HISTÓRIA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO E EPISTEMOLOGIA EM GEOGRAFIA Paulo R. TeixeiRa de Godoy (oRG.) HISTÓRIA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO E EPISTEMOLOGIA EM GEOGRAFIA CONSELHO EDITORIAL ACADÊMICO Responsável pela publicação desta obra Antonio Carlos Tavares Auro Aparecido Mendes Darlene Aparecida de Oliveira Ferreira Fadel David Antonio Filho Maria Isabel Castreghini de Freitas Sandra Elisa Contri Pitton PAULO R. TEIXEIRA DE GODOY (Org.) HISTÓRIA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO E EPISTEMOLOGIA EM GEOGRAFIA Editora afiliada: CIP – Brasil. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ H578 História do pensamento geográfi co e epistemologia em Geografi a / Paulo R. Teixeira de Godoy (org.). – São Paulo : Cultura Acadêmica, 2010. il. Inclui bibliografi a ISBN 978-85-7983-127-0 1. Geografi a - Filosofi a. 2. Geografi a – História. 3. Geografi a – Metodo- logia. I. Godoy, Paulo R. Teixeira de. 10-0122. CDD: 910.01 CDU: 910.1 Este livro é publicado pelo Programa de Publicações Digitais da Pró-Reitoria de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) © 2010 Editora UNESP Cultura Acadêmica Praça da Sé, 108 01001-900 – São Paulo – SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 Fax: (0xx11) 3242-7172 www.editoraunesp.com.br feu@editora.unesp.br SUMÁRIO Apresentação 7 Parte I 1 Fundamentos históricos da geografi a: contribuições do pensamento fi losófi co na Grécia antiga 11 Agostinho Paula Brito Cavalcanti Adler Guilherme Viadana 2 Alexander Von Humboldt: viajante naturalista e entusiasta da harmonia da natureza 35 Danilo Piccoli Neto Flamarion Dutra Alves 3 O espaço em Kant e suas contribuições na defi nição do conceito de região 57 Juliana Emy Carvalho Tanaka; 4 A geografi a escolar no Brasil, de 1546 até a década de 1960 71 Thiago Tavares de Souza João Pedro Pezzato Parte II 5 Dos modelos à explicação: a Nova Geografi a em David Harvey 91 Danilo Piccoli Neto 6 Quinze bons argumentos contra a geografi a teorética; quatorze contra-argumentos melhores ainda (ou quando o quantitativo nada quer dizer) 111 Dante F. C. Reis Junior 7 Algumas considerações para uma revisão crítica da História do Pensamento Geográfi co 145 Paulo R. Teixeira de Godoy 8 As possibilidades de aplicação do método de análise regressivo-progressivo de Henri Lefèbvre na geografi a urbana 157 Silvia Aparecida Guarnieri Ortigoza Parte III 9 Riqueza e miséria do ciclo da borracha na Amazônia brasileira: um olhar geográfi co por intermédio de Euclides da Cunha 187 Fadel David Antonio Filho 10 Discutindo categorias e conceitos: uma contribuição geográfi ca dentro das análises da relação rural-urbano 209 Adriano Corrêa Maia Darlene Aparecida de Oliveira Ferreira 11 As bases teóricas da geografi a agrária brasileira: o pensamento de Pierre Monbeig e Leo Waibel 231 Flamarion Dutra Alves 12 As duas novas leituras do Homem-caranguejo de Josué de Castro 259 Bruno Picchi 13 A teoria geográfi ca nos estudos do turismo: elementos teórico-metodológicos 277 Elias Júnior Câmara Gomes Sales APRESENTAÇÃO A História do Pensamento Geográfico consiste em um campo de discussões teóricas, filosóficas, institucionais, epistemológicas e metodológicas. Embora sua relevância seja reconhecida entre os geógrafos, existem poucos estudos dedicados aos problemas enfren- tados pela geografia em sua trajetória científica, histórica e social. O objetivo deste livro não é suprir as deficiências ou as lacunas da História do Pensamento Geográfico e, tampouco, adotar o escrúpulo historicista de compreensão de uma história petrificada em narrativas e pontos de vista acerca de problemas científicos que interessam a poucos. Nesse sentido, não se trata, fundamentalmente, da História do Pensamento Geográfico como tradicionalmente se concebe o conjunto de temas relacionados ao desenvolvimento científico da geografia. Se essa fosse a sua finalidade, sua deficiência seria ma- nifesta e o desequilíbrio entre as partes retiraria todo o seu sentido. O seu propósito é o de reunir as contribuições de docentes e pós- graduandos em geografia em torno de dois grandes eixos temáticos: História do Pensamento Geográfico e epistemologia em geografia. A organização dos capítulos se orientou por temáticas que tra- taram, na Primeira Parte, dos fundamentos históricos da geografia, centrados no pensamento filosófico sobre a relação Homem-Nature- za; das contribuições de Humboldt como naturalista e entusiasta da 8 PAULO R. TEIXEIRA DE GODOY (ORG.) natureza; da concepção de espaço, segundo Kant, e suas influências na geografia regional; e da história do ensino de geografia no Brasil. Em seguida, na Segunda Parte, para introduzir os temas de cunho teórico-metodológico, foram apresentados, inicialmente, a análise das contribuições metodológicas de David Harvey em Explanation in Geography (1969); uma reflexão sobre os argumentos teóricos e metodológicos da geografia teorética; uma proposição metodoló- gica a partir do pensamento de Henri Lefèbvre; e, finalmente, a apresentação de elementos para uma discussão sobre a História do Pensamento Geográfico. Na Terceira Parte do livro foram reunidos os capítulos que tratam de temas mais específicos, tais como: a relação entre a geografia e a literatura, por meio da obra de Euclides da Cunha; a releitura do pensamento de Josué de Castro; os problemas conceituais da análise da relação rural-urbana; considerações acerca das bases teóricas da geografia agrária brasileira a partir das obras de Pierre Monbeig e Leo Waibel; e, finalmente, as relações entre geografia e turismo a partir de uma reflexão teórica e conceitual. O livro possui, em certo sentido, um caráter didático que atende não somente estudantes universitários e professores de geografia, mas também a interesses de outras áreas do conhecimento, como a história, a sociologia e a antropologia. Com efeito, o livro não tem como tarefa nos munir de convicções novas, mas fazer-nos colocar em questão o modo como são abordados e discutidos os problemas da história da geografia e de sua construção como ciência. PARTE I 1 FUNDAMENTOS HISTÓRICOS DA GEOGRAFIA: CONTRIBUIÇÕES DO PENSAMENTO FILOSÓFICO NA GRÉCIA ANTIGA Agostinho Paula Brito Cavalcanti* Adler Guilherme Viadana** Introdução Os fundamentos históricos da ciência geográfica reportam-se à Grécia antiga, tida como a primeira cultura conhecida a explorar ativamente a geografia como ciência e filosofia. A filosofia constrói o embasamento conceitual das atividades hu- manas a partir dos fundamentos do pensamento, no plano das ideias e do enquadramento abstrato e geral do conhecimento, incluindo as ciências, artes e técnicas. As teorias ajustam as distintas e específicas áreas científicas, por meio da descoberta ou investigações de novos setores e novos problemas no âmbito de cada ciência em particular. As metodologias desenvolvem e experimentam técnicas inova- doras permitindo a obtenção de respostas mais eficientes para os problemas, mediante conceitos científicos fornecidos pelas teorias. Baseada em princípios estabelecidos pelas fundamentações teó- ricas, com aplicação por meio de métodos adequados, a ciência geo- gráfica procura soluções para os problemas expostos pela sociedade. * Professor doutor associado do Departamento de Geografia, Universidade Federal do Piauí (UFPI), campus da Ininga/Teresina (PI). ** Professor adjunto do Departamento de Geografia, Unesp – Rio Claro (SP). 12 PAULO R. TEIXEIRA DE GODOY (ORG.) As viagens dos exploradores espalharam pela Europa o interesse pela geografia, e a cartografia elaborada, à medida que se descobriam novas terras, incluía técnicas inovadoras. Durante a Idade Média, foram aprofundados e mantiveram-se os antigos conhecimentos gregos, e no período da Renascença e ao longo dos séculos XVI e XVII, as viagens de exploração reavivaram o desejo de bases teóricas mais sólidas e de informações mais detalhadas. A partir do século XVIII, a geografia foi sendo reconhecida como disciplina científica e, ao longo do século passado, a quantidade de conhecimento e o número de instrumental técnico tiveram um significativo aumento, persistindo até os dias atuais. Na fundamentação histórica da geografia, optou-se pelos prin- cipais precursores, de acordo com a relevância de suas obras ou mesmo pelas conceituações teóricas e metodológicas emanadas desses trabalhos, que inclui os pensadores gregos, os sete sábios da Grécia antiga, os filósofos pré-socráticos (naturalistas) com a descrição das escolas Jônica; Itálica; Eleata e da Pluralidade e seus constituintes e as contribuições do pensamento filosófico ao estudo da natureza. Métodos Os métodos de coleta de dados definidos constaram de pesquisa bibliográfica visando à fundamentação teórica e metodológica com a obtenção de informações sobre o tema pesquisado e da interpretação e análise dos fundamentos históricos da geografia com as contribuições do pensamento filosófico na Grécia antiga, levantando-se o acervo bibliográfico e cartográfico disponível, permitindo a compreensão do significado da Filosofia para a ciência geográfica. Fundamentos filosóficos e precursores na Grécia antiga Considera-se a Grécia antiga como precursora do embasamento cultural da civilização ocidental, com significativas influências em HISTÓRIA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO E EPISTEMOLOGIA EM GEOGRAFIA 13 filosofia, política, linguagem, educação, arte, tecnologia, arquitetu- ra e ciências, pelas formas de conhecimento, modos de reflexão ou teorias da realidade. A Grécia antiga pode ser classificada em dois períodos: (i) Cosmológico, com predominância de explicação mitológica do universo e da origem das principais significações da realidade. Esse saber mitológico procurava uma explicação para a época e momento históricos, das principais questões da existência humana, tanto na natureza (buscando o conhecimento do seu princípio material) como na sociedade (relações e modos de vida dos homens); (ii) Antropológico, em que o discurso cosmológico e materialista passa a dar lugar a um discurso moral e político, criando-se nesse período uma nova temática: o homem. A filosofia muda de espaço geográfico, com a criação das pólis (das colônias para o centro cultural), acarretando a variação do objeto de pesquisa: da natureza para o homem. À filosofia compete explicar a realidade, dividida no domínio da natureza, do pensamento e da criação humana. A partir dessa divisão foram surgindo as diversas ciências, repartindo o saber total da filosofia. Sobre a filosofia e as ciências, Durant (1956) indaga por que as ciências, filhas da filosolfia, depois de repartirem entre si a herança filosófica, lhe voltam as costas, como as filhas do rei Lear, depois de dividido o seu reino? Nesse momento histórico na Grécia, havia um esforço intelectual voltado para a compreensão do mundo, do universo e da realidade, ou como era conhecido à época, o cosmos. Para os gregos, o cosmos era uma totalidade organizada racionalmente, que só poderia ser descrito pela razão, levando a visualização de uma ordem, uma uni- dade e uma harmonia, onde coexistem uma multiplicidade caótica das coisas e acontecimentos. Por meio de sua mitologia os gregos consideravam os elementos da natureza (Sol, Terra, Céu, oceanos, montanhas etc.) como forças autônomas tidas como deuses, constituídos na fonte e na essência 14 PAULO R. TEIXEIRA DE GODOY (ORG.) de todas as coisas do universo e elevados pela fantasia a seres ativos, móveis, conscientes e dotados de sentimentos, vontades e desejos. Nesse sentido, Grimal (1954) considera que o mito atrai em torno de si toda a parcela do irracional existente no pensamento humano; por sua própria natureza, é aparentado à arte, em todas as suas cria- ções. Sua força de mensagem reside na capacidade de sensibilizar as estruturas profundas e inconscientes do psiquismo humano. A análise lógica na filosofia defende uma postura científica, renunciando a toda investigação de cunho religioso e valorizando os métodos racionais como instrumento na busca da verdade. Conforme Russel (1982, v.3, p.389) “A Filosofia, durante toda a sua história, tem consistido de duas partes misturadas inarmonicamente; de um lado, uma teoria sobre a natureza do mundo; de outro, uma doutrina ética ou política quanto à melhor maneira de se viver”. Os gregos intitulavam suas obras de Sobre a Natureza (Peri physeos) ao referirem-se aos aspectos da ciência positiva e da filoso- fia. A física era designada como um nome adequado para a ciência da natureza, significando atualmente como a ciência positiva dos fenômenos naturais e o setor filosófico, passando a ter uma nova designação: a filosofia natural ou da natureza. Até o desenvolvimento da ciência moderna, a filosofia natural foi a expressão introduzida na Grécia antiga para indicar o estudo objetivo da natureza e do universo físico ou a que trata do conheci- mento das primeiras causas e dos princípios do mundo material; ou ainda, o estudo racional da natureza do ponto de vista de sua espe- cificidade substancial e de suas propriedades, usando o pensamento e o raciocínio, sendo utilizada pelos pensadores, destacando-se pelas especulações teóricas e investigações práticas. Diferentemente da ciência, a filosofia natural não procura descre- ver os fenômenos da natureza, mas chegar à essência dos entes que possuem corpo, partindo do ente sensível das coisas materiais existen- tes para posteriormente alcançar o conceito de ser, ao conhecimento do homem e à demonstração racional da existência de Deus. Russel (1954) acredita que a filosofia é uma atividade contínua e não algo em que possamos atingir, de uma vez por todas, uma perfeição final. HISTÓRIA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO E EPISTEMOLOGIA EM GEOGRAFIA 15 Na origem desse conhecimento está a necessidade de perguntar, de indagar, o que são as coisas e o que é o homem. A pergunta supõe, consequentemente, a ignorância em relação ao que se pretende ou se precisa saber, pressupondo também, e ao mesmo tempo, a cons- ciência da ignorância e o conhecimento daquilo que se desconhece e se precisa conhecer. Não sei e sei que não sei, e essa consciência da ignorância, a ciência da insciência, é o que me permite perguntar, quer a pergunta se dirija à natureza, quer se enderece aos outros homens (Corbisier, 1986). Inserida no desenvolvimento histórico da geografia, desde épocas remotas até os dias atuais, aparece a cartografia, acompanhando o pró- prio progresso da civilização, podendo-se afirmar que, das demais for- mas de comunicação gráfica, a mais antiga da humanidade é o mapa, confirmada por evidências históricas, arqueológicas e etnológicas. A intensificação das rotas pelo Mediterrâneo facilitou o inter- câmbio cultural e as ideias entre o mundo grego e oriental. Segundo Hermann (1968), os documentos cartográficos nessa época eram representados como um globo em torno do qual giravam esferas celestes. Ao reportar-se à Grécia antiga, Bakker (1965) refere-se a esse período afirmando que foram lançados os primeiros fundamentos da ciência cartográfica, quando foi utilizado o método astronômico para a determinação de posições na superfície da Terra e foi concebida a primeira solução do problema relativo ao seu desenvolvimento, sobre um plano, utilizando a projeção cônica. Na Mesopotâmia, foram confeccionados os mapas mais antigos que a humanidade conhece. Habitada por povos como os sumérios, estabelecendo-se mais ao sul, fundaram cidades como Ur, Nippur e Babilônia entre os rios Tigre e Eufrates, onde hoje está o Iraque, e mais ao norte os povos de origem semita, como os acádios e assírios, fundando cidades como Assur e Nínive. Esses povos foram os primeiros a introduzir a forma de comuni- cação escrita, em plaquetas de argila cozida, e também reproduziam os lugares por meio de símbolos gráficos, dando origem aos mapas, sendo encontradas algumas dessas peças em escavações arqueológi- 16 PAULO R. TEIXEIRA DE GODOY (ORG.) cas, representando de modo primitivo a Babilônia, com seus estados e cidades. De acordo com Raisz (1969), a importância que para nós têm essas placas não se situa no seu mérito representativo, mas na prova evidente que proporciona sobre a significativa antiguidade da arte cartográfica. Os mapas desse período foram responsáveis pela base do sistema cartográfico atual, sendo ultrapassados apenas no século XVI, com o advento das grandes navegações e a melhoria considerável dos documentos cartográficos. O mapa mais antigo conhecido em nossos dias foi descoberto nas escavações das ruínas da cidade de Ga-Sur, ao norte da Babilônia. Nesse mapa de aproximadamente sete centímetros, aparece o vale de um rio, com montanhas de cada lado, representadas à semelhança de escamas de peixe, simbolizando a maneira precária com que aqueles povos representavam o relevo terrestre, e ainda círculos trazendo pontos cardeais em caracteres cuneiformes (Moura Filho, 1993). Com relação a esse mapa, encontrado na região da Mesopotâmia, descoberto próximo à cidade de Harran, no nordeste do Iraque atual, Oliveira (1988, p.17) acrescenta: “É, a propósito de origem babilônia, o mais antigo mapa que o mundo conhece. Trata-se de um tablete de argila cozida com a representação de duas cadeias de montanhas e, no centro delas, um rio, provavelmente o Eufrates”. Na Grécia antiga, em razão da efervescência das ideias dos pen- sadores, alguns precursores vinculados direta ou indiretamente aos estudos do universo, cosmos, visão de mundo, fenômenos e processos naturais merecem destaque pelas suas contribuições. Sete sábios da Grécia antiga O período dos séculos VII e VI a.C. no qual viveram os sete sábios corresponde à época da fundação daquilo que se denominou de pólis (cidade) e da fundação da política, coincidindo com o que chamamos de civilização ocidental, e a esses eram atribuídas máximas e sentenças proverbiais conhecidas até hoje. HISTÓRIA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO E EPISTEMOLOGIA EM GEOGRAFIA 17 Essa denominação era dada na Antiguidade a sete homens esta- distas ou legisladores notáveis pela sabedoria prática. Os ensinamen- tos a eles atribuídos se tornaram populares e chegaram a ser inscritos no templo de Apolo em Delfos. As atuações dos sete sábios, pelas suas ações e ideias, divulgadas e repetidas, moldaram uma nova ética e moral. Homens de prestígio, influência política e sabedoria prática se inseriram no período que se seguiu ao advento de uma nova forma de organização política, com leis e regras de conduta inovadoras, necessárias às relações humanas e à própria vida social. Aproximam-se da geografia, quando Cícero em República (51 a.C.) escreve: “Os sete homens a quem os gregos chamaram de sábios foram todos versados na administração pública; e, realmente, em nada se aproxima tanto a virtude humana da divina como a fundação de novas nações ou a conservação daquelas já fundadas”. Os filósofos gregos que viveram entre os séculos VII e VI a.C. buscaram uma explicação do mundo em termos físicos, deixando de lado a explicação dos fenômenos naturais causados pelo mito, e procuraram explicações da necessidade da sociedade da época a partir da lógica da capacidade de raciocínio – a razão. Conforme Morente (1972), a finalidade do homem é realizar sua natureza; e o que constitui sua natureza, aquilo que distingue o homem de qualquer outro ser, é o pensamento. Por conseguinte, o homem deve pensar. O ato humano por excelência é pensar. A lista dos sete sábios não foi sempre a mesma, mas a mais di- fundida é a seguinte: Tales de Mileto, Periandro de Corinto, Pítaco de Metilene, Brias de Priene, Cleóbulo de Lindos, Sólon de Atenas, Quílon de Esparta. Com as contribuições abrangendo além da filosofia da natureza, astronomia e matemática, Tales de Mileto (624-556 a.C.), notada- mente para a cosmologia, preconizou a existência de um princípio ou substância fundamental, a água, para explicar a estrutura e funciona- mento do cosmos. Na astronomia, contribuiu para a introdução dos seus fundamentos, aprendidos em suas viagens pelo Egito e outras regiões do Oriente. Especulou sobre as dimensões e a órbita do Sol 18 PAULO R. TEIXEIRA DE GODOY (ORG.) e da Lua, mediu o intervalo entre os solstícios e estudou as estrelas. Na matemática, com mensurações baseadas em princípios, propôs uma série de teoremas trigonométricos. Considerado o fundador de colônias pelo mar Adriático e por in- tensificar o comércio com os etruscos e o Egito, Periandro de Corinto (627-585 a.C.) investiu na dragagem dos portos para aumentar o fluxo de embarcações e espaço para construções náuticas. Fez de Corinto um centro cultural, promoveu a construção de edifícios, especialmen- te na arquitetura dórica, e desenvolveu a arte da pintura em cerâmica. Ao governar Mitilene (Lesbos) após depor o tirano local, Pítaco de Mitilene (640-568 a.C.) afastou-se voluntariamente depois de dez anos. Tentou restringir o poder da nobreza e apoiou-se nas classes populares. Considerado o mais destacado dos sábios gregos, Brias de Priene, (século VI a.C.) era constantemente consultado sobre assuntos liti- giosos, negando-se a empregar seu talento em proveito da injustiça. Cleóbulo de Lindos viveu por volta de 600 a.C., sabe-se que era poeta e que compunha enigmas em versos. Governou como tirano a ilha grega de Rodas, com um governo exemplar. Conhecido como legislador e poeta lírico e considerado um dos mais importantes legisladores da democracia ateniense, Sólon de Atenas (640-558 a.C.) instituiu a solidariedade entre as classes sociais e o tratamento justo para cada cidadão. Fez longas viagens, com descrição de lugares e povos. Essas descrições, segundo Fer- reira & Simões (1986) denominadas périplos (navegar em redor), são sobretudo conhecidas pelas referências feitas pelos escritores da Antiguidade, tendo chegado até nós muito poucas. Suas realizações políticas refletem ideais patrióticos, filosóficos e morais. Consta que sempre agiu com firmeza, moderação, sabedoria e integridade; era conciliador por natureza. Ao ocupar o cargo de magistrado (éforo) e elaborar parte da cons- tituição, Quilón de Esparta (século VI a. C.) introduziu o costume de que os éforos fossem conselheiros dos reis, sendo responsável pela militarização da vida civil em Esparta e pelas primeiras medidas para a educação dos jovens. HISTÓRIA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO E EPISTEMOLOGIA EM GEOGRAFIA 19 Filosofia pré-socrática (naturalista) Os filósofos pré-socráticos eram denominados naturalistas ou filósofos da phisis (natureza) entendida não como atualmente, mas como uma realidade primeira, originária e fundamental. Especula- vam sobre o problema cosmológico ou cosmo-ontológico, buscando o princípio das coisas. As principais escolas pré-socráticas e seus constituintes foram a escola Jônica, com Tales de Mileto, Anaxímenes de Mileto, Anaxi- mandro de Mileto e Heráclito de Éfeso; a escola Itálica, com Pitágoras de Samos, Filolau de Crotona e Árquitas de Tarento; a escola Eleata, com Xenófanes de Cólofon, Parmênides de Eleia, Zenão de Eleia e Melisso de Samos; e a escola da Pluralidade, com Empédocles de Agrigento, Anaxágoras de Clazômena, Leucipo de Abdera e De- mócrito de Abdera. Escola Jônica Os filósofos gregos da Escola Jônica podem ser considerados os primeiros geógrafos, em sentido figurado, pelo pioneirismo na concepção de um conhecimento metodológico, ao explicarem as di- ferenciações do mundo até então conhecido, da influência do clima, dos mares e dos rios na superfície terrestre, além do conhecimento do Universo. Considerando a água a substância primordial que constituía a essência do universo, sendo a origem de todas as coisas, representan- do uma mudança de comportamento na atitude do homem perante o cosmos, Tales de Mileto (624-556 a.C.) abandona as explicações religiosas até então vigentes, buscando por meio da razão e da ob- servação um novo sentido para o Universo. Esboçou os princípios do pensamento teórico evolucionista, afirmando que o mundo evoluiu da água por processos naturais, e explicou o eclipse solar, ao verificar que a Lua é iluminada por esse astro. 20 PAULO R. TEIXEIRA DE GODOY (ORG.) Ao observar mais atentamente os fenômenos da natureza, alterou os conceitos dos fenícios que consideravam os elementos da natureza (Sol, Terra, Céu, oceano etc.) como forças autônomas, verificando a constante transformação das coisas umas nas outras e que por in- tuição todas as coisas são uma só, ou um só princípio fundamental. Na procura da verdade da vida na natureza realizou experiências com magnetismo e demonstrou experiências com geometria. Considerando uma só a natureza subjacente, ilimitada, porém não indefinida, Anaxímenes de Mileto (588-524 a.C.) afirma que ela é ar, diferenciando-se nas substâncias, por rarefação (torna-se fogo) e por condensação (torna-se vento, nuvem, água, terra e pedras) e as demais coisas provêm dessas, em constante movimento pelo qual se processa a transformação. Segundo essa concepção, o ar representa, no ponto de vista de Bernhardt (apud Châtelet, 1981, p.28) “um elemnto invisível e imponderável, quase inobservável e, no entanto, observável: o ar é a própria vida, a força vital, a divindade que ‘anima’ o mundo, aquilo que dá testemunho á respiração”. Dedicando-se especialmente à meteorologia, salienta que a luz da Lua é proveniente do Sol e que o bloco fundamental de toda a matéria provinha do ar, e não da água. De acordo com Ferreira & Simões (1986), estabeleceu o princípio do geocentrismo, que permaneceu até Galileu. Acreditando que todos os ciclos de criação, evolução e destruição eram fenômenos naturais, que ocorriam a partir do ponto em que a matéria abandonava e se separava, Anaximandro de Mileto (610- 547 a.C.) chegou em sua época às mesmas conclusões dos cientistas contemporâneos, baseado apenas na observação e reflexão, de que o mundo sustenta-se por um equilíbrio de forças (Teoria da gravidade e força centrípeta, que mantêm a Terra girando em torno do Sol) e que a ação do Sol faz surgir criaturas de estrutura simples na água, que depois migram para a terra e adquirem estrutura mais complexa (Teoria da evolução das espécies). Ensinava a evolução das coisas e das espécies, afirmando que os animais nasceram do lodo marinho e o homem teria se formado, no princípio, dentro de peixes, onde se desenvolveu e foi expulso logo que se tornou de tamanho suficiente para bastar-se a si próprio. HISTÓRIA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO E EPISTEMOLOGIA EM GEOGRAFIA 21 O universo era eterno e um número infinito de mundos existiram antes do nosso. Após sua existência, eles se dissolveram na matéria primordial e posteriormente outros mundos tornaram a nascer. Confeccionou um mapa do mundo habitado, a introdução na Grécia do uso do relógio solar, a medição das distâncias entre estrelas e o cálculo de sua magnitude. Relatos dão conta de que escreveu um livro intitulado Sobre a Natureza; infelizmente perdido. Heráclito de Éfeso (540-470 a.C.) é o pensador do tudo flui (panta rei), do princípio de que tudo é movimento e que nada pode permanecer estático, e do Panta rei os potamós (tudo flui como um rio). Cabe a esse pensador a frase: “Todas as coisas estão em eterno fluxo e mudança. Você não é, está sendo. A história cósmica realiza-se em ciclos repetidos”. No tratado Sobre a Natureza, afirma que não se pode percorrer duas vezes o mesmo rio e não se pode tocar duas vezes uma substância mortal no mesmo estado; por causa da impe- tuosidade e da velocidade da mutação, essa se dispersa e se recolhe. O fogo é outro princípio, que seria o elemento do qual deriva tudo o que nos circunda, onde todas as coisas transformam-se em fogo, e esse transforma-se em todas as coisas. O universo ora se incendeia, ora de novo se compõe do fogo, segundo determinados períodos de tempo, e define dois caminhos: (i) para baixo (quando condensado o fogo umidifica e, mais consistente, torna-se água; e essa, solidificando-se, transforma-se em terra; e daí, nascem todas as coisas do mundo); e (ii) para cima (derretendo-se a terra, obtém- se água que transforma-se em vapor, rarefazendo-se, transforma-se novamente em fogo). Nosso mundo é cercado pelo Sol (mais brilhante e mais quente). Os demais astros distam mais da Terra, por isso seu brilho é menos vivo e menos quente. A Lua, que está próxima, também tem um brilho menos intenso e quente, mas por não se encontrar num espaço puro – a escuridão. Os fenômenos naturais são consequências de diferentes evapo- rações; inflamando-se no círculo do Sol produz o dia, o contrário produz a noite. Quando da evaporação brilhante nasce o calor, faz verão; mas, quando da sombra o úmido prevalece, faz-se o inverno. É considerado o pai da dialética. 22 PAULO R. TEIXEIRA DE GODOY (ORG.) Escola Itálica Ao percorrer por trinta anos Egito, Babilônia, Síria, Fenícia, onde acumulou conhecimentos de astronomia, matemática, ciência, filo- sofia e religião, Pitágoras de Samos (570-496 a.C.) foi o primeiro a conceber a matemática como um sistema de pensamento, mediante provas dedutivas. Para a geografia, contribuiu com ideias inovadoras no campo da astronomia, embora nem sempre verdadeiras; como a de que a Terra é esférica e os planetas movem-se em diferentes velocidades nas várias órbitas ao seu redor. A escola de pensamento pitagórica, interessada pelo estudo das propriedades dos números e pela observação dos astros, sugere a ideia de que uma ordem domina o universo, evidenciada no alterar-se das estações e no movimento circular das estrelas, podendo o mundo ser chamado de cosmos; conclui que a Terra é esférica, estrela entre as estrelas que se movem ao redor de um fogo central. Com a ideia de esfericidade da Terra e dos corpos celestes e a rotação da Terra, explica a alternância de dias e noites. Filolau de Crotona (século V a.C.) escreveu um livro em que expunha a doutrina secreta de Pitágoras, contendo os mais antigos relatos sobre o pitagorismo, tendo influenciado Platão, não havendo, portanto, uma contribuição expressiva para a ciência geográfica. Árquitas de Tarento (428-347 a.C.) escreveu sobre geometria e mecânica. Restringiu a matemática às disciplinas técnicas como geometria, aritmética, astronomia e acústica. Criou um modelo tridimensional para duplicar o cubo, vinculando-se à geografia por meio das técnicas quantitativas utilizadas atualmente. Escola Eleata Destacando-se pelo combate ao antropomorfismo como uma con- cepção filosófica, Xenófanes de Cólofon (570-460 a.C.) acreditava que só existe um deus único, em nada semelhante aos homens, que é eterno, não gerado, imóvel e puro. Buscava na natureza intrínseca HISTÓRIA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO E EPISTEMOLOGIA EM GEOGRAFIA 23 da matéria a causa para todas as transformações, afirmando que o ser absoluto, essência de todas as coisas, era o Um e o Um é Deus. Em um poema filosófico intitulado Sobre a Natureza, Parmênides de Eleia (530-460 a.C.) expõe seu pensamento, dividido em duas partes: o caminho da verdade e o caminho da opinião. Suas ideias sustentam a unidade e a imobilidade do Ser; o mundo sensível é uma ilusão e o Ser é Uno, Eterno, Não Gerado e Imutável. Acredita-se que daí surge o conhecimento do ser (ontologia), que trata de sua natureza, de sua realidade, da existência dos entes e das questões metafísicas. Comparou as qualidades umas com as outras e as orde- nava em duas classes distintas. Dois filósofos merecem destaque por suas contribuições em questões fundamentais sobre o pensamento concebido para a épo- ca. O primeiro, Zenão de Eleia (495-430 a.C.), pelo seu método na elaboração de paradoxos, todos contra a multiplicidade, a divisi- bilidade e o movimento. É considerado o criador da dialética; e o segundo, Melisso de Samos (490-430 a.C.), que produziu influência no atomismo, tornando-se um dos continuadores da escola eleática, estabelecendo que o ser é infinito, tal como é infinito no tempo, ou seja, eterno. Seu principal poema foi Sobre o Ser ou Sobre a Natureza. Escola da Pluralidade Sustentando a ideia de que o mundo seria constituído por quatro princípios, água, ar, fogo e terra, que seriam o que de imutável e indestrutível existiria no mundo e que tudo seria uma determinada mistura desses elementos, em maior ou menor grau, Empédocles de Agrigento (495-435 a.C.) esboçou os primeiros passos do pen- samento teórico evolucionista, afirmando que sobreviveria aquele mais bem capacitado e que o mundo evoluiu da água por processos naturais, aproximando-se da geografia seja por meio dos princípios biogeográficos, seja, também, pelas bases conceituais da hidrografia. Anaxágoras de Clazômenas (500-428 a.C.) propôs um princípio (homeomerias) que atendesse tanto às exigências teóricas do ser imu- 24 PAULO R. TEIXEIRA DE GODOY (ORG.) tável, princípio de tudo, quanto à contestação da existência das múlti- plas manifestações da realidade. As homeomerias seriam as sementes que dão origem à realidade em sua pluralidade de manifestações. Afirmava que o universo se constitui pela ação do Nous (espírito, mente ou inteligência), ilimitado, autônomo e não misturado com nada mais, que age sobre as sementes ordenando-as e constituindo o mundo sensível. Escreveu um tratado intitulado Sobre a Natureza, em que tentava conciliar a existência ante a crítica de Parmênides de Eleia, e ainda sobre biologia, cosmologia e percepção, como uma noção de causa inteligente, que estabelece uma finalidade na evolução universal. Sobre Leucipo de Mileto ou Abdera (500 a.C.), praticamente nada é conhecido. Especula-se como sendo o verdadeiro criador do atomismo, a quem é atribuida a autoria de um único livro intitulado A grande ordem do mundo, acreditando-se que devia tratar-se da configuração morfológica da Terra, concebida como uma unidade em constante dinamismo. Considerado o maior expoente da teoria atômica ou do atomismo (em que tudo o que existe é composto por elementos indivisíveis), Demócrito de Abdera (460-370 a.C.) avançou com o conceito de universo infinito (onde existem outros mundos) existindo pelo me- nos um deles igual ao nosso. Escreveu várias obras, destacando-se Pequena ordem do mundo; Da forma; Do entendimento; Do bom ânimo e Preceitos. Contribuições do pensamento filosófico ao estudo da natureza Por meio de um longo processo histórico, a filosofia aparece promovendo a passagem do saber mítico com diversas crenças, ao pensamento racional, voltado para a discussão e explicação intelectu- alizada do que nos circunda. A passagem do mito à razão, de acordo com Châtelet (1981), significa precisamente que já havia, de um lado, uma lógica do mito, e que, de outro lado, na realidade filosófica ainda HISTÓRIA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO E EPISTEMOLOGIA EM GEOGRAFIA 25 está incluído o poder do lendário. O contato com outras culturas propiciou o processo de desdobramento do pensamento poético (mitos) em filosófico (razão), pelo modo de pensar, e uma postura diante do mundo e não um conjunto de conhecimentos prontos, um sistema acabado e fechado em si mesmo. Com os filósofos gregos, conforme Chauí (2000), estabeleceram- se alguns princípios gerais do conhecimento verdadeiro: (i) as fontes e as formas do conhecimento (sensação, percepção, imaginação, memória, linguagem, raciocínio e intuição intelectual); (ii) a distinção entre o conhecimento sensível e o conhecimento intelectual; (iii) o papel da linguagem no conhecimento; (iv) a diferença entre opinião e saber; (v) a diferença entre aparência e essência; (vi) a definição dos princípios do pensamento verdadeiro (identidade, não contra- dição, terceiro excluído, causalidade), da forma do conhecimento verdadeiro (ideias, conceitos e juízos) e dos procedimentos para alcançar o conhecimento verdadeiro (indução, dedução, intuição); (vii) a distinção dos campos do conhecimento verdadeiro, sistema- tizados por Aristóteles em três ramos: teorético (referente aos seres que apenas podemos contemplar ou observar, sem agir sobre eles ou neles interferir), prático (referente às ações humanas: ética, política e economia) e técnico (referente à fabricação e ao trabalho humano, que pode interferir no curso da natureza, criar instrumentos ou artefatos: medicina, artesanato, arquitetura, poesia, retórica etc.). O pensamento filosófico é uma prática de vida que estuda os acontecimentos além de sua pura aparência, refletindo sobre a rea- lidade, redescobrindo seus significados mais profundos, podendo se voltar para qualquer objeto. Ciência, valores, métodos, religião, arte e o próprio homem podem ser objetos da reflexão filosófica, além de questionar o modo de ser das pessoas, das culturas, do mundo, das práticas políticas, científicas, técnicas, éticas, econômicas, culturais e artísticas. A ciência, segundo Bronowski (1979), é a criação de conceitos e das suas explorações nos fatos. Não existe outro exame de conceito que não seja a verdade empírica do fato. A verdade é o estímulo no centro da ciência; tem de ter o hábito da verdade, não como dogma, mas como processo. 26 PAULO R. TEIXEIRA DE GODOY (ORG.) Os filósofos figuram como precursores do conhecimento voltado para a natureza e cosmovisão, destacando-se os que se seguem. Ao viajar pela Índia, Megástenes (350-290 a.C.) escreveu a obra Índica, na qual descreve a cordilheira do Himalaia e a ilha Sri Lanka, denominando de Taprobanê (flor da cor de cobre) em razão da vege- tação característica dessa ilha. Durante a realização de uma viagem de exploração ao noroeste da Europa, circum-navegando a Grã-Bretanha, Píteas (380-310 a.C.) foi o primeiro autor greco-romano a descrever o sol da meia-noite, a aurora polar e os gelos polares, e a mencionar as tribos germânicas. Relatou suas viagens num documento intitulado Do oceano, do qual apenas partes sobreviveram. Informou ter visitado uma ilha a seis dias de viagem do norte da Escócia denominanda Thule, acreditando- se que tenha sido a Islândia ou a costa da Noruega. Ao descrever países e habitantes, sendo o relato do Egito parti- cularmente completo, Hecateu de Mileto (546-480 a.C.) viajou por parte do mundo conhecido, que segundo Ferreira & Simões (1986) era constituído por uma faixa que se estendia do Atlântico ao Rio Indo, as regiões Norte e Sul eram pouco conhecidas. Confeccionou um mapa baseado no de Anaximandro, que corrigiu e acrescentou, onde a Terra estava representada por um disco com água em volta. Acredita-se haver escrito um trabalho nomeado Ges Periodos (Des- crição da Terra) resumindo os conhecimentos geográficos gregos da época, dividida em um volume dedicado à Europa e outro à Ásia. Escreveu ainda outras obras, entre elas Inquéritos e Circuito da Terra, que interessam particularmente à geografia. Considerado o filósofo que mais influenciou o pensamento oci- dental, Aristóteles (384-322 a.C.) demonstrou interesse por biologia e fisiologia, decorrente da atividade médica exercida pela família e da preferência pela ciência, quando entrou na academia de Platão, permanecendo por vinte anos. Suas teorias sobre as causas (material, formal, eficiente e final), como se age no interior das coisas, estendem-se sobre toda a natureza. Contribuiu para diversas áreas do conhecimento humano, co- brindo campos como filosofia, biologia, zoologia, história natural, HISTÓRIA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO E EPISTEMOLOGIA EM GEOGRAFIA 27 física, metafísica, lógica, ética, política, psicologia, poesia, retórica e medicina, estabelecendo as bases dessas disciplinas. Em 344 a.C., partiu para Lesbos, onde realizou a maior parte das investigações biológicas. Fundou, no ano seguinte, o Lykeion (Liceu), onde os alunos ficaram conhecidos como peripatéticos (os que pas- seiam), nome decorrente do seu hábito de ensino ao ar livre, sob as árvores, privilegiando as ciências naturais, com exemplares (flora e fauna) enviados por Alexandre, o Grande, das regiões conquistadas. Considerado o verdadeiro fundador da zoologia, levando-se em conta o sentido etimológico da palavra, deve-se a ele a primeira di- visão do reino animal. Formulou a teoria da abiogênese, que durou séculos, segundo a qual um ser nascia de um germe da vida, sem que um outro ser precisasse gerá-lo (exceto os humanos). Iniciou os estudos científicos documentados sobre peixes, sendo o precursor da ictiologia, catalogando mais de cem espécies de peixes marinhos e descrevendo seu comportamento. Aproxima-se mais ainda da geografia quando estuda o cosmos, apresentado como uma esfera finita, onde se prendiam as estrelas e dentro da qual se verificava uma rigorosa subordinação de outras esferas, que pertenciam aos planetas que giravam em torno da Terra, que se manteria imóvel no centro do sistema (sistema geocêntrico). Os corpos celestes não seriam formados por nenhum dos quatro elementos transformáveis (terra, água, ar e fogo), mas por um ele- mento não transformável designado “quinta essência”. O conjunto de suas obras é conhecido como Corpus Aristolelicum, começando pelo Organon, composto por Categorias, Sobre a inter- pretação, Analíticos, Tópicos e elencos sofísticos. A seguir aparecem os estudos sobre a natureza e o mundo físico, com: Física; Sobre o céu e Meteorológicos. Segue-se a Parva Naturalia, conjunto de in- vestigações sobre temas diversos, incluindo: História dos animais; Das partes dos animais; Do movimento dos animais; Da geração dos animais; Da origem dos animais, sendo considerados os trabalhos precursores da biogeografia, em especial a zoogeografia. Finalmente, as obras dedicadas à Metafísica e aquelas vinculadas a Ética, Política, Retórica e Poética. 28 PAULO R. TEIXEIRA DE GODOY (ORG.) Desenvolvendo a noção de que o homem está em contato perma- nente com dois tipos de realidade: a inteligível (igual a si mesma) e a sensível (todas as coisas que nos afetam os sentidos), Platão (428-347 a.C.) ajudou a construir os alicerces da filosofia natural, da ciência e da filosofia ocidental, afirmando que são realidades dependentes e mutáveis, conhecidas por Teoria das ideias ou Teoria das formas. Segundo Schüller (1985), Platão localiza na psique três seções corre- pondentes à divisão do Estado, a razão, a vontade e as paixões. Cabe à razão descobrir as leis que regem o homem, a tarefa da vontade é executá-las, espera-se que as paixões as cumpram. A vontade regida pelas paixões leva a desmandos semelhantes aos que ocorrem no Es- tado governado pelo povo. Tratou ainda de diferentes temas, como ética, política, metafísica e teoria do conhecimento, evidenciadas em seus 35 diálogos, entre eles Timeu, que trata da origem do universo. Theophrastus (371-287a.C) realizou estudos em ética, história, lógica, metafísica e história natural. Considerado o pioneiro da bo- tânica, iniciou os estudos científicos das plantas, com a criação do primeiro jardim botânico ocidental, em Atenas. Duas obras deste precursor da biogeografia constituem-se na primeira sistematização do mundo botânico, consideradas as maiores contribuições a essa ciência durante a Antiguidade e a Idade Média. A primeira, Enquiry into Plants, trata das partes, reprodução, horários e forma de semeadura das plantas. Dedica-se também às árvores, arbustos e plantas espinhosas abordando os tipos, locais e aplicações práticas. Trata ainda das ervas, de plantas que produzem sementes comestíveis e as que produzem sucos. A segunda On the Causes of Plants, trata de crescimento, influên- cias sobre fecundidade, época apropriada de semeadura e colheita, métodos de preparação do solo, utilização de ferramentas e usos eco- nômicos e medicinais das plantas. Publica ainda, entre outras obras: Principles of Natural Philosophy (Physica Auscultatio); Meteorological Phenomena; Warm and the Cold, Water, Fire, the Sea; Coagulation and Melting e Sensuous Perception. Utilizando-se da teoria atômica de Demócrito para justificar a constituição de tudo o que existe, das estrelas à alma, tudo é formado HISTÓRIA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO E EPISTEMOLOGIA EM GEOGRAFIA 29 de átomos de diferentes naturezas, de qualidades finitas, quantida- des infinitas e sujeitos a infinitas combinações, Epicuro de Samos (341-270 a.C.) afirma que, ao compreender como opera a natureza, o homem pode livrar-se do medo e das superstições que afligem o espírito. Essa teoria tinha a finalidade de explicar todos os fenômenos na- turais conhecidos ou ainda não e extirpar o medo da morte e dos deu- ses. Fundou sua própria escola filosófica intitulada O Jardim, bus- cando na natureza o direcionamento para seu pensamento, afirmando que o homem, a exemplo dos animais, busca afastar-se da dor e aproximar-se do prazer. Sua obra versa sobre natureza, meteoros e a moral. Heródoto (485-420 a.C.), reconhecido como pioneiro da histó- ria, bem como da etnografia e da antropologia, conheceu e estudou em pormenor os locais onde tinham ocorrido fatos históricos sobre os quais escreveria. Percorreu o mundo habitável conhecido, do Sudão até a Ucrânia e da Índia até o Estreito de Gibraltar (Ferreira & Simões, 1986). Sua obra Histórias, dividida em nove livros, foi acusada de imprecisa e plagiária, especialmente em razão do exagero na extensão de suas viagens e fontes criadas. Hipócrates (460-377 a.C), pelas viagens à Grécia e ao Oriente Próximo, com descrições pelas quais se podem diagnosticar doenças relacionadas aos fatores climáticos, ao meio onde as pessoas viviam e à raça, contribuiu de forma significativa para a obra de Heródoto. Com contribuições de ordem prática no desenvolvimento da ci- ência geográfica, aparece Eratóstenes de Cirene (285-194 a.C.), que criou a esfera armilar, antigo instrumento astronômico composto por um conjunto de arcos destinado a representar as posições de círculos importantes da esfera terrestre. Eratóstenes calculou com bastante precisão para a época a distân- cia da Terra ao Sol e elaborou um catálogo com 675 estrelas, medindo a inclinação da eclíptica. Foi o primeiro a medir o raio da Terra, suspeitando que essa fosse esférica, e com o auxílio da trigonometria mediu com relativa precisão o perímetro da circunferência máxima. Calculou as medidas para a determinação do círculo máximo do 30 PAULO R. TEIXEIRA DE GODOY (ORG.) globo terrestre, chegando ao valor de 45 mil quilômetros, e confec- cionou um mapa com novas informações da verdadeira dimensão dos continentes. Considerado o fundador da astronomia científica e da trigonome- tria, Hiparco (190-126 a.C.) introduz na Grécia os conhecimentos babilônicos sobre a graduação sexagesimal do círculo, e a partir daí define a rede de paralelos e meridianos do globo terrestre. Rejeitou a teoria heliocêntrica e criticou a obra geográfica de Eratóstenes, empregando rigorosos princípios matemáticos para a localização de pontos na superfície da Terra. Descobriu a precessão dos equinócios e criou o sistema de localização pelo cálculo da longitude e latitude. Realizou a divisão do mundo em zonas climáticas e concebeu o mé- todo de projeção estereográfica. Com referência a autores que contribuiram de forma efetiva nesse período para a concepção da ciência geográfica, destaca-se Estrabão (63 a.C.-24 d.C.), autor de Geographia, um tratado de dezessete livros contendo a história e as descrições de povos e locais do mundo conhecido à época. Não se sabe ao certo quando a obra foi escrita, presumindo-se ano 7 d.C. Apesar dos erros, essa obra foi a primeira desse gênero herdada da Antiguidade. Conforme Estrabão, “a Geografia [...] nos parece ser, como algumas outras ciências, do domínio da Filosofia [...] a variedade de aplicações que é susceptível á Geografia, que pode servir, por sua vez, às necessidades dos povos e aos interesses dos chefes... implica que o geógrafo tenha esse mesmo espírito filosófico habituado a meditar sobre a grande arte de viver e de ser feliz”. Na definição dos princípios da geografia matemática e estabele- cimento, pela primeira vez, da posição astronômica de numerosos lugares e cidades, especialmente na zona mediterrânea, Marino de Tiro (210-150 a.C.) foi pioneiro na projeção cartográfica empregando o rigor matemático e lançando os conceitos de latitude e longitude, não em relação às distâncias, mas em graus. Na geografia, deixou cartas geográficas das sete regiões do mundo, afirmando que a Terra era redonda, com paralelos e meridianos, que traçaram ao mundo futuro precisões geográficas cronológicas. Nas suas cartas retan- HISTÓRIA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO E EPISTEMOLOGIA EM GEOGRAFIA 31 gulares, os meridianos e os paralelos da esfera são representados por dois sistemas de retas paralelas equidistantes, em uma escala arbitrariamente escolhida, com as retas de um dos sistemas perpen- diculares às do outro. Com sua obra Geographia em oito volumes, contendo todo o co- nhecimento geográfico greco-romano, Ptolomeu (90-168 d.C.) inclui coordenadas de latitude e longitude para os lugares mais importantes, com observações astronômicas em Alexandria, e escreve sua principal obra, denominada Megalé Sintaxis, ou Grande construção, que trata da Terra, do Sol, da Lua, do astrolábio e de cálculos matemáticos, das elipses, um catálogo de estrelas, e, finalmente, os cinco planetas e suas diversas teorias. A obra intitulada Almagesto, um tratado de astronomia, descreve o conhecimento babilônico e grego, apresen- tando um sistema cosmológico geocêntrico, tornando-se uma das obras mais importantes da Antiguidade clássica. É autor, ainda, de Tetrabiblos, um livro de astrologia baseado em escritos e documentos antigos da Babilônia, da Grécia e do Egito. A obra de Ptolomeu aceita as medidas do grado e estabelece, por meio de cálculos, o comprimento do círculo máximo da Terra, para o qual obteve o valor de trinta mil quilômetros. O erro asso- ciado a essa medida origina a falsa impressão de que a Europa e a Ásia se estendiam por mais da metade de toda a longitude terres- tre, quando realmente cobre apenas 130 graus. Confeccionou um mapa com base nas informações descritas àquela época, que, apesar dos erros e deformações, permitiu reconstruir uma nova visão do mundo. Viajando por Grécia, Ásia Menor, Síria, Palestina, Macedônia e Península Itálica, e baseado em observações próprias e informações de outros autores, Pausânias (115-180 d.C.) prestou uma importante contribuição para o conhecimento da Grécia antiga, graças às descri- ções das localidades. É autor da Descrição da Grécia, conhecida como Viagem pela Grécia ou Itinerário da Grécia, composta de dez livros Considerados os filósofos da natureza, esses pensadores dedica- ram parte de seus escritos às ciências naturais, com ideias valiosas e significativas contribuições. 32 PAULO R. TEIXEIRA DE GODOY (ORG.) Realizando observações sobre a natureza, especialmente sobre o aspecto da percepção emocional e psicológica, produziram escri- tos, reflexões teóricas e metodológicas nas mais divesrsas áreas do conhecimento humano. Ocuparam-se sistematicamente com pesquisas na área das ciên- cias naturais, demonstrando interesse principalmente por cosmologia (cartografia); seus métodos de análise não se restringiam à geografia, mas também abrangem a teoria do conhecimento e das ideias. Considerando a filosofia uma característica de todas as realidades naturais e humanas e que todo o universo poderia ser entendido a partir de uma perspectiva histórico-evolutiva, estabeleceram e reali- zaram estudos sobre diversos temas, povos, lugares, linguagem etc., capazes de evoluírem e crescerem continuamente. Conclusões A natureza como algo que desperta a curiosidade e admiração conduz o homem a estudá-la, nascendo então a filosofia e um signi- ficativo número de outras ciências, no gênero das positivas. Pode-se perceber, então, que a natureza não é todo o ser, mas um ser parti- cular, ainda que bastante amplo. Aos primeiros filósofos se têm denominado físicos ou natura- listas, pois se concentraram na cosmologia, transitando depois pela psicologia, pela ontologia e pela ética. No plano das ideias filosóficas, distingue-se o ser em geral, de que trata a metafísica e os seres especiais, tratados pela filosofia natural; nessa são conhecidas a cosmologia e a psicologia. Neste trabalho, foi tratada apenas a cosmologia, sem o psiquismo, abordando apenas os corpos (entendidos como matéria) e os fenôme- nos da vida (no sentido biológico) como neles ocorrem. Os filósofos sempre tentaram explicar a natureza e seus fenôme- nos, caindo inevitavelmente em contradições, em razão da expansão da filosofia que englobou áreas além de sua simples descrição, in- cluindo o estudo do homem e todos os fenômenos relacionados a ele e ao seu pensamento. HISTÓRIA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO E EPISTEMOLOGIA EM GEOGRAFIA 33 As contradições entre os filósofos continuariam, no entanto, a afligir o espírito humano por séculos, quer em relação aos métodos, quer em relação às teorias, quer em relação aos fenômenos. Aos sete sábios couberam ações e ideias, divulgadas e repetidas, responsáveis pela introdução de uma nova ética e moral, por causa do prestígio, da influência política e da sabedoria prática que dis- punham, ensejando o advento de uma nova forma de organização política e institucional, com leis de conduta inovadoras, necessárias as relações sociais. Os filósofos pré-socráticos, ao iniciarem a interrogação filosófi- ca, principiaram-na pelos componentes das coisas naturais e pelas causas das suas mutações, onde todas as coisas eram originadas e se compunham de elementos naturais, e ainda sobre a investigação das causas das alterações, imaginando forças opostas conflituosas e em busca de equilíbrio, e que os elementos originários eram compostos e se complementavam de um princípio potencial (matéria) e outro determinador (forma). Viram-se então obrigados a criar uma visão de mundo cujas leis fossem estáveis e confiáveis, aparecendo assim os conceitos de ordem do mundo (kosmos) e de natureza (physis), que os afastou das incertezas. Apesar de ainda existirem inúmeras religiões, que se baseiam nas noções de um universo caótico na dependência dos atos humanos, foi dos conceitos de kosmos e de physis que surgiram a cultura ocidental, a filosofia e a ciência, e daí a geografia. Referências ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. 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Propõe-se também com o texto, em segunda instância, adentrar de forma geral o legado científico deixado por Humboldt, que ex- travasa a data de seu falecimento, adentra o início da constituição da geografia como ramo do saber científico e, portanto, oferece rico material teórico e metodológico para o corpus inicial da disciplina, tendo influências e contribuições pertinentes até a presente data. As obras de Humboldt são um legado à posteridade da siste- matização e constituição do pensamento científico moderno que se estruturava durante o século XIX; ao mesmo tempo, marcam o final da era dos grandes homens detentores de conhecimentos vastos, abarcando diversos ramos do saber. * Doutorando em Geografia do Programa de Pós-Graduação em Geografia, Unesp – Rio Claro (SP). Bolsista Fapesp. ** Doutorando em Geografia do Programa de Pós-Graduação em Geografia, Unesp – Rio Claro (SP). Bolsista CNPq. 36 PAULO R. TEIXEIRA DE GODOY (ORG.) Por fim, este texto não deixa de ser uma homenagem e um re- conhecimento ao célebre Alexander Von Humboldt, que no ano de 2009 teve completos 150 anos de seu falecimento. Educação e contribuições à ciência em geral Todo cientista é um descendente de Humboldt. Estamos todos em sua família. (Emil Du Bois-Reymond1) Em Berlin, no principado de Brandenburgo, em 14 de setembro de 1769, nascia Friedrich Wilhelm Heinrich Alexander Freiherr Von Humboldt, homem que viria a contribuir de maneira extremamente frutífera para o conhecimento científico, e que faria parte do quadro de personalidades marcantes dos séculos XVIII e XIX, ao lado dos maiores naturalistas, cientistas e homens dotados de um espírito de conhecimento e vontade de desbravar as fronteiras de um novo mun- do. Mundo esse entendido tanto como as sociedades e fenômenos que se apresentavam exteriores ao mare nostrum europeu e que estavam encobertos aos olhos daquela sociedade por séculos, quanto como as fronteiras do próprio saber humano, que avançavam largamente na velocidade a vapor e nos adventos ópticos que enxergavam do micro ao macrocosmos. Seu intelecto pôde ser desenvolvido sem grandes percalços mate- riais no castelo de Tegel. Era filho de família nobre, seu pai, o maçom e major Alexandre George Von Humboldt, era estandarte e amigo do rei Frederico da Prússia, o que lhe possibilitou dispor de bens e recursos para engendrar seus projetos e sonhos mais ousados. Sua tolerância e apresso pela liberdade podem ser fruto da pluralidade de seu próprio núcleo familiar, uma vez que sua mãe, Maria Elisabeth Von Colomb, também detentora de considerável fortuna, viúva do 1 Médico e fisiologista alemão, descobridor do potencial de ação em nervos e fundador da eletrofisiologia. HISTÓRIA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO E EPISTEMOLOGIA EM GEOGRAFIA 37 barão Holwede, descendia de franceses Huguenotes da Borgonha, que tiveram de se refugiar na Alemanha após a revogação do Édito de Nantes (Aragão, 1960, p.467). O núcleo familiar era completo contando com seu irmão mais velho, Guilherme de Humboldt, também dotado de um intelecto marcante nas fronteiras do saber, re-estrutarador da Universidade de Berlin e um dos responsáveis pela criação da cátedra de geografia, a qual Humboldt ocuparia já em idade avançada. Alexander Von Humboldt estudou seis meses de finanças na Universidade de Frankfurt an der Oder, adquirindo consistente formação em economia política por intermédio do fisiocrata Wilhelm Dohm (Capel, 2007), e seu apreço pela botânica pôde ser mais re- finado nas aulas do professor Wildenow. Posteriormente, esteve na Universidade de Göttingen, importante centro para estudos físicos, contando com eminentes cientistas como Heyne e Blumenbach (Bruhns, 1873). Nesta última, pode conviver e ouvir os relatos de George Adan Foster, jovem escritor com fama já consagrada pelos re- latos da viagem com James Cook. Durante as férias de 1789, realizou excursão científica no Reno, resultando no tratado Mineralogische Beobachtungen über einige Basalte am Rhein, 1790 (ibidem). Outro colega de universidade seria Andrés Del Rio, mexicano que agregaria ânimo ao ideário e ímpeto expedicionário do jovem prussiano na Es- cola de Minas de Freiburg, local onde Humboldt cursou engenharia e se aprofundou nos ramos da geologia, sob auspícios de A. G. Werner. Em Hamburgo, viria a se concentrar nos estudos de comércio e em línguas clássicas (Aragão, 1960, p.468; Penna, 1960, p.678). Publicaria, em 1793, Florae Fribergensis Specimen, resultado das pesquisas sobre as vegetações encontradas nas minas e Versuche über die gereizte Muskel- und Nervenfaser (1797), sobre a irritabilidade muscular, fato recém-descoberto por Luigi Galvani. Ingressou no grupo de Weimar em 1794, onde contribuiu para o novo periódico de Schiller, Die Horen, com a alegoria filosófica Die Lebenskraft, oder der rhodische Genius, 1795, artigo que demonstra características do vitalismo e que o acompanhou, em certos aspectos, até a idade madura (Bruhns, 1873). 38 PAULO R. TEIXEIRA DE GODOY (ORG.) Na estrutura científica de sua época, Humboldt se destacou como naturalista, abarcando os campos da zoologia, química, astronomia, sociologia, física, geologia e botânica, mas foi à geografia que o prussiano dedicou especial atenção e é considerado, até mesmo, um dos fundadores do ramo da geografia física (termo que empregava diferentemente do contexto atual, e que às vezes constava como física terrestre ou física do mundo). Essa perspectiva é evidenciada nas palavras de Aragão (1960, p.465): “só não avançou mais, só não foi muito além nos seus ensinamentos, por se ter limitado ao campo geográfico, demasiado amplo para os conhecimentos ainda rudimen- tares dos cientistas de sua época”. Dessa maneira, além das reconhecidas contribuições à geografia, foram realizadas importantes contribuições ao conhecimento em geral. Em conjunto com Gay Lussac, realizou decomposição ana- lítica do ar, resultando na descoberta das proporções de oxigênio e hidrogênio na composição da água no ano de 1805, fato esse que foi o estágio inicial das pesquisas de Lussac para a posterior lei sobre a dilatação dos gases, denominada Lei de Gay-Lussac (Aragão, 1960, p.468). No campo arqueológico, fez constatações importantes sobre a cronologia das civilizações pré-colombianas do Peru e do México, desmistificando a associação linguística dessas civilizações com o greco-romano, como havia sido proposto até então (Herrmann, 1960). Em seu ambiente social, Humboldt pode relacionar-se com gran des personalidades da época, como Goethe e Schiller, durante sua estada em Jena, em 1797, onde tomaria contato com os ensinos de J. C. Loder sobre anatomia, e F. Von Zach e J. G. Köhler sobre astronomia. Os naturalistas George Foster e Aimé Bonpland seriam importantes ba- ses formativas (Penna, 1960, p.678). Em Paris, cidade a qual, na efer- vescência da era das luzes, lhe permitiu conhecer Cuvier,2 Delambre,3 2 Barão Georges Cuvier. Naturalista francês que formulou as leis da anatomia comparada. 3 Jean Baptiste Joseph Delambre. Matemático e astrônomo francês. Solicitou à Academia de Ciências Francesa uma base de medidas universalmente aceita, da qual, após inúmeros encontros, resultou o metro. HISTÓRIA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO E EPISTEMOLOGIA EM GEOGRAFIA 39 Jussieu,4 Desfontaines,5 Laplace,6 Fourcroy7 e Berthollet,8 aprofun- dando-se nas leituras de Kant. Humboldt seria ainda um grande fomentador das ciências, quando aos sessenta anos, por convocação da corte do rei Frederico Guilher- me da Prússia, ocuparia a função de conselheiro científico e artístico (Penna, 1960, p.680). Realizaria também funções de Estado, como acessor do Departamento de Mineração e Fusão de Minérios em Berlim e diretor geral das Minas da Francônia (Aragão, 1960, p.468). É corrente na atualidade o pensamento de que as grandes ideias que sustentam amplas matrizes de pensamento não se fazem so- zinhas, e esse cenário de efervescência cultural em que Humboldt viveu em muito será basilar para sua formação, suas contribuições e seu reconhecimento como grande naturalista. Um homem aberto ao conhecimento e a desbravar o mundo Ele foi o maior cientista viajante, que já viveu – Eu sempre o admirei, agora eu o adoro. (Charles Darwin9) Desde há muito tempo, Humboldt foi daqueles cuja personalidade preencheu o espírito dos europeus que lançavam suas expectativas, so- 4 Antoine Laurent de Jussieu. Médico e botânico francês, idealizador do sistema taxonômico de plantas denominado “Sistema de Jussieu”. 5 René Louiche Desfontaines. Botânico francês. 6 Pierre Simon Laplace. Matemático, astrônomo e físico francês que organizou a astronomia matemática. Formulou a “Equação de Laplace”, equação diferencial de extrema relevância utilizada em largos campos da ciência. 7 Antoine François de Fourcroy. Químico e político francês descobridor do fosfato de magnésio; criador do Museu Nacional de História Natural e re-estruturador do ensino superior, colégios e liceus franceses. 8 Claude Louis Berthollet. Químico francês, definiu pela primeira vez o conceito de equilíbrio químico. 9 Carta enviada pelo renomado biólogo no período de sua viagem no HMS Beagle ao seu tutor, o botânico e geólogo britânico John Stevens Henslow. 40 PAULO R. TEIXEIRA DE GODOY (ORG.) nhos e curiosidades para o além-mar, desejosos em desbravar os novos mundos “intocados”, que pouco a pouco começavam a se integrar em um sistema de mundo unificado. Quando, aos oito anos de idade, a criança Humboldt deparou-se com a questão do então rei da Prússia, Frederico, o Grande, se desejaria ser um conquistador, seu espírito res- pondeu: “Sim, Sire, mas com a minha cabeça” (Aragão, 1960, p.467). Quando não por problemas familiares, foram as celeumas po- líticas que se mostraram imensos entraves para seu sonho de des- bravamento. O pai faleceu precocemente, deixando um Humboldt extremamente ligado à persona materna, o que foi um obstáculo a viagens mais longas, só possíveis com o falecimento da mãe. Fato político e histórico notório foi o cerco empreendido pela armada britânica ao continente Europeu. O Diretório francês planejava um projeto de circum-navegação, e tão logo Humboldt tenha tomado conhecimento, inscreveu-se para integrar a equipe de cientistas. A viagem, no entanto, foi suspensa e convertida posteriormente por Napoleão a uma expedição à Áfri- ca. O comandante militar francês vira-se fascinado com o Egito, e no desejo de catalogar e relatar tais fascínios, procurou reunir 160 cientistas renomados da época para tal tarefa (ibidem, p.468). Pelas características imprevisíveis que o curso da história reserva, a expedição não logrou sucesso, pois, nos momentos que precediam a partida dos navios de Marselha, a esquadra britânica, comandada pelo almirante Nelson, infligia pesada derrota à armada francesa em Abukir, colocando a Europa em bloqueio continental (ibidem, p.468). Mais uma vez, Humboldt veria seu desejo postergado. Depois de outra tentativa fracassada, Humboldt segue com o amigo Bonpland para a Espanha, com o intuito de chegar à América. De posse de um plano expedicionário, seguem para um diálogo com o secretário de Estado, Dom Mariano Luiz de Urquijo, e, além disso, Humboldt, sendo de família nobre, dispondo de relações privilegiadas, contou com o apoio do embaixador saxônico, barão Von Forelli, para uma anuência com o rei de Espanha, Carlos IV (ibidem, p.470). Essa anuência é de extrema importância, pois é nela que Humboldt, além da permissão conseguida para o Novo Mundo, consegue uma carta do rei com HISTÓRIA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO E EPISTEMOLOGIA EM GEOGRAFIA 41 instruções a todos os capitães-generais, comandantes de província, governadores, enfim, aos diversos funcionários da coroa, para que facilitassem de todas as maneiras a passagem dos viajantes pela América Espanhola. (ibidem, p.470) Diener (2001, p.107) nos dá a dimensão desse fato para o logrado sucesso alcançado pelas obras pós-expedição, colocando que, se, por um lado, Humboldt menciona um rico referencial bibliográfico de autores hispânicos e hispano-americanos abarcando do século XVI ao XIX, por outro, ele teve acesso a um tipo de informação extrema- mente relevante, que era guardada sob grande sigilo, como documen- tos confidenciais de circulação restrita ou mesmo nula fora do fecha- do âmbito espanhol, e pela receptividade da coroa ao reconhecido cientista, o prussiano teve acesso praticamente ilimitado a esse legado científico gigantesco. Diener complementa: “equipado com uma sóli- da formação científica e achando-se em posse de fortuna pessoal con- siderável, [Humboldt] pôde tirar o máximo proveito da sua viagem e avançar nos estudos americanistas durante seu trajeto” (ibidem). Em 15 de julho de 1799, aportavam em Cumaná, Venezuela, Humboldt e o companheiro Bonpland, após praticamente um mês de viajem da partida de La Corunã, em 5 de junho de 1799, no veleiro El Pizarro. Após novembro, rumaram para Caracas, com Bonpland por terra e Humboldt por mar. Nessa cidade, levantaram dados científi- cos, como medição de temperatura do ar, e adquiriram equipamentos para ultrapassar os lhanos rumo ao Orenoco; permaneceram no local até fins de 1800. Da viagem empreendida ao Orenoco, podem-se relatar a descoberta de espécies animais e vegetais e, especialmente, a confirmação definitiva das ligações entre as bacias do Orenoco e do Amazonas, que ainda permaneciam ignoradas pelas sociedades geográficas europeias (ibidem, p.472). Interessante observar a per- cepção de Humboldt para com os ameríndios, pois, de acordo com Diener (2001, p.113), o prussiano “faz referência à vida dos índios e às relações empíricas que estes mantêm com a geografia, que os leva a ser, em suas palavras [de Humboldt], ‘excelentes geógrafos’ e, portanto, uma boa fonte de informação”. 42 PAULO R. TEIXEIRA DE GODOY (ORG.) É digna de nota a capacidade de Humboldt para coadunar conhe- cimentos adquiridos, que, utilizando-se de coordenadas astronômi- cas, pode colocar com precisão incrível para a época a localização de diversas áreas, como o lago Guaiania, cuja localização era desconhe- cida e de atributos místicos. É nesse ponto da viajem que Humboldt trava contato com oficiais portugueses, já devidamente alertados em ordem régia ao capitão-geral do Pará, Dom Francisco Maurício de Souza Coutinho, para examinar com o maior cuidado se um tal barão de Humboldt ou outro qualquer estrangeiro, andava viajando pelo território daquela capitania, pois constava, que o tal barão, natural de Berlin, andava explorando as partes superiores da capitania do Maranhão, regiões desertas e até então desconhecidas de todos os naturalistas. (Carva- lho apud Penna, 1960, p.681) E assim, as relações de Estado prevaleceram sobre as relações de ciência e pesquisa, no conhecido caso em que é negada a permanência de Humboldt em território português, e onde ele e o amigo Bonpland são encarcerados e têm seus bens e anotações confiscados, somente livres do cárcere pela intervenção do padre jesuíta Zéa (Aragão, 1960, p.472). Do saldo do trajeto de Caracas até Angusturra, têm-se mais de três mil quilômetros de rios navegados e dezesseis mil itens colecio- nados e inventariados, dentre plantas, peles, rochas etc. (ibidem, p.472). Em 18 de dezembro de 1800, Humboldt e Bonpland se encontravam em Havana, onde pretendiam integrar a expedição de circum-navegação do globo empreendida por Baudin, porém os navios acabavam de zarpar da Europa, o que fez que Humboldt aproveitasse o tempo para viajar até Lima, à espera das embarcações. Durante esse percurso, aportam em Cartagena onde seguem por terra até Santa Fé de Bogotá, cidade na qual encontram o botânico José Celestino Mutis, responsável pela Expedición Botánica e que forneceu importantes conhecimentos sobre o ar atmosférico andino (ibidem, p.473). HISTÓRIA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO E EPISTEMOLOGIA EM GEOGRAFIA 43 Em janeiro de 1802, estavam em Quito, local no qual Humboldt parece desenvolver com mais afinco a percepção sobre os modos de vida do povo das colônias, especialmente o habitante nativo que guar- dava os costumes da pré-colonização. Em contato com a história inca e vendo na prática o trato com o habitante da colônia, o naturalista coloca em seus relatos e nas cartas endereçadas a seu irmão o repúdio aos atos praticados pelos espanhóis e antevê na efervescência das ruas o sentimento latente de liberdade, que culminaria na independência das colônias. O padre botânico Zéa e o assistente de Mutis, Francisco José de Caldas, desempenharam papel importante na contextuali- zação dos fatos cotidianos e nos anseios do povo para os relatos de Humboldt. Zéa e Caldas foram executados posteriormente pela justiça espanhola, como nos mostra Aragão (1960, p.473). Em Quito, deixa-se transparecer o Humboldt que zela pelo ideal da liberdade,10 condenando a falta de imprensa livre, criticando o sis- tema de educação imposto às colônias, e até escrevendo folhetins com Carlos Montúfar, esse fuzilado posteriormente pelos espanhóis pelo símbolo que foi da emancipação colonial, como o foi Simon Bolívar (ibidem). É dessas experiências vividas que nascem os conteúdos das obras Ensaio do estado político do Reino da Nova Espanha e Ensaio político sobre a ilha de Cuba, onde combate fortemente o modelo de escravidão (Humboldt, 1822; Penna, 1960, p.680). Humboldt foi um homem de firmes convicções políticas liberais, defendendo sempre as aspirações dos grupos sociais oprimidos e as instituições livres (Capel, 2007, p.21). Dos manuscritos deixados por Humboldt, fica o reconhecimento na frase de Simon Bolívar: “Alexander Von Humboldt fez mais pela América que todos os seus conquistadores, ele é o verdadeiro descobridor da América”. Sobre essa questão, Aragão (1960, p.466-7) mostra um Humboldt de “sensível espírito humanístico”, que percebe a maturidade política 10 Lembremos que Humboldt trocava correspondências com seu irmão, não menos ilustre, Guilherme de Humboldt, que além de ajudar a constituir a Universidade de Berlim, o sistema educacional prussiano e dar contribuições à linguística como sistema, foi um grande contribuinte dos ideais liberais, escrevendo Os limites da ação do Estado, inspirando autores como John Stuart Mill. 44 PAULO R. TEIXEIRA DE GODOY (ORG.) das colônias para se tornarem independentes. Essa faceta do natura- lista, admirado com o “espírito de liberdade”, pode ser considerada um tanto ingênua para a questão da América Espanhola e caracte- rística de um espírito humanístico idealista. Quem lhe tenta abrir os olhos é a figura do então presidente dos Estados Unidos, Thomas Jefferson, amigo e admirador de Humboldt. Na carta de Jefferson, de 1813, em resposta ao amigo Humboldt, consta o trecho que diz: That they will throw off their European dependence I have no doubt; but in what kind of government their revolution will end I am not so certain. [...] And Mexico, where we learn from you that men of science are not wanting, may revolutionize itself under better auspices than the Southern provinces. These last, I fear, must end in military despotisms. The different casts of their inhabitants, their mutual hatreds and jealousies, their profound ignorance and bigotry, will be played off by cunning leaders, and each be made the instrument of enslaving others. But of all this you can best judge, for in truth we have little knowledge of them to be depended on, but through you.11 Os dois viriam a trocar uma série de correspondências, depois da extensão aos Estados Unidos da viagem de Humboldt a Cuba, e esse presentearia Jefferson com os resultados de suas pesquisas. Jefferson procura Humboldt até mesmo para auxiliar nas questões territoriais sobre os limites entre a Louisiana e a América Espanhola e sobre a etnia das populações que se poderia encontrar nessa região, bem como se existiam reservas minerais (Moheit, 1993, p.296). 11 Tradução dos autores: “Que eles vão sair de sua dependência europeia não te- nho dúvidas, mas em que tipo de governo vai acabar a sua revolução não estou tão certo. [...] E o México, onde podemos aprender com você que os homens da ciência não estão querendo, pode revolucionar a si mesmo melhor do que as províncias do sul. Estes últimos, temo eu, devem terminar em despotismos militares. Os moldes diferentes dos seus habitantes, seus ódios e invejas mútuas, a sua profunda ignorância e intolerância, será a saída de líderes ardilosos, e cada um será o instrumento de escravizar os outros. Mas de tudo isso, você pode julgar melhor, pois na verdade temos pouco conhecimento com que podemos contar, mas através de você”. HISTÓRIA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO E EPISTEMOLOGIA EM GEOGRAFIA 45 Na América, Humboldt viria ainda a escalar o vulcão Chimbo- razo, realizando medições barométricas e experiências magnéticas e hidráulicas; faria observações astronômicas da passagem de Mer- cúrio sob o disco solar em Lima; observaria os satélites de Júpiter na aldeia de Jaen e, com medições lunares, corrigiria o mapa de La Condamine; catalogaria novas espécies e recolheria mais amostras mineralógicas; observaria as propriedades do guano e seu potencial econômico para a região; seria expectador das atividades do vulcão Cotopaxi; contemplaria as minas de Taxco e as montanhas de Neva- da, as ruínas de Tula e tomaria contato com artefatos de civilizações pré-colombianas. Um dos ápices da viagem, em termos de desco- bertas científicas, foi a constatação da corrente do Pacífico Sul e os efeitos dela ocasionados. Contribuições à constituição inicial da geografia como ramo científico Eu o considero o cientista mais importante que encontrei. (Thomas Jefferson12) Na visão de La Blache (2001, p.5), temos um Humboldt pre- ocupado com a coordenação e a classificação dos fatos, em que a conexão dos fatos é mais importante do que o fato em si, mesmo que esse seja algo novo. Ainda de acordo com La Blache (2001, p.5), a vertente mais ligada aos eventos da natureza “física”, espe- cialmente os estudos de botânica, transmitem à geografia o método de classificação das ciências naturais; contudo, isso não passa pela exclusão dos fatores humanos. Humboldt lança diversas bases para a geografia física, como em climatologia (termo provavelmente de sua autoria), botânica, orografia, oceanografia, geologia etc.; além disso, traz para a geografia fatores pouco explorados que agem so- 12 Estadista e filósofo político. Terceiro presidente dos Estados Unidos da América. 46 PAULO R. TEIXEIRA DE GODOY (ORG.) bre as populações, como a estatística, a economia política, a pesqui- sa da origem da línguas e das migrações humanas (Aragão, 1960, p.465). Para La Blache (2001), o modo de visão de Humboldt sempre busca constituir quadros gerais, em que “uma vez conhecida sua re- partição terrestre, as próprias relações apresentar-se-ão ao espírito”. É com essa conduta metódica, que, segundo La Blache (2001, p.5), “das observações de temperatura que era possível reunir, ele retirava o traçado das linhas isotermas”. Exemplo singular é o livro Quadros da natureza. De acordo com La Blache (2001), “ele [Humboldt] se destaca por mobilizar os fatos, convertê-los em fórmulas correntes e em dados comparáveis entre si”, sendo as sistematizações tipológicas e os quadros de observação, portanto, uma das grandes e influentes contribuições desse cientista à geografia. Contudo, é importante levar em conta a consideração de Capel (2007, p.17) quanto a Humboldt buscar identificar e compreender as relações aparentemente desco- nexas dos fenômenos, cuja conexão não pode ser deduzida de um sistema taxonômico. Em Humboldt já há uma perspectiva a formulação de leis terres- tres e da interligação entre os diversos fenômenos (La Blache, 2001, p.6). O método comparativo que permite generalizações universais e a perspectiva histórica de evolução, em detrimento de uma natureza imutável, são as maiores contribuições de Humboldt para a ciência na visão de Capel (2007, p.17). A Figura 1 é um dos trabalhos de Humboldt em conjunto com o botânico Joakim Frederik e integra o Physikalischer Atlas organizado por Heinrich Berghaus, o primeiro atlas a tratar a geografia física do mundo. Nela pode-se ter a noção do modo como o prussiano representava a conexão; no topo, constam os grandes elevados mon- tanhosos, com suas respectivas zonas climáticas e latitudes, onde a vegetação aparece em níveis correlacionados com a altitude. O mapa- mundi traz as divisões fitogeográficas integrando-se perfeitamente com o gráfico estatístico das principais famílias de plantas à direita, que está dividido nas zonas fria, temperada e quente, mostrando a incidência de determinadas espécies em cada uma das zonas. HISTÓRIA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO E EPISTEMOLOGIA EM GEOGRAFIA 47 De Schelling ficam em Humboldt características de uma natureza orgânica, ligada a alguns pressupostos vitalistas de impulso vital, que mantém no prussiano elementos do transcendental, apesar de sua forte relação com a empiria e a busca de explicação dos fenômenos de forma precisa (como vimos no caso do lago assombrado por espí- ritos na América, o qual Humboldt desmistifica). A parte estética, como observamos, pode ser atribuída a influências de Schiller, sendo possível atribuir também, de acordo com Vitte (2007), influências kantianas, demonstradas por Capel (2007, p.18), pela aceitação de Humboldt da distinção kantiana de “sistemas da natureza”e “des- crições da natureza”. Ainda quanto ao movimento romântico, o convívio com Goethe foi de influências mútuas. Capel (2007, p.15) nos relata a visita que Humboldt fez a Goethe em 1794, quando tomou conhecimento de um projeto de novela intitulado “Sobre o Universo” com uma concepção harmônica da natureza. A ciência humboldtiana, que se estendeu para além do próprio Humboldt, traz o empirismo baconiano, muito presente no modelo científico do século XIX, e a preocupação com a mensuração precisa dos fenômenos, para aí proceder em generalizações, formulando leis, trabalhando com o que o prussiano denominava “física terrestre”. Humboldt coloca que sua ideia de física terrestre difere da tradicional história natural “descritiva”, quando declara: “[traveling naturalists] have neglected to track the great and constant laws of nature manifested in the rapid flux of phenomena…and to trace the reciprocal interaction of the divided physical forces”13 (apud Jardine et al., 1996, p.289). Humboldt não se considerava um explorador, mas sim um viajan- te científico, que media com precisão o que os exploradores tinham relatado incorretamente (Cannon, 1978, p.75). A real busca é a interconexão dos fenômenos naturais, sua forma de sistematização, é por meio de leis matemáticas, gráficos, tabelas e mapas (ibidem, 13 Tradução dos autores: “[viajantes naturalistas] têm negligenciado acompanhar as grandes e constantes leis da natureza manifestadas no fluxo rápido dos fenô- menos... e traçar a interação recíproca das forças físicas divididas”. 48 PAULO R. TEIXEIRA DE GODOY (ORG.) Figura 1 – Forma de representação clássica de Alexander Von Humboldt sobre conexões de fenômenos. Fonte: Physikalischer Atlas (Berghaus, 1845, p.259). HISTÓRIA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO E EPISTEMOLOGIA EM GEOGRAFIA 49 50 PAULO R. TEIXEIRA DE GODOY (ORG.) p.104-5). Para Capel (2007, p.15), existe fortemente em Humboldt a ideia de “harmonia”, que, aliada à sua estada em Freiberg e aos seus estudos de Geognosia, provavelmente levou à ideia de “harmonia da natureza”, e de que essa poderia ser empiricamente demonstrada. Esse é o grande projeto humboldtiano, um todo harmonioso, com partes intimamente relacionadas, e movido por forças internas, tudo passível de uma concepção idealista empiricamente demonstrável. A síntese dessas abordagens pode ser observada no Organograma 1, a seguir: ALEXANDER VON HUMBOLDT HARMONIA DA NATUREZA Física terrestre Conexão dos Fenômenos Temáticas Kant BaconGoethe Harmonia Schiller Vitalismo Observação e medição Princípio de Causalidade Formulação de Leis Abordagens Metodológicas Romantismo Empirismo Determinismo Visão Sistemática Organograma 1 – Síntese das abordagens teórico-metodológicas de Alexander Von Humboldt. Organização: Danilo Piccoli Neto e Flamarion Dutra Alves. Dentre inúmeras contribuições, como a melhor sistematização dos dados em cartas e mapas ou a idealização de perfis, está a genial ideia de isolinhas, amplamente difundidas em estudos climáticos e de geomorfologia, em que variáveis de mesma intensidade ou valor são conectadas por linhas, como no exemplo das curvas de nível. HISTÓRIA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO E EPISTEMOLOGIA EM GEOGRAFIA 51 A ideia de isolinhas já é notada nos textos redigidos após a ex- pedição à Ásia; frutos de avaliações geomagnéticas para fins mine- ralógicos, aliados a uma ideia de Halley sobre magnetismo (Capel, 2007, p.19), ganham destaque porém em Cosmos: “While the geo- graphy of plants and animals depends on these intricate relations of the distribution of sea and land, the configuration of the surface, and the direction of isothermal lines”14 (Humboldt, 1858, p.163); além dela, é possível observar a visão de complexidade da natureza, da inter- relação dos fenômenos, características que vão permear os volumes dessa grandiosa obra compilatória, reconhecida por muitos como a maior realizada por Humboldt, na qual ele dedicaria empenho até o final de sua vida. Paul Claval (2006, p.64-6) atenta para o fato de que a postura de Humboldt em não se ater somente à justaposição dos fenômenos, e sim na procura das propriedades globais dos conjuntos, aliado à sua base empírica de campo e um entendimento da diferenciação regional da Terra, partindo das reflexões de Kant, fez que, como naturalista, introduzisse um conceito base para a geografia moderna: o de meio. A América pode ser considerada o grande laboratório “vivo”, onde o extraordinário conhecimento teórico de Humboldt pode ser colocado na prática com grande vigor, gerando inúmeros trabalhos e descobertas que contribuíram para a constituição inicial do saber geográfico. O prussiano compilaria diversos dados gerando cartas, mapas, gráficos e esquemas, constituindo o que seria o primeiro atlas temático em que se caracteriza um continente que não fosse a Europa (Beck apud Kohlhepp, 2006, p.268), presente que foi dado ao amigo Thomas Jefferson. A diversidade de economias e prosperidade dos locais visitados fez que Humboldt realizasse estudos regionais comparativos, refor- çados também pela diversidade do relevo, do clima e da vegetação, como os presentes nas obras Aspects of Nature in Different Lands and 14 Tradução dos autores: “Embora a geografia das plantas e dos animais dependa destas intrincadas relações da distribuição de terra e mar, a configuração da superfície, e da direção das linhas isotérmicas”. 52 PAULO R. TEIXEIRA DE GODOY (ORG.) Different Climates (Humboldt, 1849) e Views of Nature: or Contem- plations on the Sublime Phenomena of Creation (Humboldt, 1850). Na introdução da segunda obra, Humboldt nos diz: “I here present to the public a series of papers which originated in the presence of the noblest objects of nature, on the Ocean, in the forests of the Orinoco, in the Savannahs of Venezuela, and in the solitudes of the Peruvian and Mexican Mountais”15 (ibidem, p.IX). Quanto ao papel das regiões na obra de Humboldt, Capel (2007, p.20) nos chama a atenção para “quais são as raízes dessa valorização da ‘fisionomia das regiões’ é algo que está por se estudar”. Contribuiria sobremaneira para com a climatologia, dividindo as terras quentes, frias e temperadas, com base no conhecimento local dos habitantes da América; da viagem à Ásia viriam o “exame das causas das variações das isotermas em relação a sua disposição teórica segundo os paralelos e o papel das massas continentais e sua configuração topográfica” (Capel, 2007, p.19). De visão arrojada, também notaria em um dos volumes a neces- sidade de uma ligação entre o Atlântico e o Pacífico, sendo o “pai intelectual” do canal do Panamá (Kohlhepp, 2006, p.268). Demais obras surgiriam em conluio com outros cientistas, como os volumes de Equinoctial Regions of America, traduzidas para o inglês em 1907, e escrita com o amigo Bonpland. Humboldt trabalha no segundo volume de Cosmos de maneira inicial e próxima ao que viria a ser a geografia descritiva tradicional, e trabalha o elemento paisagem (landschafts) como retrato e ligação entre observador e objeto, por meio da arte (pintura). O estudo da paisagem em Cosmos é um desdobramento de suas preocupações iniciais com a ideia de natureza, que são primeiramente tratadas nas obras Aspects of Nature in Different Lands and Different Cli- mates (Humboldt, 1849) e Views of Nature: or Contemplations on 15 Tradução dos autores: “eu aqui apresento para o público uma série de papéis que se originaram na presença dos objetos mais nobres da natureza, sobre o Oceano, nas florestas do Orenoco, nas savanas da Venezuela, e na solidão das montanhas do Peru e do México”. HISTÓRIA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO E EPISTEMOLOGIA EM GEOGRAFIA 53 the Sublime Phenomena of Creation (Humboldt, 1850), e que serão sistematizadas empiricamente após a viagem para a América em Personal Narrative of Travels to the Equinoctial Regions of America During the Years 1799-1804. Não poderia faltar em Cosmos a menção às técnicas para o cultivo de plantas, sendo a botânica verdadeira paixão do prussiano. Argumentações, críticas e considerações finais É ainda corrente o ideário de que Humboldt seria o grande expe- dicionário europeu que viria a descobrir o intocado continente ameri- cano. Essa ideia está na frase transcrita anteriormente aqui de Simon Bolívar, em que há de considerar uma particularidade histórica de conter uma ideia de libertação do governo da metrópole espanhola, mas também persiste na atualidade como em Aragão (1960, p.465): “podendo [Humboldt], pois, ser considerado o descobridor científico da América do Sul”. Vale ressaltar que na América Espanhola já ha- via estudos, e que uma rede de pesquisa em universidades e centros especializados se constituiria logo no primeiro século de colonização, como a Universidade do México que data de 1551, fazendo parte de uma estratégia de ocupação planejada da metrópole europeia em conhecer sua colônia para dela poder extrair recursos. Não se pode de maneira alguma descartar a genialidade de Hum- boldt em analisar o cenário que vivenciou, especialmente na América; do mesmo modo, não se podem descartar os homens de ciência que realizaram estudos antes da chegada do prussiano, a retomada do papel desses estudos e pesquisadores também se faz importante nos dias atuais, para caracterizar a grande diversidade que foi a consti- tuição da América, que chegou até o presente de forma enviesada. O quadro sinótico conhecido como Naturgemälde ou “Quadro físico dos Andes” é um exemplo destes impasses. Há quem con- sidere ser esse estudo fruto de cópia dos estudos de Francisco José de Caldas, que já havia publicado croquis do gênero (Diener, 2001, p.109). No entanto, Humboldt, antes da viagem à América, já vinha 54 PAULO R. TEIXEIRA DE GODOY (ORG.) pesquisando a relação entre altitude e vegetação em seus estudos dedicados à Geografia das plantas, mas a publicação do quadro só surgiu após a viagem. Não cabe julgar quem “copiou” quem, mui- tas ideias comuns fluem em diversas partes do globo sem o contato entre os idealizadores, mas cabe levar em consideração a perspectiva oferecida por La Blache (2001) de um Humboldt compilador, atento à classificação dos fatos. O prussiano certamente soube absorver as ideias de Caldas, mas o hispano-americano não viu no prussiano o devido reconhecimento, percebido na introdução espanhola de Geografia das plantas, 1805, escrita pelo próprio Caldas, que deixa transparecer certo descon- tentamento: “respeitando as luzes, os vastos conhecimentos e os grandes talentos deste viajante extraordinário [Humboldt], porém respeitamos muito mais a verdade” (Diener, 2001, p.110). Como grande pesquisador reconhecido e reverenciado mundial- mente com trabalhos de impacto, seria incomum acreditar que Hum- boldt estaria a salvo de críticas e das análises posteriores da história sobre a ocorrência dos fatos em seu tempo. Atualmente no México, discute-se como se deve entender a obra de Humboldt em relação à América, total inovação ou gigantesca compilação? (ibidem, p.111). A obra Ensaio político sobre o Reino da Nova Espanha é discutida com extrema virulência (ibidem), sendo esse trabalho considerado pioneiro na área de geografia regional e política. Por todas as refe- rências que vêm à luz nos estudos de Humboldt, muitas vezes de trabalhos relegados ao esquecimento, ou pouco valorizados, Diener (2001, p.112) exemplarmente coloca que “podemos afirmar que um dos grandes descobrimentos da sua viagem consistirá, precisamente, em dar a valoração que merece à literatura científica da Espanha e América Espanhola”. Mais uma vez se recorre à caracterização de La Blache (2001) quanto a Humboldt, e essa é possível compreender na própria visão que o prussiano assume quando seu colega Berghaus, organizando atlas mundial, coloca o nome de “Corrente de Humboldt”, a corrente fria do Pacífico Sul a que o prussiano fez menção em suas obras. Humboldt vê na homenagem do colega atitude exagerada, já que HISTÓRIA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO E EPISTEMOLOGIA EM GEOGRAFIA 55 ele apenas trouxe o fato à tona, pois tal corrente já era conhecida há trezentos anos por pescadores e que o jesuíta José de Acosta já havia mencionado tal fato de as águas serem frias em seus relatos, sua única contribuição “consiste em ter sido o primeiro em medir a temperatura desta corrente de água” (Minguet apud Diener, 2001, p.106). Vemos nesse fato o prussiano em uma atitude completamente modesta, que se assemelha a um Humboldt catalogador, que ligou conhecimentos já existentes para propor uma ideia nova. Fato é que essa concepção é inteiramente inovadora, apesar de relatos e medições pretéritos. O grande marco de Humboldt é justamente criar uma teo- ria para o fato das formações atmosféricas não atingirem o continente e gerarem os desertos na parte oeste do continente sul-americano. Se conferir seu nome ao fenômeno pode ser considerada uma homenagem extremada por Humboldt, e se esse vê com modéstia sua descoberta com base em relatos existentes, não se pode deixar de constatar que esse homem, preocupado em fazer grandes com- pilações, com um conhecimento enciclopédico, não se ateve apenas a reproduzir, mas mostrou articular tudo isso para propor teorias explicativas. Talvez aí resida uma das maiores contribuições de Humboldt, não em descobrir explicações para fenômenos, medir com precisão locais a partir de conhecimentos astronômicos, mas sim em coadunar compilações para ousar em propor algo novo. Reside aí, talvez, o espírito que caracteriza os grandes homens da ciência. Referências ARAGÃO, J. A. S. do. A vida e a obra de Humboldt. Revista Brasileira de Geografia, ano XXII, n.3, p.465-77, jul./set. 1960. BERGHAUS, H. (Org.) Physikalischer Atlas. Gotha, 1845. Disponível em: . BURHNS, K. Life of Alexander Von Humboldt compiled in commemoration of his birth. 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