UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS EWERTON MEIRELIS GONÇALVES DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS NO DIREITO SOCIETÁRIO FRANCA 2013 EWERTON MEIRELIS GONÇALVES DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS NO DIREITO SOCIETÁRIO Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para obtenção do Título de Mestre em Direito. Área de Concentração: Sistemas Normativos e Fundamentos da Cidadania. Orientador: Prof. Dr. Luiz Antonio Soares Hentz FRANCA 2013 0 Gonçalves, Ewerton Meirelis Direitos e garantias fundamentais no direito societário/Ewerton Meirelis Gonçalves. – Franca : [s.n.], 2013 141 f. Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências Humanas e Sociais. Orientador: Luiz Antonio Soares Hentz 1. Direito comercial – Brasil. 2. Acionistas minoritários. 3. Sociedades comerciais. 4. Sociedades por ações. 5. Empresas Comerciais – Brasil. I. Título. CDD – 342.22 CDD – 341.337 EWERTON MEIRELIS GONÇALVES DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS NO DIREITO SOCIETÁRIO Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para a obtenção do título de Mestre em Direito. Área de Concentração: Sistemas Normativos e Fundamentos da Cidadania. BANCA EXAMINADORA Presidente: _______________________________________________________ Prof. Dr. Luiz Antônio Soares Hentz 1º Examinador: ____________________________________________________ 2º Examinador: ____________________________________________________ Franca, ______de ___________ de 2013. À Lígia, inspiradora e incentivadora em tudo que faço. Aos meus filhos Rafael, Clara e Carolina, que me fazem tentar ir um pouco além da minha modesta capacidade. 1 AGRADECIMENTOS Ao Prof. Dr. Luiz Antonio Soares Hentz, homem que alcançou grau de excelência em tudo que fez e faz. Mestre dedicado, procurou guiar-me com paciência, prontidão e competência extremada. Aos Profs. Drs. Paulo Roberto Colombo Arnoldi e Gustavo Saad Diniz, os quais, de maneira extremamente gentil, participaram de minha banca de qualificação, trazendo contribuições valiosíssimas para o trabalho. Aos meus pais, Marcos e Euripedas, aos meus irmãos Alex e Érika e à minha avó Geracina. Aos amigos e companheiros do fórum Dr. Renê José Abrahão Strang, Paula Regina Santos Nogueira e Rosana Aparecida Roque, pelo auxílio inestimável, quando minha ausência foi imprescindível. Ao Dr. Leandro Guitarrara Bozolla e a Neliane Pereira do Carmo pelas cultas e precisas contribuições . À querida cunhada Irma Helena Ferreira Bonfim, orientadora no “pré”- mestrado e incentivadora desde sempre. E a Deus, não porque Ele necessite do meu agradecimento, mas porque eu necessito agradecer. 2 GONÇALVES, Ewerton Meirelis. Direitos e garantias fundamentais no direito societário. 2013. 132 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2013. RESUMO O estudo tem início com a historicidade e desenvolvimento dos direitos fundamentais, bem assim sua crescente importância nos sistemas jurídicos atuais. Em seguida, analisa-se a moderna tendência de constitucionalização do direito privado, em especial a análise da eficácia dos direitos fundamentais junto aos particulares. Pretende-se aferir o estágio atual da discussão doutrinária, demonstrar o entendimento da jurisprudência brasileira quanto à admissibilidade da eficácia dos direitos fundamentais nas relações interprivados e sobretudo oferecer parâmetros para aferir a exata medida desta eficácia. A partir deste ponto, indaga-se de que forma dita eficácia pode alterar a atuação das sociedades empresárias nas relações entre si, nas relações entre sociedade e sócio e naquelas firmadas entre os próprios sócios. Toma-se o conteúdo das normas dos incisos LIV e LV do art. 5º da Constituição Federal, nos quais se assegura o devido processo legal para privação de bens e direitos, além de garantir aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, o contraditório e a ampla defesa, apresentando diretrizes dessas garantias no campo do direito societário. O trabalho apresenta caso expresso de eficácia horizontal dos direitos fundamentais e estampado no art. 1.085 do Código Civil, que cuida da exclusão de sócio minoritário em assembleia ou reunião de sócios. Com base nesta mesma norma, ainda é avaliado o uso da prova ilícita contra o sócio e a possibilidade de se dispor de maneira assimétrica sobre a exclusão de algum ou alguns dos sócios, impondo diferenciações entre eles. Também analisa a vinculação de sócio superveniente à cláusula compromissória inserida em estatuto ou contrato social. Por fim, sempre a título exemplificativo, trata do acordo de acionistas à luz dos efeitos dos direitos fundamentais. Palavras-chave: direitos e garantias fundamentais. constitucionalização. eficácia horizontal. direito societário. GONÇALVES, Ewerton Meirelis. Fundamental rights and guarantees in corporate law. 2013. 132 p. Dissertation (Master’s Degree in Law) – School of Human and Social Sciences, “Júlio de Mesquita Filho” São Paulo State University, Franca, 2013. ABSTRACT The study starts with the historicity and development of fundamental rights, as well as its increasing importance in current legal systems. Subsequently, the modern trend towards the private law constitutionalization, in particular the effectiveness of fundamental rights with private individuals, is analysed. The purpose is to assess the current stage of the doctrinal discussion, demonstrate an understanding of the Brazilian jurisprudence as for the admissibility of the effectiveness of fundamental rights in interprivate relations and above all, provide parameters to assess the exact extent of such effectiveness. From this point, a question is raised on how that effectiveness can change the performance of corporations in the relations between themselves, as well as between corporation and member and those forged between the members themselves. Considering the provisions of items LIV and LV of article 5 of the Brazilian Constitution, which ensure the due legal process to deprivation of assets and rights, as well as guarantee to litigants, in judicial or administrative proceedings, and the defendants in general, the contradictory and the right to be heard, the guidelines of these guarantees in the field of corporate law are presented. This paper presents an express case of horizontal effectiveness of fundamental rights and set forth in article 1.085 of the Brazilian Civil Code, providing for the exclusion of the minority member in the general meeting or a special meeting of members. Based on this same standard, the use of unlawful evidence against the member and the possibility of an asymmetric provision of the exclusion of one or some of the members is evaluated and differentiated. This paper also analyzes the binding of supervenient member to the arbitration clause inserted in the articles of organization. Finally, by way of example, this paper discusses the shareholders' agreement in the light of the effects of fundamental rights. Keywords: fundamental laws and guarantees. constitutionalization. horizontal effectiveness. corporate law. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 9 CAPÍTULO 1 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E SUA EFICÁCIA .......................... 12 1.1 Princípios constitucionais e sua força normativa .......................................... 12 1.2 Histórico e desenvolvimento dos direitos fundamentais .............................. 22 1.3 Concepção normativa dos direitos fundamentais ......................................... 28 1.4 Autonomia privada e constitucionalização do direito.................................... 31 CAPÍTULO 2 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E AS TEORIAS SOBRE SUA EFICÁCIA .......................................................................................... 37 2.1 A eficácia dos direitos fundamentais na visão da doutrina .......................... 37 2.1.1 Doutrina da State Action ................................................................................... 38 2.1.2 Doutrina negatória da eficácia inter privatos dos direitos fundamentais ........... 42 2.1.3 Eficácia direta – Drittwirkung Der Grundrechte ................................................ 44 2.1.4 Eficácia indireta – mitellbare Drittwirkung ......................................................... 47 2.1.5 Eficácia indireta após o caso Lüth .................................................................... 51 2.1.6 Tertium genus: a doutrina de Robert Alexy ...................................................... 55 2.1.7 Reflexos da doutrina de Robert Alexy .............................................................. 59 2.2 Autonomia privada e restrição a direitos fundamentais ..................... 61 CAPÍTULO 3 A JURISPRUDÊNCIA E A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO DIREITO SOCIETÁRIO ................................. 68 3.1. A eficácia entre particulares em sua dimensão objetiva .............................. 68 3.2 Jurisprudência estrangeira .............................................................................. 68 3.2.1 O caso Lüth ...................................................................................................... 68 3.2.2 Shelly versus Kramer ....................................................................................... 71 3.2.3 A Jurisprudência europeia ................................................................................ 72 3.3 A Jurisprudência brasileira ............................................................................. 74 3.3.1 O Supremo Tribunal Federal ............................................................................ 74 3.3.2 O Superior Tribunal de Justiça ......................................................................... 79 3.3.3 A justiça comum ............................................................................................... 83 CAPÍTULO 4 EFICÁCIA NO SISTEMA LEGAL PÁTRIO ........................................ 86 4.1 Caso expresso no sistema legal: exclusão de sócio minoritário extrajudicialmente ............................................................................................ 86 4.1.1 O art. 1.085 do Código Civil – uma outra hipótese ........................................... 91 4.1.2 Ainda o art. 1.085 do Código Civil - o uso de prova ilícita ................................ 93 4.2 A vinculação do sócio superveniente à cláusula compromissória do contrato ou estatuto social .............................................................................. 98 4.3 O acordo de acionistas – o art. 118 da Lei das S/A: falso caso de eficácia dos direitos fundamentais ............................................................................. 106 CONCLUSÃO ........................................................................................................ 115 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 125 9 INTRODUÇÃO É bastante conhecido o fenômeno ao qual se convencionou chamar constitucionalização do direito1, o que não pode ser entendido, simplesmente, como a superioridade normativa da Constituição num dado sistema legal, mas, sobretudo, como a irradiação dos efeitos das normas e dos valores do texto constitucional para todos os ramos do direito2. Nesta senda, importa dizer que o aspecto central dessa constitucionalização, sem dúvida, é a vinculação de particulares, nas relações entre si, aos direitos e garantias fundamentais, denominada como os efeitos horizontais dos direitos fundamentais3. Em verdade, a prática acabou por demonstrar não ser apenas o Estado o agente capaz de por em risco a parcela mínima de proteção do indivíduo, senão também – e, em alguns pontos, principalmente - outros particulares. A pesquisa do tema demonstra que a problemática de aplicabilidade dos direitos fundamentais na relação entre cidadão-cidadão, conquanto já disponha de trabalhos valorosos, ainda tem largo caminho a ser percorrido pela doutrina. Como já é sabido, a questão foi primeiramente enfrentada na Alemanha, ainda na década de 50 do século XX4. Além dos estudos do velho continente, o problema também mereceu especial atenção da jurisprudência norte-americana5. Desde já, entretanto, cabe reconhecer não dispor a jurisprudência norte-americana do mesmo recurso teórico dos europeus. 1 A percepção de que se modificou a maneira de entender o papel da Constituição é muito clara e vem explicada por Joaquín Arce y Flórez-Valdés ao dizer que “[...] la Constitución no sólo es uma norma jurídica, es también norma cualitativametne distinta y superior a las demás del ordenamento, em cuanto incorpora el sistema de valores essenciales de convivência, que há de sevir de piedra de contraste y de critério informativo e interpretativo de todo el ordenamento jurídico. [...] La Constitucion, em base a su entidade jurídica, significa uma superación de su antigua y apócrifa condición de mero documento político. Por su razón jurídica suprema, que le atribuye el estar situada em la cúspide normativa, manifiesta uma incidência em todo el ordenamento jurídico: también em del Derecho privado, también em el Derecho civil.” (FLÓRES-VLADÉS, Joaquín Arce. El derecho civil constitucional. Madrid: Civitas, 1986. p. 27). 2 SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 18. 3 A doutrina aponta outras tantas denominações, algumas com até maior propriedade técnica, mas sem o mesmo apelo daquela aqui adotada, v.g., eficácia irradiante, efeitos entre terceiros, eficácia privada e eficácia externa dos direitos fundamentais. 4 Trata-se do chamado Caso Lüth, que será analisado no item 3.2.1. 5 Um dos primeiros casos sobre a matéria e seguramente o mais conhecido envolveu Shelley versus Kraemer, que será analisado no item 3.2.2. 10 Após histórico do surgimento dos direitos fundamentais, sua caracterização inicial e desenvolvimento da concepção de seu alcance até as relações entre particulares, a pesquisa busca demonstrar em que medida este alcance pode alterar a relação entre as sociedades entre si, entre elas e seus componentes e mesmo as relações entre os próprios sócios, associados ou acionistas. Sem muitas referências adrede confeccionadas no presente campo e admitindo, portanto, a carência de trabalhos na área6, o estudo almeja observar como a nova hermenêutica, suplantando vetusto entendimento vigente até o século XX, implica consequências no direito societário, máxime nos pontos relativos à eficácia dos direitos fundamentais. A própria escassez de estudos específicos sobre a matéria, bem indica que não se trata de questão já superada ou solucionada. A tal respeito, é oportuna a afirmativa de Claus-Wilhelm Canaris quando, respondendo às críticas de esgotamento da problemática do tema, indica que tal superação está muito longe de ocorrer e que “[...] a problemática (dos direitos fundamentais e direito privado) encontra-se hoje em todas as bocas.”7 Também a indicar o estágio ainda inicial ou intermediário do tema, pode ser lembrada a afirmativa de Daniel Sarmento de que o direito constitucional suíço não aceita a vinculação direta ou indireta dos particulares aos direitos fundamentais8. Nada obstante a afirmativa, é certo que a Constituição suíça, desde 1999, 6 Não se pode olvidar, contudo, o estudo de Paulo Gustavo Gonet sobre a eficácia direta dos direitos fundamentais (drittwirkung) e as associações: BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Associações, expulsão de sócios e direitos fundamentais. Direito Público, Brasília, DF: Porto Alegre, v. 1, n. 2, p. 170-174, out./dez. 2003. Ainda, tratando da eficácia horizontal no direito privado, embora sem ferir diretamente a matéria societária, podem ser citados os seguintes trabalhos: STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2004; SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006; VALE, André Rufino do. Eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2004; SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais e direito privado: algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. In: ______. (Org.). A Constituição concretizada: construindo pontes com o público e com o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000; SOMBRA, Thiago Luís Santos. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídico-privadas: a identificação do contrato como ponto de encontro dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris. 2004. 7 CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos fundamentais e direito privado. Tradução de Ingo Wolfgang Sarlet e Paulo Mota Pinto. Coimbra: Almedina, 2003. 8 SARMENTO, op. cit., p. 227. 11 expressamente estendeu a eficácia aos particulares9. Mas não é só a Constituição suíça que trouxe a previsão. A doutrina especializada também aponta a Constituição portuguesa e a Constituição sul-africana com previsões semelhantes. Na América do Sul, a expressa previsão está inserida no ordenamento da Colômbia, Peru e Costa- Rica10. Paradigmático, no ponto, é o art. 1.085 do Código Civil, estabelecendo requisitos para expulsão extrajudicial de sócio minoritário, em tudo observado o contraditório e a ampla defesa. Há outros exemplos e falsos exemplos, todavia, colhidos no estudo do direito societário e, aqui, será analisado o acordo de acionistas, bem como a vinculação necessária do adquirente de cotas à cláusula compromissória fixada no contrato social ou estatuto antes de seu ingresso na sociedade. Por fim, desde logo, cabe deixar bem vincado a preocupação no sentido de que as relações de direito privado – as relações envolvendo sociedades, inclusive – continuem sujeitas à regulamentação da legislação ordinária, porque a horizontalidade dos direitos fundamentais não pode implicar desprezo às normas privadas, senão seu complemento. 9 Art. 35º. Execução dos direitos fundamentais. 1. Os direitos fundamentais devem ser respeitados em toda ordem jurídica. 2. Aquele que exerce funções estatais está comprometido com os direitos fundamentais e obriga-se a colaborar para sua concretização. 3. As autoridades devem cuidam para que os direitos fundamentais, desde que aplicáveis, sejam eficazes também entre pessoas privadas. 10 VALE, André Rufino do. Eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas: comentários ao RE 201.819. In: MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; VALE, André Rufino do. (Org.). A jurisprudência do STF nos 20 anos da Constituição. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 58. 12 CAPÍTULO 1 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E SUA EFICÁCIA 1.1 Os princípios constitucionais e sua força normativa Nos trabalhos que envolvem concepção, histórico, desenvolvimento, eficácia dos direitos e garantias fundamentais e, sobretudo, constitucionalização do direito, é quase imprescindível indicar, mesmo sem maiores desenvolvimentos, a discussão que se desenvolveu sobre os conceitos de norma, regra e princípio. O objetivo é reforçar a demonstração de que os direitos fundamentais não são meras indicações programáticas, despidas de eficácia direta e imediata. Ao reverso, alcançam todos os ramos do direito, mesmo o direito privado, por meio de sua essência axiológica, dispondo de força impositiva. Bem se sabe que o termo princípio é equívoco. E Isso nenhuma dificuldade apresenta desde que se atine, exatamente, em que sentido o termo está sendo tomado. Clóvis Beviclaqua, em conceito por demais vago, tomou os princípios como sendo os elementos fundamentais da cultura jurídica humana e não como princípios da cultura jurídica nacional.11 Já Espínola, depois de dizer que apenas o jurista sociólogo poderia aferir, com exatidão, o conceito dos princípios, teve o condão de afirmar que, a seu ver, os princípios gerais do direito correspondem às ordenações da natureza das coisas. E são neles que o próprio legislador vai arrimar-se para feitura da legislação. Muitos deles guardam, ainda segundo Espínola, um caráter universal, rompendo lugares e 11Argumenta aquele mestre, em uma defesa que reflete o tempo em que se viveu o grande mestre: “Esses princípios, objectam, são vagos, indeterminados. Mas não é tanto assim. Certamente temos de penetrar fundo na philosophia do direito, na historia da civilização, e ter o espírito apparelhado por uma educação jurídica bem cuidada, para emprehendermos a investigação dos princípios geraes do direito. Mas esse mesmo preparo mental indica a rota a seguir, e habilita o jurista a reconhecer a natureza positiva das coisas, elemento objectivo, impreciso, mas fecundo da investigação jurídica [...].” (BEVILAQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado por Clovis Bevilaqua. 5. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1936. v. 1. p. 112). 13 épocas, enquanto outros irão se modificar conforme a evolução das instituições sociais, políticas e morais, com reflexos sensíveis na ordem jurídica12. A extrema abstração em definir o que seriam os princípios gerais de direito levou Washington de Barros Monteiro, numa desiludida confissão, a afirmar que “[...] nada existe de mais tormentoso para o intérprete que a explicação dos princípios gerais de direito, não especificados pelo legislador.”13 Mais modernamente, princípios têm sido definidos da maneira diversa. Conforme apontamento de José Afonso da Silva, “[...] são ordenações que se irradiam e imantam os sistemas de normas [...]”14 ou, em outra concepção, são núcleos de condensações confluindo valores e bens de um povo por meio da Constituição. Os princípios fundamentais, ainda sob esta última ótica, destinam-se, essencialmente, a definir e caracterizar a coletividade política e enumerar as principais opções políticas na Constituição. Todavia, nos conceitos tradicionais do termo, a grande omissão, pelo menos até o século XX, foi a ausência de seu caráter normativo, segundo justa assertiva de Bonavides15. De fato, historicamente, os princípios eram tidos como fonte secundária de direito, jamais apresentando caráter normativo16 e, aliás, distinguidos do conceito 12 Nas palavras do doutrinador: “Os princípios gerais do direito, sendo os que correspondem àquele ordenamento imanente às relações da vida (natureza das coisas), no qual o próprio legislador vai haurir os seus mandamentos, teem um caráter universal, perdurando uns através dos tempos, outros se modificando, para acomodarem-se à evolução das instituições sociais, políticas, morais, econômicas, de que resultam sérias transformações na ordem jurídica.” (ESPINOLA, Eduardo; ESPINOLA FILHO, Eduardo. Lei de introdução ao código civil comentada: arts. 1 – 7. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1943. v. 1. p. 145). 13 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: parte geral. 3. ed. São Paulo: Forense, 1962. p. 44. 14SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2010. p.92. 15 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p.257. 16 Norberto Bobbio se posiciona favoravelmente à força normativa dos princípios, lecionando: “Os princípios gerais são, a meu ver, normas fundamentais ou generalíssimas do sistema, as normas mais gerais. O nome de princípios induz em engano, tanto que é velha questão entre juristas se os princípios são ou não normas. Para mim não há dúvida: os princípios gerais são normas como todas as demais. E esta é a tese sustentada também pelo estudioso que mais amplamente se ocupou da problemática, ou seja, Crisafulli. Para sustentar que os princípios gerais são normas os argumentos vêem a ser dois e ambos válidos: antes de tudo, se são normas aquelas das quais os princípios gerais são extraídos, através de um procedimento de generalização sucessiva, não se vê porque não devam ser normas também eles: se abstraio de espécie animais obtenho sempre animais, e não flores ou estrelas. Em segundo lugar, a função para a qual são abstraídos e adotados é aquela mesma que é cumprida por todas normas, isto é, a função de regular um caso. Para regular um comportamento não regulado, é claro: mas agora servem ao mesmo fim para que servem as normas expressas. E por que então não deveriam ser normas?” (BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 6. ed. Tradução de Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. Brasília, DF: Ed. UnB, 1995. p. 158-159). 14 de norma. Muito comuns as definições conceituando normas e princípios com relação apenas sutil17. Não é preciso mais que a lembrança à redação do art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (nova denominação da LICC) para comprovação do quanto até aqui alegado. Diz aquele artigo do Decreto-Lei: “Art. 4 - Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.” Ninguém olvida, entretanto, que referido conceito resta superado nos dias atuais. A evolução pormenorizada do conceito dos princípios de direito é narrada por Bonavides em apreciável estudo18. No Brasil, nada obstante a evolução da doutrina e da jurisprudência europeia no século XX, a força normativa dos princípios só se apresenta após a Constituição Federal de 198819. O estágio atual da discussão está atrelado à aplicabilidade imediata dos princípios constitucionais de molde a adaptar as regras vigentes na resolução de novos conflitos20. Superam-se os dualismos “norma/caso, direito/realidade” e a subsunção meramente lógica21. 17Sobre ampla classificação dos princípios, consultar: BERARDO, Euclides Celso. Deveres fundamentais: deveres e obrigações constitucionais. 2003. Tese (Doutorado em Direito). Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2003. 18BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 255-295. 19A respeito do tema: Barroso, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. O próprio Barroso acrescenta: “Fruto desse processo, a constitucionalização do Direito importa na irradiação dos valores abrigados nos princípios e regras da Constituição por todo o ordenamento jurídico, notadamente por via da jurisdição constitucional, em seus diferentes níveis. Dela resulta a aplicabilidade direta da Constituição a diversas situações, a inconstitucionalidade das normas incompatíveis com a Carta Constitucional e, sobretudo, a interpretação das normas infraconstitucionais conforme a Constituição, circunstância que irá conformar-lhes o sentido e o alcance. A constitucionalização, o aumento da demanda por justiça por parte da sociedade brasileira e a ascensão institucional do Poder Judiciário provocaram, no Brasil, uma intensa judicialização das relações políticas e sociais. Tal fato potencializa a importância do debate, na teoria constitucional, acerca do equilíbrio que deve haver entre supremacia constitucional, interpretação judicial da Constituição e processo político majoritário. As circunstâncias brasileiras, na quadra atual, reforçam o papel do Supremo Tribunal Federal, inclusive em razão da crise de legitimidade por que passam o Legislativo e o Executivo, não apenas como um fenômeno conjuntural, mas como uma crônica disfunção institucional.” BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 851, 1 nov. 2005. Disponível em:. Acesso em: 25 fev. 2012. 20Sucintamente, a juridicidade dos princípios pode ser traduzida em três distintas fases. A primeira, de cunho jusnaturalista, com forte arrimo ético-valorativo, além de inspiradora dos postulados da justiça. Essa fase teve declínio com a Escola Histórica do Direito, seguida de positivismo avassalador. De tal forma robusta a ideia positivista que Del Vechio, em Roma, na histórica aula inaugural do curso de Filosofia do Direito, buscou superá-la. Entretanto, somente no pós-positivismo http://jus.com.br/revista/texto/7547/neoconstitucionalismo-e-constitucionalizacao-do-direito 15 Não se creia, então, que os princípios tragam apenas caráter valorativo. Eles têm força impositiva autêntica, carregando prescrições de gênese constitucional e passíveis de coerção, tal como se dá com a regra. Tampouco se diga que eles são sempre genéricos ou imprecisos. Como diz Rothenburg, os princípios dispõem de significado determinado, com grau de concretização à vista de situações concretas22. A consequência da força normativa dos princípios é exigência de novos métodos de hermenêutica. Manoel Gonçalves Ferreira Filhos afirma que se consagrou a primazia dos princípios sobre as regras e que isso não tem nada de inaudito. Complementa afirmando que a diferenciação se estabelece na hipótese e na prescrição, que são mais restritas no caso da norma e alargadas nos princípios23. Em virtude do reconhecimento de tal força normativa, tornou-se importante a distinção entre estas duas espécies do gênero norma: regras e princípios. Há, em brevíssimo resumo, três teorias sobre a distinção entre regras e princípios. A primeira – inadequada para o atual estágio de desenvolvimento da ciência jurídica pós-positivista – postula que ambas apresentariam os mesmos predicados lógico-deônticos (o que refutaremos mais adiante), sendo enfim sinônimas ou, no máximo, não apresentando distinção juridicamente relevante. A segunda, por sua vez, pugna pela existência de uma distinção débil, frágil entre ambas, situando-a nos graus de generalidade e abstração. A terceira, denominada teoria da distinção forte, propõe a existência de diferença relevante entre uma e outra espécie normativa com fulcro em suas estruturas lógicas, não se limitando aos graus de generalidade e abstração. os princípios terão admitidos seu caráter normativo. E deve-se, sobretudo, a Dworkin as críticas mais contundentes ao jusnaturalismo e ao positivismo. 21BASTOS, Fabiana Ribeiro; LILLA, Fábio de Campos. A nova discussão a respeito dos princípios constitucionais. Revista do Advogado, São Paulo, ano 32, n. 117. p. 76-82, out. 2012. 22ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios constitucionais. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1999. p. 18. No mesmo sentido, todavia mais específico é Tepedino: “A atenção, portanto, se volta para a indispensável unidade interpretativa exigida no cenário de pluralidade de fontes normativas, a partir dos valores constitucionais, cuja utilização direta na solução das controvérsias do direito privado assegura, a um só tempo, a abertura do sistema e a sua unidade.” (TEPEDINO, Gustavo. Normas constitucionais e direito civil na construção unitária do ordenamento. Revista de Direito do Estado, Rio de Janeiro, n. 7, p. 69-80. jul./set. 2007). 23FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Princípios e regras em direito constitucional: contribuição para uma polêmica doutrinária. In: LUCCA, Newton de; MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro; BAETA, Mariana Barboza (Coord.). Direito constitucional contemporâneo: homenagem ao professor Michel Temer. São Paulo: Quartier Latin, 2012. p. 291-300. 16 A teoria da distinção forte é a que mais se coaduna com a compreensão do ordenamento jurídico como um sistema dotado de organicidade. E em virtude da distinção existente entre princípios e regras, afigura-se importantíssimo classificar determinada norma jurídica como uma destas categorias de norma, porquanto a solução de aplicabilidade será diametralmente oposta se se tratar de uma ou de outra. A classificação de uma norma como princípio ou regra, todavia, não é simples. Comumente, a literalidade textual da norma não é suficiente para tanto; vezes há em que o texto, embora se apresente aparentemente em termos absolutos, dá origem à norma principiológica. Por isso, a aferição classificatória demanda a compreensão de outras dimensões da norma em cotejo, em especial a qualidade do bem jurídico protegido pela norma e o domínio empírico sobre a qual se projeta. Tanto regras quanto princípios são dotados de generalidade, malgrado o nível desta em ambos sejam distintos. A generalidade de que são dotadas as regras é específica, delimitada; em outras palavras, regulamenta uma quantidade indeterminada de fatos jurídicos lato sensu, mas apenas aqueles determinados fatos que se subsumam a seus termos; daí porque a aplicação das regras opera-se por raciocínio de subsunção do fato concreto à hipótese normativa regrada. Nos princípios a generalidade é predicado mais presente, pois são igualmente gerais para regulamentar um sem número de fatos jurídicos lato sensu, mas não determina que fatos são estes, não os especifica em seus próprios termos. Por isso, a aplicação dos princípios se dá de modo muito mais rico do que a das regras, pois é incompatível com a subsunção do fato à norma. Para nós, de especial interesse se mostra a conceituação de princípios, como também sua distinção das regras na forma proposta por Robert Alexy. Para ele, é estrutural a diferença entre regra e princípio24. Tanto as regras como os 24 Em conferência feita na cidade do Rio de Janeiro-Capital, o próprio Alexy bem distinguiu: “Segundo a definição básica da teoria dos princípios, princípios são normas que permitem que algo seja realizado, da maneira mais completa possível, tanto no que diz respeito à possibilidade jurídica quanto à possibilidade fática. Princípios são, nesses termos, mandatos de otimização (Optimierungsgebote). Assim, eles podem ser satisfeitos em diferentes graus. A medida adequada de satisfação depende não apenas de possibilidades fáticas, mas também de possibilidades jurídicas. Essas possibilidades são determinadas por regras e sobretudo por princípios. A colisão dos direitos fundamentais devem ser consideradas segundo a teoria dos princípios é a ponderação. Princípios e ponderações são dois lados do mesmo fenômeno. O primeiro refere-se ao aspecto normativo; o outro, ao aspecto metodológico. Quem empreende ponderação no âmbito jurídico pressupõe que as normas entre as quais se faz uma ponderação são dotadas da estrutura de 17 princípios são normas, pois que ambos dizem o que deve ser. A abstração de um e outro os diferencia. Os princípios trazem comandos genéricos, com grande carga valorativa e menor carga normativa. As regras trazem grande força resolutiva e menor aplicativa. Daí se extrai que os princípios perdem em determinação, enquanto ganham em área de incidência. E é justamente a metodologia de aplicação das regras e dos princípios que implica o método de resolução de antonímias. Diante do fato de a subsunção reger a aplicação das regras, por raciocínio lógico-formal, tem-se que em sede de conflito entre regras aplica-se o método do “tudo ou nada” (all or nothing), ou seja, a norma é inteiramente aplicada ou inteiramente rejeitada (eficaz/incide); ou a norma é válida ou não é válida; inexiste uma terceira opção - tertium non datur. Se há duas regras com consequências jurídicas diversas para o mesmo caso, uma delas é inválida para o sistema25. Em princípios e quem classifica as normas como princípios acaba chegando ao processo de ponderação. A controvérsia em torno da teoria dos princípios apresenta-se, fundamentalmente, com uma controvérsia em torno da ponderação. Outra é a dimensão do problema no plano das regras. Regras são normas que são aplicáveis ou não aplicáveis. Se uma regra está em vigor, é determinante que se faça exatamente o que ela exige: nem mais nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no contexto fático e juridicamente possível. São postulados definitivos (definitive Gebote). A forma de aplicação das regras não é a ponderação, mas a subsunção. A teoria dos princípios não diz que o catálogo dos direitos fundamentais não contém regras; isto é, que ele não contém definições precisas. Ela afirma não apenas que os direitos fundamentais, enquanto balizadores de definições precisas e definitivas, têm estrutura de regras, como também acentua que o nível de regras precede prima facie ao nível dos princípios. O seu ponto decisivo é o de que atrás e ao lado das regras existem princípios. O contraponto para a teoria dos princípios não é, portanto, uma teoria que supõe que o catálogo dos direitos fundamentais contêm regras, senão uma teoria que afirma que os direitos fundamentais contêm somente regras. Somente essas teorias devem ser consideradas como teorias de regras (Regeltheorien) (Kollision und Abwagung als Grundprolem der Grundrechtsdogmatik, Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa, em 10-12- 1998) apud BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar Mendes. Curso de direito constitucional. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 380. 25Virgílio aponta dois exemplos de conflitos entre regras: “Se há uma regra que proíbe que os alunos de uma determinada escola deixem suas salas de aula antes que o sinal soe e, no conjunto de regras da mesma escola, há uma outra que impõe que esses mesmos alunos saiam de suas salas se tocar o alarme de incêndio, temos aqui um conflito parcial, pios a consequências jurídica da segunda – sair da sala mesmo que não toque o sinal, desde que toque o alarme – não é compatível com a proibição total de se sair da sala antes do sinal, como exige a primeira regra. O critério para a solução de tal conflito é fornecido peal conhecida máxima Lex specialis derogat legi generali e, por conseguinte, a segunda regra será encarada como uma exceção à primeira. Em um segundo exemplo, há uma regra que proíbe e outra que permite o fumo nas salas de aula. Aqui, não há a possibilidade da instituição de uma cláusula de exceção, como no exemplo anterior, porque as consequências jurídicas são totalmente excludentes entre si. Para a solução desse conflito só podem ser consideradas uma das outras duas máximas para solução de antinomias: lex posteriro derogat legi priori ou Lex superior derogat legi inferior. O resultado será, inevitavelmente, a declaração de invalidade de uma das regras (SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 33-34). 18 razão disso, as técnicas clássicas de resolução de conflitos de antinomia são suficientes para o deslinde de eventual imbróglio entre regras, utilizando-se o intérprete dos critérios de especialidade, cronologia ou hierarquia, conhecidos pelos famosos brocardos: lex specialis derrogat generalis, lex posterior derrogat priori ou lex superior derrogat legi inferior – com razoável sucesso. Diversamente, é justamente por não admitir a subsunção que eventual colisão entre princípios não se resolve pelo método do tudo ou nada. Em havendo, em dado fato concreto, colisão entre princípios, a solução não se dá pelo raciocínio exposto. Por conseguinte, a colisão entre princípios não enseja a declaração de invalidade de nenhum daqueles envolvidos no caso e nem se pode tomar um como exceção do outro. Fala-se em relação condicionada de precedência, dirimida concretamente pela técnica da ponderação, que será tratada em momento oportuno. Por se tratar de mandamento de otimização, o princípio exige a realização de algo na maior medida possível, sempre se coadunando com as circunstâncias fáticas e jurídicas. O que pode existir é sua limitação parcial ou, em situações extremas, a limitação pode ser total, a depender do caso concreto. Nem por isso ele será tomado como inválido. Existirá uma relação de preferência de um dos princípios envolvidos exatamente para um dado caso. Nada obstante, é defeso garantir eterna preferência daquele princípio em detrimento do outro, pois, se isso ocorrer, não estaremos diante de um princípio. Em outras palavras, a escolha por um e não por outro ocorre casuisticamente, nada garantindo que, em outra hipótese, com alteração das circunstâncias, o desfecho seja idêntico. Na síntese de Ávila, as regras estipulam consequências normativas diretas, enquanto os princípios detém dimensão de peso, com conteúdo determinado só no caso concreto. As regras trazem obrigações absolutas, os princípios, prima facie, ou seja, podem ser derrogados em função de outros princípios.26 Em dado sentido, trata-se de prestigiar o pensamento sistemático tal como defende Canaris27. Também se pode pensar nos princípios como fundamento de validade na aplicação das regras, sob pena de se tomar dita norma como 26ÁVILA, Humberto Bergmann. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. 27CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Introdução e Tradução de Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008. 19 antijurídica, pois desprovida de fundamento de validade, tal como proposto por Kelsen. A formulação hipotética de Robert Alexy é esclarecedora. Diz o mestre alemão que “se o princípio P1 prevalece sobre o princípio P2 diante das condições C: (P1 P P2) C, e se do princípio P1, diante das condições C, decorre a consequência jurídica R, então vale uma regra que contém C como suporte fático e R como consequência jurídica: C – R.” 28 É fora de dúvida que a aceitação da força normativa dos princípios está inserida em uma nova interpretação constitucional e tem efeitos inevitáveis no direito privado. Não se trata, doravante, de tentar negar tais efeitos, senão ponderar seus limites e as efetivas mudanças do direito privado. Como bem dizem o professor espanhol Frederico de Castro e Florez-Valdes a crítica à chamada constitucionalização do direito só pode ter como objeto a ausência de limites, cabendo propor redução do texto constitucional ao direito civil (e nós poderíamos dizer: direito privado) vigente. Mas não é admissível uma negação a esses efeitos29. Convém frisar que essa nova interpretação constitucional, ensinam Barroso e Barcelos, não equivale ao desprezo do método clássico de interpretação – subsuntivo, calcado na aplicação das regras – e nem no abandono da hermenêutica tradicional: gramatical, histórico, sistemático e teleológico. Tal método continua a ser elemento imprescindível na prática jurídica. É, todavia, insuficiente30. Mesmo assim, as relações privadas continuam a ser tratadas e regidas pelas normas do direito 28ALEXY, Robert. Theoria der Grundrechte apud SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2008. p.35. 29Textualmente: “[...] la crítica hecha a la teoria de la repercusión imediata trata sólo de acotar, de reducir a sus justos limites el influjo del texto constitucional sobre el Derecho civil vigente, no em cambio de negarlo o desnocerlo.” Em tradução nossa, “[...] a crítica feita à teoria da eficácia direta trata somente de delimitar, reduzir a seus justos limites o influxo do texto constitucional sobre o direito civil vigente, não em troca de negá-lo ou desconhecê-lo.” (FLÓRES-VALDÉS, Joaquín Arce. El derecho civil constitucional. Madrid: Civitas, 1986. p.14). 30BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história: a nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 274. Os mesmos constitucionalistas complementam: “Portanto, ao se falar em ‘nova interpretação constitucional’, ‘normatividade dos princípios’, ‘ponderação de valores’, ‘teoria da argumentação’, não se está renegando o conhecimento convencional, a importância das regras ou a valia das soluções subsuntivas. Embora a história das ciências se faça, por vezes, em movimentos revolucionários de ruptura, não é disso que se trata, aqui. A nova interpretação constitucional é fruto de evolução seletiva, que conserva muitos dos conceitos tradicionais, aos quais, todavia, agrega ideias que anunciam novos tempos e acodem a novas demandas.” 20 privado, apenas tendo presente, porém, que as várias ramificações do direito não afastam a necessária observância dos valores constitucionais. Não devemos olvidar, ainda, a advertência de Marcos Augusto Maliska relativa à importância da tópica na interpretação jurídica, sobretudo na interpretação constitucional. Não se trata, então, de substituir um por outro método. O mais o razoável é se abster de restrição ao dedutivismo lógico do pensamento sistemático e nem no isolamento do todo. “Tal medida pode levar ao pensamento tópico concebido de forma extrema. Talvez a importância da tópica para o direito constitucional esteja justamente em encontrar o equilíbrio destas questões.”31 Por outro lado, a necessidade de apontar a força normativa dos princípios está atrelada à própria eficácia dos direitos fundamentais nas relações interprivados. Com as considerações acima, podemos concluir que, desde a Constituição de 1988, os princípios contam com uma adaptação formal e material ao sistema jurídico pátrio. Formalmente, estão inseridos (implícita ou explicitamente) no texto constitucional. Materialmente, exigem a modulação de seus enunciados normativos por meio de técnicas de interpretação. Vale dizer, inseridos no texto constitucional, exigem uma coerência na aplicação das regras com seu conteúdo.32 Não se diz, à evidência, que se possa desprezar o conteúdo da lei e nem que o princípio admita a inserção de qualquer fundamento. Mas é inolvidável que o intérprete deve buscar, entre as diversas soluções possíveis no direito privado, aquela que melhor se atine à diretriz trazida por dado princípio. E este ponto é muito 31MALISKA, Marcos Augusto. Palestra proferida na Universidade de Wroclaw. Disponível em: . Acesso em: 21 fev. 2013. O próprio Canaris aponta a imprescindível integração do pensamento tópico e sistemático, indicando dispor a tópica de maior campo de atuação nas áreas do direito marcadas por princípios gerais - como o direito constitucional - ou regulamentadas de maneira lacunosa - como o direito internacional privado - e perdendo espaço em áreas regulamentadas - como o direito imobiliário (CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Introdução e Tradução de Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008). 32Fala-se até na inconstitucionalidade das decisões que ignorem os princípios constitucionais, embora apliquem determinada regra legal: “Nada obstante, o que deve sair do campo doutrinário e migrar para a jurisprudência é que os princípios constitucionais são efetivas regras jurídicas lato sensu, sendo correta e devida a sua aplicação como fundamento para os atos decisórios. Ousa-se, ainda, afirmar que a sua desconsideração para aplicação de um dispositivo de lei, tão somente porque específico à situação, caracteriza verdadeira inconstitucionalidade.” (BASTOS, Fabiana Ribeiro; LILLA, Fábio de Campos. A nova discussão a respeito dos princípios constitucionais. Revista do Advogado, São Paulo, ano 32, n. 117, p. 76-82, out. 2012). 21 relevante, pois garante a autonomia do direito privado, embora não impeça a eficácia da Constituição (e dos direitos fundamentais) nos diversos ramos do direito. Vale afirmar, com Rothenburg: os princípios não permitem livre opção ao agente concretizador da Constituição, mas permitem projeções normativas, com certo grau de discricionariedade, discricionariedade esta limitada pela juridicidade destes mesmos princípios.33 Convém esclarecer que não fica ao puro critério do legislador infraconstitucional a tarefa de estabelecer o sentido dos princípios fundamentais do ordenamento, senão garantir a aplicação da norma infraconstitucional juntamente com os princípios de uma forma tal que estes definam o sentido daquela. Não fosse assim a lógica do sistema ficaria subvertida, ou seja, o legislador poderia fixar ou mesmo aniquilar a prioridade axiológica constitucional, invertendo a ordem hierárquica do sistema.34 De fato, neste sentido, equivaleria dizer que a regra sempre deverá prevalecer sobre o princípio, pois aquela prestigia o entendimento político sobre determinado assunto e não pode ser aceito sem reservas. Tal raciocínio, em última instância, retorna ao antigo brocardo latino in claris no ift interpretatio. Subverte-se a ordem jurídica para aplicar os princípios à luz de regras infraconstitucionais. Daí que as relações jurídicas devem ser interpretadas à luz da Constituição, tanto pela escolha político-jurídica do constituinte como pela proteção da dignidade da pessoa humana.35 Por fim, a grande virtude de um sistema constitucional aberto como o nosso, é a possibilidade de constante atualização sem necessidade de alteração do texto, 33ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios constitucionais. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1999. p. 18. 34TEPEDINO, Gustavo. Itinerário para um imprescindível debate metodológico. Revista Trimestral do Direito Civil, Rio de Janeiro, ano 9, v. 30. p. 69-80. jul./set., 2008. No mesmo artigo, a afirmativa do mestre civilista é perfeita: “Não há teorias setoriais de interpretação (interpretação constitucional, interpretação do direito penal, interpretação do direito administrativo, e assim por diante), porque isso faria supor que nem toda interpretação é constitucional. Como toda norma deve ser interpretada à luz dos valores constitucionais, com estes imbrincando-se, há somente uma única teoria da interpretação, que se espraia por todos os campos do ordenamento.” 35Neste sentido o ensinamento de Maria Celina Bodin de Moraes: “[...] a progressiva atribuição de uma eficácia normativa aos princípios vem associada ao processo, delimitável historicamente, de abertura do sistema jurídico. Num sistema aberto, os princípios constitucionais funcionam como conexões axiológicas e teleológicas entre, de um lado, o ordenamento jurídico e o dado cultural, e de outro, a Constituição e a legislação infra-constitucional.” (MORAES, Maria Celina Bodin de. Prefácio. In: NEGREIROS, Teresa. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé. Rio de Janeiro: Renovar, 1998). 22 ou seja, os princípios são atemporais, perenes, justamente por serem dotados de maior abstração e não vinculados a uma hipótese de incidência. Logo, não perdem sua validade à face de novas realidades sociais.36 1.2 Histórico e desenvolvimento dos direitos fundamentais Os conceitos de direitos do homem37 que de ordinário nos são apresentados, pecam, ensina Norberto Bobbio38, pela extrema vagueza e imprecisão, produzindo definições tautológicas, quase desprezíveis. Assim se entende, v.g., a afirmação de que direitos humanos são os direitos necessários ao desenvolvimento do homem. O problema é o entendimento do que seja necessário ao aperfeiçoamento humano. E nem se alegue, afirma alguma doutrina, que tais direitos têm gênese unicamente no princípio da dignidade humana, pois isso levaria à expulsão do rol de direitos do homem daqueles que não guardam núcleo subjetivo, ou seja, não dizem respeito à dignidade da pessoa humana, tal como aqueles que resguardam direitos de pessoas coletivas39. Não obstante as dificuldades de conceituação e mesmo admitindo, como ressalvado anteriormente, uma que outra exceção, a doutrina tem, sim, como referência máxima à catalogação dos direitos fundamentais o princípio da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, a doutrina aponta que, desde o início, os direitos 36No Brasil, não se pode negar que o Supremo Tribunal Federal é a corte mais atinada ao conteúdo normativo dos princípios. Paradigmáticos, neste sentido, os julgamentos relativos às cotas étnico- raciais (ADPF n. 186-DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 264/2012) e ao IPTU progressivo (RE, n. 423768-SP, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 1º./12/2010), ambos cuidando do conteúdo do princípio da igualdade. Mas há outros julgados trilhando a mesma senda como, por exemplo, a ADPF n. 130 (Lei de Imprensa) e Adin n. 4277 e ADPF n. 132 (relações homoafetivas). BRASIL. Supremo Tribunal Federal: jurisprudência. Disponível em: . Acesso em: 14 fev. 2013. 37Embora já bastante conhecida, é prudente lembrar a distinção das denominações usualmente utilizadas para direitos humanos e direitos fundamentais. A expressão direitos humanos ou direitos do homem é destinada para as reivindicações de respeito perene a determinadas posições essenciais ao homem. Tem base jusnaturalista e prescinde de sua positivação por determinado Estado. Ainda, diante de seu caráter universalista, denota os direitos insertos em documentos de direito internacional. Já direitos fundamentais são os inseridos em dado sistema jurídico, positivados, e atinentes a posições básicas da condição humana. Longe de se repelirem, direitos humanos e direitos fundamentais têm estreita relação, sendo os últimos, muitas vezes, reflexo das declarações dos primeiros. 38BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 2004. p.17. 39BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 312. 23 humanos guardam estreita relação com a vida, com a dignidade, com a liberdade, podendo-se falar na existência de direitos fundamentais quando houver proteção a um desses valores40. O surgimento dos direitos fundamentais, segundo estudo confeccionado pelo eminente Carl Schmitt, data das declarações dos Estados americanos, ainda no século XVIII, quando da fundação de sua independência. Para Schmitt, é equivocado apontar a Magna Carta, de 1215, o ato de Habeas Corpus, de 1679, e mesmo o Bill of rights, de 1688, como nascedouro dos direitos fundamentais, pois, nesses atos, em realidade, ficaram estabelecidos direitos dos barões e burgueses, não tendo o sentido de direitos fundamentais.41 Não se confundem, outrossim, os direitos fundamentais com os princípios gerais do direito constitucional. Ao passo que os primeiros, em sua noção mais elementar, representam as valorações políticas fundamentais do legislador constituinte, os segundos ferem a teoria geral do direito constitucional. A função dos direitos fundamentais, segundo ensinamento de José Afonso da Silva, arrimado em Jorge Miranda, consiste, “[...] em primeiro lugar, em funcionarem como critério de interação e de integração, pois são eles que dão coerência geral ao sistema.”42 Essa definição é de extremo relevo para os fins do presente estudo, no qual se pretende, justamente, apresentar os reflexos dessa interação e integração dos direitos fundamentais no direito societário. Convém apontar, entretanto, a diversidade dos direitos tomados como fundamentais, a depender das condições de tempo e lugar. Em verdade - não há negar - são os direitos fundamentais um conjunto de faculdades só relevantes num dado contexto histórico.43 40Nas palavras do professor: “[...] historicamente os direitos humanos têm a ver com a vida, a dignidade, a liberdade, a presença de um direito fundamental quando se possa razoavelmente sustentar que o direito ou instituição serve a algum desses valores” (DE SANCHIS, Prieto. Estúdios sobre derechos fundamentales. Madrid: Debate, 1994. p.88). 41VALE, André Rufino do. Eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2004. p.32. 42SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 33 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 96. 43Diz Bobbio: “O elenco dos direitos do homem se modificou, e continua a se modificar, com a mudança das condições históricas, ou seja, dos carecimentos e dos mesmos, das transformações técnicas, etc. direitos que foram declarados absolutos no século XVIII, como a propriedade sacre et inviolable, foram submetidos a radicais limitações nas declarações contemporâneas, como os direitos sociais, são agora proclamados com grande ostentação nas recentes declarações. Não é 24 E é inequívoca, desde o seu surgimento, a ideia dos direitos fundamentais como direitos de defesa do cidadão contra o Estado. Na concepção primeva, apenas os poderes públicos estavam ou poderiam ser obrigados à sua observância qualquer que fosse a situação. Daí ficarem caracterizados como direitos de conteúdo negativo, exigindo abstenção do Estado em respeito à autonomia do indivíduo. Não se facultava ao cidadão – ainda - a prerrogativa de exigir comportamento positivo do Estado; contentava-se com a omissão. Neste sentido é a afirmativa de Juan María Bilbao Ubillos, indicando ser a relação jurídica fundamental, no interior da teoria liberal, uma relação entre Estado e indivíduo, tendo caráter unidirecional44. O Liberalismo fundamentou a limitação e divisão da autoridade. A limitação do poder estatal correspondia à ausência de limites para atuação individual. Como lembra Thiago Luís Santos Sombra45, ao indivíduo facultava-se – como ainda largamente faculta-se - amplo espaço de autodeterminação; o que não está proibido pela lei, está autorizado. O Estado, por sua vez, é tido como único possível sujeito ativo na ofensa aos direitos e garantias fundamentais. Numa concepção que alcança nosso tempo, o Estado ficou vinculado à ação prevista na lei, ao passo que o particular, ao reverso, pode fazer tudo o que nela não está proibido. Passamos de um a outro patamar: o Estado absoluto transmuda-se em Estado de Direito46. difícil prever que, no futuro, poderão emergir novas pretensões que no momento nem sequer podemos imaginar, como o direito a não portar armas contra a própria vontade, ou a direito de respeitar a vida também dos animais e não só dos homens. O que prova que não existem direitos fundamentais por natureza. O que parece fundamental numa época histórica e numa determinada civilização não é fundamental em outras épocas e em outras culturas. Não se concebe como seja possível atribuir um fundamento absoluto a direitos historicamente relativos. De resto, não há por que ter medo do relativismo. A constatada pluralidade das concepções religiosas e morais é um fato histórico, também ele sujeito a modificação. O relativismo que deriva dessa pluralidade é também relativo. E, além do mais, é precisamente esse relativismo o mais forte argumento em favor de alguns direitos dos homens, dos mais celebrados, como a liberdade de religião e, em geral, a liberdade de pensamento” (BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 18-19). 44UBILLOS, Juan María Bilbao. Eficácia horizontal de los derechos fundamentales: las teorias y la pratica. In: TEPEDINO, Gustavo (Org.). Direito civil contemporâneo: novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo: Atlas, 2008. p. 219-237. 45SOMBRA, Thiago Luís Santos. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídico- privadas: a identificação do contrato como ponto de encontro dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2004. p. 32. 46Neste sentido, perfeita a lição de Maria Sylvia Zanella Di Pietro quando aponta: “Este princípio (legalidade), juntamente com o de controle da Administração pelo Poder Judiciário, nasceu com o Estado de Direito e constitui uma das principais garantias de respeito aos direitos individuais. Isto porque a lei, ao mesmo tempo em que os define, estabelece também os limites da atuação administrativa que tenha por objeto a restrição ao exercício de tais direitos em benefício da 25 Em outras palavras, os direitos fundamentais, historicamente, surgiram como uma conquista do indivíduo frente ao Estado. Somente o Poder Público é sujeito passível de sua observância, posto que seu nascedouro se dava dentro do Estado Liberal do Direito. Daí seu conteúdo negativo: exige-se a omissão, a abstenção do Estado.47 Sobre a importância dos direitos fundamentais, aponta Paulo Gustavo Gonet que os Poderes Públicos não podem ignorá-los, pois sua constitucionalização leva à observância obrigatória como parâmetro de organização e a própria limitação dos poderes públicos. Nenhum desses poderes se confunde com o poder que consagra os direitos fundamentais, e que é, em última instância, superior àqueles48. Daí sua observância obrigatória pelo Executivo, Legislativo e Judiciário49. Historicamente, de maneira concomitante à delimitação do direito público, o direito privado firmava seus contornos científicos. Os códigos civis, nas lições até dos grandes constitucionalistas como Canotilho, sempre aparecem como núcleos do direito positivo. Foram eles - e não as constituições - que fixaram os princípios gerais coletividade. É aqui que melhor se enquadra aquela ideia de que, na relação administrativa, a vontade da Administração Pública é a que decorre da lei. Segundo o princípio da legalidade, a Administração Pública só pode fazer o que a lei permite. No âmbito das relações entre particulares, o princípio aplicável é o da autonomia da vontade, que lhes permite fazer tudo o que a lei não proíbe. Essa é a ideia expressa de forma lapidar por Hely Lopes Meirelles e corresponde ao que já vinha explícito no artigo 4º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789: ‘a liberdade consiste em fazer tudo aquilo que não prejudica a outrem; assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem outros limites que os que asseguram aos membros da sociedade o gozo desses mesmos direitos. Esses limites somente podem ser estabelecidos em lei” (DI PIETRO, Maria Sylvia. Direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 67-68). 47No final do século XIX, Jellinek irá desenvolver a doutrina dos quatro status nos quais o indivíduo pode se encontrar perante o Estado. Pode o indivíduo estar em posição de sujeição frente ao Estado, passível de receber ordens e proibições, denominada status passivo. A condição de homem, por outro lado, exige um mínimo de livre ação, livre das ingerências estatais; tal posição foi denominada status negativo. Pode o homem, ainda, em algumas situações, exigir do Estado uma prestação, ao que se denomina status positivo. Por fim, num quarto estágio, ao indivíduo é dado intervir na própria formação de vontade do Estado, como exercício do voto. O desenvolvimento da teoria dividiu os direitos de defesa (liberdade) e direito a prestações (cívicos) (ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. Tradução Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 254-269). 48Sobre a força normativa da Constituição: HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição (Die normative Kraf der Verfassung). Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1991. Nessa obra, Hesse analisa e critica a conhecida afirmação de Ferdinand Lassale no sentindo de que a Constituição “[...] é um mero pedaço de papel.” 49BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 321. 26 do direito, deixando ao texto constitucional a tarefa de mera ‘lei orgânica dos poderes políticos’50. Em verdade, por longo período, à legislação ordinária coube a tarefa de disciplinar as relações privadas, sempre por meio do código civil. Por largo período ficou bem delineado o significado praticamente constitucional do Código Civil para o direito privado. Não era raciocínio corriqueiro o socorro à Constituição como forma de se sobrepor a norma constitucional à civil no campo do direito privado. Ficava então estabelecida a diferenciação pungente entre direito público e privado e que só iria arrefecer com a intervenção do Estado no domínio privado e o progressivo diálogo entre o direito constitucional e o direito privado51. Tal diálogo não teria (como não tem mesmo) trânsito fácil, pois as prerrogativas normalmente atribuídas aos direitos fundamentais, como inalienabilidade e irrevogabilidade52, são, em princípio, inconciliáveis com a autonomia privada. E não só por isso, mas também porque na eficácia vertical uma das partes não dispõe de direito fundamental (Estado), enquanto na eficácia entre terceiros, ambas ostentam a qualidade de titulares desses mesmos direitos. À evidência, todavia, não ser apenas o Estado o agente capaz de ferir direitos fundamentais. Nos espaços ocupados ou permitidos à autonomia privada, a mídia, as grandes corporações e outras instituições sociais alcançam posições de 50A respeito do papel fundamental dos códigos civis, Rui Stocco, comentando sobre o Código Francês, ensina: “O mais curioso é que, embora a França tenha posto em vigor mais de dez constituições ao longo dos dois últimos séculos (sendo a Constituição de 4 de outubro de 1958, regente do funcionamento das instituições da Quinta República, a última delas), sempre conservou o Código Civil de 1804, convertido agora em verdadeiro monumento da cultura jurídica e política do povo francês e gozando de grande prestígio internacional por tudo que representa” (STOCCO, Rui. Palestra proferida no Seminário em Comemoração ao Bicentenário do Código Civil Francês, realizado pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, no auditório do Superior Tribunal de Justiça (Brasília-DF), no dia 27 de setembro de 2004. In: Seminário em Comemoração ao Bicentenário do Código Civil Francês, 1, 2004, Brasília-DF. Estudos em homenagem ao bicentenário do Código Civil francês. Brasília-DF, 2004). 51De qualquer forma, por longo período, à legislação ordinária coube a tarefa de disciplinar as relações privadas, sempre por meio do código civil. 52Por todos: BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009. Dessa definição extrai-se a ilação de que os direitos fundamentais foram pensados como aplicáveis apenas às relações Estado e particulares. Como demonstrado, na concepção hodierna, tais características não podem perseverar tal como pensado e defendido originalmente. 27 poder e pela força podem (como não raro ocorre) influir de maneira deletéria no sistema político.53 Vale dizer, mesmo ente privados, atingem-se posição de dominação tamanha (quase sempre pelo aspecto financeiro) que as relações estabelecidas com terceiros nada têm de autônoma no prisma do dominado. Isso, para além de intuitivo, é comprovado diuturnamente. Basta se atentar para a existência de normas que almejam mitigar o poderio técnico ou financeiro, como as normas consumeristas. Contudo, o reconhecimento de poder das grandes sociedades foi apenas a “porta de entrada”, por assim dizer, da superação ou alargamento do conceito clássico. Nos dias atuais, não se fala na horizontalidade dos direitos fundamentais apenas em casos que envolvem as corporações gigantescas. Não é apenas nesta senda, cujo risco de dominação e exercício de força é evidente, que trilha a eficácia horizontal. Ao contrário, não se limitou à equiparação desses grupos ao Estado. A princípio e pelo menos em tese, em situações limites, um particular, em relação jurídica com o Estado, com grandes corporações ou com outro particular “comum”, pode reclamar a eficácia dos direitos fundamentais. Mas tal não ocorre, já à partida, com os direitos fundamentais servindo como direitos ex constitutione, como veremos detidamente. Mas é justo dizer que não mais se justifica, assim, a limitação dos direitos fundamentais às relações Estado-cidadão. A ideia inicial de proteção dos direitos fundamentais (eficácia negativa), e aqui tornamos à doutrina de Juan María Bilbao Ubillos, evoluiu, alterou-se e oferta agora sensíveis transformações, inclusive por serem a realidade social e política também muito diversas. E conquanto o próprio Direito seja dinâmico, no caso dos direitos fundamentais é notável sua adaptação a essas alterações. E se é assim, continua 53A lição é mais contundente na citação de Virgílio: “em uma sociedade plural, formam-se, nos espaços deixados à autonomia privada, instituições da vida econômicas, empresas dos meios de comunicação e outras ‘forças sociais’, que desempenham importantes funções na vida social e que alcançam posições de poder, por força das quais podem influir de forma prejudicial no sistema político (SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 52). 28 Ubillos, não há razão para ficar preso àquela concepção vetusta e ultrapassada, fechando caminho à nova ideia, mais adequada e atinada à pós-modernidade.54 1.3 Concepção normativa dos direitos fundamentais Uma análise profunda quanto ao caráter normativo da Constituição e, sobretudo, de sua parte mais importante, que são os direitos fundamentais, não é tarefa fácil. Já no conhecido embate entre Hans Kelsen e Carl Schmitt, uma demasiada discricionariedade dos tribunais quanto à normatividade de princípios ou do exagero de interpretações muito elásticas era objeto de crítica. Sobre esse aspecto, como veremos, deve-se atentar com rigor o intérprete, sob pena de se transferir a legitimidade do legislador ao Judiciário. Em outra ponta, contudo, ninguém pode olvidar que a própria Constituição atribuiu ao Tribunal Constitucional a palavra última em matéria constitucional (no Brasil, a previsão está no art. 102 da Constituição Federal). Se o próprio constituinte originário atribuiu ao Supremo Tribunal Federal a competência para dizer o que é ou não constitucional, é também questionável a crítica de subtração de competência do legislativo. Carl Schmitt dizia que, nos EUA, aos princípios gerais era atribuído um excessivo poder normativo. Pregava o grande jusfilósofo uma restrição do Poder Judiciário à subsunção dos fatos a normas precisas, sendo-lhe defeso funcionar como um “legislador constitucional”55. Hans Kelsen, ao reverso, legitimou o papel do Tribunal Constitucional, embora advertisse sobre os riscos de se formular conceitos 54“Conviene insistir em la radical historicidade de los derechos fundamentales: éstos han experimentado y siguen experimentando profundas transformaciones porque la realidade sócio- política em la que se insertan cambia y emergen incessantemente nuevas amenazas. Pocas categorias jurídicas se muestran tan permeables a la evolución de los estándares culturales como la de los derechos fundamentales. Si esto es así, no se entende por qué hau que mantener a toda costa la fidelidade a uma determinada concepción inmutable de estos derechos que tuvo sentido em um determinado momento, pero que resulta hoy desfasada, anacrónica. Lo que hau que hacer es poner al día, reconstruir la vieja teoria de los derechos públicos subjetivos, sin concessiones a la pereza mental”. (UBILLOS, Juan María Bilbao. Eficácia horizontal de los derechos fundamentales: las teorias y la pratica. In: TEPEDINO, Gustavo (Org.). Direito civil contemporâneo: novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo: Atlas, 2008. p. 220). 55SCHIMITT, Carl. O guardião da constituição. Tradução de Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. 29 muito abertos como liberdade e justiça, sob pena de se atribuir ao Tribunal um poder insuportável56. A advertência e, assim, a consequente preocupação com excessivo poder dos tribunais permanece atual ainda em nosso tempo e encontra parâmetros relativamente precisos de determinação e ponderação na doutrina e jurisprudência alemãs, conforme bem indicada Claus-Wilhelm Canaris57. Todavia, como já descrevemos anteriormente, sem embargo do relevo desse debate doutrinário, a Constituição de 1988, atendendo ao moderno constitucionalismo e à principiologia, adotou um caráter de primazia dos princípios sobre as regras. Evidente que os direitos fundamentais gozam, portanto, de força normativa e o desafio que se apresenta é saber a forma pela qual tais direitos alcançam as relações interprivados do que cuidaremos na análise das hipóteses apresentadas no capítulo III deste trabalho. Vale dizer: se aos princípios constitucionais é garantido o poder normativo, como já dissertamos a respeito no item 1.5, com a mesma ou maior razão os direitos fundamentais gozam desse mesmo poder normativo, pois figuram entre os temas de maior valia do texto constitucional. É natural que a ideia enseje resistência58, fomentando discordâncias aqui e acolá. É o quanto constatam Ingo Wolfgang Sarlet e Paulo Mota Pinto ao indicarem que a desconfiança de boa parcela do mundo jurídico frente à eficácia dos direitos fundamentais em relação a terceiro (Drittwirkung), não teve o condão de impedir que a matéria fosse elevada a uma discussão internacional, dispondo de constante e crescente número de decisões que, com apelo a uma tal eficácia, tais como aquelas emanadas do Tribunal Europeu de Direitos Humanos e do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias. 56VALE, André Rufino do. A estrutura das normas de direitos fundamentais: repensando a distinção entre regras, princípios e valores. 2006. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2006. 57CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos fundamentais e direito privado. Tradução de Ingo Wolfgnag Sarlet e Paulo Mota Pinto. Coimbra: Almedina, 2006. 58PINTO, Paulo Mota; SARLET, Ingo Wolfgang. Prefácio à obra de Canaris (CANARIS, Claus- Wilhelm. Direitos fundamentais e direito privado. Tradução de Ingo Wolfgnag Sarlet e Paulo Mota Pinto. Coimbra: Almedina, 2006. 30 Podem ser resumidas a quatro as objeções à referida eficácia59: a) os princípios constitucionais, ainda que disponham de força normativa, são normas de organização política e social, não servindo para regulamentar relações interindividuais, pois tal levaria a superar diretamente o trabalho do legislador ordinário, a quem cabe disciplinar o direito privado; b) a abstração dos princípios constitucionais autoriza ou fomenta a subjetividade dos juízes de maneira temerária; c) as normas constitucionais estão mais sujeitas a contingências políticas, ao reverso das normas de direito privado, mais estáveis por atendimento à dogmática milenar, em grande parte advindas do direito romano; d) o controle de merecimento de tutela imposto pelas normas constitucionais representa ingerência e excessivo decote nas liberdades individuais. O principal argumento em resposta a estas críticas (embora não sirva de justificativa completa para todas as indagações postas e, assim, não possa prescindir de regramentos e complementos em cada ramo específico do direito) é o fato de se basearem em concepção obsoleta, mormente na separação entre direito privado e público, prestigiada no século XIX, mas que não vige em nossos dias. Doravante, o valor concedido à dignidade da pessoa humana, nos termos do art. 1º, inciso III da Constituição Federal, remodelou completamente aquela vetusta concepção. Ao cabo, ainda calcados na lição de Tepedino, trata-se de abandonar a vetusta summa divisio que apartou, em tempos idos, o direito público e o direito privado, tanto quanto a ociosa divisão entre direitos reais e direitos obrigacionais e, inclusive, entre direito comercial e direito civil, que foram estruturadas em situações jurídicas subjetivas, mas não tanto nos seus aspectos funcionais.60 59TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. t. 3. p. 12. 60Ibid., p. 13. 31 1.4 Autonomia privada e constitucionalização do direito A formação de uma sociedade empresária ou simples – não há negar – traduz-se em um contrato61. E no que tange aos contratos, já no fim da Idade Média, o individualismo irá romper a concepção comunitária do direito. Daí em diante, será o homem, individualmente considerado, o sujeito de direitos. Os interesses da comunidade familiar, econômica e religiosa, deixam de ultrapassar aqueles meramente individuais. O consensualismo chega vitorioso, enfim, à época moderna, estando agasalhado, mesmo de maneira implícita, no Código Civil Francês. Por óbvio, a influência do direito francês, que se fez sentir no mundo todo, também é muito presente na América do Sul62 (sem olvidar, entretanto, que o primeiro Código Civil Brasileiro, de 1916, teve marcante inspiração do Código Civil alemão63). 61É certo restar superada a ideia do contrato de sociedade como simples contrato sinalagmático, devendo ser lembrada, entre outras, a ideia do contrato plurilateral de Ascarelli (ASCARELLI, Tulio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. São Paulo: Saraiva, 1945. p. 271-332), como também o contrato associativo e contrato relacional. A tal respeito, consultar: DINIZ, Gustavo Saad. Subcapitalização societária: financiamento e responsabilidade. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 82-86) e SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo direito societário. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. 62Rui Stocco, tratando da influência do Código Civil francês, afirma: “Este paradigma que orientou e influenciou a legislação codificada de inúmeros países ao longo de dois séculos – com força de irradiação nos demais países europeus, nas Américas, na África e na Ásia – foi o primeiro código moderno da Europa e marco decisivo na evolução do direito privado. Com ele nasceu a febre de codificação que varreu a Europa, no século XIX, espraiando-se pelas Américas, convertendo-se o Código Napoleão como uma espécie de “Código-modelo”, mas muito mais do que isso, uma permanente inspiração. Quase todos os países latino-americanos tomaram-no por modelo, como se verifica nos Códigos da Argentina, Paraguai, México, Peru, Venezuela, Bolívia e Chile”. Palestra proferida no Seminário em Comemoração ao Bicentenário do Código Civil Francês, realizado pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, no auditório do Superior Tribunal de Justiça (Brasília-DF), no dia 27 de setembro de 2004, painel presidido pelo Ministro Edson Vidigal, Presidente do Superior Tribunal de Justiça. De nossa parte, necessário apontar, entretanto, que os primeiros Códigos Civis da Itália (1865) e de Portugal (1867), que foram inspirados pelo Código Napoleônico, foram substituídos em 1942 e 1966 respectivamente e, desta feita, tiveram nítida inspiração do Código Civil da Alemanha” (STOCCO, Rui. Palestra proferida no Seminário em Comemoração ao Bicentenário do Código Civil Francês, realizado pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, no auditório do Superior Tribunal de Justiça. Brasília- DF, no dia 27 de setembro de 2004). 63No Brasil, as Ordenações do Reino vigeram até a promulgação do Código Civil de 1916, posto que o Código Civil de Portugal – influenciado pelo francês - foi promulgado quando o Brasil já não estava mais sob o jugo português. O “Esboço” (1860-1865) de Teixeira de Freitas, anterior àquele primeiro código brasileiro, não se atinha de maneira marcante ao Código Napoleônico, vez que Freitas tinha restrições à monumental obra. Neste sentido, era favorável à unificação do direito civil e comercial (antecipando-se em quarenta anos ao BGB), defendia o universalismo do direito, ao contrário da lei francesa, que demonstrava certa desconfiança com os estrangeiros. Teixeira também cuidava das pessoas jurídicas e apresentava um outro conceito de propriedade imobiliária. O avançado pensamento de Freitas levou-o a ser comparado com Savigny. 32 E a autonomia de vontade encontra na Escola Jusnaturalista fundamento robusto. No século XVII, a regra do pacta sunt servanda era princípio base do direito natural. Para Grócio, este princípio deveria ser observado tanto pelos indivíduos como pelas nações (respeito aos tratados). Mas o corolário da autonomia de vontades será encontrado na lição de J. J. Rousseau: “Cada indivíduo obriga-se como quer, quanto quer, mas apenas enquanto quer.”64 Na França, o Código Civil de 1804 irá consagrar a autonomia de vontades, estampada no art. 1.134: “As convenções legalmente formadas impõem-se como lei àqueles que as celebraram.” É bem de ver-se que os abusos da autonomia da vontade são percebidos já no século XIX e, sobretudo, no século XX. Diversos pensadores socialistas (como Marx, Saint-Simon e Comte) anotam a completa ausência de proteção aos mais fracos. O proletariado encontra-se em total sujeição aos empregadores. A discrepância de forças não se limita aos direitos sociais, sendo facilmente encontrada nas relações firmadas pelo indivíduo isoladamente. Nos contratos em geral e especificamente diante do consensualismo, o prestígio calcado simplesmente na proteção da declaração de vontades e do respectivo cumprimento dado Código Civil Brasileiro de 191665 não foi repetido no novo Código, promulgado em 2002. Em verdade, mesmo antes do novo Código Civil, havia respeitosa doutrina e jurisprudência66 a defender a superação da teoria clássica dos contratos, calcada no prestígio absoluto da autonomia da vontade e do consensualismo. Já então a comutatividade e a boa-fé (sem previsão legal no Código Civil de 1916), quase inteiramente relegadas no modelo liberal do contrato, clamavam proteção. Nesta senda e no que atine ao campo societário, também deve ser lembrada a ideia institucionalista, arquitetada primeiramente por Rathenau, ainda ao tempo da 64Jean Jacques Rousseau apud GILISSEN, Jonh. Introdução histórica ao direito. Tradução de A. M. Hespanha e L. M. Macaísta Malheiros. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1979. 65Baseada em Couto e Silva e Raiser, Cláudia Lima esclarece: “Neste sentido, a função da ciência do direito será a de proteger a vontade criadora e de assegurar a realização dos efeitos queridos pelas partes contratantes. A tutela jurídica limita-se, nesta época, portanto, a possibilitar a estruturação pelos indivíduos de relações jurídicas próprias através dos contratos, desinteressando-se totalmente pela situação econômica e social dos contratantes e pressupondo a existência de uma igualdade e uma liberdade no momento de contrair a obrigação” (MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor. O novo regime das relações contratuais. 6. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011. p. 60). 66Neste sentido: DONNINI, Rogério Ferraz. A Constituição Federal e a concepção social do contrato. In: NERY, Rosa Maria de Andrade; VIANA, Rui Geraldo Camargo (Org.). Temas atuais de direito civil na Constituição Federal. São Paulo: RT, 2000. p. 69-79. 33 primeira grande guerra. Rathenau, um filósofo alemão, que também era sociólogo, economista e empresário, fortemente influenciado pela grave situação econômica alemã, pensou as grandes sociedades econômicas como instrumentos de renovação e crescimento econômico, desvinculando-a, assim, do interesse exclusivo dos sócios67. No que mais releva para nossa análise, propôs-se que a macroempresa atendesse, por sua importância econômica, ao interesse público e não apenas ao interesse dos sócios. Rathenau indicou a superação do viés familiar das primeiras sociedades, especialmente da sociedade anônima, a qual estava acima da administração de pequenos Estados em diversos aspectos, o que não era notado pela jurisprudência68. O intento, àquela época, deveria ser alcançado pela neutralidade do órgão de administração da sociedade, ao qual se atribuía crescentes poderes em detrimento da importância da Assembleia. Interessante observar que nos Estados Unidos também vicejou preocupação semelhante àquela de Rathenau, embora em ambiente econômico, político e social totalmente diverso daquele alemão. Mais uma vez o debate teve sua gênese fora do ambiente jurídico, tornando-se célebre o embate entre a Ford Motor Company e sua acionista minoritária Dodge69. A ideia de Rathenau e suas diversas variantes opunham-se ao contratualismo, que tem fortes raízes na doutrina italiana70, e no qual o interesse dos sócios é predominante ou exclusivamente defendido. As teorias, em suas formas clássicas, restaram superadas pelo tempo, nada obstante suas novas roupagens pelo o institucionalismo integrativo ou organizativo, o moderno contratualismo e as modernas teorias, nas quais a principal contribuição atine à superação do direito societário como suficiente em si mesmo para regular tão complexas relações como as que se dão na vida empresarial71. 67SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo direito societário. 2.ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p.32. 68FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes. Conflito de interesse nas assembleias de S.A. São Paulo: Malheiros, 1993. p.22. 69Ibid., p. 33. Henry Ford chegou a afirmar que o objetivo maior de sua companhia não era a distribuição de lucros aos acionistas, mas o fomento de novos empregos e elevação do padrão de vida da comunidade inteira. 70“Pode-se dizer que o sistema italiano é tradicionalmente contratualístico, na medida em que nega que o interesse social seja hierarquicamente superior ao interesse dos sócios” (SALOMÃO FILHO, op. cit. p. 28). 71Ibid., p. 40. 34 Sem que se adentre a regulamentação dos contratos interparticulares e interempresariais72, é justo apontar que, entre nós, o novel Código prestigiou a boa- fé objetiva. Também a indicar a então premente necessidade de abandono da igualdade meramente formal, cabe a lembrança de que, na América Latina, sobretudo a partir da década de 90 do século XX, testemunha-se o surgimento de sistemas especiais de proteção ao consumidor73 sendo certo que a alteração legislativa se deu na esteira de uma alteração política74. Como visto, a adoção irrestrita da defesa à autonomia de vontades – pacta sunt servanda – esteve longe de garantir equilíbrio material entre as partes. Em 72Em relação à interpretação dos contratos, veja-se lição de Pontes de Miranda (MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado: parte especial. Rio de Janeiro: Borsoi, 1962. t. 38. p.69). Sobre o mesmo tema, bem mais recentemente, alguns enunciados da I Jornada de Direito Comercial, realizada no dia 24 de outubro de 2012, pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, sob coordenação geral do Ministro Ruy Rosado, indicam: “21. Nos contratos empresariais, o dirigismo contratual deve ser mitigado, tendo em vista a simetria natural das relações interempresariais”. “28. Em razão do profissionalismo com que os empresários devem exercer sua atividade, os contratos empresariais não podem ser anulados pelo vício da lesão fundada na inexperiência”. “29. Aplicam-se aos negócios jurídicos entre empresários a função social do contrato e a boa-fé objetiva (arts. 421 e 422 do Código Civil), em conformidade com as especificidades dos contratos empresariais”. 73Segundo estudo realizado pelo Departamento de Proteção ao Consumidor do Brasil, “quase todos os países fazem menção à defesa do consumidor em sua Constituição e contam com um Código de Defesa do Consumidor (CDC). Na maioria das nações, o CDC entrou em vigor a partir da década de 1990. É salutar registrar que, neste período, o modelo de Estado sofreu profundas transformações no Brasil e em toda América Latina. Encontramos também implantações da defesa do consumidor mais recentes, o que justifica a pouca experiência com a aplicação normativa. A Bolívia só conta com normas para a defesa dos usuários de serviços públicos e no Belize, como exceção, existem, desde 1954, leis esparsas de defesa do consumidor”. (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Defesa do Consumidor na América Latina: atlas geopolítico.Brasília, DF, 2005). 74Em verdade, a alteração foi, antes de tudo, política. Para o Professor Fábio Konder Comparato, o “direito do consumidor, em seu conjunto, como realização de uma política pública, é novo na evolução do direito”. Em seguida arremata: “É obvio que o surgimento dessa nova política governamental, dando nascimento a um conjunto sistemático de normas jurídicas, nada mais é do que a manifestação do que as regiões industrializadas do planeta haviam atingido, desde o início dos anos sessenta, desse século, uma nova etapa na evolução econômica. Até então, a preocupação maior dos economistas – os sacerdotes dessa “triste ciência”, como disse Ricardo foi, sem dúvida, a de resolver as carências, que afetavam, em maior grau, todas as regiões do mundo. A se ingressar, porém, pela primeira vez na história da humanidade, na era da opulência, foi possível mudar o objeto central das preocupações político-econômicas: não mais a falta de produção e, sim, a qualidade dos produtos ou mercadorias distribuídos no mercado. O consumidor, de elemento passivo e secundário na cena econômica, assumia um papel ativo e relevante, no campo político, ele deixava de ser tutelado, para se tornar uma força eleitoral com a qual era doravante preciso contar” (COMPARATO, Fábio Konder. A proteção ao consumidor na constituição brasileira de 1988. Revista de Direito Mercantil: Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo, n. 80, p. 66-67, out./dez. 1990). 35 relação ao consumidor, v.g., viu-se logo a necessidade de sua proteção diferenciada pelo Estado75. Dentre os institutos de direito privado, o contrato - e, portanto, as sociedades76 - é o ponto convergente e realizador dos direitos fundamentais, limitando, assim, a autonomia privada. Segundo Maria Celina Bodin de Moraes77, qualquer norma ou cláusula negocial deverá coadunar um princípio constitucional, mesmo que tal cláusula seja insignificante. Nesta concepção, cada indivíduo deverá ser um realizador dos direitos fundamentais em quaisquer das relações interindividuais que estabelecer com outrem. No mesmo sentido, Thiago Sombra, para quem o cidadão tem o dever de observância e realização dos direitos fundamentais em suas relações jurídico- privadas78. Essa ideia foi ironizada por Forsthoff denominando como “[...] genoma jurídico (...) do qual tudo deriva, do código penal até a lei sobre a fabricação de termômetros para febre.”79 Nada obstante a ironia de Forsthoff, muitas vezes lembrada no estudo desta matéria, o inciso III, art. 1º da nossa Constituição Federal, ao eleger o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, não deixa dúvidas de 75Sobre o tema, ensina Leonardo de Medeiros Garcia: “Em razão da boa-fé objetiva, a abusividade das cláusulas não é aferida subjetivamente, ou seja, não se infere se o fornecedor, ao estipular as cláusulas contratuais, tinha o conhecimento de quem eram abusivas frente ao Código Consumerista. No intuito de proteger essa categoria vulnerável, denominada consumidor, o legislador privilegiou valores superiores ao dogma da autonomia da vontade (pacta sunt servanda), como a boa-fé objetiva e a justiça contratual, permitindo que o Poder Judiciário tenha condições de aferir, objetivamente, quando estará ocorrendo um desequilíbrio entre as partes, possibilitando, assim, um efetivo controle do conteúdo dos contratos de consumo. O novo Código Civil, preocupado com o equilíbrio contratual, também estipula meios para que se controle os contratos abusivos, ao determinar que a liberdade de contratar seja exercida em razão e nos limites da função social do contrato e que os contratantes sejam obrigados a guardar, tanto na conclusão do contrato, quanto na execução, os princípios de probidade e boa-fé (GARCIA, Leonardo de Medeiros. Direito do consumidor: código comentado e jurisprudência. 5. ed. Niterói: Impetus, 2009. p. 296). 76O direito brasileiro apresenta aspectos de contratualismo e institucionalismo, mas o art. 981 do Código Civil apresenta todos os traços do contratualismo: “Art. 981 - Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados”. 77MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.120. 78SOMBRA, Thiago Luís Santos. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídico- privadas: a identificação do contrato como ponto de encontro dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris. 2004. p. 77 79FORSTHOFF, Ernst. Der staat der industriegesellschaft, p. 144 apud ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros. 2011. p.521 36 que qualquer avença contrária à boa-fé objetiva e ao equilíbrio contratual não pode perseverar. A livre iniciativa garantida no art. 170 da mesma Constituição não está dissociada do valor social dos contratos. A generalidade de afirmativas que possam abarcar indistintamente diversas situações enseja muitos riscos, mas é possível entender que qualquer disposição em que impere o desequilíbrio, a não equidade ou uma vantagem excessiva de uma parte em benefício da outra80 corre grande risco de não prevalecer, tanto pelos valores constitucionais (que influenciam tanto o legislador na feitura das leis, como o Judiciário em sua interpretação e aplicação) como pelas especificidades de cada ramo do Direito. A constitucionalização do direito, vista sob os diversos argumentos apontados, comprova tratar-se de um fenômeno mundial e conquanto desagrade uma parcela da doutrina, máxime os civilistas, não pode ser negada, ignorada ou reprimida. 80A demonstrar a possibilidade de recurso aos valores constitucionais – o que estamos a defender aqui – e porque realizado antes da vigência do novo Código Civil, cabe citar a lição de Donnini: “Há uma gama de dispositivos legais que permitem ao aplicador da lei restabelecer o equilíbrio na avença. Além do texto constitucional, o art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC) pode ser invocado, assim como o art. 29 do CDC” (DONNINI, Rogério Ferraz. A Constituição Federal e a concepção social do contrato In: NERY, Rosa Maria de Andrade; VIANA, Rui Geraldo Camargo (Org.). Temas atuais de direito civil na Constituição Federal. São Paulo: RT, 2000. p.78). 37 CAPÍTULO 2 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E AS TEORIAS DE SUA EFICÁCIA 2.1 A eficácia dos direitos fundamentais na visão da doutrina Como não poderia deixar ser, não existe apenas uma teoria sobre a eficácia dos direitos fundamentais no direito privado, senão diversos entendimentos a respeito. Ao passo que a teoria da eficácia direta toma aquela classe de direitos quase como direitos subjetivos constitucionais, a teoria da eficácia indireta exige a necessária intermediação dos direitos fundamentais pelo legislador primeiramente e pelo julgador, num segundo plano. Entre os dois entendimentos há diferença sensível, ao menos na fundamentação (veremos mais adiante que não tanto assim nos efeitos), a exigir clara delimitação. Segundo lição de Joaquín Arce y Flórez-Valdés, o adequado entendimento das hipóteses em tela exige posicionamento sobre o efetivo papel que a Constituição Federal desempenha no sistema jurídico. Se se toma o texto constitucional como mera car