Unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS CAMPUS DE ARARAQUARA – SP JOSÉ CARLOS BARBOZA DA SILVA AS POLÍTICAS EDUCACIONAIS E A FORMAÇÃO DO PROFISSIONAL DA PSICOLOGIA: SUAS IMPLICAÇÕES PARA A ATUAÇÃO PROFISSIONAL ARARAQUARA – SP 2010 JOSÉ CARLOS BARBOZA DA SILVA AS POLÍTICAS EDUCACIONAIS E A FORMAÇÃO DO PROFISSIONAL DA PSICOLOGIA: SUAS IMPLICAÇÕES PARA A ATUAÇÃO PROFISSIONAL Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Educação Escolar, sob a orientação do Professor Dr. JOSÉ VAIDERGORN. ARARAQUARA – SP 2010 Silva, José Carlos Barboza da As políticas educacionais e a formação do profissional da psicologia: suas implicações para a atuação profissional / José Carlos Barboza da Silva – 2010 424 f. ; 30 cm Tese (Doutorado em Educação Escolar) – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Araraquara Orientador: José Vaidergorn l. Psicologia. 2. Formação profissional. 3. Política educacional. 4. Ensino superior. 5. Currículo. 6. Estado de Rondônia. I. Título. JOSÉ CARLOS BARBOZA DA SILVA AS POLÍTICAS EDUCACIONAIS E A FORMAÇÃO DO PROFISSIONAL DA PSICOLOGIA: SUAS IMPLICAÇÕES PARA A ATUAÇÃO PROFISSIONAL Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Educação Escolar, sob a orientação do Professor Dr. JOSÉ VAIDERGORN. [Política e Gestão Educacional] Data da Defesa: 01/12/2010 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: ______________________________________________________________________ Presidente e Orientador: Prof. Dr. José Vaidergorn Universidade Estadual Paulista – Campus de Araraquara ______________________________________________________________________ Membro Titular: Prof.ª Dra. Ana Cláudia Bortolozzi Maia Universidade Estadual Paulista – Campus de Bauru ______________________________________________________________________ Membro Titular: Prof.ª Dra. Ana Mercês Bahia Bock Pontifícia Universidade Católica – São Paulo ______________________________________________________________________ Membro Titular: Prof.ª Dra. Débora Cristina Piotto Universidade de São Paulo – Campus de Ribeirão Preto ______________________________________________________________________ Membro Titular: Prof. Dr. João Augusto Gentilini Universidade Estadual Paulista – Campus de Araraquara Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara Dedicatória A todos abaixo citados o meu mais profundo respeito, admiração e gratidão eterna. Aos meus pais José Barboza da Silva e Natália Diniz do Nascimento, que educou a mim e aos meus irmãos Cláudia, Andréia e Horácio, apesar de todas as dificuldades que tiveram para isso. Aos meus amigos Nilza Melo, Marcos Otávio Cahú Rodrigues e Wagner Waltenberg Silva, que apesar da enorme distância física sempre estiveram perto durante todos esses anos. Aos meus amigos Jorge Washington de Amorim Junior e Maria Eugênia Rodrigues Luz, pela amizade, carinho e solidariedade, os quais me ajudaram em momentos tão críticos nessa jornada para terminar esse doutorado. Aos excelentes professores que tive na graduação, na especialização, no mestrado e no doutorado, especialmente ao professor Dr. Antonio Flavio Barbosa Moreira, ex- orientador. Agradecimentos Aos meus pais José Barboza da Silva e Natália Diniz do Nascimento, que me ensinaram desde criança o valor profundo que possui a educação e a escolarização. Ao meu orientador, professor Dr. José Vaidergorn, pela autonomia dada a mim durante todo o curso. Aos professores do Doutorado em Educação Escolar da UNESP/Araraquara, especialmente João Augusto Gentilini, Marilda da Silva, Edson Inforsato, Roseana Costa Leite e Maria Aparecida Segatto Muranaka, que me ajudaram a ter uma melhor compreensão sobre a política educacional e seus desdobramentos no país. Aos técnicos da UNESP/Araraquara, especialmente ao Antônio Netto Junior pela prestatividade, gentileza e amizade dispensadas durante todo o período em que decorreu o curso. Aos amigos de Doutorado Lúcia Rejane Gomes da Silva, Mário Roberto Venere, Flavine Assis de Miranda, Sonia Sampaio, Carla Martins, George Estrela, Clarides Henrich de Barba, Wany Sampaio, Francisco Estácio e Gisele Estácio, João Guilherme, Socorro Dias Loura e Célio Borges pela oportunidade e riqueza da convivência, tão fundamental nessa jornada. Ao professor Luís Alberto Lourenço de Matos, do Departamento de Psicologia da UNIR, que sempre esteve pronto ao meu chamado para realizar as leituras do texto inicial do projeto e da tese e contribuiu com sugestões importantes durante todo o curso realizado. Ao professor Ene Glória, ex-reitor da UNIR, pela capacidade de viabilizar o convênio DINTER UNESP/UNIR, em Educação Escolar. Aos professores Miguel Nenevé, Tânia Brasileiro e Carmen Velanga, que se revezaram na coordenação local do DINTER UNESP/UNIR, trabalhando de forma séria e responsável apesar de todas as dificuldades e carências. Aos meus ex-alunos da UNIR, que participaram como sujeitos da pesquisa pela disponibilidade e carinho em responder ao questionário desta Investigação. Aos professores do Departamento de Psicologia da UNIR e da ULBRA/Porto Velho que voluntariamente responderam ao questionário desta Investigação. Aos coordenadores dos Serviços de Psicologia Aplicada da UNIR e ULBRA/Porto Velho, respectivamente Ana Feitosa e Ivan Guarache, que se dispuseram a ser entrevistados para contribuir com essa pesquisa. Ao Conselho Regional de Psicologia Seção Rondônia, pela colaboração no levantamento acerca dos sujeitos desta Investigação. À Virgínia Ávila pelo carinho e amor recebido que me ajudaram muito a suportar as dificuldades vividas durante um dos períodos em que estive em Araraquara. Existe apenas uma idade para sermos felizes, apenas uma época da vida de cada pessoa em que é possível sonhar, fazer planos e ter energia suficiente para os realizar apesar de todas as dificuldades e todos os obstáculos. Uma só idade para nos encantarmos com a vida para vivermos apaixonadamente e aproveitarmos tudo com toda a intensidade, sem medo nem culpa de sentir prazer. Fase dourada em que podemos criar e recriar a vida à nossa própria imagem e semelhança, vestirmo- nos de todas as cores, experimentar todos os sabores e entregarmo-nos a todos os amores sem preconceitos nem pudor. Tempo de entusiasmo e coragem em que toda a disposição de tentar algo de novo e de novo quantas vezes for preciso. Essa idade tão fugaz na nossa vida chama-se presente e tem a duração do instante que passa. QUINTANA, Mário. Para Pensar. Disponível em: . Acesso em: 23 de outubro de 2010. RESUMO O objeto de estudo dessa Pesquisa são os fundamentos das políticas de formação para a Psicologia e o tipo de formação que é ofertada, além de suas implicações para a atuação desse profissional. O objetivo é avaliar a proposta de política educacional no país para os cursos de psicologia em vigor desde 2004, verificando em que condição foi produzida, inclusive como se deu a participação e elaboração de tal documento e entender quais são os subsídios teóricos e práticos encontrados pelos egressos de Psicologia durante sua formação e se estes fundamentos estão em condição de adequarem-se à realidade profissional encontrada, bem como avaliar se sua formação acadêmica é responsável pelo distanciamento de tais aspectos de sua formação e de sua atuação profissional, a partir dos documentos legais balizadores para essa área de formação que ajudaram a nortear esse estudo. Para se chegar a tal compreensão do modelo dado foram utilizadas entrevistas, questionários e análise de documentos relativos ao tema investigado. Trata- se de uma investigação de natureza qualitativa que se utiliza também de características de fonte documental. Assim, tal investigação apresenta também características de pesquisa documental. Os tipos de documentos utilizados são aqueles escritos em documentos oficiais de alcance tanto local como nacional e publicações administrativas. Os sujeitos da amostra desse estudo foram escolhidos dentro das técnicas de amostragem aleatória simples sem reposição entre os professores de todos os períodos e os supervisores de estágio do curso de Psicologia da UNIR/RO, em número de nove, e de outra instituição particular de nível superior de ensino em Rondônia, a saber, a Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), em Porto Velho, em número de quatro, que possui o mesmo curso indicado da UNIR, isto é, Psicologia; com base na aceitação e no desejo de participar da pesquisa. Os demais sujeitos dessa pesquisa foram selecionados com base na lista de egressos do referido curso de Psicologia da UNIR/RO, em suas diferentes turmas dos anos de 1996 a 2009, em número de vinte, não havendo distinção entre sexo ou outro diferencial, mas optando por um número de sujeitos (egressos) do curso acima citado que fosse representativo em termos de amostra. Também foram sujeitos dessa pesquisa a Coordenadora do Serviço de Psicologia Aplicada (S. P. A) da UNIR e seu equivalente na instituição de nível superior particular, Chefe e/ou Coordenador do Departamento de Psicologia da UNIR (DEPSI) e equivalente da instituição de nível superior privada. Além deles, também foram sujeitos dessa investigação a ex-presidente do Conselho Federal de Psicologia (CFP), à época do estabelecimento das Diretrizes Curriculares e um membro da Comissão de Especialistas da Secretaria de Ensino Superior do MEC (SESu/MEC), que foi relatora da proposta de Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em Psicologia, aprovada junto ao Conselho Nacional de Educação (C.N.E). Para que se chegasse à compreensão do significado de tais informações foi utilizada a Análise de conteúdo conforme a descreve Bardin (1977). Os resultados encontrados indicam que as Diretrizes curriculares para a área em causa podem não ter muita relevância se as condições institucionais dos cursos de Psicologia não estiverem adequadas à sua aplicação, além de expressarem uma concepção de política atrelada a interesses político-econômicos, ideológicos e de mercado. Assim, o exercício da profissão pode se apresentar comprometido em seus aspectos éticos, epistêmicos, políticos e sociais. Palavras-chave: Psicologia. Formação profissional. Política educacional. Ensino superior. Currículo. Estado de Rondônia. ABSTRACT The study object of this research are the foundations of training policies for Psychology and the type of training which is offered, besides their implications for the performance of those professionals. The goal is evaluate the operative proposition of education policies in the country for the psychology courses since 2004, verifying under what condition it has been produced, including how it has happened the participation and elaboration of such a document and to understand what are the theoretical and practical information found by the students during their training in psychology and whether these fundamentals are suitable to the professional reality found, as well as assessing whether their academic training is responsible for the detachment of such aspects of their training and their professional performance, starting from legal documents which are indicators for this training and which helped lead this study. In order to get to an understanding of the model interviews were used, questionnaires and analysis of documents relating to the subject investigated. This is a qualitative research that uses also features of documentary source. The documents were collected in official contexts (local and national) and in various administrative publications. The studied subjects were partly chosen within the techniques of simple random sampling without replacement among the teachers of all terms and internship supervisors of the Psychology course of UNIR / RO, in number of nine, and another private institution of higher education in Rondonia, ULBRA, in Porto Velho, in number of four, which has the same recommended course as UNIR, Psychology, and based on acceptance and desire to participate in researches, partly selected from those students who graduated from the Psychology at UNIR / RO, among groups formed between 1996 and 2009, in number of twenty. There was no difference between gender or other difference among studies, it was decided, however, by a number of graduates in terms of representative sample. The Coordinator of the Department of Applied Psychology (S.P.A.) of UNIR and its equivalent in the particular institution of higher education were also subjects of research, and the Chief and / or Coordinator of the Department of Psychology, UNIR (DEPSI) and its equivalent at the private institution at higher level. Besides them were also subjects of this investigation the former chairman of the Federal Council of Psychology (CFP) at the time of the establishment of curriculum guidelines and a member of the Committee of Experts of the Department of Higher Education of MEC (SESu / MEC), who was rapporteur of the National Curriculum Guidelines draft for undergraduate courses in psychology, approved by the National Education Council (CNE). In order to get to an understanding of the significance of such information it was used the content analysis as describes Bardin (1977). The results indicate that the curriculum policies for the area in question may not have much relevance, if the institutional conditions of psychology courses are not suited to its application, and express a conception of policies tied to political and economic interests, ideological and marketing. Thus, the profession can appear committed to its ethical, epistemological, political and social. Keywords: Psychology. Vocational training. Educational policy. Higher education. Curriculum. State of Rondônia. LISTA DE SIGLAS AB Presidente do Conselho Federal de Psicologia durante o período de aprovação das Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em Psicologia ABC Modalidade de Teste Psicológico para a verificação da maturidade necessária à aprendizagem da leitura e da escrita ABEP Associação Brasileira de Ensino de Psicologia ABI Associação Brasileira de Imprensa ABPJ Associação Brasileira de Psicologia Jurídica ABRAPSO Associação Brasileira de Psicologia Social ADUNIR Associação dos Docentes da UNIR AGCS Acordo Geral sobre o Comércio e Serviços AGEE Agenda Globalmente Estruturada para a Educação ANDES-SN Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior - Sindicato Nacional ANFOPE Associação Nacional pela Formação dos Profissionais em Educação ANPAE Associação Nacional de Profissionais de Administração da Educação ANPEd Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação ANPEPP Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia BID Banco Interamericano de Desenvolvimento BIRD Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento BM Banco Mundial CAPS Centro de Atenção Psicossocial. CBO Catálogo Brasileiro de Ocupações (CBO) CEMC Cultura Educacional Mundial Comum CES Câmara de Educação Superior CEPA Centro Editor de Psicologia Aplicada CEPAL Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe CFE Conselho Federal de Educação CFP Conselho Federal de Psicologia CGR Câmara de Graduação CLT Consolidação das Leis de Trabalho CNE Conselho Nacional de Educação CNH Carteira Nacional de Habilitação Veicular CNTE Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação COFINS Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social COJ Centro de Orientação Juvenil CONED Congresso Nacional de Educação CONEP Conselho Nacional de Entidades Estudantis de Psicologia CONSEA Conselho Acadêmico da UNIR CONSEPE Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão da UNIR CONSUN Conselho Universitário da UNIR CRE Conselho da Reforma do Estado CRP Conselho Regional de Psicologia CSLL Contribuição Social sobre o Lucro Líquido DASP Departamento Administrativo do Serviço Público DCN Diretrizes Curriculares Nacionais DE Dedicação Exclusiva DEPSI Departamento de Psicologia da UNIR EAD Ensino à Distância ENADE Exame Nacional do Desempenho dos Estudantes ENC Exame Nacional de Cursos ENEP Executiva Nacional dos Estudantes de Psicologia EUA Estados Unidos da América FAAR Faculdades Associadas de Ariquemes FASUBRA Federação dos Servidores das Universidades Brasileiras FENAPSI Federação Nacional dos Psicólogos FENPB Fórum de Entidades Nacionais da Psicologia Brasileira FHC Fernando Henrique Cardoso FIES Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior FIMCA Faculdades Integradas Maria Coelho Aguiar (Porto Velho) FMI Fundo Monetário Internacional GATS General Agreement on Trade in Services GED Gratificação de Estímulo à Docência IDORT Instituto de Organização Racional do Trabalho IES Instituições de Ensino Superior IESALC Instituto Internacional para a Educação Superior na América Latina e Caribe IFES Instituições Federais de Ensino IIPCT Lei de Incentivo à Inovação e à Pesquisa Científica e Tecnológica INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira IRPJ Imposto de Renda de Pessoa Jurídica ISOP Instituto de Seleção e Orientação Profissional JK Juscelino Kubitschek LBHM Liga Brasileira de Higiene Mental LDBEN Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional MA Relatora do Parecer das Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em Psicologia MARE Ministério da Administração e da Reforma do Estado MEC Ministério da Educação e Cultura MERCOSUL Mercado Comum do Sul MPOG Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão NUSAU Núcleo de Saúde OAB Ordem dos Advogados do Brasil OCDE Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico OMC Organização Mundial do Comércio ONG Organização Não-Governamental ONU Organização das Nações Unidas OREALC Oficina Regional de Educação para a América Latina e o Caribe PAIUB Programa de Avaliação das Universidades Brasileiras PASEP Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público PDRAE Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado Brasileiro PEPA Psicologia Escolar e Problemas de Aprendizagem PIB Produto Interno Bruto PIS Programa de Integração Social PMK Teste Miocinético de Mira y Lopez PPNE Psicologia do Portador de Necessidades Especiais PPP Lei de Parceria Público-Privada PREAL Programa de Promoção da Reforma Educativa na América Latina e Caribe PROUNI Programa Universidade para Todos PSDB Partido da Social-Democracia Brasileira PUC Pontifícia Universidade Católica QI Quociente Intelectual REUNI Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais RO Rondônia (Estado) SBP Sociedade Brasileira de Psicologia SBPC Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência SBPH Sociedade Brasileira de Psicologia Hospitalar SEDUC Secretaria de Educação do Estado de Rondônia SEMAD Secretaria Municipal de Administração de Porto Velho- RO SEMED Secretaria Municipal de Educação de Porto Velho- RO SENAC Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial SENAI Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial SESu Secretaria de Ensino Superior SINAES Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior S.P.A. Serviço de Psicologia Aplicada STO Seção de Terapêutica Ocupacional TCC Trabalho de Conclusão de Curso UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro UNE União Nacional dos Estudantes UNESCO Organização das Nações Unidas para a Ciência, Cultura e Educação UNICEF Fundo das Nações Unidas para a Infância UNIR Fundação Universidade Federal de Rondônia USP Universidade de São Paulo SUMÁRIO 1. Introdução ............................................................................................................... 1 1.1 - Delimitação do problema .................................................................................................. 3 1.2 - Justificativa do estudo ...................................................................................................... 5 1.3 - Objetivo geral do estudo .................................................................................................... 9 1.4 - Objetivos específicos do estudo ..................................................................................... 10 2. A Psicologia como Ciência e Profissão: Aspectos Históricos, Éticos, Epistemológicos e Políticos ....................................................................................... 11 2.1 - Percurso Histórico do surgimento da Psicologia como Disciplina e da Psicologia como Campo de Saber no Brasil .......................................................................................... 11 2.1.1 - Marcos Legais e o desenvolvimento da Profissão em Psicologia ........................... 48 2.2 - Dimensão epistemológica, ética e política da Psicologia ............................................... 65 3. Fundamentos da política para o Ensino Superior no Brasil .............................. 102 3.1 - Política para o Ensino Superior no Brasil e a Agenda Neoliberal para a América Latina .................................................................................................................................. 102 3.1.1 - A Proposta do Banco Mundial para a Educação Superior .................................... 104 3.1.2 - O Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado Brasileiro (PDRAE) e o Welfare State ........................................................................................................ 109 3.1.3 - O Neoliberalismo como Política Pública para e no Ensino Superior .................... 119 3.1.4 - Política Pública Educacional para os Cursos de Graduação em Psicologia e a Formação Profissional ......................................................................................... 128 3.1.5 - Educação no Ensino Superior como Bem Econômico e/ou Mercadoria ............... 144 3.1.6 - O “Estado-Avaliador” e a Massificação do Ensino Superior ................................ 152 3.1.7 - Estratégias, Implantação e Implicações do Modelo de Reforma do Aparelho do Estado: a nova configuração do Ensino Superior ................................................ 158 3.1.8 - A Agenda Política Global para a Educação e suas Consequências ....................... 170 4. Delineamento da pesquisa ................................................................................... 175 4.1 - Participantes.................................................................................................................. 176 4.2 - Instrumentos e procedimentos para Coleta de Dados ................................................... 177 4.3 - Análise e Compreensão dos Dados............................................................................... 180 5. A Formação do Profissional da Psicologia em Porto Velho - RO ...................... 184 5.1 - Análises de Conteúdos das Entrevistas realizadas: as posições da ex-presidente do CFP e da relatora do Parecer das Diretrizes Curriculares para os Cursos de Graduação em Psicologia do Conselho Nacional de Educação (CNE) ............................................ 185 5.2 - Análise de conteúdo da entrevista realizada: a posição da Coordenadora do Serviço de Psicologia Aplicada (S.P.A.) da UNIR, quanto à formação do Profissional da Psicologia ................................................................................................................. 219 5. 3 - Análise de Conteúdo da Entrevista realizada: a posição do Coordenador do Serviço de Psicologia Aplicada (S.P.A.) da ULBRA/Porto Velho, quanto à Formação do Profissional da Psicologia ........................................................................................ 224 5.4 - Análise de Conteúdo do Questionário aplicado: a posição dos docentes da ULBRA/Porto Velho, quanto à Formação do Profissional da Psicologia ................ 238 5.5 - Análise de Conteúdo do Questionário aplicado: a posição dos docentes da UNIR, quanto à Formação do Profissional da Psicologia ............................................................... 259 5.6 - Análise de Conteúdo do Questionário Aplicado: a posição dos EGRESSOS da UNIR, quanto à Formação do Profissional da Psicologia .................................................... 291 6. Considerações Finais e Conclusão ...................................................................... 335 Referências .............................................................................................................. 353 Apêndice .................................................................................................................. 369 Anexos ..................................................................................................................... 371 Anexo A - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) ...................................... 372 Anexo B - Modelo de questionário utilizado para os egressos avaliarem a formação e a ênfase nos aspectos sócio-políticos da formação profissional em Psicologia ..................... 374 Anexo C - Modelo de questionário utilizado para os Docentes e/ou Supervisores de Estágios e Coordenadores e/ou Chefes de Departamentos avaliarem a formação e a ênfase nos aspectos sócio-políticos da formação profissional em Psicologia ........................... 375 Anexo D - Modelo de entrevista utilizado com a/o presidente do Conselho Federal de Psicologia e com o membro da Comissão de Especialistas da SESu/MEC, avaliarem a proposta inicial de Diretrizes Curriculares para os cursos de graduação em Psicologia e também a proposta aprovada, que está expressa no Parecer n.º 062/2004, e sobre a ênfase nos aspectos sócio-políticos da formação profissional em Psicologia .................................................................................................................................. 376 Anexo E - Modelo de entrevista utilizado para os Coordenadores dos Serviços de Psicologia Aplicada da UNIR e ULBRA/Porto Velho, avaliarem a formação e a ênfase nos aspectos sócio-políticos da formação profissional em Psicologia ........................... 377 Anexo F - Declaração com os termos de concordância da Instituição onde será desenvolvida a pesquisa ................................................................................................................. 378 Anexo G - Declaração com os termos de concordância da instituição onde será desenvolvida a pesquisa ................................................................................................................. 379 Anexo H - Relatório e Parecer n.º 062/2004, das Diretrizes Curriculares nacionais para os cursos de graduação em Psicologia .......................................................................... 380 Anexo I - Kit docente do Instituto Luterano de Ensino Superior de Porto Velho................ 392 Anexo J - Situação da atuação profissional dos egressos da UNIR/RO e seu tempo de atuação .................................................................................................................................. 424 1 1. INTRODUÇÃO Tratar da política educacional e da formação do psicólogo e de suas implicações para uma atuação profissional requer uma retomada dos aspectos históricos, políticos, econômicos e culturais, dentre outros, para que se possa compreender os rumos atuais dessa atividade profissional e propor melhorias ao processo de formação para que haja avanço científico e social, também. Este enfoque é necessário se levarmos em consideração as peculiaridades relativas ao surgimento da Psicologia enquanto profissão no Brasil. Logo após a sua regulamentação como profissão, em 1962, face ao período político que se sucedeu logo a seguir, ou seja, a implantação de um regime político ditatorial decorrente do golpe militar, em 1964, essa atividade teve que se sujeitar a um modelo de atuação que se adaptasse ao cenário político restritivo instalado quanto aos aspectos voltados à sociedade, à construção da cidadania resultante de uma formação crítica, que englobaria a face histórica, política, econômica, cultural etc dessa formação. Desde então a Psicologia tem enfrentado inúmeros problemas advindos dessa história conturbada do passado político recente de nosso país e também da sua própria história como disciplina e campo de saber. É com a intenção de contribuir ao entendimento e superação de algumas dessas dificuldades que essa investigação se apresenta. As peculiaridades da realidade brasileira e, em particular, da região amazônica, especificamente na cidade de Porto Velho, onde se encontram os cursos de Psicologia investigados nesse estudo, ratificam a escolha do design dessa pesquisa. Os cursos escolhidos estão em uma universidade federal pública e em uma universidade privada, de caráter confessional. A substituição da legislação anterior para o ensino superior pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) pode ser vista dentro do contexto das mudanças no Brasil e no mundo, principalmente no tocante à chamada globalização da economia e o surgimento de uma sociedade denominada de pós-moderna. Posso afirmar que este trabalho é resultado, de um lado, de minha atividade como professor no curso de graduação em Psicologia da Fundação Universidade Federal de Rondônia (UNIR), e, por outro, complementar a tal exercício profissional, da reflexão crítica que busca colaborar no processo de transformação social 2 por meio da compreensão acerca dos saberes e práticas naturalizadas nessa atividade profissional. É dessa confluência que emergiu o objeto dessa pesquisa, isto é, as políticas educacionais e a formação do profissional da Psicologia e suas implicações para a atuação profissional. Assim, nessa seção introdutória, abordo a delimitação do problema e o relaciono à minha trajetória pessoal, para em seguida delimitar a linha de pesquisa a que está vinculado. Posteriormente, apresento a justificativa para investigar os aspectos contidos nesse estudo. E, por fim, nessa seção, apresento os objetivos geral e específico que viso aqui. A seção dois apresenta todo o percurso histórico construído durante a investigação que intenta explicar e contextualizar por meio de aspectos históricos, políticos, éticos e epistemológicos a constituição da Psicologia como ciência e profissão. Demonstra que a Psicologia serve atuando de forma importante na acomodação de contradições presentes no modelo de produção e sociedade vigente. A seção três traz os fundamentos necessários à compreensão da política para o ensino superior, incluindo os cursos de graduação em Psicologia e as implicações de tal modelo de formação profissional em nossa realidade. O intuito é de demonstrar de que forma as agências econômicas internacionais tem orientado de forma decisiva a construção e implementação de políticas públicas em particular, aqui, no ensino superior brasileiro, por parte do governo atual e do anterior, principalmente, a partir dos anos de 1990. A seguir, na seção quatro, apresenta-se o delineamento da pesquisa, ou seja, quem são seus participantes, quais são os instrumentos e procedimentos para a coleta de dados e de como será feita a análise e compreensão de dados dessa investigação. Na seção seguinte, a quinta, apresento a análise da formação do profissional da Psicologia, em Porto Velho/RO1, nas instituições onde se deu a pesquisa e os resultados encontrados e uma discussão sobre tais achados em consonância com os 1 O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010a), aponta que a cidade de Porto Velho, capital do estado de Rondônia, apresenta uma população acima de 380 mil habitantes. Foi criada em 02 de outubro de 1914, e pertencia ao estado do Amazonas. A área atual do município é de 34.068,50 km2. O estado foi criado, em 22/12/1981, após ter sido Território Federal (do Guaporé), que abrigava os municípios de Porto Velho, capital do Território, Guajará Mirim e Lábrea. Em 1956, passa a se chamar Território de Rondônia (IBGE, 2009). Atualmente, Rondônia conta com 52 municípios e mais de um milhão e meio de habitantes (IBGE, 2010b). Não há instituições de ensino superior estadual ou municipal em Rondônia, somente a Universidade Federal (UNIR) e instituições privadas de ensino. 3 objetivos para essa investigação. O método utilizado foi a análise de conteúdo, que possibilitou estabelecer temas e suas respectivas categorias de análise. Por fim, a última seção apresenta as conclusões em forma de síntese desse trabalho de investigação e apresenta demais considerações por parte desse investigador acerca do tema. 1.1 - DELIMITAÇÃO DO PROBLEMA Este trabalho de investigação é fruto de minha trajetória profissional de mais de 20 anos de labor no campo da Psicologia. Desde minha época como graduando na área observava que o modelo de formação profissional continha hiatos entre o modelo dado na graduação e a realidade profissional encontrada. Tal constatação foi fruto dos diferentes estágios efetuados nesse período, tanto o de natureza curricular (clínica psiquiátrica), como os extracurriculares em clínica, em organizacional e social- comunitária. Depois, durante o exercício profissional tanto como psicólogo clínico em consultório particular e hospital psiquiátrico, quanto nas demais áreas em que atuei, tais como: no gerenciamento de recursos humanos na Secretaria de Administração (SEMAD) e de Educação (SEMED), do município de Porto Velho- RO, e nas escolas da Secretaria de Educação do Estado (SEDUC-RO), verifiquei um descompasso entre os aspectos recebidos na graduação e a realidade encontrada nesse universo profissional. Tal percepção foi se tornando cada vez mais incômoda a partir de meu ingresso como docente no curso de Psicologia2 há 17 anos numa instituição federal de ensino, a Fundação Universidade Federal de Rondônia (UNIR-RO), onde verifico que os principais problemas ligados à formação em Psicologia, apesar de tanto tempo decorrido de minha formação inicial e de existência legal do campo profissional, ainda perduram sob diferentes aspectos. Além disso, os resultados encontrados na realização do Mestrado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), entre os anos de 1996 (julho) a 1999 (janeiro), que tratou de aspectos da formação em Psicologia na Universidade Federal de Rondônia – UNIR - tais como: currículo, estágio, corpo 2 Em 1988, atendendo à solicitação do então Reitor, criou-se o Curso de Psicologia, com base na Resolução n.º 048/88, de 14/10/88, do Conselho Diretor, na época o Conselho Deliberativo, pois ainda não havia os Conselhos Universitário (CONSUN) e de Ensino, Pesquisa e Extensão/CONSEPE (atualmente CONSEA). Inicialmente os Cursos de Psicologia e Enfermagem faziam parte do Departamento de Ciências Biomédicas, tendo sido desvinculados deste a partir de 10/04/1991, por meio da Resolução n.º 039/CONSUN, que aprovou a estrutura organizacional da UNIR, e conforme Livro-Ata n.º 1, do Departamento de Psicologia, teve sua primeira reunião departamental em 17/06/1991. 4 docente (qualificação, motivação), discente, egresso (atendimento às necessidades do desempenho profissional tanto no que diz respeito à legislação federal, bem como a prática profissional) e recursos materiais (biblioteca e laboratórios adequados), dando continuidade, lato sensu, portanto, à investigação parcial já realizada sobre a formação dada no curso de Psicologia da UNIR (SILVA, 1999), reforçam o interesse pelo tema desta pesquisa – as políticas educacionais e a formação do profissional da Psicologia e as suas implicações para a sua atuação profissional. É com base em tal inquietação profissional que esse estudo pretende delimitar e problematizar alguns dos aspectos por mim sentidos e vividos durante o exercício no magistério superior público. A formação profissional em Psicologia no país sempre apresentou problemas dadas as peculiaridades da sua criação, de seu objeto de estudo não estar claramente delimitado como sendo específico de outro campo de saber diferenciado das demais atividades de outras áreas profissionais. Além disso, essa atividade profissional, ao longo de seu desenvolvimento, enquanto profissão apresenta dificuldades de questionar as suas bases epistemológicas e a ética decorrente desta. É possível que não apenas o momento histórico que vivia o Brasil durante a criação da Psicologia como atividade profissional reconhecida pela lei, mas também os aspectos intrínsecos a esse campo de saber, incluindo a sua aplicabilidade e seus vieses ideológicos, ajudem a explicar os problemas acima apontados. A finalidade desse estudo é a de oferecer uma análise da política de formação em Psicologia no Brasil a partir da realidade da formação ofertada no estado de Rondônia em uma instituição particular e na pública onde atuo. Tal finalidade desse estudo necessita trazer à luz e tentar desvendar os caminhos pelo qual o curso de Psicologia no país levou a uma formação dissociada de uma compreensão por parte dos futuros profissionais da realidade sociopolítica e econômica em que está inserida, conforme meu estudo anterior (SILVA, 1999). Esse interesse leva em conta também as raízes sociais, políticas e econômicas existentes à época da regulamentação do curso de Psicologia no Brasil (PATTO, 1982). Defendo, portanto, uma avaliação crítica dos programas de psicologia a serem investigados no sentido de que há mudanças na formação em decorrência das transformações políticas, econômicas, sociais, culturais e de outras ordens, capazes de influenciarem e interferirem nos rumos dessa atividade de formação e profissional, dadas as alterações legais e influências sofridas durante o percurso histórico desde a sua constituição até o presente e de que é preciso conhecer tais fatores na sua 5 natureza e importância para poder trabalhar tendo-os como aliados na tarefa de formar profissionais psicólogos para a sociedade. Tais questões são matéria-prima para esse estudo, mas não esgotam a justificativa para tal investigação. Assim sendo, passo a apresentar, após a indicação da linha de pesquisa, as considerações sobre a importância de investigar os aspectos discutidos até aqui. A linha de pesquisa na qual se orienta esse projeto é a de Gestão Educacional e Estado, Política e Educação, com o foco a análise da educação escolar e as políticas educacionais da modernidade nos âmbitos público e privado. Portanto, está diretamente relacionada ao Eixo Temático: Política e Gestão Educacional. 1.2 - JUSTIFICATIVA DO ESTUDO Apesar dos estudos realizados por diferentes autores (CROCHIK, 1985; VILELA, 1996), reportarem-se aos aspectos sócio-políticos e econômicos da formação, tanto a UNIR, bem como a legislação, dão pouca ou nenhuma ênfase a tais aspectos, relegando a alguma disciplina a preocupação com uma dimensão que discuta o papel de amortecedor social que incide sobre a profissão do psicólogo. Vilela (1996) denuncia a suposta neutralidade e o a-historicismo decorrente de um naturalismo biologizante presente nos cursos de formação em Psicologia. Inicialmente, esse estudo pode colaborar, obviamente, para questionar epistemologicamente a ciência e a profissão do psicólogo e, além disso, como verificador de uma formação acadêmica que realizada em instituição pública federal pode e deve dar satisfação quanto aos recursos financeiros nela empregados. A verificação da proposta de políticas educacionais para os cursos de graduação em psicologia visa o aumento da qualidade do que é ensinado, bem como da importância científica e seus desdobramentos políticos, pois a atuação profissional está diretamente ligada à tomada de consciência de si e da coletividade, assim como no tocante à possibilidade de construção da cidadania e resgate da sua dimensão humana atualmente relegada em função dos valores político-econômicos e sociais vigentes. Tal verificação serve também para dar legitimidade junto à sociedade, pois é uma atividade custeada a partir de recursos financeiros oriundos da população (BELLONI, 1989; CHAUÍ, 2001). Pode-se afirmar que os objetivos dessa verificação 6 estão presentes tanto na esfera local da instituição, à medida que podem ser identificados fatores (humanos, institucionais etc), que colaboram ou dificultam o desenvolvimento de uma atividade que coloca à disposição da sociedade recursos humanos e técnicos para seu desenvolvimento e metas, buscando retirar tais obstáculos para que haja uma revisão e consequente expansão da atividade avaliada, como outros elementos que ultrapassam tal esfera na medida em que o profissional colocado à disposição não só do mercado de trabalho, mas de toda a sociedade, pode ser um agente transformador das condições sociais e políticas, enquanto cidadão e profissional (FIRME, 1995). Assim, os efeitos secundários e em longo prazo da avaliação são tão importantes que os imediatos e planejados – e talvez mais importantes ainda. “Avaliar não é só o ser científico. É ser político, social, moral, ético, pedagógico, sensível. Vale, portanto, usar todos os procedimentos possíveis, desde que, com uma intenção maior – a de fazer a transformação necessária.” (FIRME, 1995, p. 70). Em segundo lugar, poder apontar de forma fundamentada de que maneira ocorre a possível desarticulação entre teoria e prática nos cursos de Psicologia (SILVA, 1999), é uma possível consequência da verificação das políticas de formação em Psicologia no país. Além disso, discutir os aspectos históricos contidos na criação da profissão do psicólogo serve para identificar interesses explícitos ou não, que permeiam as relações de poder decorrentes da divisão de classes sociais. Serve, assim, como tentativa de identificar a quem a Psicologia enquanto ciência e profissão estão de fato servindo, já que pode tanto ter um papel de desmistificar as condições sociais, históricas e políticas, quanto de falseá-las. Conforme já constatado por diversas publicações (CFP, 1988; MELLO, 1983, WHO, 2001), o modelo clínico ainda é predominante na formação. A realidade atual impulsiona no sentido da crescente necessidade de qualificação do mercado de trabalho e impõem conhecimentos cada vez mais multi e interdisciplinares na atuação profissional (BOCK, 2002). Assim, a intenção é de indicar alternativas ao modelo predominante na formação que nem sempre se ajusta ao cenário encontrado no exercício profissional (YAMAMOTO, 2002). Outro aspecto é a possibilidade de dar subsídios ao debate que vem ocorrendo nas esferas das entidades da categoria, tais como: o Conselho Federal de Psicologia (CFP), os Conselhos Regionais de Psicologia (CRP), e a Associação 7 Brasileira de Ensino de Psicologia (ABEP)3, quanto a uma política de formação nacional para a profissão. O estudo pretende relacionar as necessidades postas pela sociedade para uma atuação profissional pautada pelo conhecimento dos determinantes ético-políticos e econômicos presentes, além de nortear o papel da universidade frente a eles (YAMAMOTO, 2002). Vieira (1989) argumenta que a universidade e o ensino que pode proporcionar é um bem cultural, mesmo que restrita a uma minoria. Por isso, defende que deva ser melhorada tanto do ponto de vista quantitativo quanto qualitativo, pois assim poderia atender a uma imensa maioria, excluída física e socialmente, de participar. A autora reconhece que mesmo havendo disparidades entre as universidades, os chamados centros de excelência e as instituições “faz-de-conta”, há um “compromisso com o saber” que está na base dos motivos para se buscar uma transformação desta instituição. Ela assevera que esse espaço do saber deve servir também aos excluídos na criação, consumo e difusão do conhecimento (p. 14). A pesquisa aqui destacada pretende ser colaboradora para a ampliação, através da avaliação, de um conhecimento que propicie aos atores sociais envolvidos uma melhor compreensão e, por conseguinte, atuação mais consciente de seus papéis sociais e político, quer como cidadãos ou profissionais de um determinado ramo do saber. O Processo Nacional Constituinte dos Psicólogos (CFP, 1994), afirmou como compromisso uma formação em Psicologia que contribua para a transformação da realidade brasileira, partindo da produção de um conhecimento crítico e de uma prática que esteja a serviço da maioria da população. Uma integração entre as necessidades sociais e as finalidades para as quais foram criadas as universidades deve ser levada em consideração. Aparentemente, uma forma de redescobrir as verdadeiras finalidades sociais está embasada num processo de averiguação que deve ser complementar. Fávero (1989, p.51) enfatiza tal relação, e aponta também para o seguinte percurso: Penso ainda que, da mesma forma que as ações de uma dada instituição se caracterizam na sua relação com o social, tomado no sentido mais amplo, também a relação docente-pesquisador no interior 3 A criação da ABEP foi proposta do CFP ao Fórum de Entidades Nacionais da Psicologia (FENP) e foi efetivada em 1998. A primeira reunião da ABEP aconteceu em Salvador, no dia 28 de maio de 2000, data limite para as contribuições e subsídios ao debate nacional sobre as Diretrizes Curriculares que explicitaram um conjunto de princípios, fundamentos e condições que orientam os cursos de Psicologia na organização, articulação e desenvolvimento das propostas curriculares. Conferir BOCK (2002), p. 59 –73 e CARVALHO (2002), p. 113. 8 de uma determinada organização social, administrativa e pedagógica deve expressar-se fortemente no cotidiano da vida acadêmica. Minha trajetória como docente no magistério universitário e na supervisão de estágio curricular na área clínica, já que fui o primeiro supervisor no Serviço de Psicologia Aplicada (S.P.A.) da UNIR, são uma motivação e uma maneira de também realizar uma autocrítica sobre o trabalho desenvolvido desde 1993, ano de meu ingresso numa Instituição Federal de Ensino, além de responder às minhas inquietações suscitadas no interior da prática docente após verificar a desvinculação existente entre a formação profissional no campo da Psicologia e as demandas encontradas na realidade social durante o exercício dessa atividade profissional. Da mesma forma, o processo investigativo que pretendo desencadear está em consonância com as mudanças pelas quais as universidades públicas estão passando desde que se estabeleceu por meio do Decreto n.º 3.860, o procedimento para o processo de avaliação dos cursos e instituições de ensino superior4. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), em vigor, impõe aos cursos universitários um processo regular de avaliação para que haja renovação, reconhecimento e/ou credenciamento de instituições de ensino superior (artigo 46 da LDB). Assim, o meu papel como verificador e avaliador de uma política existente, pretende clarificar e facilitar opções, apresentar informações contextualizadas de tempo e lugar sobre um modelo de programa e diretrizes de formação que ajude a reduzir incertezas por meio da avaliação de tal política para a área de conhecimento (FIRME, 1995). Ademais, o Congresso Nacional Constituinte dos Psicólogos deliberou entre seus objetivos “[…] a intervenção na sociedade em defesa da construção de uma sociedade democrática, para garantir a todos os direitos de cidadania.” (CFP, 1994, s/p). Essa investigação se propõe a tentar responder perguntas tais como: para que tipo de sociedade e que profissional e/ou cidadão estamos ajudando a formar com nossa prática profissional/ética. 4 O MEC lançou, em 2003, a nova proposta de avaliação da educação superior, denominada SINAES (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior). Tal avaliação foi aprovada pela Lei n.º 10.861, de 14 de abril de 2004. A regulamentação dos procedimentos de avaliação do SINAES foi feita por meio da Portaria MEC n.º 2.051, de 09 de julho de 2004. O SINAES é composto por três processos: a Avaliação das Instituições, a Avaliação dos Cursos de Graduação e o Exame Nacional do Desempenho dos Estudantes (ENADE). Conferir XIMENES, Daniel de Aquino, 1999, p. 221 – 222. Benedetti (2003) aponta o caráter unilateral do anterior processo avaliativo – o ENC - Provão- e reafirma a necessidade de uma avaliação sistêmica da educação superior no país. 9 Autores como Bastos (2002), aponta que a formação ética e o compromisso com as demandas sociais dentre outros fatores foram alçados ao status de valores norteadores de todo o curso de Psicologia. Já Yamamoto et al. (2002), destaca a necessidade de articulação do compromisso social em uma formação com as condições concretas postas pelo mercado de trabalho, mas não a subordinando como adestrada para as demandas sempre mutáveis do mercado. Nos termos desse autor, o compromisso profissional com as demandas sociais contemporâneas necessita inicialmente da capacidade de problematização, de intervenção e consciência das “[…] determinações concretas da divisão social do trabalho capitalista […] no mercado profissional” (YAMAMOTO, 2002, p. 83), dessa realidade. O compromisso ético e de atenção às demandas sociais estão presentes como princípios básicos para a formação do Psicólogo no documento produzido pelo Comitê Brasileiro de Psicólogos do Mercosul, intitulado “Formação do psicólogo: proposta da delegação brasileira ao IV Encontro Integrador de Psicólogos do Mercosul”, ocorrido em 4 e 5 de abril de 1997, na cidade de Montevidéu. Por fim, pode-se argumentar que o desenvolvimento do sentido de uma responsabilidade profissional requer um aperfeiçoamento pessoal, ético, científico e técnico que está na essência desse estudo, pois tenta empreender uma análise crítica da realidade social e política em que está inserido, abrangendo as diferentes partes dessa realidade, ou seja, investigador e sociedade presente no Código de Ética Profissional dos Psicólogos (CFP, 2005) e Processo Nacional Constituinte dos Psicólogos (CFP, 1994). Em suma, cabe assinalar que as justificativas que embasam a realização dessa pesquisa estão relacionadas à busca de ampliar o conhecimento sobre a formação do profissional da Psicologia em função da atualidade, tanto no ambiente acadêmico como no âmbito profissional, de discussões acerca das implicações para uma atuação profissional crítica e eticamente orientada e do papel social que deve desempenhar o psicólogo CARVALHO (2002). 1.3 - OBJETIVO GERAL DO ESTUDO Fornecer subsídios por meio de Diretrizes para adoção de políticas de formação em Psicologia tendo em vista a melhoria da formação ofertada. 10 1.4 - OBJETIVOS ESPECÍFICOS DO ESTUDO 1) Expor os fundamentos das políticas de formação para a Psicologia; 2) Avaliar a proposta de política educacional no país para os cursos de psicologia em vigor desde 2004, verificando em que condição foi produzida, inclusive como se deu a participação e elaboração de tal documento; 3) Verificar se a formação decorrente de tal proposta é considerada crítica para capacitar o graduado em psicologia a bem perceber a realidade em que está inserido e a nela pretender influir e 4) Verificar como se dá a articulação entre teoria e prática e em que medida influencia o caráter crítico da formação em Psicologia. 11 2. A PSICOLOGIA COMO CIÊNCIA E PROFISSÃO: ASPECTOS HISTÓRICOS, ÉTICOS, EPISTEMOLÓGICOS E POLÍTICOS O projeto da psicologia não pode deixar de ser o de uma ciência da compreensão, da comunicação e do encontro do homem e do mundo. (JAPIASSU, 1979, p. 27). O mundo objetivo que o cerca nada mais é que a materialização de uma infinidade de atividades simbólicas. A formação de conceitos e de símbolos é um problema que deveria preocupar os psicólogos, porque é o simbolismo que dá consistência ao universo. (JAPIASSU, 1979, p. 86). 2.1 - PERCURSO HISTÓRICO DO SURGIMENTO DA PSICOLOGIA COMO DISCIPLINA E DA PSICOLOGIA COMO CAMPO DE SABER NO BRASIL Esta parte apresenta um histórico da criação da disciplina de Psicologia em nosso país e do campo desse saber, incluindo seus marcos legais e o desenvolvimento da profissão, como também discute a dimensão epistemológica, ética e política da Psicologia. Conforme autores como Figueiredo (2008), os termos Psicologia e Psicanálise deveriam ser escritos no plural, pois por apresentarem diferentes escolas ou correntes do pensamento psicológico ocupam lugares distintos no que denomina de “território da ignorância”. Em suma, o campo não apresenta uma unidade teórico- conceitual. Nas palavras de Garcia-Roza (1977) “[…] o termo “psicologia” designa um espaço de dispersão do saber” (p. 22), pois “A psicologia não possui, dentro do saber, um lugar definido. Podemos encontrá-la tanto no interior de um saber científico como numa prática ideológica […]” (p.22). Segundo a sua concepção, isso se dá dualmente: “Na verdade, não existe, até o momento, um critério em função do qual se possa afirmar com segurança: isto é psicologia… isto não é psicologia” (GARCIA-ROZA, 1977, p.22). Para ele, o termo psicologia possuí vários significados, isto é, está caracterizado pela “[…] dispersão que pretende eliminar” (p. 25). Esse saber, então, nem é acumulativo, nem progressivo e nem “[…] decorre de uma insuficiente ou ainda não completa evolução histórica, mas da própria constituição deste saber” (GARCIA- ROZA, 1977, p. 26). Para Ferreira Neto (2004), a psicologia é “[…] um campo que abriga diferentes projetos portadores de irredutíveis heterogeneidades” (p. 16). Para 12 Patto (1987) a heterogeneidade da psicologia, expressa por diferentes escolas ou vários paradigmas, é apenas aparente, já que é possível “[…] detectar a presença de uma unidade básica […]” (p. 93), na ideologia do discurso adaptacionista, entre as demais correntes psicológicas vai além do Behaviorismo5, “[…] com pretensão ao status de ciência” (PATTO, 1987, p. 93). Segundo Garcia-Roza (1977), a história seria uma forma de procura da proviniência de uma determinada área ou conceito. É na análise da proveniência que permite-se o encontro da diversidade dos acontecimentos sob a forma do aspecto único de um conceito. O autor não se sente incomodado com os acidentes da história desse campo de saber como obstáculo à existência de uma identidade marcada pelos vários sentidos designadores na utilização de um mesmo termo, no caso em particular aqui, a Psicologia. Aponta que, a emergência, diferentemente da proveniência, “[…] designa o ponto de surgimento. Ela se produz sempre num estado de forças que caracterizam um jogo de dominações” (p. 25). Esclarece ainda que a criação de um novo termo não implica necessariamente o surgimento de um novo objeto, problemática ou nova forma de saber. Segundo Bucher (1981), a Psicologia científica foi criada de maneira não natural, já que não houve uma evolução ou cumulação de dados como nas demais ciências. O autor afirma que a sua “criação” se deu mediante decreto por parte do rei da Saxônia, em Leipzig, o que para ele significa que a Psicologia começou a sua “história científica” como algo instituído ou entronizado mesmo antes de ter um conteúdo definido ou mesmo resultado de uma casuística capaz de formar o “corpus” desta ciência. Em outras palavras, houve um corte preciso entre uma psicologia pré-científica que remontaria aos primórdios da humanidade e seria decorrente do acompanhamento da sua evolução cultural em diferentes auto-representações e uma psicologia científica, positiva nos moldes das ciências naturais vigente à época da sua fundação. 5 O Behaviorismo é uma corrente ou escola psicológica fundada por John Broadus Watson, reconhecido como o primeiro psicólogo behaviorista que definiu sua doutrina da seguinte maneira: “A Psicologia, da maneira com é vista pelo behaviorista, constitui um ramo puramente objetivo da Ciência Natural. Seu objetivo teórico é a predição e o controle do comportamento. A introspecção não é parte essencial de seus métodos” (WATSON, 1913, p. 158). O objeto da psicologia para ele é o comportamento observável e mensurável. Watson não acreditava na existência da consciência e afirmava que toda aprendizagem dependia de fatores do meio externo, sendo toda atividade humana condicionada e condicionável, independentemente dos aspectos de variação da constituição genética humana. O psiquismo e a consciência são considerados como “caixa preta”, ou seja, como entidades não observáveis. (WATSON, 1913, p.158-177). 13 O autor aponta que pelo fato de não se tratar de um corte epistemológico no sentido dado por Foucault, isto é, não ter havido uma evolução histórica que tenha preparado ou exigido uma mudança por meio da transformação de um paradigma anterior que obedece a uma complexa lógica interna, nem no sentido de “revolução científica” descrito por Kuhn (1989), as consequências são o nascimento de uma psicologia não somente prematura, mas também ilegítima, já que não descendente da psicologia secular anterior. A época do “nascimento” da psicologia imprimiu a ela um rumo unidericional dado o modelo de ciência vigente, mas também criou problemas adicionais, pois tal modelo foi emprestado de outros domínios do saber. Assim, desde o começo como disciplina “científica”, a psicologia ergueu-se sobre alicerces problemáticos e “críticos”, pois não possuindo uma história que tenha sido assimilada à sua inauguração, além da inderteminação de seu objeto e metodologia específica. Bucher (1981) afirma que não há na história da ciência outro caso como o da psicologia que teria sido “entronizada” por decreto. Japiassu (1979) afirma que: “A psicologia possui a idade da filosofia” (p. 28), pois para ele “Toda filosofia possui, mesmo de forma embrionária, uma psicologia, frequentemente apresentada com as denominações de ‘moral’ e de ‘política’, a fim de melhor ressaltar seu caráter prescritivo” (p. 28). A Psicologia tornou-se ciência “autônoma” no final do século XIX, com a inauguração de um Laboratório de Psicologia por Wilhelm Wundt6, na Universidade de Leipzig, na Alemanha, em 18797 (PATTO, 1987). Buscou por meio da adaptação das suas investigações e práticas o estatuto de ciência vigente à época, ou seja, o das ciências naturais, mas mesmo assim ainda hoje é vista com certa desconfiança acerca da possibilidade da sua “cientificidade” (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Isso ocorre 6 Viveu entre 1832 e 1926. Segundo Patto (1987), nos aspectos conceituais, Wundt, na prática de seu Laboratório Experimental, sua psicologia “[…] está mais em continuidade do que em descontinuidade com as abordagens à vida psíquica que caracterizam o estudo da alma humana no âmbito da filosofia” (p. 88). Wundt fez parte “Sociedade Fisicalista de Berlin”, fundada em 1845, baseada em juramento de Du Bois-Reymond com base no modelo fisicalista de explicação do mundo. Ele almejava fundamentar a psicologia como ciência exata, mas mesmo assim reconhecia uma consciência subjetiva (BUCHER, 1981). 7 Ribeiro (1996) afirma que apesar de não ser reconhecido oficialmente como o primeiro Laboratório de Psicologia a ser inaugurado no mundo, o mérito coube a Willian James (1842 - 1910), em Harvard, que fundou em 1876 e foi seu diretor, portanto, antes do Laboratório oficialmente reconhecido como o marco inicial da Psicologia. O autor esclarece, ainda, que o primeiro Laboratório de Psicologia oficialmente reconhecido nos Estados Unidos foi fundado na Universidade John Hopkins, de Baltimore, por Stanley Hall, em 1883, segundo dados de Foulquié e Deledalle (1977) e Patto (1987). Stanley Hall foi discípulo e assistente de Wundt, tendo sido responsável pela formação que influenciou toda uma geração de psicólogos norte-americanos, tais como: J. M. Catell e John Dewey (PATTO, 1987). 14 segundo Schultz & Schultz (1998), por conta da Psicologia ainda não ter atingido um estágio paradigmático (KUHN, 19898) na sua história, o que demonstra a existência de discursos alternativos concorrentes que não demonstram superioridade entre si e são incapazes de unificarem-se como discursos explicativos apesar dos esforços investigativos da comunidade desse campo de saber como um todo, além de que o estudo da natureza humana tem sido visto mediante orientação teórica e metodológica própria a cada grupo de acordo com cada escola ou corrente de pensamento psicológico. Kuhn (1989) afirma que “Na ausência de um paradigma ou de algum candidato a paradigma, todos os fatos que possivelmente são pertinentes ao desenvolvimento de determinada ciência têm a probabilidade de parecerem igualmente relevantes” (p. 35). Japiassu (1979, p. 28) afirma que a emancipação da psicologia em relação à filosofia ocorreu dentro de um modelo de cientificidade já existente e trouxe como consequência ao estatuto dessa cientificidade uma independência que está condenada a oscilar constantemente entre dois modelos: o positivista (explicativo) e o interpretativo (compreensivo). Pelo fato de ter nascido no interior da filosofia, herdou dela uma espécie de imperialismo, pois concebe suas relações com as demais disciplinas, não sob a forma de articulação, mas de absorção. O estatuto científico na história geral da Psicologia estrangeira dependeu exatamente da criação de uma Psicologia que sempre esteve associada ao trabalho desenvolvido dentro dos Laboratórios dado seu caráter técnico e definidor baseado em experimentos neurofisiológicos, psicométricos e comportamentais (HEIDBREDER, 1981; WERTHEIMER, 1978). Para Garcia-Roza (1977), apesar de haver a inauguração de tais Laboratórios, como não há critério de unidade no campo psicológico representado por suas teorias e métodos, trata-se de uma delimitação arbitrária, pois como saber o que é ou não do âmbito da Psicologia. Segundo sua descrição não há uma continuidade na história da Psicologia, nem tampouco de tema, de método, da natureza 8 O conceito de paradigma é encontrado na obra: A Estrutura das Revoluções Científicas (KUHN, 1989), do autor, em diferentes acepções. Num sentido lato, paradigma é uma forma de fazer ciência compartilhada por uma comunidade científica, isto é, uma matriz que abrange desde uma formação teórica comum até a unanimidade de juízo sobre os temas investigados. No sentido estrito ou particular, paradigma é um exemplar ou modelo concreto que capacita tal comunidade científica a resolver problemas por meio de instrumentos conceituais e instrumentais e que, portanto, abrange um conjunto de teorias, conceitos e métodos. Assim, o estágio paradigmático da Psicologia seria aquele em que haveria concordância entre métodos, conceitos, teorias e, portanto, certa unanimidade sobre como trabalhar cientificamente na área da Psicologia. Kuhn (1989) defende a idéia de que a ciência evolui não apenas de forma progressiva e seletiva, mas também por “revoluções” no nível dos princípios de explicação (paradigmas) que comandam a nossa visão do mundo. 15 do objeto e/ou de objetivo, o que leva à impossibilidade de se estabelecer um marco para seu surgimento. Segundo seu entendimento referente às divisões da Psicologia como ciência “É como se o saber psicológico fosse constituído de retalhos de tamanhos, cores, formas e texturas diferentes, cabendo ao historiador fazer a colcha” (p. 24). Patto (1987) contesta a idéia de que haja somente falta de unidade na Psicologia como “[…] um corpo discursivo composto por inúmeras escolas e orientações que lhe dão a aparência de um corpo despedaçado […]” (p. 77). Para ela “[…] sob essa heterogeneidade é possível que se oculte uma homogeneidade mais definidora de sua natureza e de seu papel social” (PATTO, 1987, p. 77). A autora defende a idéia hipotética “[…] de que a psicologia possui uma unidade que, longe de ser de natureza científca, é uma unidade ideológica.” (PATTO, 1987, p. 78, grifo do autor). O que ela quer dizer com tal afirmação é que a Psicologia tornou-se um instrumento ideológico, já que a ciência tem por finalidade “descobrir” e “explicar” os fenômenos, enquanto que uma prática ideológica caminha no sentido inverso, ou seja, “encobre” tais fenômenos de acordo com as necessidades do modelo de produção em que se insere, no caso, o capitalista. O conceito de ideologia de Sastre (1974) é esclarecedor do que foi afirmado acima: “[…] linguagens e discursos que representam o real e que mantêm com seu objeto uma relação ilusória, inversora, antitética de desconhecimento e uma relação perceptiva, reprodutora, tética, eficaz, de reconhecimento” (p. 17, destaque do autor). Pode-se falar na dissimulação, no ocultamento do conhecimento enquanto saber provocado pela representação (a ideologia), que instrumenta a dominação. É dessa ordem a linguagem utilizada pelo Behaviorismo, que considera o meio social como algo “natural”, “dado”, já que importou do terreno da Biologia e das ciências físico-matemáticas sua lógica teórico- conceitual permitindo uma reificação que mistifica e encobre a realidade “[…] de uma sociedade de classes, na medida em que faz com que ela apareça como algo objetivo, externo e independente dos homens” (PATTO, 1987, p. 92), a qual os indivíduos devem adaptar-se como expressão do “bom” funcionamento, o que mascara a dimensão histórica dos fatos sociais. Conclusivamente, é possível apontar que a ideologia que apresenta-se vinculada à Psicologia é parte de um tipo determinado de “ciência” (PATTO, 1987). Vale dizer que a chamada ciência moderna adotou sistematicamente o método quantitativo. Nesse sentido cabe lembrar as palavras de Japiassu (1981) a esse respeito: 16 Tal método se identificou tanto com a ciência, que somos tentados a relegar ao domínio do não-científico ou da mistificação todo e qualquer “conhecimento” que não for susceptível de ser mensurável ou que não estiver escudado numa fórmula lógico-matemática (p. 130). Houve a utilização sistemática dos conceitos quantitativos decorrentes da constituição das ciências da natureza a partir do século XVII, sendo extendida tal utilização, no século XIX, a praticamente todas as ciências humanas, incluindo aí a Psicologia que tem sua “origem científica” no “[…] apelo a essa atitude fisicalista que consiste em reduzir os fenômenos psicológicos a comportamentos observáveis e mensuráveis” (JAPIASSU, p. 131, grifo do autor). O método experimental serve como um passaporte para que a psicologia atinja o estatuto de cientificidade valorizado. É, por isso, que a psicologia experimental reconhecida como ciência rompeu com o introspeccionismo, ou seja, seu objeto deixa de ser um conteúdo de consciência acessível por introspecção, passando a ser “[…] entendido como uma atividade dos organismos” (JAPIASSU, 1981, p. 161). O método experimental foi utilizado pelo Behaviorismo que tem como postulado inicial a eliminação da consciência, pois para tal corrente de pensamento psicológico “O corpo e suas diversas funções bastam para explicar todos os níveis do comportamento de um ser vivo” (JAPIASSU, 1981, p.161 – 162). A psicologia do Behaviorismo está embasada na biologia e na física, já que seu argumento biológico permite “[…] reduzir o social ao animal e fazendo abstração da história e das relações sociais; por sua vez, propõe uma argumentação física fundando a racionalidade como sistema “caixa negra” de que a cibernética seria o modelo por excelência” (ibidem, op. Cit., p. 165). Pode-se afirmar que tal entendimento da realidade apresenta uma ideologia subjacente que é utilitarista e manipulatória, já que em tal modelo há uma tecnologia comportamental capaz de treinar e condicionar os seres humanos para determinados fins políticos, legais etc. O Behaviorismo é a principal corrente psicológica prevalente durante o século XX, mas não a única. Tal situação nos remete a unidade da psicologia. Japiassu (1979, p. 22) tratando da unidade da psicologia se posiciona da seguinte forma: […] não devemos estranhar que a unidade da psicologia, hoje, nada mais seja que uma expressão cômoda, a expressão de um pacifismo ao mesmo tempo prático e enganador. […] Numa época de mutação acelerada como a nossa, a psicologia se situa no imenso domínio das ciências “exatas”, biológicas, naturais e humanas. Há diversidade de 17 domínio e diversidade de métodos. Uma coisa, porém, precisa ficar clara: os problemas psicológicos não são feitos para os métodos; os métodos é que são feitos para os problemas […]. Garcia-Roza contesta, entre outras, a paternidade da psicologia científica pelo Behaviorismo com a inauguração dos Laboratórios de Psicologia, já que segundo o autor não há nenhuma ruptura ou revolução teórica com o que havia antes de tal inauguração na Psicologia, mas muito pelo contrário, houve um reducionismo no saber psicológico9 em termos de conceitos e métodos para afastar as incompatibilidades com a doutrina positivista10. Ele aponta o caráter de novidade, já que o Behaviorismo11 inaugura com seus pressupostos, um controle e previsibilidade que as Psicologias clássicas não possuíam, mas não de fundação de Ciência que, segundo o autor, necessita ou exige “[…] um pouco mais” (GARCIA-ROZA, 1977, p. 24). Patto (1987) indica que o desenvolvimento da psicologia experimental veio acompanhada de um reducionismo que intentou “[…] eliminar o dualismo, qualquer que seja a forma por ele assumida, e instituir uma psicologia que se detenha nos dados exteriores à consciência, passíveis de observação direta e de mensuração” (p. 89). Nesse sentido cabe lembrar o que afirmou Bucher (1981), quando apontou referindo-se à psicologia positivista que substituiu o objeto (a alma) e o método (a introspecção), pelo observável (comportamento) e as suas reações psico-fisiológicas e suas medidas, que tal 9 Deleule (1972) afirma que o Behaviorismo “[…] é menos uma ‘revolução’ do que uma atualização da finalidade profunda da psicóloga moderna” (p. 74). 10 Positivismo é uma escola ou doutrina fundada por Augusto Comte, que defendia um modelo científico baseado nos fatos e suas relações rejeitando qualquer aspecto ou conhecimento metafísico ou a priori. O Positivismo privilegia o dado, ou seja, aquilo que pode ser explicado por meio de uma teoria da ciência. Para o positivismo o fato é primordial, pois é de onde se parte por meio da observação e tem como característica ser neutro. Conferir Pequeno Dicionário Filosófico (1977, p. 312-13). Segundo Japiassu (1998), o termo Positivismo está ancorado em “[…] três teses fundamentais: a) todo conhecimento da realidade está fundado nos dados “positivos” da experiência; b) há um domínio puramente formal das “relações de idéias”: o da lógica-matemática; c) é suspeito todo conhecimento “transcendente” (metafísico ou teológico) ou que ultrapassa toda evidência possível” (p. 49). Japiassu (1981) afirma que o pensamento positivista tem como raízes históricas o empirismo inglês do século XVIII, que se desenvolveu como uma reação ao racionalismo idealista carteseano. O autor afirma na mesma obra que o positivismo contemporâneo tem sua base e fonte de sustentação no positivismo comteano do século XIX, denominado também de “positivismo lógico”, “neopositivismo” ,“empirismo lógico” e “neoempirismo”. 11 Deleule (1972) considera o Behaviorismo como “[…] a primeira grande concepção coerente da psicologia moderna” (p. 65). O objeto de estudo do Behaviorismo é o estudo do comportamento, que substitui os conceitos de “consciência”, “vida interior” e “fenômenos psíquicos” utilizados pelos primeiros psicólogos experimentalistas (PATTO, 1987). Segundo Deleule (1972), a definição de behavior é: “[…] comportamento é o conjunto de reações adaptativas objetivamente observáveis que um organismo executa respondendo a estímulos, também observáveis, procedentes do meio em que vive” (p. 66). 18 […] “objeto”, quando referido ao homem, tem a particularidade de não englobá-lo na sua totalidade vivida, mesmo se percebemos um certo consenso, hoje em dia – por falta de uma definição mais adequada – de não limitar este comportamento à “fachada externa do ser humano” (p. 18). A biologia e a etologia também estudam o “comportamento” humano e animal, não sendo portanto próprio do ser humano, nem tampouco da psicologia, tal “objeto” totalizado. A conclusão do que foi afirmado acima é a seguinte: é uma delimitação arbitrária e artificial que mutila o “objeto” da psicologia e deve ser entendida como produto de um contexto cultural e ideológico onde se constituiu como campo de saber. Há aí uma grave mutilação entre o objeto da ciência psicológica e o objeto da experiência psicológica com sua dimensão vivencial e significação existencial. Para Garcia-Roza (1977) a Psicologia tem desde seu surgimento “[…] estado às voltas com o problema de sua justificação” (p. 20). Afirma que um dos equívocos que levam à contestação da Psicologia como prática científica é o de se acreditar que a Psicologia é fruto de um conjunto de saberes puramente empíricos12 passíveis de matematização. Ele questiona: A se aceitar essa tese, ficamos com as seguintes possibilidades de opção: ou acreditamos que nem tudo o que compõe o espaço das chamadas ciências do homem é matematizável (e não estamos aqui confundindo matematização com quantificação) e neste caso apenas aquilo que o for se constituirá em ciência, ou aceitamos a tese de que tudo é Matematizável mas que não dispomos ainda de uma formalização adequada para certos problemas humanos. Não acreditamos que o problema da psicologia deva ser enfocado através dessa ótica (p. 20). Ele argumenta que apesar de ser possível matematizar grande parte do saber existente, necessariamente tal saber não se torna científico, como se a matemática pudesse “criar ciência”. Há o escamoteamento da idéia falsa de que a matemática confere a um determinado campo de saber um “status” científico. Aponta a hegemonia do positivismo na idéia de que a matemática foi o caminho encontrado para a superação 12 Empirismo é uma doutrina filosófica de caráter epistemológico que defende a idéia de que o conhecimento é baseado na experiência. Entretanto, há muitos sentidos para o termo Empirismo, dentre os quais: um tipo psicológico ou genético, em que o conhecimento é originado totalmente na experiência; um tipo gnoseológico em que todo o conhecimento está validado ou se radica na experiência e, por fim, o tipo metafísico, que afirma que não existe realidade outra àquela que nos é acessível à experiência, isto é, a própria realidade é empírica. Conferir Pequeno Dicionário Filosófico (1977, p. 112 – 13). Pode-se afirmar que para os empiristas a verdade ou a falsidade de um enunciado necessita da observação empírica, que seria o único fundamento do conhecimento. 19 de abordagens especulativas e metafísicas no terreno do saber, já que a metafísica era considerada “[…] a grande “culpada” pelos fracassos nas tentativas de se constituírem ciências” (GARCIA-ROZA, 1977, p. 20). Afirma que a oposição entre o que se considerava especulativo e o que seria científico transformou-se na dicotomia entre qualitativo e quantitativo, respectivamente. Aponta a ingenuidade de tal posição, que está fundada na dicotomia e cita um estudo de Cassirer, de 1910, que traz fundamentos para afirmar que a matemática tanto diz respeito à quantidade e, em alguns casos, apenas à qualidade. Dá como exemplo dessa dimensão apenas qualitativa da aplicação da matemática os estudos de Kurt Lewin em sua Psicologia Topológica. O autor não admite a possibilidade de que a Psicologia tenha a matemática como “[…] condição e o critério de sua constituição” (GARCIA-ROZA, 1977, p. 20), dada a ingenuidade dessa posição por seu reducionismo. Sua posição é de que nem sempre a consistência lógico- teórica de uma prática como a Psicologia determina sua eficácia e, que tal exigência de consistência teórica termina por impor uma redução enorme no campo da eficácia transformando “[…] o objeto do conhecimento, uma caricatura da realidade” (GARCIA-ROZA, 1977, p. 25). A esse respeito Canguilhem (1995) também se manifesta nos seguintes termos: “O conhecimento científico, embora invalidando qualidades que faz aparecer como ilusórias, nem por isso as anula. A quantidade é a qualidade negada, mas não a qualidade suprimida” (p. 83). Japiassu (1979, p. 92) também apresenta posição concordante com os questionamentos realizados acima quando expõe: Uma coisa precisa ficar bem clara: de forma alguma pretendo negar a importância da medida em psicologia. O que me parece dever ser contestado é a pretensão de se conhecer um fenômeno apenas pelos instrumentos de medida ou de se admitir como não possuindo significação toda forma de conhecimento não mensurável e estatisticamente não quantificável. Creio que estão profundamente enganados os psicólogos que acreditam que a medida constitua a única maneira de manterem sua disciplina nos quadros da cientificidade e de preservarem-se das intromissões indevidas da subjetividade. Como afirma Japiassu (1981, p. 102), os empiristas não condenam as ciências humanas, mas: […] possuem, em relação a elas, exigências metodológicas que, se forem cumpridas à risca, condenam essas disciplinas a uma eterna inferioridade de fato relativamente às ciências da natureza. […] O fato é que o empirismo situa as ciências humanas na parte inferior da 20 escala do saber objetivo, visto não conseguirem jamais atingir a dignidade suprema das ciências propriamente experimentais. Contudo, a Psicologia ainda se apresenta como carente de uma identidade entre as chamadas ciências, apesar do caráter subjetivo apontado por Kuhn (1989) na delimitação do que venha a ser considerado como ciência. Talvez, tal falta de identidade esteja relacionada aos temores de que suas teorias e práticas sejam acusadas de subjetivistas e carentes de fundamentos científicos que delimitam aspectos filosóficos fora do discurso empírico-científico da epistemologia tradicional aceito como parâmetro. Quanto a isso Figueiredo (2008) chama a atenção para o abandono progressivo no pensamento contemporâneo da intenção de sustentar em bases sólidas e inquestionáveis o conhecimento científico. Em outras palavras todo conhecimento tem em sua base determinados pressupostos, que devem ser explicitados, tendo um valor heurístico, mas com a possibilidade de verificação e refutação duvidosa ou impossível. A dúvida Kuhniana (1989) lançada sobre a neutralidade, a racionalidade e a objetividade da prática da ciência positivista levou às reações do meio, pois apontou para processos de natureza não racional decorrente de fatores psicológicos, sociológicos e históricos envolvidos na determinação do que é ou não considerado científico. Mesmo que seus críticos apontem que Kuhn (1989) pertença a uma tradição de “filósofos idealistas”, ideólogos da reação ao científico, e de que suas análises não são aplicáveis à Psicologia dada a ausência de um paradigma consensualmente acatado pela comunidade praticante desse campo de saber, suas considerações não podem ser menosprezadas. A ausência de um paradigma para a explicação do fenômeno psicológico como campo de saber está assim resumido por Figueiredo (2008, p. 43, grifo do autor): […] é preciso reconhecer que nem temos uma delimitação unívoca do campo, uma compreensão partilhada do que é fundamentalmente nosso objeto, nem, muito menos, há entre nós consenso sobre como gerar e validar conhecimentos. De fato, não há nem mesmo consenso quanto ao que é conhecer. A esse respeito Pasquali (1995, p. 152) parece ter opinião em comum quando afirma: É extremamente frustrante que em Psicologia não exista sequer um axioma único em que todos os psicólogos pudessem concordar. Nós sequer sabemos o que exatamente é o nosso objeto de estudo; não nos entendemos sobre o que seja comportamento, o que seja psicológico etc. 21 Japiassu (1979, p. 24) também se expressa sobre tal questão nos seguintes termos: […] somos obrigados a renunciar à pretensão de determinar para as múltiplas investigações psicológicas um objeto (um campo de fatos) unitário e coerente. Conseqüentemente, e por sólidas razões, não somente históricas, mas doutrinárias, torna-se impossível à psicologia assegurar-se uma unidade metodológica. Gomes (1996, p. 40) compartilha da opinião acima mencionada quando assevera: “Como se sabe, o conhecimento psicológico caracteriza-se desde suas origens pela diversidade e fragmentação”. Talvez o problema não seja basicamente pela presença de diferentes paradigmas concorrentes nem sempre reconhecidos, mas que tal multiplicidade apresenta-se como fragmentação e não como multiplicidade que permita trabalhar e reconhecer a diversidade do conhecimento psicológico. A tematização de tal diversidade pode ser o veículo da construção da identidade e do avanço da Psicologia e do profissional a ser formado. Nesse sentido, Garcia-Roza (1977) discute as objeções feitas quanto à Psicologia ter como objeto o homem ou o mundo empírico e afirma que não é esse o seu objeto e nem o de nenhuma outra Ciência, ou seja, não é a realidade empírica, mas os conceitos que estas ciências produzem é que é seu objeto. Para ele há uma confusão entre objeto e objetivo, pois a ciência tem por objetivo esclarecer e/ou explicar a realidade concreta do homem, mas o faz por meio de conceitos e teorias por ela produzidas (seu objeto). Se o objetivo da ciência fosse “descobrir o mundo tal como ele é, ou a sua natureza essencial” seu objetivo se igualaria à metafísica. Japiassu (1981) afirma: “[…] Não pode haver ciência tendo por objeto o homem (este é um privilégio da metafísica)” (p. 104). Garcia-Roza (1977, p. 21) aponta que é um legado do positivismo a idéia e crença de que “[…] a verdade é algo que se encontra oculto no mundo e que cabe ao cientista descobri-la”. Por isso, é que para o empirismo positivista13 é dada tanta importância à observação rigorosa e sistemática realizada por meio de instrumentos e técnicas “precisas” que levarão, em hipótese, a um processo de generalização e descrição da realidade empírica. Mas, como se sabe, há um grande abismo do ponto de 13 Sendo o Empirismo uma doutrina filosófica de caráter epistemológico que defende a idéia de que o conhecimento é baseado na experiência e o Positivismo uma escola ou doutrina que defende um modelo científico baseado nos fatos ou dados e suas relações, rejeitando qualquer aspecto ou conhecimento metafísico ou a priori, deve-se entender a expressão empirismo positivista como uma doutrina que coaduna a idéia de que o conhecimento científico deve ser fruto da experiência que possua base nos dados ou fatos e suas relações e sendo passíveis de ser explicado por meio de uma teoria da ciência. 22 vista qualitativo entre um conceito teórico e uma generalização empírica e, portanto, é falsa a pretensão positivista (GARCIA-ROZA, 1977, POPPER, 1980). Concordando com os autores acima é preciso que se diga que a ciência e suas práticas não revelam verdades, nem descobre essências latentes que possam ser usadas como referências universais. Como afirma Hennigen (2006, p. 51): “Toda ciência é uma criação de um tempo, um dispositivo de poder-saber que, articulado a outros dispositivos, institui e regula práticas sociais. Nesse sentido, é preciso desnaturalizar a ciência, seus métodos e conhecimentos”. Patto (1987) entende que é na investigação da filiação histórica das idéias que compuseram o campo da psicologia que se pode situar o conhecimento e demarcar seus compromissos sociais e históricos, localizando a matriz da classe social que serviu à sua construção. Foi exatamente a “libertação” da Psicologia da Filosofia naquele período histórico, o século XIX, que possibilitou o status científico à Psicologia, além da definição de seu(s) objeto(s) de estudo (a consciência, o comportamento, o psiquismo), da delimitação de outras áreas de saber ou conhecimento (Fisiologia, por exemplo), a formulação de métodos para estudar esse(s) objeto(s) e a formulação de teorias que intentam formar um “corpo” consistente para a área de conhecimento (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 1993). Garcia-Roza (1977, p. 23) afirma que a noção de comportamento teria por objetivo principal […] evitar qualquer referência a entidades não observáveis que poderiam levar o investigador a um retorno à temida metafísica. Seu caráter era essencialmente restritivo, restrição que se fazia não em nome de uma teoria, mas em nome de uma atitude metodológica que considerava essencial à ciência conjurar os riscos decorrentes dos constructos. Em outras palavras é uma noção descritiva dos aspectos observáveis da conduta humana e animal com clara intenção e, portanto, apresenta também uma face ideológica. Informa que a Psicologia representada pelo Behaviorismo14 adaptou-se perfeitamente ao modo de vida americano por seu pragmatismo aliado às condições da 14 Observando a definição de Behaviorismo de Deleule (1972), à p. 17, é possível verificar que há uma inclinação dessa corrente ou escola psicológica ao Empirismo, já que para seus seguidores se trata de “ […] conjunto de reações adaptativas objetivamente observáveis que um organismo executa respondendo a estímulos, também observáveis, procedentes do meio em que vive” (p. 66). 23 ideologia política da igualdade de todos os homens, diferindo apenas no que tange às condições externas serem ou não privilegiadas. Em relação à diversidade e definição do objeto de estudo da Psicologia(s), Bock, Furtado e Teixeira (1993), apontam além da recente existência do campo quando comparada com a Filosofia, por exemplo, o que denomina de “confusão” entre o cientista, o pesquisador, e seu “objeto”. Os autores se expressam nos seguintes termos: No sentido mais amplo, o objeto de estudo da Psicologia é o homem, e neste caso o pesquisador está inserido na categoria a ser estudada. Assim, a concepção de homem que o pesquisador traz consigo “contamina” inevitavelmente a sua pesquisa em Psicologia. Isto ocorre porque há diferentes concepções de homem entre os cientistas (na medida em que estudos filosóficos e teológicos e mesmo doutrinas políticas acabam definindo o homem a sua maneira, e o cientista acaba necessariamente se vinculando a uma destas crenças) (p. 21). Os autores ainda definem sua posição quanto à ser o Homem determinado pelas condições sociais que o envolvem e acreditam que o “problema” da diversidade e da definição do objeto específico da Psicologia é comum a outras áreas das ciências humanas e ainda não apresentando até o presente momento uma solução. Afirmam que de acordo com a definição de homem adotada ter-se-à uma concepção de objeto que esteja de acordo com ela. Por isso, a variedade de concepções de homem “gera” diferentes objetos de estudo. Defendem a idéia da necessidade de uma diversidade de objetos em função da diversidade de fenômenos psicológicos que não se “encaixam” ou não são acessíveis aos mesmos níveis de observação, padrões de descrição, medida, controle e observação. O pensamento deles está assim expresso: O objeto da Psicologia deveria ser aquele que reunisse condições de aglutinar uma ampla variedade de fenômenos psicológicos. Ao estabelecer o padrão de descrição, medida, controle e interpretação, o psicólogo está também estabelecendo um determinado critério de seleção dos fenômenos psicológicos e assim definindo um objeto (p. 22). Japiassu (1979, p. 32) concorda com a opinião de que há uma diversidade muito ampla o que venha a ser a psicologia, isto é, há dificuldade ou incapacidade de unificar ou totalizar uma imagem ou ponto de vista sobre o humano. Assim ele se expressa quanto a tal situação: Há tantas psicologias quantos são os pontos de vista sobre o homem: se é doente, há uma psicopatologia; se é criança, há uma psicologia 24 genética; se está em relação, há uma psicologia social; se é sexuado, há uma psicologia diferencial; se é uma vida inconsciente, há uma psicologia analítica etc. A conclusão dos autores é de que não há uma Psicologia que se caracterize como ciência, mas “[…] Ciências psicológicas embrionárias e em desenvolvimento” (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 1993, p. 22). Japiassu (1979, p. 25) também se utiliza da expressão “ciências psicológicas” para substituir o termo “psicologia”. Sua justificativa é auto-explicativa. Porque os adjetivos que acompanham o termo “psicologia” podem especificar, ao mesmo tempo, tanto um domínio de pesquisa (psicologia diferencial), um estilo metodológico (psicologia clínica), um campo de práticas sociais (orientação, reeducação, terapia de distúrbios comportamentais etc), quanto determinada escola de pensamento que chega a definir, para seu próprio uso, tanto sua problemática quanto seus conceitos e instrumentos de pesquisa […] (destaque do autor). Na mesma obra o autor apresenta sua intenção de explicitar, segundo sua concepção, a razão que leva à psicologia a apresentar tantas e diferentes tendências ou escolas psicológicas, lançando a seguinte questão: Qual o obstáculo supremo impedindo que todas essas tendências continuem a constituir “escolas” cada vez mais fechadas, a ponto de desagregarem a outrora chamada “ciência psicológica”? A meu ver, esse obstáculo é devido ao fato de nenhum cientista, conseqüentemente, nenhum psicólogo, poder considerar-se um cientista “puro”. Como qualquer cientista, todo psicólogo está comprometido com uma posição filosófica ou ideológica. Este fato tem uma importância fundamental nos problemas estudados pela psicologia. Esta não é a mesma em todos os países. Depende dos meios culturais. Suas variações dependem da diversidade das escolas e das ideologias (p. 26). Um problema, além do já apontado acima que, para mim, em particular, está na raiz das dificuldades encontradas pela Psicologia desde antes de sua regulamentação no país, diz respeito à falta de unidade epistemológica presente no campo, já que a variedade de correntes apresenta fundamentos, às vezes, até excludentes entre si. Não há um “diálogo” entre as várias correntes psicológicas existentes que dê conta de unificar o objeto de estudo e a intervenção da Psicologia. Figueiredo (2008, p. 32) se refere à Psicologia como área de saber e como campo de atuação profissional “[…] como um espaço de dispersão teórica e prática que, ao mesmo tempo em que conserva alguma unidade […]”, pois tal falta de unidade está representada por uma 25 pluralidade de sistemas ou correntes psicológicas até antagonistas. Entretanto, o autor esclarece que seu interesse é progressivamente decrescente pelas questões epistemológicas e metodológicas de natureza normativa e avaliativa do conhecimento, tendo seu interesse se deslocado para a dimensão ética das práticas e dos discursos psicológicos, tratado a partir no item 2.2 dessa seção. Em relação à falta de unidade da Psicologia, Cabral (1950)15 apontava tal situação como uma vantagem no caso brasileiro daquela época, pois sendo um consumidor e não produtor de Psicologia poderia “[…] considerar com relativa imparcialidade todas as teorias e seus resultados” (p. 66). Assim, a busca de uma posição sintética entre as várias correntes existentes se daria com o progresso da Psicologia brasileira na direção de superar a falta de unidade que apresentava e ainda hoje reflete. Não foi isso o que ocorreu em nossa realidade. Os autores que discutem a epistemologia da Psicologia (BUNGE, 1980; CANGUILHEM, 1995; GARDNER, 1960; JAPIASSU, 1976, 1979, 1981, 1991, 1998), dentre outros, apresentam como principal fator para a falta de unidade do objeto de estudo e intervenção da Psicologia, o afastamento dela de sua filiação da Filosofia, pois para que pudesse receber o estatuto de ciência durante o século XIX, quando foi elevada à condição de disciplina científica (ANTUNES, 2005), por meio da criação do 1º Laboratório de Psicologia16 do mundo, por Wilhelm Wundt, expurgou toda e qualquer vinculação com aspectos aparentemente metafísicos ou filosóficos, condenados pela comunidade científica daquela época e, por que não dizer, vigente até hoje em nossa ciência. Como já nos adiantou Cabral (1950, p. 62): 15 Annita de Castilho e Marcondes Cabral estudou e se formou em 1928, na Escola Normal de São Paulo, e fez o curso de Aperfeiçoamento Pedagógico, ministrado por Lourenço Filho. Graduou-se em Filosofia na primeira turma do curso na USP. Foi aluna nos E.U.A de Kurt Koffka e orientanda de Max Wertheimer de mestrado defendido em 1943, representantes e fundadores do movimento ou corrente psicológica da Gestalt. Defendeu o doutorado em São Paulo, em 1945, sob orientação de Roger Bastide. Foi assistente de Otto Klineberg na disciplina de Psicologia tendo sucedido-o. Foi auxiliada por ele na organização da Sociedade de Psicologia de São Paulo. Atribui-se a criação do curso de Psicologia em São Paulo a seu esforço pessoal. Tornou-se catedrática de Psicologia na antiga Faculdade de Filosofia da USP. Publicou o Jornal Brasileiro de Psicologia com as pesquisas realizadas na cadeira de Psicologia (Experimental) (PESSOTTI, 2004; PFROMM NETTO, 2004). 16 Ribeiro (1996) afirma que foi a publicação, em 1860, da obra Elementos de Psicofísica, de autoria de Gustav Fechner, que marcou o nascimento da Psicologia científica. Fechner trabalhou com Wundt e Weber na Universidade de Leipzig. Criou com Weber a Lei conhecida como de Fechner-Weber, que estabelece a relação entre estímulo e sensação, e permite a sua mensuração (BOCK; FURTADO ; TEIXEIRA, 1993). 26 O conhecimento e a intimidade com os problemas filosóficos não deixam de ser úteis e até indispensáveis à formação de psicólogo que se dedique ao ensino ou à pesquisa, prevenindo contra certo primarismo metodológico cientificista de que a Psicologia é às vezes acusada17. Com a fundação de tal Laboratório, Wundt estava fundando também a Psicologia Experimental enquanto ciência, já que seu método experimental era o das ciências naturais. A adoção de um modelo das ciências naturais em Psicologia foi denominada de matriz cientificista por Figueiredo (2008), apresentando como objetivo nesse modelo a previsão e controle dos fenômenos psíquicos e comportamentais. Em oposição a tal modelo trata de uma matriz que denomina de romântica, já que inspirada no pensamento romântico oposta ao racionalismo iluminista. O objetivo de tal modelo é a compreensão e não a explicação do modelo anterior, ou seja, o sentido não está dado, pois é preciso criar métodos e técnicas e critérios interpretativos para o entendimento do sentido dos fenômenos psíquicos e atos vivenciados. Garcia-Roza (1977) chama à atenção para o fato fundamental que caracteriza uma ciência que é o trabalho de produção de conhecimentos representado pela produção conceitual e, não simplesmente, uma certa forma de repressão que uma ciência impõe ao saber. Tal falta de unidade epistemológica e, consequente fragmentação do campo de saber, leva a uma busca de convergência e unidade muitas vezes expressa por ecletismo e dogmatismo. Há segundo Figueiredo (2008), um “território da ignorância” que apresenta três pólos ou eixos axiológicos que servem ao balizamento e modelamento dos processos de constituição das subjetividades18, que são representados 17 A paginação aqui adotada é a referente ao texto republicado em ANTUNES (2004). A publicação original foi uma tradução do capítulo “Psychology in Brasil”, do livro World Psychology editado pelo professor George Kisker, da Universidade de Cincinnati, que tinha por finalidade fazer um balanço das tendências e avanços da ciência psicológica na primeira metade do século XX, em cerca de trinta países do mundo. Porém, o livro não foi publicado por Kisker, que mudou de idéia. 18 Apesar de existirem diferentes concepções acerca do que venha a ser subjetividade, não estou aqui utilizando o termo em seu sentido de confinamento à “realidade psíquica”, como se as condições político- sócio-culturais ou outras não interferissem e/ou determinassem tal processo (de subjetivação) ou estivessem alheias a ele (o processo). O processo de constituição das subjetividades deve ser pensado também dentro de um contexto histórico para que possa ser analisado e compreendido (Foucault, 1995). Os modos de subjetivação são nossa maneira de ver, sentir e pensar o mundo e a psicologia funciona como dispositivo de subjetivação. Como afirma Ferreira Neto (2004), “Os modos de subjetivação, é bom lembrar, decorrem de conjuntos de práticas discursivas e não-discursivas, ou seja, não é somente uma prática de linguagem ou mesmo uma prática exclusivamente simbólica. É um processo que envolve articulação complexa de discursos, instituições, leis, organizações arquitetônicas etc.” (p. 38). Assim, o processo de formação da subjetividade incorpora o movimento da vida social, da cultura e da História. (FERREIRA NETO, 2004). 27