquizofrênica é uma forma outra de relação com essa. O modelo linguístico de Lacan é baseado na tríade signo, palavra, texto. Existe a relação entre o significante – o objeto material, o som da palavra, o script do texto – e o significado daquela palavra material ou daquele texto material; existe também o referente ou o objeto real (no mundo real) ao qual o texto se refere (o objeto real e não o conceito do objeto ou o som da palavra “objeto”). Mas há uma tendência entre os estruturalistas, em geral, de negar a possibilidade de se falar do real de forma externa e objetiva: a referência, então, seria outro mito. Em uma visão estrutural não traduzimos significantes individuais ou palavras individualmente, mas lemos uma sentença inteira e é das inter-relações entre suas palavras e significantes que obtemos um significado global: o significado é um efeito produzido por essa inter-relação de significantes materiais. Na leitura lacaniana, a experiência do tempo, passado, presente e memória, a persistência da identidade pessoal e a experiência com a temporalidade em si são também efeitos da linguagem – “é porque a linguagem tem passado e futuro, porque a sentença se move no tempo que temos uma experiência concreta ou vivida do tempo.”36 Mas já que o esquizofrênico não tem a articulação da linguagem normativa (a esquizofrenia é a quebra da relação entre significantes), a experiência da continuidade temporal é perdida e se é condenado a viver num presente perpétuo em que os momentos do passado tem pouca 36 Ibid., p. 119. 35 JAMESON, 1983, p. 116-118. 21 conexão e não existe um futuro concebível no horizonte.37 A esquizofrenia é, nessa leitura, a experiência isolada e desconectada dos significantes materiais descontínuos que falham em formar uma sequência coerente. O que se convencionou chamar de “condição pós-moderna”, ou seja, a existência social e cultural sob a economia neoliberal, é o ponto central para avaliarmos o significado contemporâneo da indústria cultural e dos meios de comunicação em massa que a produzem. A dimensão econômica e social da nova forma do capital é inseparável de uma transformação sem precedentes na experiência do espaço e do tempo: A fragmentação e a globalização da produção econômica engendram dois fenômenos contrários e simultâneos: de um lado, a fragmentação e dispersão espacial e temporal e, de outro, sob os efeitos das tecnologias eletrônicas e de informação, a compressão do espaço – tudo se passa aqui, sem distâncias, diferenças nem fronteiras – e a compressão do tempo – tudo se passa agora, sem passado e sem futuro. Em outras palavras, fragmentação e dispersão do espaço e do tempo condicionam sua reunificação sob um espaço indiferenciado (um espaço plano de imagens fugazes) e um tempo efêmero desprovido de profundidade.38 Com a desaparição das unidades sensíveis do tempo e do espaço sob os efeitos da revolução eletrônica e informática, o sujeito contemporâneo desconhece a continuidade. Ao perdermos a diferenciação temporal, não só rumamos para a memória imediata ou ausência da profundidade do passado, “mas também perdemos a profundidade do futuro como possibilidade inscrita na ação humana enquanto poder para determinar o indeterminado e para ultrapassar situações dadas, compreendendo e transformando o sentido delas. Em outras palavras, perdemos o sentido da cultura como ação histórica.”39 Quando a continuidade temporal é rompida, a experiência do presente se torna poderosa e opressivamente vívida: o esquizofrênico recebe o mundo com intensidade ampliada, em uma misteriosa carga de afeto. O significante, isolado, se torna ainda mais material, sendo essa experiência atrativa ou aterrorizante. O aumento das percepções, uma intensificação libidinal ou alucinatória dos ambientes familiares é sentida como perda, como “não realidade”. E é possível perceber isso no campo da linguagem: a ruptura esquizofrênica da linguagem reorienta o sujeito a uma atenção mais literal à palavra – se o significado é perdido, a materialidade das palavras se torna obsessiva, como quando uma criança repete a 39 Ibid., p. 62. 38 CHAUÍ, 2008, p. 62. 37 JAMESON, 1983, p. 119. 22 palavra muitas e muitas vezes até que ela perca seu significado. Um significante que perdeu seu significado foi, então, transformado em imagem.40 40 JAMESON, 1983, p. 119-120. 23 4 O RETORNO DO REAL E O DISCURSO DO TRAUMA Foster anuncia as imagens de Death in America (Morte na América), de Andy Warhol, como inauguradoras da genealogia pop. A leitura pós-estruturalista do pop warholiano classifica sua obra como simulacro: Roland Barthes escreve, em “That Old Thing Art”, que o desejo do artista pop era de-simbolizar o objeto e libertar a imagem de qualquer significado (conotativo) profundo para torná-lo simulacro superficial.41 De forma simples, objetos e imagens carregam um significado literal denotativo e outro não literal conotativo, e esse último expõe, se desconstruído, as estruturas ideológicas que constroem e mantêm a sociedade de consumo. Onde Barthes vê uma ruptura vanguardista com a representação, Baudrillard vê o fim da subversão em uma integração total do objeto de arte na economia política do signo-mercadoria, que perde seu significado simbólico e sua antiga condição antropomórfica.42 A leitura como simulacro é efetuada também por Foucault e Deleuze (aqui, a profundidade referencial e a interioridade subjetiva também são vítimas da “superficialidade absoluta” da arte pop). Entretanto, a superfície glamurosa dos fetiches dos bens de consumo e das estrelas da mídia revela uma realidade de sofrimento e morte: o objeto referencial de Warhol é encontrado por Thomas Crow, em “Saturday Disasters: Trace and Reference in Early Warhol” (1987), nas tragédias de Marilyn, Liz e Jackie, assim como nas cadeiras elétricas e nas imagens dos distúrbios raciais, expressões diretas do sofrimento que revelam um artista crítico, através da exposição do consumo complacente mediante o fato brutal do acidente e da mortalidade: longe de ser um puro jogo de significante livre de qualquer referência, atraíam-lhe as feridas abertas na vida política americana.43 Postas as ambiguidades entre referenciais e simulacros, afetivas e indiferentes, críticas e complacentes, é verdade que Warhol dizia que não há nada por trás da superfície de sua arte e, em última instância, de si – e que não havia razão profunda para produzir o que produzia –, que queria ser uma máquina. Uma terceira leitura é proposta por Foster nos termos do realismo traumático, que explana o desejo de ser uma máquina como indicador de, não um sujeito vazio, mas um sujeito em choque, que “assume a natureza daquilo que o choca como defesa mimética contra esse choque e revela o automatismo desse processo por meio de seu 43 CROW, Thomas. Saturday Disasters: Trace and Reference in Early Warhol [1987]. In: MICHELSON, Annette (ed.) Andy Warhol. Cambridge, Mass.: MIT Press, 2001. p. 49-66. 42 BAUDRILLARD, Jean. Pop – An Art of Consumption? In: TAYLOR, op. cit., p. 33-35. 41 BARTHES, Roland. That Old Thing, Art. In: TAYLOR, Paul (ed.) Post-Pop Art. Cambridge: MIT Press, 1989. p. 25-26. 24 próprio exemplo excessivo [...] empregado estrategicamente no dadá e encenado por Warhol, esse niilismo capitalista é explorado por muitos contemporâneos.”44 “Mitologias” (Barthes, 1957) conta com – além do prefácio “Myth Today”, ensaio introdutório do intelectual à semiótica – o texto “O Novo Citroën”, que desconstrói o significado conotativo da imagem do carro. Nesse, através da análise semiótica do Citroën DS 19 motor car – em francês, DS é lido “déesse”, se traduz “deusa” –, Barthes busca desmitologizá-lo, e parte da ideia de que os carros de motor seriam as catedrais góticas de seu tempo: A criação suprema de uma era, concebida com paixão por artistas desconhecidos e consumada na imagem, se não no uso, por uma população inteira que os apropria enquanto objetos puramente mágicos [...] [nos halls expositivos] a grande fase tátil da descoberta, o momento no qual o deslumbramento visual está prestes a receber o assalto racional do toque (e o toque é o mais desmistificador de todos os sentidos, diferente da visão, que é o mais mágico). A carroceria, as linhas de união são tocadas, os estofados apalpados, os assentos experimentados, as portas acariciadas, as almofadas acariciadas; diante do volante, finge-se dirigir com todo o corpo. O objeto [antes parte do bestiário de poder] aqui é totalmente prostituído, apropriado: oriunda do céu da Metrópole, a Deusa é, em um quarto de hora, mediatizada, atualizando através desse exorcismo a essência fundamental do avanço pequeno-burguês.45 (tradução nossa) Barthes traça um paralelo entre o novo Citroën DS e o filme Metropolis de Fritz Lang (1927). Enquanto Metropolis explora a industrialização e a modernidade por uma perspectiva de esforço de classe, o carro representa inovação tecnológica e progresso. Em ambos textos culturais, símbolos e imagens constróem uma mitologia que comenta a relação da sociedade moderna com a tecnologia – de um lado (Citroën) temos luxo e destreza; do outro (Metropolis), as consequências desumanizadoras da instrumentalização e da automatização industriais. Além das representações literais, ou, como apontado antes, “objetos e imagens carregam um significado literal denotativo e outro não literal conotativo, e, esse último, expõe, se desconstruído, as estruturas ideológicas que constroem e mantêm a sociedade de consumo”, os textos comunicam significados culturais e ideológicos. É possível fazer observações semelhantes sobre as múltiplas séries de Warhol baseadas em fotografias de acidentes automobilísticos, também de 1963. Essas comemoram eventos em que o carro americano dos anos 1950, símbolo supremo da afluência do consumo, deixou de existir como imagem de prazer e 45 BARTHES, Roland. La Nouvelle Citroën. In: Mythologies [1957]. Tradução de Annette Lavers. Londres: Vintage Books, 2000. p. 88-90. 44 FOSTER, 2017, p. 126. 25 liberdade para se tornar um instrumento concreto de dano súbito e irreparável (em apenas uma das pinturas de Warhol do período, Carros, um automóvel aparece intacto). O uso da repetição por Warhol em Cinco mortes ou Desastre de sábado diminui o impacto da angústia visível nos rostos dos vivos ou o horror dos corpos flácidos dos inconscientes ou mortos? Não podemos penetrar abaixo da superfície da imagem para tocar a verdadeira dor e luto, mas a realidade do sofrimento é suficientemente indicada nas fotografias para chamar atenção para a capacidade limitada do espectador em encontrar uma resposta apropriada. Quanto ao significado da repetição nessas imagens, poderíamos muito bem entendê-lo como sugerindo a sombria previsibilidade, dia após dia, de mais eventos com um resultado idêntico, a mesmice niveladora com a qual a morte real, não simbólica, irrompe em nossa experiência? [...] Quanto às imagens da cadeira elétrica, elas também apresentam, como um grupo, uma dialética rígida de plenitude e vazio. E as mudanças dramáticas nessas obras entre presença e ausência estão longe de ser uma manifestação do puro jogo de um significante liberado da referência além do signo. Elas marcam o ponto em que o fato brutal da morte violenta entrou no domínio da política contemporânea por meio da pena de morte.46 (tradução nossa) Fotografia 1 -White Disaster [White Car Crash 19 Times] / Desastre Branco [Acidente de Carro Branco 19 Vezes] Fonte: CRONE (1970, p. 181) Andy Warhol Tinta de serigrafia e grafite sobre tela. 367 x 210 cm 1963 46 CROW, 2001, p. 57-58. 26 “Não quero que seja essencialmente o mesmo – quero que seja exatamente o mesmo. Porque quanto mais você olha para a mesma coisa, mais o sentido escapa, e melhor e mais vazio você se sente”47, ou “Quando você vê uma imagem horrenda muitas e muitas vezes, ela acaba por não produzir nenhum efeito”48: a repetição é, além de escoamento do significado, uma defesa contra o afeto. As repetições de Warhol, entretanto, não são restauradoras e não têm a ver com o controle do trauma: em vez de uma paciente libertação do objeto no luto, indicam uma fixação obsessiva no objeto da melancolia.49 Entendida por Freud, a repetição de um acontecimento traumático é ferramenta para integrá-lo a uma economia psíquica, uma ordem simbólica – um dos conceitos fundamentais da psicanálise, a repetição tem caráter compulsivo, ligado à pulsão de morte: o sujeito re-edita acontecimentos traumáticos contra sua vontade. A recorrência deste sofrimento, no âmbito da transferência, produz efeitos de cura (e por isso a repetição é ferramenta clínica de tratamento de neuroses), a reelaboração incide sobre os afetos não representados, silenciados, indomados desde o trauma; a interpretação metafórica dá nome ao indizível, e, de tal forma, o sujeito ressignifica a experiência emocional até que os atos repetitivos percam consistência. O trauma é um afluxo excessivo de excitação e a constituição do psiquismo é fruto dos resíduos energéticos ocasionados pela proibição ou renúncia das satisfações pulsionais, ou seja, o psiquismo (e o pensamento) adviriam da impossibilidade da descarga dessas excitações, então desviadas para fins além da satisfação do princípio do prazer. Caso todas as excitações fossem passíveis de descarga, o homem funcionaria apenas pelo princípio do prazer, e seria impossível a organização cultural, que implica a renúncia e a retenção. Para Freud (“Futuro de uma Ilusão"), toda a cultura e suas instituições necessariamente se edificam sobre a coerção e a renúncia pessoal – ante o reconhecimento empírico de que seus pacientes passaram por situações nas quais seus desejos não podiam ser satisfeitos, Freud utilizou uma analogia, considerando o indivíduo tal qual um aparelho, movido por forças e energias, cujo objetivo último seria a eliminação da tensão represada – concebendo todo trauma como uma excitação de natureza sexual, cujo cenário maior é dado pelo complexo de Édipo.50 André Breton era estudante de medicina e atuava em instituições psiquiátricas no início da Primeira Guerra. O tratamento clínico nessas instituições incluía associação livre e 50 FULGENCIO, Leopoldo. A noção de trauma em Freud e Winnicott. Natureza humana, São Paulo, n. 2, dezembro de 2004. v. 6. p. 255-270. 49 FOSTER, 2017, p. 127. 48 SWENSON, Gene. What is Pop Art? Interviews with Eight Painters. Art News 62, Nova York, novembro de 1963. p. 26. 47 HACKET, Pat; WARHOL, Andy. POPism: The Warhol 60s. Nova York: Harcourt Brace Jovanovich, 1980. p. 50. 27 interpretação de sonhos: técnicas que fundaram os dispositivos do automatismo surrealista. Tão significante quanto, Breton intuiu a existência de uma surrealidade na base do delírios dos soldados que eram cuidados – sintomas de choque, neurose traumática e cenas de morte compulsivamente reencenadas. Simultaneamente, e com as mesmas evidências, Freud desenvolveu a noção de repetição compulsiva essencial às teorias de pulsão de morte e do “uncanny”: elaborado por Freud, “estranho” (do alemão “unheimlich”). Algo ao mesmo tempo familiar e perturbador: o uncanny é fundado pela ambiguidade, pela repetição, pelo retorno do reprimido, pelo duplo e/ou a confusão entre real e imaginado. O termo será ampliado em alguns parágrafos. Foster (“Compulsive Beauty”) coloca que foi num milieu médico que os surrealistas foram expostos a categorias protopsicanalíticas. Breton e Freud discordavam sobre a natureza dos sonhos: o primeiro os via como portadores do desejo, o segundo os lia como realizações ambíguas de desejos conflituantes. Para Breton, os sonhos e a realidade eram vasos comunicantes, e o surrealismo era comprometido com essa comunicação mística; para Freud, os dois localizavam-se em uma relação de deslocamento distorcido, e a anti-racionalidade do surrealismo o tornava suspeito.51 Freud endereçava à arte um processo de sublimação, não um projeto de dessublimação… como uma negociação de renúncia de instintos, não uma transgressão de proibições culturais. Breton não é o completo oposto, mas oscilava entre os dois polos: atraído à sublimação mas desconfiado de seu aspecto passivo, atraído à transgressão mas desconfiado de seu aspecto destrutivo [...] É claro que o surrealismo não servia lealmente à psicanálise ou meramente a ilustrava. A relação dos dois era um de fortes atrações e repulsões sutis.52 Breton tornou o automatismo central para o surrealismo: “afastado dos usos estritamente terapêuticos e das associações puramente místicas, reavaliado como fim sintético em vez de meio dissociativo, permitiu uma concepção do inconsciente baseada menos na divisão do que na reconciliação, menos na escuridão primordial e conteúdos infantis perversos do que em uma faculdade original da qual a imagem eidética nos dá uma idéia encontrada um traço entre os primitivos e as crianças”53 – igualmente importante, o automatismo apareceu para acessar este espaço idílico, ou pelo menos para registar as suas imagens libertadoras – 53 BRETON, Andre. The Automatic Message [1933]. In: ROSEMONT, Franklin (ed.) Breton, What Is Surrealism? Selected Writings. Nova York: Pathfinder, 1978. p. 105-109. 52 FOSTER, 1993, p. 2. 51 FOSTER, Hal. Compulsive Beauty. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1993. p. 2. 28 E, no entanto, esta concepção encantada do inconsciente foi logo desafiada, não apenas extrinsecamente pelos modelos freudianos, mas também intrinsecamente na prática automatista. Embora o automatismo tenha sido adotado porque parecia oferecer uma concepção reconciliadora, até mesmo hegeliana do inconsciente, a sua lógica empurrou os surrealistas para reconhecimentos em linha com a teoria freudiana tardia de uma luta primordial entre pulsões de vida e de morte – ou pelo menos é o que quero sugerir. Em qualquer caso, a própria insistência numa unidade primordial a ser alcançada através do inconsciente sugere uma intimação exatamente do contrário: que a vida psíquica é fundada na repressão e dilacerada pelo conflito.54 É claro que Breton e companhia formularam a questão do automatismo de forma muito diferente. Para eles, o problema era o da autenticidade, isto é, da ameaça representada pelo cálculo e pela correção à pura presença da psique automatista. Mas esta formulação deixou passar o problema mais fundamental – que o automatismo poderia não ser de todo libertador, não porque anulou os controles do (super)ego (tal era o seu propósito expresso), mas porque descentrou o sujeito radicalmente em relação ao inconsciente. Em suma, a questão das restrições da mente consciente obscureceu a questão mais importante das restrições da mente inconsciente. Em muitos aspectos, o fato de o surrealismo bretoniano confundir a descentralização com a libertação, a perturbação psíquica com a revolta social, contribuiu para a aporia em torno da qual girava. Esta aporia manifestou-se muitas vezes como uma ambivalência: por um lado os surrealistas desejavam esta descentralização (como Breton proclamou em 1920 e Ernst reafirmou em 1936, o surrealismo foi comprometido contra o princípio da identidade); por outro, temiam esta descentralização, e a prática automatista expôs os seus riscos de forma mais dramática. Pois o automatismo revelou um mecanismo compulsivo que ameaçava uma desagregação literal do sujeito e, ao fazê-lo, apontou para um inconsciente diferente daquele projetado pelo surrealismo bretoniano – um inconsciente que não é unitário ou libertador, mas primordialmente conflitante, instintivamente repetitivo.55 O estado psíquico alcançado através do automatismo foi relacionado por Breton a nirvana – representando a meta final do budismo, nirvana é o estado transcendental no qual o sujeito é liberado das consequências do karma e do ciclo de morte e reencarnação. Não existe sofrimento, nem desejo ou ego / senso de identidade – em “Surrealismo e pintura”; no primeiro texto de “La Revolution surrealiste”, descrito como mecânico: “Os autômatos já se multiplicam e sonham.” Foster conclui que tal associação sugere a total ambiguidade do automatismo surrealista, um “ditado mágico que torna alguém um autômato mecânico, uma máquina de gravação, um ser estranho porque ambiguamente senciente, nem animado nem inanimado, duplo e outro em um.”56 O “uncanny” (estranho) para Freud envolve o retorno de 56 Ibid., p. 5. 55 Ibid., p. 4-5. 54 FOSTER, 1993, p. 4. 29 um fenômeno familiar (imagem ou objeto, pessoa ou acontecimento) tornado estranho pela repressão. Esse retorno do reprimido torna o sujeito ansioso e o fenômeno ambíguo, e essa ambiguidade ansiosa produz os efeitos primários do estranho: (1) uma indistinção entre o real e o imaginado, que é o objetivo básico do surrealismo tal como definido em ambos os manifestos de Breton; (2) um confusão entre o animado e o inanimado, como exemplificado nas figuras de cera, bonecos, manequins e autômatos, todas imagens cruciais no repertório surrealista; e (3) uma usurpação do referente pelo signo ou da realidade física pela realidade psíquica, e, aqui, novamente o surreal é frequentemente experienciado, especialmente por Breton e Dali, como um eclipse do referencial pelo simbólico, ou como um encantamento de um sujeito a um signo ou sintoma, e seu efeito é muitas vezes o do uncanny: a ansiedade.57 O que parece maravilhoso de acordo com os surrealistas é, na verdade, o estranho segundo Freud, que traça esse estranhamento do familiar na própria etimologia do termo em alemão – unheimlich (estranho) deriva de heindich (familiar), ao qual vários sentidos da palavra retornam.58 Fotografia 2 - Os Kaminhas Sutrinhas Fonte: LEMOS (2013, p. 81) Marcia X Plástico, madeira pintada e tecido. 1995 Os dois avatares do estranho, a obsessão dos surrealistas, podem ser categorizados nas (1) fantasias primárias dos estados infantis e/ ou primordiais ou no (2) olhar – mau-olhado, o 58 Ibid., p. 7. 57 FOSTER, 1993, p. 7. 30 “gaze”... – especialmente em termos da antropologia e da psicanálise. O primeiro causa estranhamento quando “complexos infantis reprimidos são revividos por alguma impressão, ou quando as crenças primitivas que superamos parecem mais uma vez confirmadas.”59 O segundo, pois o mau-olhado representa o olhar como uma ameaça castrativa (enquanto o duplo, segundo Freud, representa uma figura protetora transformada pela repressão em prenúncio de morte)60. O estranho, por fim, é simbolizado por dois estados reprimidos: castração e morte. E já que a pulsão de morte é carregada de eroticismo, o prazer pode ser sentido na destruição e no desejo levantados pela morte: mais um dos fascínios dos surrealistas é o sadismo – e a intersecção entre o erótico e a destruição, que, no surrealismo, é um modo de operação: a destruição do objeto em si. Tipicamente dirigido a figuras femininas, esse sadismo é frequentemente traduzido em punição e castração, na materialização das projeções do sujeito patriarcal. E é por isso que as imagens surrealistas devem ser submetidas à crítica feminista. Entretanto, são representações ambiguamente reflexivas sobre as fantasias masculinas, não meramente expressivas.61 Fotografia 3 - Étant Donnés Fonte: DUCHAMP (2009, p. 76) Marcel Duchamp Instalação. 153 x 111 x 300 cm 1946 - 1966 61 Ibid., p. 13. 60 FOSTER, 1993, p. 7. 59 FREUD, Sigmund. The Uncanny. In: RIEFF, Philip (org.) Studies in Parapsychology. Nova York: Collier Books, 1963. p. 54. 31 O sujeito (em Lacan) está numa dupla posição na qual, ao passo que olha o objeto, é também “olhado de volta” em um ponto luminoso. O anteparo é o mediador do olhar-objeto para o sujeito, e, a fim de protegê-lo, captura, domestica e converte o objeto na imagem: é o anteparo que permite que o sujeito contemple o objeto nesse ponto luminoso. A pintura, por exemplo, seria o anteparo para o olhar; uma representação simbólica – de natureza elusiva – de um objeto que não pode ser alcançado ou satisfeito. Ver sem o anteparo seria ser cegado pelo olhar ou tocado pelo real62: o olhar aqui é “uma força violenta que pode deter e matar se não desarmada antes.” Foster, em “O retorno do real”, lança mão da observação do romancista Philip K. Dick: a paranoia enquanto desenvolvimento moderno de um sentido arcaico – “a atenção de animais que servem de presa, um sentido atávico que informa animais vulneráveis sobre estarem sendo observados por algo que irá machucá-los.”63 Além, a paranoia seria um dispositivo que preserva a identidade através da manutenção da polaridade Eu e Outro. Outros modelos de visualidade (olhar masculino, vigilância, espetáculo) produzem paranoia: o olhar maléfico é agente de doença e morte, cega e castra. Fotografia 4 - Untitled [Your gaze hits the side of my face] Fonte: FOSTER (2017, p. 98) Barbara Kruger Fotografia e tipografia em papel. 47,9 × 39,1 × 4,4 cm 1981 63 DICK, Philip K. The collected stories of Philip K. Dick. Nova York: Carol Publishing, 1990. v. 2. epígrafe. 62 FOSTER, 2017, p. 135. 32 Mais do que a arte pop, o hiper realismo – e sua conexão com o surrealismo no registro subjetivo do real (além de, obviamente, os fetichismos sexuais e mercantis) – exalta o espetáculo capitalista e o apelo sexual do signo-mercadoria, enquanto se agarra à pretensão de mostrar a realidade das aparências: uma ilusão perfeita, entretanto, não existe, posta a impossibilidade de representação do real, que é, naturalmente, uma negativa do simbólico, um encontro faltoso, um objeto perdido. Os lampejos repetitivos da imagem de Warhol servem de punctum: em Barthes, aparecimento que transpassa, penetra, fere; detalhe descentrado e não codificável , ponto cego da fotografia…– equivalente visual de nossos encontros faltosos com o real. Warhol atualiza o inconsciente óptico de Walter Benjamin (relativo às alterações perceptivas e sensíveis em campo estético, viabilizadas pelas artes modernas como a fotografia e o cinema, ou, em outros termos, os efeitos subliminares das tecnologias modernas na imagem) em resposta à sociedade do espetáculo do pós-guerra, à comunicação em massa e aos signos-mercadorias. O que exibe é o sonho, ou pesadelo, na era da televisão e do American Way of Life, na condição de vítimas de choque que se preparam pra desastres que já aconteceram em momentos em que o espetáculo irrompe – assassinato de JFK, suicídio de Monroe, ataques racistas, desastres de carro. Foster relaciona as imagens sombrias de Warhol com as pinturas de Gerhard Richter sobre Baader-Meinhof: não é um assunto privado mas não pode ser explicado por um código público, o que revela, mais uma vez, a confusão traumática entre público e privado no sujeito.64 A repetição da imagem encobre a primeira ordem do choque, mas produz uma segunda ordem de trauma quando o punctum rompe o anteparo e permite que o real se insinue. Através dos buracos ou lampejos, quase tocamos o real: assim, as repetições se fixam no real traumático, o encobrem, o produzem65 – em termos lacanianos: Wiederholung (repetição do reprimido como sintoma ou significante); Wiederkehr (retorno de um encontro traumático com o real, algo que resiste ao simbólico, que existe além da insistência dos signos e além do princípio do prazer). Esse princípio do prazer, de forma simplista, é um princípio básico do funcionamento do aparelho psíquico na psicanálise, um processo primário e propósito dominante dos processos inconscientes: evitar desprazer pelo recalque/afastamento. O sintoma nos arrasta ao mesmo ponto, mas essa repetição nos oferece coerência e prazer; o real retorna violentamente ao simbólico, (não pode ser assimilado ali) para nos derrubar – como ruptura, é arrebatador e mortal; independente do princípio do prazer, deve ser 65 Ibid., p. 131. 64 FOSTER, 2017, p. 130. 33 restringido (pelo sintoma, ao menos).66 Em síntese, na imagem de Warhol, a repetição de uma imagem para encobrir um real traumático que retorna acidentalmente ou obliquamente nesse próprio encobrimento. Uma das posições da arte pós-modernista (ao menos em forma pós-estruturalista) é fundada por uma visão construcionista da realidade que corre em paralelo com a arte feminista em sua forma psicanalítica: o sujeito é ditado pela ordem simbólica67, seja na elaboração da ilusão do hiper-realismo, que apresenta a realidade como sufocada pela aparência, ou na revelação crítica da ilusão na arte de apropriação, que apresenta a realidade como construída na representação – posições distintas mas ambas centradas no anteparo-imagem. A imagem é a barreira que distancia o sujeito do real e que, no entanto, evoca a náusea do real em seu “hiper-realismo” intrusivo68; a arte de apropriação, por sua vez, pode ser crítica do anteparo, hostil ou fascinada, pode atravessar o anteparo-imagem em seu trabalho de revelar as ilusões da representação, sugerir o real… O desvio na concepção da realidade como efeito da representação ao real como traumático catalisou um desvio no foco do anteparo-imagem para o olhar-objeto na produção contemporânea, que frequentemente trava um duplo ataque ao sujeito e ao anteparo, a serviço do real. O trauma é trabalhado na arte contemporânea de formas distintas, e muitas obras de arte evocam o real através do ilusionismo: 1. arte hiper-realista e arte da apropriação que empregam o ilusionismo não para encobrir o real com superfícies simulacrais, mas para descobri-lo em coisas esquisitas – muitas vezes provocam estranhamento em objetos cotidianos relacionados ao corpo (Matthew Barney) ou provocam estranhamento em objetos da infância através do sinistro, patético, melancólico ou monstruoso (Mike Kelley) – e o ilusionismo aqui é ferramenta de provocação, mas pode ainda recair num surrealismo codificado69; 2. a segunda abordagem rechaça o ilusionismo e a sublimação do olhar-objeto numa tentativa de evocar o olhar em si mesmo – “esse é o âmbito primordial da arte abjeta, atraída para as fronteiras derrubadas do corpo violado [...] o corpo aparece como um duplo direto do sujeito violado, cujas partes são expostas como resíduos de violência e/ou vestígios de trauma”70: a ambição é trazer o trauma do sujeito à superfície (se seu objeto perdido não pode ser recuperado, pelo menos a ferida que ele deixou pode ser investigada). A investigação da ferida, considera Foster, pode, também, desembocar num realismo codificado (como no 70 Ibid., p. 146. 69 FOSTER, 2017, p. 145. 68 ŽIŽEK, Slavoj. Grimaces of the Real. October, Massachusetts, n. 58, 1991. p. 59. 67 Ibid., p. 132. 66 FOSTER, 2017, p. 141. 34 romance boêmio da fotografia vérité de Larry Clark e Nan Goldin) e, no entanto, provocador, visto que levanta a questão crucial da arte abjeta: a possibilidade de uma representação sem uma cena que encene o objeto para o observador, o objeto perto demais para ser pornográfico; neste, o objeto está suficientemente distante para que o espectador seja voyeur. A armadilha que derruba uma série de imagens contemporâneas é a encenação (para o espectador) do obsceno, que passa a ser controlado, e, dessa forma, traído e pornográfico: Muitas imagens contemporâneas só encenam o obsceno, tornam-no temático ou cênico, e assim o controlam. Desse modo, colocam o obsceno a serviço do anteparo, não contra ele, que é o que grande parte da arte abjeta faz, contrariando seus próprios desejos. Mas, então, poder-se-ia argumentar que o obsceno é a maior defesa tropaica contra o real, o último reforço do anteparo-imagem, não seu último diluente.71 Fotografia 5 - Bullet Hole / Buraco de Bala Fonte: STARLING (2003, p. 2012) Mat Collishaw Fotografia (Cibachrome) em quinze caixas retroiluminadas. 243,8 x 365,8 cm 1988 71 FOSTER, 2017, p. 146. 35 5 CONCLUSÃO / A ABJEÇÃO A arte do final da década de 1980 e do início da década de 1990 carrega extensiva influência da Pop-Art, mas despida do entusiasmo: expõe uma imagem ácida da sociedade urbana moderna com frivolidade melancólica – produto do colapso econômico, da atmosfera de desilusão e do niilismo do “fin-de-siècle”. As estéticas e políticas do choque se tornam câmbio comum do mundo da arte e o período é marcado pela busca por tópicos e imagens inaceitáveis, ou no mínimo perturbadoras e ameaçadoras. O ultimato desse fascínio exercido pelo horror, código último da crise e dos apocalipses mais sérios e íntimos, é um lugar sublime viabilizado por mecanismos da subjetividade marginal, porque essa revela, elabora, descarrega e escava o abjeto, e o horror parece dar forma ao apocalipse que reside onde as identidades não existem ou existem de forma heterogênea, difusa, metamorfoseada, animalesca, alterada, abjeta, nas frágeis fronteiras ou limítrofes. O apocalipse é a abjeção que alberga a moralidade, a política, a subjetividade, a linguagem e a estética, produzindo uma ficção quase religiosa de imaginação. Cindy Sherman, em suas primeiras obras, evoca o sujeito observado capturado pelo olhar (como grande parte das obras feministas do período), trabalhando nas lacunas em que as indústrias da moda e do espetáculo operam, na distância entre as imagens do corpo feminino e o corpo feminino de fato. O trabalho evolui, na produção mais tardia, em direção ao anteparo-imagem e seu repertório de representações: o sujeito invadido pelo olhar tornando essas lacunas psicóticas, em uma desidealização levada ao ponto de dessublimação. Os corpos, agora obliterados pelo olhar, desconjuntados como uma boneca, desviados da própria condição de sujeito: o terror (cicatrizes, desastres, deformações e aberrações sobrepostas às imagens dos contos de fadas, bonecas e objetos da infância) do corpo materno tornado estranho e repulsivo na repressão – o corpo de Julia Kristeva, virado pelo avesso, tornado abjeto, em cenas que carregam decadência e morte. Sherman rasga o anteparo através da corrosão do sujeito, no duplo ataque ao sujeito e ao anteparo mencionado há pouco: à medida que as imagens da artista evocam o fora virado pra dentro, também evocam o sujeito-como-quadro invadido pelo olhar-objeto, na direção do obsceno – “em que o olhar-objeto é apresentado como se não houvesse uma cena para encená-lo, uma moldura da representação para contê-lo, nenhum anteparo.”72 72 FOSTER, 2017, p. 144. 36 Fotografia 6 - Untitled #153 / Sem Título #153 Fonte: SHERMAN; DURAND; CRIQUI; MULVEY (2006, p. 318) Cindy Sherman Impressão cromogênica. 170,8 x 125,7 cm 1985 Fotografia 7 - Untitled #345 / Sem Título #345 Fonte: SHERMAN; DURAND; CRIQUI; MULVEY (2006, p. 318) Cindy Sherman Emulsão de prata em gelatina. 66 x 99,1 cm 1999 Na definição de Kristeva – filósofa, psicanalista e teórica feminista –, o abjeto é uma categoria de (não) sujeito: antes de ser sujeito ou depois de se tornar objeto; antes da total separação da mãe ou depois de se entregar ao estado de objeto, como um cadáver (de que 37 alguém deve se livrar para se tornar um).73 Esse não-sujeito primordial que, em primeiro lugar expulsa, é uma substância fantasmática não só estranha ao sujeito mas tão íntima que produz pânico. O abjeto, marcado por relações de subalternidade (e, no contexto da teoria feminista, naturalmente marcado pela diferença sexual e a violência do patriarcado), afeta a fragilidade de nossas fronteiras: a fragilidade da distinção espacial entre interior e exterior assim como a da passagem temporal entre o corpo materno e a lei paterna. A abjeção é uma condição na qual a posição de sujeito é perturbada, e uma geração de artistas de vanguarda opera nesses ordenamentos do sujeito e da sociedade, perturbando-os. Kristeva escreve num pêndulo entre a condição (ser) abjeta (ser repulsivo, pervertido, um [não] sujeito em risco) e a operação de abjetar (essa, expulsar e separar, diferenciar) fundamental para a manutenção do sujeito e da identidade, individual e social – a condição de ser abjeto, por sua vez, é corrosiva ao sujeito e à identidade. O interesse da arte abjeta depende da condição do anteparo-imagem e da ordem simbólica porque o artista que trabalha com a abjeção penetra a origem da repressão originária, o que implica uma crise no anteparo-imagem. Alguns o atacam, alguns o consideram já violado e buscam atrás dele o obsceno olhar-objeto do real, alguns exploram a repressão do corpo materno e os efeitos danosos de suas reminiscências e remanescências. Romper essa ordem não é mais o objetivo do artista pós-moderno (o sonho dissipou-se), mas expô-la em crise e registrar seus pontos de colapso e as possibilidades abertas por esses. A arte abjeta ora identifica-se como abjeto, se aproxima desse e investiga a ferida do trauma, querendo tocar tal olhar-objeto obsceno do real, ora representa a condição da abjeção provocando sua operação, flagra a abjeção, torna-a reflexiva e repelente em si mesma.74 Como quando o surrealismo entrou em colapso: para Breton, Bataille era um filósofo do excremento pois recusava elevar o baixo; para Bataille, Breton era uma vítima juvenil envolvida numa atitude icária, muito comprometido com a sublimação75 (ou seja, em evitar a perversão, convertendo impulsos socialmente inaceitáveis em ações socialmente aceitáveis). Enquanto Breton provocava a lei paterna quase como para se assegurar de que ela ainda existia, em um jogo de transposições, Bataille prendeu-se na abjeção, em um jogo de perversões, descontente com os refinamentos da sublimação e com os deslocamentos do desejo [...] Seriam essas, então, as opções que o artifício da abjeção nos oferece – travessura edipiana ou perversão infantil? Agir de modo sórdido com o desejo secreto de ser 75 Ibid., p. 150. 74 FOSTER, 2017, p. 147-158. 73 KRISTEVA, Julia. Powers of Horror: An Essay on Abjection. Tradução de Leon S. Roudiez. Nova York: Columbia University Press, 1982. 219 p. 38 espancado, ou rolar na merda com a fé secreta de que o mais corrompido poderia se tornar o mais sagrado, e o mais perverso, o mais potente?76 Fotografia 8 - Immersion [Piss Christ] / Imersão [Cristo no Mijo] Fonte: SERRANO; HOBBS; STEINER; TUCKER (1994, p. 34) Andres Serrano Fotografia Cibachrome, silicone, acrílico, moldura de madeira. 152,4 x 101,6 cm 1987 Foster categoriza: 1. artistas que exploram o corpo materno reprimido pela lei paterna; 2. artistas que assumem postura infantilizada para ridicularizar a lei paterna. “A regressão – personas infantilizadas, crianças anárquicas, ‘sujeitos autistas’ – tem precedentes (dadaísmo, Oldenburg, Ernst, neoexpressionismo…) e é talvez mais presente em épocas de reação, como códigos da alienação e da reificação, e seu interesse político é instável”77: aqui nos cabe trabalhar com o freudo-marxismo do filósofo esloveno Slavoj Žižek – o cinismo, elaborado extensivamente no trabalho de Žižek, é uma razão ou ideologia, um tipo de ceticismo que mascara a resignação. Peter Sloterdijk (filósofo alemão) havia, durante a ascensão da pintura de simulação e da escultura-mercadoria, elaborado a razão cínica: uma “falsa consciência 77 Ibid., p. 151. 76 FOSTER, 2017, p. 150. 39 esclarecida”78. A “razão cínica” responde aos impactos da mercantilização da arte e da cultura e à condição pós-moderna com ironia e cinismo em relação a valores culturais e sociais ou ceticismo em relação à autenticidade; por vezes profana cânones, destrona razões dominantes, narrativas e mitos culturais universalizantes, por vezes embarga possibilidades de engajamento crítico e ação política. O cínico sabe que suas crenças são falsas ou ideológicas mas, não obstante, as conserva por uma questão de autoproteção, como uma forma de negociar as exigências contraditórias que lhe são dirigidas. Essa duplicidade lembra a ambivalência do fetichista em Freud: um sujeito que reconhece a realidade da castração ou do trauma (ou, em minha analogia aqui, do conflito estético ou da contradição política) mas a renega. Já o cínico menos renega e mais ignora essa realidade, e essa estrutura torna-o quase impermeável à crítica da ideologia, pois ele já está desmistificado, já está esclarecido sobre sua relação ideológica com o mundo (isso permite também que o cínico sinta-se superior às críticas da ideologia). Assim, ao mesmo tempo ideológico e esclarecido, o cínico está ‘reflexivamente amortecido’: sua própria cisão o blinda, sua própria ambivalência o torna imune. Nesse aspecto, Sloterdijk descreve a razão cínica menos como uma brincadeira com o fetichismo que como um ‘coquetismo’ com a esquizofrenia, uma formulação que reflete a posição do sujeito de grande parte da arte contemporânea.79 Uma figura híbrida é o “palhaço obsceno contemporâneo, parte artista de circo, parte paciente psicótico”80 que se vê em Mike Kelley. Na década de 1990, o afastamento do pai e a distorção de sua lei, através de figuras de perversão, manifestam-se num “movimento da merda” (shit-movement). Kelley estabelece grande contribuição para a crítica, dirigindo sua provocação infantilizada a uma disfunção adolescente: “Um adolescente é um adulto disfuncional, e a arte é uma realidade disfuncional, na minha opinião”81 – aqui, repito, a distorção da lei paterna perturba a diferença simbólica. Kelley, entretanto, também evoca o corpo materno em brinquedos e cobertores (sujos, profanados), pensando o materialismo por meio de fatos psicológicos ou sociais: em uma nota de rodapé (61, p. 151) de “O retorno do real”, Foster escreve que Kelley aponta a dualidade da evocação do corpo materno em brinquedos e cobertores aconchegantes, que, através da profanação, também registram uma agressão advinda do abandono. Lumpen, palavra alemã para “farrapo” – Lumpensammler 81 SUSSMAN, Elisabeth (org.) Catholic Tastes. Nova York: Whitney Museum of American Art, 1994. p. 51. 80 Ibid., p. 151. 79 FOSTER, 2017, p. 114. 78 SLOTERDIJK, Peter. Critique of Cynical Reason. Tradução de Michael Eldred. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1987. p. 5. 40 (trapeiro de Baudelaire), Lumpenproletariat (massa esfarrapada demais pra formar uma classe em Marx): Kelley trabalha com farrapos, na escória, no dejeto, no refúgio de todas as classes82. “O resultado é uma arte de formas lúmpen (bichinhos de brinquedo encardidos, costurados uns aos outros, constituindo massas disformes); tapetes imundos estendidos sobre formas repugnantes), temas lúmpen (imagens de sujeira e lixo) e personas lúmpen (homens disfuncionais que, em porões e quintais, constroem estranhas engenhocas encomendadas de obscuros catálogos. A maioria dessas coisas resiste à configuração formal, mais ainda à sublimação cultural ou à redenção social.”83 A produção é carregada de referentes sociais. Esse culto da abjeção, essa postura de indiferença (apáticos e fracassados, grunges) expressa, por vezes, o cansaço da política das diferenças sociais, sexuais, étnicas… por vezes, o cansaço mais fundamental: impulso à indistinção, desejo de não ter desejo, de acabar com tudo. A indistinção aqui não opera enquanto uma adaptação protetora, ou subjetividade (os organismos são desapossados de seus privilégios) mas de uma certa esquizofrenia. A fratura do corpo, o olhar devorando o sujeito, o sujeito tornando-se espaço – condições evocadas na arte recente (Sherman, por exemplo) redefinem, de forma sublime, o ideal perverso da beleza, uma possessão convulsiva do sujeito entregue a uma jouissance – termo anglo-francófono (arcaico) retomado por Lacan, comumente traduzido como “Gozo” (no sentido psicanalítico), mas que denomina algo além do princípio do prazer, aqui, um arremesso interminável que não reduz as tensões através da satisfação do desejo, porque está em excesso e é inquantificável; o caminho da jouissance é a pulsão de Thanatos, ou o instinto de morte que regula a atividade psíquica do sujeito em conflito. A jouissance feminina é, também, o desejo de preencher um vazio superior que denuncia um sentimento de castração que se pretende erradicar – mortal. O culto à abjeção e o sucesso do fracasso são elaborados por Foster em “Cult of Despair”, artigo publicado na New York Times em dezembro de 1994: a estética do patético, a ética do perdedor que emergiu nas música e na arte que evitava o princípio da performance que nos orienta a ser trabalhadores bons e consumidores felizes. O grunge – eco do punk britânico das crianças da classe trabalhadora marginalizadas da ordem social –, por exemplo, era uma estética da indiferença que foi além de uma pose de tédio para um desejo de acabar com tudo: “Sobre o que era a música do Nirvana se não o princípio do nirvana em si, uma canção de ninar zumbida para a batida onírica da pulsão de morte?”84 O grunge, por sua vez, carecia a raiva e a anarquia do punk, e se resignou ao niilismo. 84 FOSTER, Hal. Cult of Despair. New York Times, Nova York, 30 de dezembro de 1994. p. 31. 83 FOSTER, 2017, p. 155. 82 MARX, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte [1851]. Tradução de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011. p. 91. 41 No culto à abjeção, há uma competição para ver quem é o mais caído, o mais morto – como se o sujeito da história, depois do Trabalhador, da Mulher e da Pessoa de Cor fosse agora o Cadáver. Este culto, então, aponta às novas políticas da indiferença – ou ao menos à nova fatiga das velhas políticas de diferença, sejam definidas em termos de classe, gênero ou raça. Não tanto tempo atrás, experimentaram diferentes identidades e diferentes fantasias. Hoje este desejo parece consumista, e uma nova ambição emergiu: a de se estar encarcerado na identidade, encurralado em trauma.85 A “possessão convulsiva”, conceito emprestado de André Breton, figura central do surrealismo, originalmente tratava-se da sugestão de que a verdadeira beleza e a verdadeira criatividade surgiam da mente inconsciente, de um estado de intensidade psíquica e emocional. A possessão sugere, agora, um distanciamento das calculadas e irônicas estratégias do pós-modernismo, frequentemente escoradas na apropriação e no pastiche. Essa possessão convulsiva relacionada à cultura contemporânea pode ser traduzida em duas partes constituintes: a êxtase no colapso imaginado do anteparo-imagem e/ou da ordem simbólica e um horror diante desse acontecimento fantasmático seguido por desespero86; muitos artistas, de fato, exploravam os simulacros e pastiches históricos no início da década de 1980, extáticos com o boom econômico do governo Reagan – Jameson apontava, como sintoma primordial pós-moderno, um colapso esquizofrênico da linguagem e da temporalidade, que provocou um investimento compensador na imagem e no instante87 –, seguidos pela melancolia associada à recessão do fim da década e do início da década seguinte. Em enunciações do tempo em que Foster escreve “O retorno do real”, a estrutura melancólica domina os discursos na arte, indicadores da ordem simbólica em crise. Para Jameson, esquizofrênico, para Foster, bipolar: o artista pós-moderno seria movido pela ambição de “habitar um lugar de afeto total ou ser completamente esvaziado do afeto, de possuir a vitalidade obscena da ferida ou ocupar a niquilidade radical do cadáver.”88 Outra bipolaridade, entre extático e abjeto, é elaborada na afinidade observada na crítica cultural entre barroco e pós-moderno: na direção de um estilhaçamento em êxtase que também é um rompimento traumático, obcecados com as figuras do estigma e da mancha. Como foi sugerido, há uma insatisfação com o modelo textualista da cultura e com a visão convencionalista da realidade – como se o real, reprimido no pós-modernismo pós-estruturalista, tivesse retornado como traumático. Logo, 88 Ibid., p. 156. 87 Ibid., p. 156. 86 FOSTER, 2017, p. 156. 85 FOSTER, 1994, p. 31. 42 também há uma desilusão com a exaltação do desejo como um passaporte aberto de um sujeito móvel – como se o real, depreciado por um pós-modernismo performativo, tivesse sido mobilizado contra o mundo imaginário de uma fantasia capturada pelo consumismo. Mas existem forças poderosas em ação também em outras partes: o desespero ante a persistência da crise da Aids, doença e morte invasivas, pobreza e crime sistêmicos, o bem-estar social destruído, inclusive o contrato social rompido (pois de cima os ricos não participam da revolução e de baixo os pobres são largados na miséria). A articulação dessas diferentes forças é difícil; em conjunto, no entanto, elas estimulam a preocupação contemporânea com o trauma e a abjeção [...] Seria a abjeção uma recusa do poder, seu estratagema ou sua reinvenção? Por fim, seria a abjeção um espaço-tempo para além da redenção, ou o caminho mais rápido dos santos-malandros contemporâneos para a graça?89 Dois imperativos contraditórios na cultura contemporânea – a análise desconstrutiva e a política da identidade – são resolvidos pelo discurso do trauma, que eleva e evacua o sujeito simultaneamente: virada significativa na arte contemporânea, que tende a redefinir a experiência, individual e histórica, em termos de trauma (dando, por um lado, continuidade à crítica pós-estruturalista do sujeito, por outro, assegurando o sujeito) – o registro psicológico do sujeito perturbado como testemunha e sobrevivente é o renascimento do autor: aqui convergem o retorno do real e o retorno do referencial.90 90 Ibid., p. 158. 89 FOSTER, 2017, p. 157. 43 Fotografia 9 - Arena #7 [Bears] / Arena #7 [Ursos] Fonte: CROW (2023, p. 238) Mike Kelley Instalação. 29 x 134 x 124 cm 1990 Fotografia 10 -Mad Dog Fonte: KULIK (2001, p. 10) Oleg Kulik Fotografia. 30 x 40 cm 1994 44 REFERÊNCIAS 1 FOSTER, Hal. O retorno do real: A vanguarda no final do século XX [1996]. Tradução de Célia Eduardo. São Paulo: Ubu Editora, 2017. 5 OWENS, Craig. The Allegorical Impulse: Toward a Theory of Postmodernism. October, Massachusetts, n. 12, 1980. 7 BAUDRILLARD, Jean. Para uma crítica da economia política do signo [1981]. Tradução de Artur Mourão. Rio de Janeiro: Elfos, 1995. 9 CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia. Crítica y Emancipación, Buenos Aires, n. 1, junho de 2008. 11 DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido [1969]. Tradução de Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 2001. 13 JAMESON, Frederic. Postmodernism and Consumer Society. In: FOSTER, Hal (org.) The Anti-Aesthetic: Essays on Postmodern Culture. Port Townsend, Washington: Bay Press, 1983. 24 HABERMAS, Jürgen. A Modernidade: Um projeto inacabado? [1980]. Tradução de Nuno Ferreira Fonseca. Crítica - Revista do Pensamento Contemporâneo, Lisboa, n. 2, novembro de 1987. 41 BARTHES, Roland. That Old Thing, Art. In: TAYLOR, Paul (ed.) Post-Pop Art, Cambridge: MIT Press, 1989. 42 BAUDRILLARD, Jean. Pop – An Art of Consumption? In: TAYLOR, Paul (ed.) Post-Pop Art, Cambridge: MIT Press, 1989. 43 CROW, Thomas. Saturday Disasters: Trace and Reference in Early Warhol [1987]. In: MICHELSON, Annette (ed.) Andy Warhol. Cambridge, Mass.: MIT Press, 2001. 45 BARTHES, Roland. La Nouvelle Citroën. In: Mythologies [1957]. Tradução de Annette Lavers. Londres: Vintage Books, 2000. 45 47 HACKET, Pat; WARHOL, Andy. POPism: The Warhol 60s. Nova York: Harcourt Brace Jovanovich, 1980. 48 SWENSON, Gene.What is Pop Art? Interviews with Eight Painters. Art News 62, Nova York, 1963. 50 FULGENCIO, Leopoldo. A noção de trauma em Freud e Winnicott. Natureza humana, São Paulo, 2004. v. 6. 51 FOSTER, Hal. Compulsive Beauty. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1993. 53 BRETON, Andre. The Automatic Message [1933]. In: ROSEMONT, Franklin (ed.) Breton, What Is Surrealism? Selected Writings. Nova York: Pathfinder, 1978. 59 FREUD, Sigmund. The Uncanny. In: RIEFF, Philip (org.) Studies in Parapsychology. Nova York: Collier Books, 1963. 63 DICK, Philip K. The collected stories of Philip K. Dick. Nova York: Carol Publishing, 1990. v. 2. 69 ŽIŽEK, Slavoj. Grimaces of the Real. October, Massachusetts, n. 58, 1991. 74 KRISTEVA, Julia. Powers of Horror: An Essay on Abjection. Tradução de Leon S. Roudiez. Nova York: Columbia University Press, 1982. 80 SLOTERDIJK, Peter. Critique of Cynical Reason. Tradução de Michael Eldred. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1987. 83 SUSSMAN, Elisabeth (org.) Catholic Tastes. Nova York: Whitney Museum of American Art, 1994. 84 MARX, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte [1851]. Tradução de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011. 86 FOSTER, Hal. Cult of Despair. New York Times, Nova York, 30 de dezembro de 1994. 46 REFERÊNCIAS DAS ILUSTRAÇÕES 1 CRONE, Rainer. Andy Warhol. Nova York: Praeger, 1970. 2 LEMOS, Beatriz.Marcia X. Rio de Janeiro: Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 2013 3. DUCHAMP, Marcel.Manual of Instructions: Étant donnés. Philadelphia: Philadelphia Museum of Art, 2009. 4 FOSTER, Hal. O retorno do real: A vanguarda no final do século XX [1996]. Tradução de Célia Eduardo. São Paulo: Ubu Editora, 2017. 5 STARLING, Anna. Frieze Art Fair Yearbook. Londres: Thames & Hudson, 2003. 6 SHERMAN, Cindy; DURAND, Regis; CRIQUI, Jean-Pierre; MULVEY, Laura. Cindy Sherman. Paris: Flammarion, 2006. 7 SHERMAN, Cindy; DURAND, Regis; CRIQUI, Jean-Pierre; MULVEY, Laura. Cindy Sherman. Paris: Flammarion, 2006. 8 SERRANO, Andres; HOBBS, Robert Carleton; STEINER, Wendy; TUCKER, Marcia. Andres Serrano: works 1983-1993. Pennsylvania: University of Pennsylvania, Institute of Contemporary Art, 1994. 9 CROW, Thomas. The Artist in the Counterculture: Bruce Conner to Mike Kelley and Other Tales from the Edge. Princeton: Princeton University Press, 2023. 10 KULIK, Oleg. Art Animal. Birmingham: Ikon Gallery, 2001.