1 Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência PALOMA RODRIGUES DA SILVA ANÁLISE DAS CONCEPÇÕES DE PROFESSORES DE BIOLOGIA EM FORMAÇÃO INICIAL ACERCA DA RELAÇÃO ENTRE CIÊNCIA E VALORES Bauru 2012 2 PALOMA RODRIGUES DA SILVA ANÁLISE DAS CONCEPÇÕES DE PROFESSORES DE BIOLOGIA EM FORMAÇÃO INICIAL ACERCA DA RELAÇÃO ENTRE CIÊNCIA E VALORES Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação para a Ciência, da Faculdade de Ciências da UNESP/Campus de Bauru, para a obtenção do título de Mestre em Educação para a Ciência (Área de Concentração: Ensino de Ciências). Orientadora: Ana Maria de Andrade Caldeira Co-orientadora: Elaine Sandra Nicolini Nabuco de Araújo Bauru 2012 3 Silva, Paloma Rodrigues. Análise das concepções de professores de biologia em formação inicial acerca da relação entre ciência e valores / Paloma Rodrigues da Silva, 2012. Total de folhas: ------- Orientadora: Ana Maria de Andrade Caldeira. Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual Paulista, UNESP, Faculdade de Ciências, Bauru, 2012. 1. Ensino de Biologia. 2. Ensino de Bioética. 3. Natureza da Ciência - Dissertação. I. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências. II. Título. 4 PALOMA RODRIGUES DA SILVA ANÁLISE DAS CONCEPÇÕES DE PROFESSORES DE BIOLOGIA EM FORMAÇÃO INICIAL ACERCA DA RELAÇÃO ENTRE CIÊNCIA E VALORES Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência, da Faculdade de Ciências da UNESP/Campus de Bauru, para a obtenção do título de Mestre em Educação para a Ciência (Área de Concentração: Ensino de Ciências). Banca Examinadora: Presidente: Ana Maria de Andrade Caldeira Examinador: Nelson Antônio Pirola Examinador: Paulo Fraga da Silva 5 6 “Se se respeita a natureza do ser humano, o ensino dos conteúdos não pode dar-se alheio à formação moral do educando. Divinizar ou diabolizar a tecnologia ou a ciência é uma forma altamente negativa e perigosa de pensar errado. De testemunhar aos alunos, às vezes com ares de quem possui a verdade, um rotundo desacerto.” Paulo Freire 7 AAgradecimentos O desenvolvimento e concretização desse trabalho só puderam ser possíveis graças ao apoio de diversas pessoas. A elas, dedico meu reconhecimento. Agradeço. Especialmente a minha família. Meus pais, VValdir e FFernanda, que sempre acreditaram em mim, e me forneceram todas as bases necessárias para que eu pudesse seguir o meu caminho. Sem eles, nada disso existiria! Agradeço também a minha irmã e companheira PPollyanna, que sempre esteve presente em minha vida, em todos os momentos. Aos meus queridos amigos: CCarol e AAndré, Gabi e Gabriel, Carlos e Selma, Cristiano, Bárbara, Jake, Josi, Danilo, Jaque, Júlia, Mari Bologna e André Mad. A vocês, meu muito obrigada pela torcida e por se manterem presentes em minha vida, compartilhando alegrias, tristezas, inseguranças, vitórias e por fazerem meus dias mais felizes. Um agradecimento especial à grande amiga e companheira de trabalhos acadêmicos PPaty Nunes, pelo compartilhamento de ansiedades, inseguranças e conquistas. Ao meu amigo e companheiro TTiago, pelo apoio, carinho, por ser um dos maiores incentivadores de minha carreira, pela compreensão nos meus momentos de impaciência, por fazer com que eu me sentisse mais segura e confiante em meu trabalho e, principalmente, pelo respeito, amor, carinho e dedicação que sempre demonstrou em todos esses anos que estivemos juntos. Aos meus sogros LLeopoldo e CCidinha, e meus cunhados AAndré e AAndressa, FFernanda e JJorge, e ao meu sobrinho FFrancisco, pelo apoio, torcida e pelos momentos juntos. À minha orientadora PProfª. Dra. Ana Maria de Andrade Caldeira, pela disponibilidade e incentivo durante todos esses anos, por compartilhar seus conhecimentos e sua experiência, por acreditar em meu trabalho e me auxiliar nesta jornada. 8 À minha co-orientadora PProfª. Dra. Elaine Sandra Nicolini Nabuco de Araújo, pelas longas horas de conversas e estudos, pela confiança e pela forma carinhosa com que sempre me acolheu e me conduziu ao longo do desenvolvimento deste trabalho. Aos professores DDr. Paulo Fraga da Silva e DDr. Nelson Antônio Pirola, pela maneira atenciosa e cuidadosa com que leram este trabalho, pelas valiosas contribuições dadas e, por tão prontamente aceitarem o convite para a participação na banca de qualificação e defesa deste trabalho. À PProfa. Dra. Renata Soares Junqueira e a servidora administrativa FFátima, do Departamento de Literatura do Campus da UNESP de Arararaquara; à PProfa. Dra. Karine Delevati Colpo, ao PProf. Dr. Wagner Cotroni Valenti e a servidora administrativa NNeusa, do Campus Experimental da UNESP de São Vicente; ao PProf. Renato Pirani Ghilardi, do Campus da UNESP de Bauru; pelo modo carinhoso com que me acolheram e me conduziram para que eu pudesse realizar minha coleta de dados. À PProfa. Dra. Graça Simões de Carvalho, da Universidade do Minho, Portugal, pelas excelentes contribuições. Ao PProf. Euro Marques Júnior, do Departamento de Engenharia de Produção da UNESP, pela paciência em me explicar e me ensinar a realizar as análises estatísticas. À UUniversidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, à FFaculdade de Ciências e ao Programa de Pós Graduação em Educação para a Ciência, por fortalecerem minhas bases acadêmicas. À CCAPES, pelo apoio financeiro. A todos que de alguma forma contribuíram, direta ou indiretamente, para a concretização de mais esta fase, OOBRIGADA! 9 O desenvolvimento na área de Ciência e Tecnologia, ao mesmo tempo em que possibilitou novas perspectivas em campos como do meio ambiente, agricultura e da saúde, também aflorou uma série de dilemas éticos acerca dos impactos desses avanços na sociedade e no ambiente. Isso significa que a necessidade das escolas oportunizarem discussões sobre estes temas se torna cada vez maior, uma vez que decisões pessoais relacionadas aos resultados destas tecnologias são cruciais nas respostas da sociedade. Entendemos que concepções distorcidas da Ciência podem culminar em tomadas de decisões desponderadas e inconsequentes, que muitas vezes ignoram os princípios básicos da Bioética. Isso significa que as instituições universitárias voltadas para a formação de professores devem assumir os desafios postos por essa nova abordagem Bioética, pois o professor é um agente humano que na sala de aula precisará tomar decisões que podem modificar o modo de pensar de seus alunos. Com base nestes pressupostos, objetivamos neste estudo compreender o modo como três grupos de estudantes – Bacharéis e Licenciandos em Ciências Biológicas e Licenciandos em Letras – entendem a influência de valores na atividade científica. Para obtenção dos dados construímos uma escala do tipo Likert, que foi validada semanticamente e estatisticamente (α = 0,796). Os resultados mostraram que alguns pressupostos, como o salvacionismo, o reducionismo e a neutralidade estão fortemente presentes nos três grupos. Foi possível identificarmos também que quando os estudantes foram questionados diretamente sobre a influência de valores não cognitivos na Ciência tenderam a apresentar uma imagem da Ciência não distorcida. Isso nos direciona a pensarmos que, embora os respondentes aparentemente entendam que a Ciência não é isenta de valores, eles não interiorizaram em suas concepções a ideia de Ciência não neutra. Em relação ao preparo dos futuros professores para realizarem discussões Bioéticas, identificamos que a maioria dos estudantes se declarou despreparados para lidarem com questões que envolvem este tema em sala de aula, além de apontarem a falta de familiaridade com o tema como a maior dificuldade que eles enfrentariam em uma discussão. Entendemos que a presença de espaços de reflexões, que propiciem aos indivíduos o contato com diferentes concepções acerca de um mesmo tema, são fundamentais para o desenvolvimento de um pensamento autônomo e plural. Neste trabalho buscamos demonstrar a importância do desenvolvimento de linhas de discussão sobre Bioética e valores voltados para as necessidades de formação de estudantes do curso de Ciências Biológicas. Entendemos que a demanda pela inserção de uma disciplina de Bioética para os cursos de Ciências Biológicas já vem sendo atendida em algumas reformas curriculares. O passo a seguir é refletirmos como será feita essa formação e quais princípios formativos devem ser levados em conta para a organização de disciplinas ou eixos dedicados ao Ensino de Bioética. PALAVRAS-CHAVE: Ensino de Biologia, Bioética, Natureza da Ciência, Valores. 10 One of the objectives of science education based on relationships between science, technology, society and environment (CTSA) is to form citizens capable of evaluating and making decisions about the impact of scientific advances on society and the environment. In a two-way perspective, understanding the relationship between CTSA provides a vision of science as a human construction and therefore fallible, changeable and not neutral. In this study we present some results from a comparative study on the influence of ethical conceptions of the nature of science of three groups: Future Biology Teachers, Biological Future and Future Portuguese Teachers. For data collection we constructed an scale of Likert- type, which was validated mathematically and semantically. In analyzing student responses to questions we realize that when they are asked directly about the influence of non-cognitive values in science tend to have an undistorted image of science, that is, their answers lead us to infer that they understand that the activity science is influenced by values. However, when questioned by implication, respondents in general tend to have a mistaken view of science. This directs us to think that while respondents seemingly understand that science is not value- free, they not internalized the idea in their conceptions of science is not neutral. We believe that the existence of a space that would enable students to develop analytical thinking skills raise a sense of social responsibility and personal and develop with the ambiguity of values, could minimize these difficulties. KEYWORDS: Biology teaching, Bioethics, Nature of Science, Values. 11 RESUMO..................................................................................................... 09 ABSTRACT................................................................................................. 10 APRESENTAÇÃO...................................................................................... 16 INTRODUÇÃO........................................................................................... 19 CAPÍTULO 1. VALORES E SUAS INFLUÊNCIAS NA ATITIDADE CIENTÍFICA....................................................................... 24 1.1 O que são valores?........................................................................... 24 1.2 Será a Ciência isenta de valores pessoais, sociais e éticos? ............. 29 1.3 As teses da imparcialidade, neutralidade e autonomia.................... 30 1.4 Quais as possíveis consequências de uma concepção de Ciência imparcial, neutra e autônoma?.............................................................. 33 CAPÍTULO 2. A DISCUSSÃO SOBRE VALORES NO ENSINO DE CIÊNCIAS................................................................................................... 37 2.1 Breve histórico da Bioética e a Corrente Principialista.................. 37 2.2 O Ensino de Bioética na formação de professores de Biologia.................................................................................................. 41 2.3 O papel do discurso do professor nas discussões sobre valores................................................................................................... 43 CAPÍTULO 3. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS................... 47 3.1 Caracterização do estudo................................................................. 47 3.2 Sujeitos da pesquisa......................................................................... 48 3.3 Elaboração do instrumento de coleta de dados............................... 52 3.3.1 Caracterização do instrumento................................................. 52 3.3.2 O instrumento utilizado neste estudo............................................ 54 3.4 Validação do instrumento................................................................ 60 3.4.1 Primeira Etapa: Validação Semântica do Instrumento............... 60 3.4.2 Segunda Etapa: Os Testes Alpha de Cronbach, Kaiser-Meyer- Olkin (KMO) e Bartlett................................................................... 62 12 3.5 Análise Estatística dos Dados........................................................... 64 3.6 Análise Interpretativa dos Dados..................................................... 65 CAPÍTULO 4. APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS DADOS......................................................................................................... 66 4.1 Resultados das aplicações dos testes Alpha de Cronbach, Kaiser- Meyer-Olkin (KMO) e Bartlett............................................................. 66 4.2 Resultados da Análise dos Componentes Principais (ACP) .......... 68 4.3 Análise Comparativa entre as classes utilizando o Gráfico das Correlações............................................................................................ 72 4.4 Análise Percentual Comparativa entre as classes............................ 74 4.4.1 Análise comparativa da concepção de ciência dos respondentes................................................................................... 74 4.4.2 Análise comparativa da percepção das influências de valores éticos na atividade científica............................................................ 94 4.5 Análise Percentual das questões referentes à formação do futuro professor de Ciências/Biologia em relação às questões bioéticas................................................................................................. 103 4.5.1 Análise das respostas relacionadas à preparação do futuro professor durante a graduação.......................................................... 103 4.5.2 Análise das respostas relacionadas aos possíveis desafios dos futuros professores.......................................................................... 109 CAPÍTULO 5. CONCLUSÕES FINAIS.................................................. 114 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................... 120 ANEXOS...................................................................................................... 125 Anexo A. Matriz curricular do curso de Licenciatura em Ciências Biológicas........................................................................................... 125 Anexo B. Matriz curricular do curso de Bacharelado em Ciências Biológicas............................................................................................ 127 Anexo C. Matriz curricular do curso de Licenciatura em Letras.................. 129 Anexo D. Instrumento de coleta de dados..................................................... 133 Anexo E. Tabela dos valores dos Coeficientes de Correlação de Pearson.... 137 Anexo F. Parecer emitido pelo Comitê de Ética em Pesquisa...................... 138 13 Figura 1. Relação entre a indução e a dedução............................................................... 20 Figura 2. Histograma dos Valores Próprios, apresentando a parte de variância da qual dá conta cada componente da ACP................................................................................... 69 Figura 3. Gráfico de correlações das variáveis que permite analisar o significado do espaço definido pelos dois eixos principais...................................................................... 69 Figura 4. Gráfico de correlações das variáveis e o significado dos Eixos....................... 71 Figura 5. Análise comparativa das tendências das respostas dos grupos analisados....... 73 Figura 6. Respostas dos participantes à assertiva Q1...................................................... 76 Figura 7. Respostas dos participantes à assertiva Q2...................................................... 79 Figura 8. Respostas dos participantes à assertiva Q6...................................................... 81 Figura 9. Respostas dos participantes à assertiva Q8...................................................... 83 Figura 10. Respostas dos participantes à assertiva Q10.................................................. 85 Figura 11. Respostas dos participantes à assertiva Q11.................................................. 86 Figura 12. Respostas dos participantes à assertiva Q12.................................................. 88 Figura 13. Respostas dos participantes à assertiva Q13.................................................. 89 Figura 14. Respostas dos participantes à assertiva Q14.................................................. 91 Figura 15. Respostas dos participantes à assertiva Q16.................................................. 92 Figura 16. Respostas dos participantes à assertiva Q17.................................................. 93 Figura 17. Respostas dos participantes à assertiva Q3.................................................... 95 Figura 18. Respostas dos participantes à assertiva Q4.................................................... 96 Figura 19. Respostas dos participantes à assertiva Q5.................................................... 98 Figura 20. Respostas dos participantes à assertiva Q7.................................................... 100 Figura 21. Respostas dos participantes à assertiva Q9.................................................... 101 Figura 22. Respostas dos participantes à assertiva Q15.................................................. 102 Figura 23. Respostas dos participantes à assertiva Q22.................................................. 104 14 Figura 24. Respostas dos participantes à assertiva Q24.................................................. 105 Figura 25. Respostas dos participantes à assertiva Q26.................................................. 106 Figura 26. Respostas dos participantes à assertiva Q27.................................................. 107 Figura 27. Respostas dos participantes à assertiva Q29.................................................. 108 Figura 28. Respostas dos participantes à assertiva Q32.................................................. 108 Figura 29. Respostas dos participantes à assertiva Q23.................................................. 110 Figura 30. Respostas dos participantes à assertiva Q25.................................................. 110 Figura 31. Respostas dos participantes à assertiva Q28.................................................. 111 Figura 32. Respostas dos participantes à assertiva Q30.................................................. 112 Figura 33. Respostas dos participantes à assertiva Q31.................................................. 113 15 Quadro 1: Caracterização da amostra.............................................................................. 50 Quadro 2: Questões que abordam as concepções de ciência dos respondentes....................................................................................................... 56 Quadro 3: Assertivas que abordam as influências de valores éticos e morais na atividade científica............................................................................................................ 57 Quadro 4: Questões sobre a preparação do futuro professor durante a graduação......... 58 Quadro 5: Questões sobre os possíveis desafios dos futuros professores....................... 59 Quadro 6: Questões sobre os dados pessoais dos respondentes...................................... 59 Quadro 7: Características dos especialistas e dos possíveis respondentes que participaram da validação semântica do instrumento....................................................... 61 Quadro 8: Valor do Alpha de Cronbach extraído dos resultados do software estatístico........................................................................................................................... 67 Quadro 9: Valor do KMO e Bartlett extraídos dos resultados do software estatístico... 67 Quadro 10: Coordenadas das variáveis sobre os eixos C1 (Componente 1) e C2 (Componente 2)................................................................................................................ 70 16 ““Espero que o leitor me perdoe o fato de citar pormenores de caráter pessoal; faço-o tão somente para mostrar que as minhas conclusões não são resultados de uma atitude precipitada.” (DARWIN, 2004, p. 27) Reconheço como o início de minha história como pesquisadora na área de Ensino de Ciências o conturbado final do ano de 2006, momento em que eu encerrava meu segundo ano na faculdade. Ingressei no curso de Ciências Biológicas da UNESP/Bauru no início de 2005. Estava bastante entusiasmada com a nova fase que se iniciava em minha vida, tanto pela aquisição de novos conhecimentos quanto pelas novas experiências que somente a vida acadêmica pode proporcionar. Entretanto, logo no final do primeiro ano de graduação, o entusiasmo cedeu lugar para a frustração. Durante as aulas de graduação, éramos incentivados a nos envolvermos com estágios e pesquisas em laboratórios. No entanto, por mais que eu gostasse das aulas, não me sentia satisfeita com ideia de me tornar uma estagiária nos laboratórios disponíveis. Comecei a me sentir “um peixe fora d’água”. No final do ano de 2006, ainda confusa sobre os rumos de minha vida acadêmica, resolvi procurar a professora Dra. Ana Maria de Andrade Caldeira, minha atual orientadora. Eu sempre tive interesse na área de Educação (apesar de, na época, desconhecer a existência de pesquisas em Educação), e acreditei que ela poderia me ajudar. A convite da professora Ana, ingressei no Grupo de Pesquisa em Epistemologia da Biologia, do qual faço parte até hoje. 17 O grupo foi um elemento fundamental em minha vida acadêmica, pois me permitiu repensar toda minha forma de compreender as Ciências Biológicas e o Ensino de Ciências. Durante os anos de 2007, 2008 e 2009, desenvolvi trabalhos de iniciação científica nesta área, financiados pela Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), que foram bastante importantes para o desenvolvimento de minhas habilidades como pesquisadora, e que resultaram em trabalhos acadêmicos1 e no meu Trabalho de Conclusão de Curso. No final do ano de 2009 (meu último ano na graduação), eu, a professora Ana Caldeira e uma das coordenadoras do grupo de pesquisa e atual docente da Universidade Estadual de Londrina iniciamos discussões sobre um possível projeto de mestrado. Nossas leituras e debates nos levantaram questionamentos acerca das influências dos desenvolvimentos científicos e tecnológicos na sociedade, a importância da participação dos cidadãos nas escolhas que envolvem aspectos éticos, e o papel da escola e do professor neste processo. Nascia, então, o tema de minha dissertação. No início de 2010 ingressei no Programa de Pós Graduação em Educação para a Ciência, sob a orientação da professora Ana Caldeira. Nos meus primeiros meses no programa objetivei delinear o meu projeto inicial de mestrado, em especial a metodologia do trabalho. Foi neste momento que a professora Ana me apresentou a professora Dra. Elaine Sandra Nicolini Nabuco de Araújo, minha atual co-orientadora, que me indicou novas possibilidades na pesquisa em Ensino de Ciências e me apresentou aos métodos estatísticos. 1 SILVA, P. R. ; ANDRADE, M. A. B. S.; CALDEIRA, A. M. A. Concepções de professores de Biologia a respeito da diversidade dos seres vivos: uma análise, considerando o desenvolvimento histórico das ideias evolucionistas. In: BASTOS, F. (org.). Ensino de ciências e matemática III: contribuições da pesquisa acadêmica a partir de múltiplas perspectivas. Fundação Editora UNESP, p. 147-167. 2010. MEGLHIORATTI, F. A. ; SILVA, P. R. ; CORRÊA, A. L. ; CALDEIRA, Ana Maria de Andrade . O conceito de vida como elemento integrador do conhecimento biológico: contribuições advindas da história e filosofia da Biologia.. In: FERRAZ, D. F.; MEGLHIORATTI, F. A.; JUSTINA, L. A. D.; POLINARSKI, C. (orgs.). As Ciências Biológicas em Diferentes Contextos. Cascavel: EDUNIOESTE, v. 2, p. 51-65, 2009. CORRÊA, A. L. ; SILVA, P. R. ; MEGLHIORATTI, F. A. ; CALDEIRA, A. M. A. Aspectos históricos e filosóficos do conceito de vida: contribuições para o ensino de Biologia. Filosofia e História da Biologia, v. 3, p. 21-20, 2008. 18 Com o apoio da professora Dra. Ana Maria de Andrade Caldeira, minha orientadora, da professora Dra. Elaine Sandra Nicolini Nabuco de Araujo, e, certamente, das discussões proporcionadas pelo Grupo de Pesquisa em Epistemologia da Biologia, pude desenvolver minha dissertação, produzindo dados que podem contribuir para repensarmos a formação de futuros professores de Biologia. Encerro esta apresentação retomando a citação de Darwin no início desta apresentação. Achei interessante explicitar alguns pormenores de caráter pessoal. Por mais desnecessários que possam parecer, favorecem o entendimento do meu caminho percorrido, dos elementos que contribuíram para o desenvolvimento do meu interesse pela área de Ensino de Ciências, e, certamente, do meu crescimento como pesquisadora. PPaloma Rodrigues da Silva. 19 Vivenciamos um momento em que somos altamente influenciados pela tecnologia e seus produtos. Tal influência é tão significativa que desenvolvemos uma verdadeira fé no ser humano, na ciência, na razão, enfim, uma fé no progresso (BERNARD e CROMMELINCK, 1992), o que acarretou em uma crença de que há algo de especial na atividade científica. Entretanto, nas últimas décadas, filósofos da ciência têm questionado essa concepção de ciência infalível, altamente confiável e incontestável. Como exemplo clássico dessa área, citamos a obra de Chalmers (1993) – O que é Ciência, afinal?- que busca discutir que o método científico não é uma entidade estática e fixa, mas que se modifica à medida que falhas e limitações são identificadas. De acordo com o autor, as pessoas em geral entendem a ciência como um conhecimento verdadeiro devido a sua base empírica, ou seja, “o conhecimento científico é conhecimento confiável porque é conhecimento provado objetivamente” (CHALMERS, 1993, p. 24). Essa imagem tradicional da ciência pode ser compreendida, sobretudo, pela crença no método indutivo. O princípio da indução consiste em formular proposições universais a partir da observação de um certo número de casos particulares observados em condições variadas. Podemos resumir a posição indutivista ingênua dizendo que, de acordo com ela, a ciência é baseada no princípio de indução, que podemos assim descrever: Se um grande número de As foi observado sob uma ampla variedade de condições, e se todos esses As observados possuíam sem exceção a propriedade B, então todos os As têm a propriedade B. De acordo com o indutivista ingênuo, o corpo de conhecimento científico é construído pela indução a partir da base segura fornecida pela observação (CHALMERS, 1993, p. 28). 20 Uma vez que o cientista possui leis e teorias universais, é possível realizar previsões ou deduções. Esse raciocínio, chamado de dedutivo, pode ser explicado pela Figura 1, extraída da obra de Chalmers (1993, p. 29). Figura 1: Relação entre a indução e a dedução (CHALMERS, 1993, p. 29). A crítica ao indutivismo inicia-se com a discussão sobre a dependência que a observação tem da teoria. As nossas percepções, isto é, aquilo que nos chega aos sentidos e o modo como interpretamos essas percepções, são influenciadas pela nossa bagagem cultural. O que um observador vê, isto é, a experiência visual que um observador tem ao ver um objeto, depende em parte de sua experiência passada, de seu conhecimento e de suas expectativas (CHALMERS, 1993, p. 50). (...) observadores vendo a mesma cena do mesmo lugar veem a mesma coisa, mas interpretam o que veem diferentemente (CHALMERS, 1993, p. 52). Ou seja, se tudo o que percebemos do mundo exterior é influenciado por demais fatores, como nossas expectativas e nossa cultura, é ilusão acreditarmos que os dados se apresentam objetivamente aos nossos sentidos e podem, portanto, serem objetivamente interpretados. É nesta discussão que se encontra o cerne de nosso trabalho. A concepção tradicional de ciência (que apresenta suas origens ligadas ao positivismo, apesar de não restringir-se a ele) presume que os únicos valores que influenciam a atividade científica são os valores 21 cognitivos (adequação empírica; consistência; simplicidade; fecundidade; poder explicativo; e verdade), ignorando outros valores, como os sociais, culturais, etc. Ao ignorar que ciência é uma construção humana, portanto falível, mutável e não neutra (RICARDO, 2007), acaba-se culminando em uma supervalorização da atividade científica, e, com isso, temos a emergência de algumas ideias, como a da salvação da humanidade, que prevê que todos os problemas enfrentados pelos seres humanos podem ser resolvidos com o desenvolvimento científico e tecnológico. Também é frequente a disseminação da concepção de neutralidade científica, que se apoia no pressuposto de que a ciência não é influenciada por valores não cognitivos2. No que tange ao desenvolvimento relacionado à área de manipulação gênica, entendemos que essa realidade não é diferente. As últimas décadas foram marcadas por intensa produção científica e tecnológica, com um aumento considerável de informações relacionadas à Biologia. Um mapeamento realizado por Massarani et al. (2003) nos jornais brasileiros diários acerca das informações relacionadas à Genética e suas aplicações, mostrou que são bastante frequentes as notícias veiculadas sobre a clonagem de animais e seres humanos e sobre pesquisas e experimentos que envolvem a clonagem terapêutica e alimentos que são provenientes de organismos geneticamente modificados. O desenvolvimento da Medicina e da Biotecnologia permitiu a manipulação dos seres vivos em suas mínimas subunidades, erguendo questões que, além de polêmicas, estão fortemente envolvidas em aspectos éticos e interesses políticos e econômicos. Segundo SOUZA (2009, p. 26) “o impacto das novas descobertas veiculadas pela mídia como a genomabiogenética, biodiversidade, reprodução assistida, clonagem, entre outras, acarretam expectativas nos cidadãos marcadas por buscas de valores como nunca foram evidenciadas”. 2 Discussões acerca dos valores presentes na atividade científica encontram-se no Capítulo 1. 22 As discussões acerca desses novos conhecimentos e suas aplicações não podem ser feitas com base num pensamento que ignora os valores sociais, históricos e culturais que estão presentes no desenvolvimento científico. Ou seja, tanto os meios de comunicação e informação quanto às escolas não deveriam limitar-se a discutirem essas questões apoiando-se na ideia de que esses métodos serão a salvação da humanidade, ou que o desenvolvimento científico é isento de valores. Partindo do pressuposto de que a presença de interferências baseadas no salvacionismo e na neutralidade dificulta o entendimento acerca da natureza do desenvolvimento científico, bem como a necessidade da participação da população nas escolhas que envolvem aspectos éticos e a importância do papel do professor no processo de formação dos cidadãos, nos perguntamos: quais as concepções de ciência dos futuros professores de Biologia no que tange às questões bioéticas que permeiam os avanços tecnológicos e científicos? Na tentativa de compreendermos o modo como a natureza da Ciência e suas questões bioéticas são entendidas por estudantes do curso de licenciatura em Ciências Biológicas (ou seja, futuros professores de Ciências e Biologia), objetivamos: 1) Levantar quais as concepções de Ciência dos alunos de um curso de licenciatura em Ciências Biológicas acerca das questões bioéticas. 2) Comparar as respostas dos estudantes de um curso de licenciatura em Ciências Biológicas com as de estudantes de um curso de Bacharelado em Ciências Biológicas e Licenciatura em Letras. 3) Analisar quais seriam as possíveis dificuldades declaradas por estes estudantes para futuramente lidarem com o tema em sala de aula. 23 4) Apontar as interações investigadas entre o conhecimento científico e os valores e tentativamente relacionar suas possíveis interferências na prática docente. 5) Construir e validar um instrumento de coleta de dados. Nos Capítulos que se seguem, apresentaremos: uma discussão sobre as definições do termo valor, bem como sobre os diversos tipos de valores relacionados à atividade científica, na perspectiva do filósofo Hugh Lacey (Capítulo 1); uma argumentação acerca da importância da discussão sobre valores no Ensino de Ciências (Capítulo 2); a metodologia utilizada para lucubrar os objetivos propostos (Capítulo 3); a apresentação dos dados e as discussões acerca dos aspectos e dos dados mais relevantes obtidos no desenvolvimento deste trabalho (Capítulo 4). Nas Conclusões Finais (Capítulo 5), procuraremos traçar conclusões entre as questões teóricas e os achados empíricos, e, por fim, nas Referências Bibliográficas listaremos os trabalhos utilizados para o desenvolvimento dessa dissertação. 24 Uma das principais questões que aparece na Epistemologia é a discussão sobre a influência dos valores na ciência. Na concepção tradicional, baseada no positivismo, a ciência é isenta de valores. Entretanto, essa concepção não é consensual e, atualmente, a ideia de ciência não neutra vem sendo discutida também no âmbito das pesquisas em ensino de ciências, sob o argumento de que uma concepção menos distorcida da ciência pode contribuir para a formação de cidadãos aptos a questionar sobre os impactos dos avanços científicos na sociedade e no ambiente. Nesse capítulo discutiremos as definições do termo valor, bem como sobre os diversos tipos de valores relacionados à atividade científica, na perspectiva do filósofo australiano Hugh Lacey. Em seus trabalhos, Lacey tem se dedicado a discutir o modo como a ciência e a tecnologia são entendidas e praticadas. Em suas obras (em especial, Valores e Atividade Científica, de 1998, e Is Science Value-free?: Values and Scientific Understanding, de 1999), destacamos as argumentações referentes as interações entre as práticas científicas e os valores, bem como as relações entre as questões científicas e éticas nas discussões atuais sobre tecnociência. 1.1 O que são valores? A palavra valor, cuja origem remete ao latim valore, é utilizada com frequência em nosso cotidiano. No entanto, apesar desse uso constante da palavra, a definição deste vocábulo não parece ser algo tão simples. Isso pode ser explicado pelo fato de o significado da palavra valor estar parcialmente relacionado com os valores pessoais que sustentamos. 25 Ao procurarmos uma definição da palavra em alguns dicionários da Língua Portuguesa (FLORENZANO, 1996; BORBA et al., 2004; ROCHA, 1996; HOLANDA, 2010) constatamos que o termo sempre aparece ligado a significados como valia, mérito, qualidade, estimação e importância. No entanto, essas definições não parecem ser suficientemente claras diante da complexidade do termo. Um dos autores que se destaca por suas discussões acerca dos valores relacionados às atividades científicas é o australiano Hugh Lacey. No livro “Valores e Atividade Científica” (1998), Lacey salienta que, no discurso cotidiano, os valores podem ser compreendidos como: 1. Um bem fundamental que uma pessoa persegue de forma consistente por um extenso período de tempo de sua vida; uma das razões definidas da pessoa para a ação; 2. Uma qualidade (ou uma prática) que proporciona valia, excelência, dignidade, significado ou um caráter de realização à vida que a pessoa está levando, ou aspirando a levar; 3. Uma qualidade (ou uma prática) que é parcialmente constitutiva da identidade de uma pessoa, como um ser auto-avaliador, auto-interpretante e autoformador; 4. Um critério fundamental para uma pessoa escolher o bom (ou o melhor) entre possíveis cursos de ação; 5. Um padrão fundamental em relação ao qual alguém avalia o comportamento de si mesmo e dos outros; 6. Um “objeto de valor”, com o qual uma relação apropriada é parcialmente constitutiva tanto de uma vida que vale a pena ser vivida quanto da identidade de alguém. (LACEY, 1998, p. 35). Essas definições, apesar de serem mais elaboradas do que aquelas encontradas nos dicionários consultados, ainda assim referem-se apenas aos usos superficiais do vocábulo valor. Conforme o próprio autor destaca, os itens citados “permanecem abertos a várias interpretações” (LACEY, 1998, p. 36). Isso porque sustentamos vários tipos de valores, que se relacionam e se reforçam mutuamente. Assim, para clarificar a definição desse conceito, e de acordo com o objetivo deste trabalho, tomamos como base a filosofia de Hugh Lacey e 26 propomos pensar em valores focando-nos nos valores pessoais, valores sociais, valores éticos3 e valores cognitivos. Valores Pessoais De acordo com Lacey (1999) os valores pessoais estão associados aos sentimentos e emoções, e é parte constitutiva da identidade dos indivíduos. Nas palavras do autor: [...] os valores são manifestados no comportamento sempre que eles (e seus sentimentos e emoções associados) apareçam em esquemas explicativos que são formados para enquadrar o comportamento de um agente. Os valores estão entrelaçados em uma vida na medida (sempre maior ou menor) em que a trajetória da vida de um agente exibe um comportamento que manifeste constante, consistente e recorrentemente os valores (LACEY, 1998, p. 40). Os valores também podem estar presentes na consciência e nas palavras, demonstrando o que alguém é (ou gostaria de ser), suas aspirações futuras e suas crenças acerca do bem-estar da humanidade (LACEY, 1998). Em outras palavras, os valores pessoais podem ser entendidos como sendo critérios que servem como princípios que guiam a vida das pessoas, por exemplo, a relação com o outro, o papel social das pessoas, o individualismo, entre outro. Valores Sociais Os valores sociais podem ser entendidos como sendo os valores pessoais compartilhados por uma sociedade. De acordo com Lacey (1998), os valores sociais se atrelam a uma sociedade na medida em que são constantemente e consistentemente manifestados, e são evidenciados nas leis, nas políticas e nos programas sociais. Schwartz e Ros (1995, p. 93) consideram os valores sociais como sendo “ideias abstratas compartilhadas sobre o que é bom, desejável e correto em uma sociedade ou em um 3 Neste trabalho, adotaremos a perspectiva proposta por Durand (2007) e utilizaremos a palavra ética como sendo sinônima de moral. Maiores esclarecimentos ver tópico Valores Éticos. 27 grupo cultural determinado”. Sendo assim, os valores sociais variam de acordo com a história, cultura e crenças de um povo, e seus elementos constituem padrões na forma de pensar, agir e se manifestar das pessoas. Podemos citar como sendo exemplos de valores sociais o compromisso com as questões públicas, a democracia, a liberdade e a atitude de construção do tecido social buscando a convivência pacífica entre os diferentes atores sociais. Valores Éticos Definir ética é algo bastante complexo, uma vez que na história da humanidade a ética sempre esteve relacionada com os comportamentos humanos voltados para questões políticas, sociais, culturais, existenciais e filosóficas, sofrendo inúmeras transformações no decorrer da história (LIMA, 2007). De acordo com Durand (2007) a etimologia da palavra ética origina-se do grego ethos que designa os costumes, as regras de comportamento, as condições de vida. Já a palavra moral vem do latim mos-mores e remete ao agir humano e às escolhas existenciais. Atualmente muitos autores assumem a palavra ética como sinônima de moral, conforme indica Descombes (1998, sem paginação): Muitos pensadores estabelecem uma diferença entre ética e moral. Eles não pretendem de modo algum fundar essa distinção em considerações etimológicas ou históricas. Sabe-se que os autores latinos têm utilizado o adjetivo moralis para traduzir o grego ethikos. E até recentemente na história da filosofia – até Kant inclusive – ninguém parece ter tido a ideia de usar essas palavras com sentidos opostos (DESCOMBES, 1998, sem paginação). Desse modo, a ética, como sinônimo de moral, pode ser entendida como: 1. O questionamento, a reflexão sobre as normas ou as regras de comportamento, a análise dos valores, a reflexão sobre os fundamentos da obrigação ou dos valores. 2. A sistematização da reflexão. Fala-se comumente da ética de Kant ou de Heidegger. Vários teólogos protestantes empregaram a expressão “ética cristã” para falar ao mesmo tempo dos grandes valores evangélicos e de sua tradução na vida cotidiana. 28 3. A prática concreta e a realização dos valores. Por exemplo, qualifica-se um comportamento como conforme ou contrário à ética (DURAND, 2007, p. 72). Neste trabalho, adotaremos a perspectiva proposta por Durand (2007) e utilizaremos a palavra ética como sendo sinônima de moral. Desse modo, a ética deve ser entendida como toda atitude que se baseie em um sistema de valores e norteiem as opções dos indivíduos. No Capítulo 2, desenvolveremos uma discussão mais ampliada acerca dos valores éticos que adotaremos nas discussões presentes neste trabalho. Valores cognitivos Entendemos como valores cognitivos os critérios utilizados pela comunidade científica em suas escolhas e decisões. Em outras palavras, podemos entender os valores cognitivos como sendo um conjunto de características que as teorias e hipóteses científicas devem ter para serem aceitas pela comunidade científica (LACEY, 2003). Destacamos que de acordo com a concepção tradicional de ciência, esses valores são entendidos como superiores e desconectados dos valores pessoais e sociais. Neste tópico nos limitaremos a explicar o conceito de valor cognitivo, para, no tópico seguinte, discutirmos essa relação entre valores cognitivos e não cognitivos. Lacey (1998) apresenta em seu trabalho uma lista de valores cognitivos elaborada a partir de uma ampla variedade de fontes. Esses valores resumem-se em: 1) Adequação empírica; 2) Consistência; 3) Simplicidade; 4) Fecundidade; 5) Poder Explicativo; e 6) Verdade. Para o autor, um item para ser incluído nesta lista deve satisfazer duas condições: 1) que seja necessário para explicar (mediante reconstrução racional) as escolhas de teoria efetivamente realizadas pela comunidade científica; e 2) que sua significação cognitiva ou racional seja bem sustentada (LACEY, 1998, p. 65). 29 Desse modo, entendemos como valores cognitivos os critérios utilizados para amparar as decisões tomadas pela comunidade científica. A seguir, apresentamos uma discussão que relaciona essas decisões com os valores pessoais, sociais, éticos e científicos. 1.2 Será a Ciência isenta de valores pessoais, sociais e éticos? Antes de iniciarmos essa discussão, é importante destacarmos que as decisões tomadas nas práticas científicas ocorrem em três momentos-chave – M1: a adoção da estratégia, M2: a aceitação das teorias e M3: a aplicação do conhecimento científico. Utilizaremos a definição de M1 e M2 proposta por Fernandez (2006): Em M1 são determinadas as prioridades, a metodologia e a orientação da pesquisa [...] Uma vez definida a estratégia e empreendida a pesquisa, em M1, o próximo passo é o momento de aceitação das teorias (M2) (FERNANDEZ, 2006, p. 156). Respaldando-se nos valores cognitivos listados anteriormente, em M2 as teorias são aceitas ou rejeitadas, e em M3 os novos conhecimentos são aplicados com base no conhecimento aceito em M2. Partindo-se do pressuposto de que os únicos valores a influenciarem M1 e M2 são os valores cognitivos, teremos, então, um M3 isento de quaisquer valores não cognitivos (pessoais, sociais, éticos, etc.). Em outras palavras, entendemos que M3 “consistindo em desdobramentos de conhecimentos básicos que foram imparcialmente obtidos (em M2) seriam neutros com relação a quaisquer perspectivas de valor social que pudessem ser defendidas” (FERNANDEZ, 2006, p. 157), isto é, teremos um M3 isento de valores não cognitivos. De acordo com a concepção tradicional, a ciência moderna é livre de valores4, ou seja, as decisões científicas são tomadas apoiando-se exclusivamente em critérios cognitivos, como 4 Aqui, o uso da palavra “valores” refere-se a valores não cognitivos. 30 rigor metodológico, precisão, clareza, etc., sem aos outros valores. Nesta perspectiva, então, a ciência é tida como algo desconexo dos valores sociais e culturais, não tomando partido e não servindo a nenhum interesse específico. Apesar de bastante disseminada, essa ideia de que a ciência é isenta de valores tem sido fortemente discutida nas últimas décadas. Segundo grupos que criticam essa posição (por exemplo, AULER e DELIZOICOV, 2001; GONZALEZ et al., 1996; BAZZO et al., 2003; LINSINGEN, 2007), a atividade científica necessita ser entendida como parte de um contexto histórico e cultural. Morin (1999) afirma que apesar do desenvolvimento científico e tecnológico ser responsável por inúmeros progressos nos últimos anos, é impossível ignorarmos os problemas advindos destes novos conhecimentos. Desse modo, é fundamental percebermos a Ciência como uma atividade que, além de produzir conhecimentos, gera consequências, muitas vezes indesejáveis. Um autor que se destaca nesta discussão é o australiano Hugh Lacey, ao desenvolver uma série de críticas à separação da ciência e dos valores sociais. Em seus trabalhos, especialmente em suas duas obras principais - Valores e Atividade Científica, de 1998, e Is Science Value Free?, de 1999 – Lacey propõe um modelo segundo o qual toda produção científica possui, intrinsecamente, valores sociais. Esse modelo pode ser melhor entendido como uma combinação de três pressupostos: a imparcialidade, a neutralidade e a autonomia. A seguir, explicaremos cada uma dessas teses. 1.3 As teses da imparcialidade, neutralidade e autonomia. Em Valores e Atividade Científica (1998), Lacey apresenta três teses (idealizadas) que fundamentam a concepção de que os valores (exceto os cognitivos) não influenciam as atividades científicas. São elas: a imparcialidade, a neutralidade e a autonomia. 31 A tese da imparcialidade pode ser assim definida: A imparcialidade é a concepção de que as teorias são corretamente aceitas apenas em virtude de manifestarem os valores cognitivos em alto grau, segundo os mais rigorosos padrões de avaliação e com respeito a uma série apropriada de dados empíricos. Embora não apresente aqui o detalhamento dessa concepção, devo observar que a imparcialidade implica que servir a determinados valores ou ser consistente com as pressuposições do esquema de algum valor particular é irrelevante para a legítima aceitação de uma teoria (LACEY, 1998, p. 133). Assim, o argumento da imparcialidade defende que as decisões científicas são tomadas apoiando-se exclusivamente em critérios cognitivos, como rigor metodológico, precisão, clareza, etc., sem recorrer aos valores sociais e morais. A neutralidade da ciência também compõe a perspectiva tradicional de ciência, e pode ser assim entendida: A neutralidade estabelece que as teorias não implicam nenhum enunciado sobre valores e, em princípio, podem ser adotadas em práticas realizadas no interior de qualquer esquema de valor; além disso, a aceitação de uma teoria não tem qualquer implicação para os valores fundamentais adotados (LACEY, 1998, p. 133). Ou seja: (...) a neutralidade afirma que uma teoria poderia ser aplicada, em princípio, a práticas pertinentes a qualquer perspectiva de valor e não serve de modo especial aos interesses de nenhuma perspectiva de valor particular (LACEY, 1998, p. 14). Nesta perspectiva, então, a ciência é tida como algo desconexo dos valores sociais e culturais, não tomando partido e não servindo a nenhum interesse específico. O pressuposto da autonomia propõe, inicialmente, uma distinção entre a pesquisa científica básica e a pesquisa aplicada. Segundo essa concepção, a pesquisa básica, pelo fato de possuir como meta o “conhecimento pelo conhecimento”, isentando-se da preocupação de como este conhecimento será aplicado, deve ser patrocinada por instituições autônomas, que não exerçam nenhuma interferência na produção destes conhecimentos. Dentre as três teses (imparcialidade, neutralidade e autonomia), Lacey (1998) defende que a imparcialidade, por tratar-se de uma tese pertinente à aceitação de teorias, é a única que pode ser preservada. Nas palavras do autor: 32 Há vários sentidos para “aceitar (escolher) uma teoria T”, entre os quais distingo os seguintes: 1) manter provisoriamente T; 2) comprometer-se com a agenda de pesquisas estruturada por T; 3) subscrever que T seja mais bem confirmada do que suas atuais rivais; 4) subscrever que T seja incluída no estoque de conhecimentos ou de crenças racionalmente aceitáveis, ou ainda de itens que (segundo os cânones metodológicos disponíveis) não requerem investigações suplementares (visto que investigações suplementares acarretariam adicionais replicações daquilo que já foi muitas vezes replicado); 5) adotar T; aplica-la na prática. Na imparcialidade, conforme a enunciei, “aceitar” é usado no quarto sentido, concernente à aceitação de T sempre em relação a um domínio ou domínios D. T é aceita em relação a D. Os sentidos 1), 2) e 5), evidentemente , não se aplicam à imparcialidade. Os valores não cognitivos desempenham um papel na prática e na aplicação da ciência. A concepção de que a ciência é livre de valores nega esse fato óbvio (LACEY, 1998, p. 76) Ao aceitar esses três princípios, assumimos a produção de um conhecimento científico completamente isento de valores sociais ou morais, ou, nas palavras de Lacey (1998), uma concepção de “senso comum”. No entanto, compartilhamos da concepção de Lacey que propõe que os valores não cognitivos, ou seja, sociais, pessoais e éticos, influenciam a atividade científica: Valores sociais, éticos e pessoais podem legitimamente afetar não apenas decisões feitas nos momentos não centrais, mas também a dinâmica e a textura das práticas científicas: quando, onde, e por quem são conduzidas, quão rápida e amplamente são desenvolvidas, e se são acolhidas ou restringidas em determinadas sociedades (LACEY, 2008, p. 84). Apesar da discussão de que os valores influenciam as atividades científicas, consideramos pertinente destacar que isso não significa defender que os produtos teóricos resultantes dessas atividades não possuam credenciais cognitivas corretas. Conforme afirma Lacey (1998), os valores cognitivos exercem papel fundamental no momento da aceitação de teorias (M2). Mas, como os valores sociais apresentam importância central (e legítima) no centro da atividade científica, sua proposta baseia-se em expandir a gama de valores que influenciam o momento de escolha das estratégias científicas, a fim de atenuar a importância daqueles que já existem (FERNANDEZ, 2006). 33 1.4 Quais as possíveis consequências de uma concepção de Ciência imparcial, neutra e autônoma? A concepção de Lacey propõe uma ciência imersa em um contexto social e histórico, uma vez que é desenvolvida por indivíduos que fazem parte de uma realidade cultural. Enxergar a atividade científica como isenta desses valores é mergulhar numa concepção reducionista que aceita que tudo o que é “comprovado cientificamente” é “verdadeiro”. Lacey (1998) afirma que a partir do século XVII desenvolveu-se um pensamento de que a Ciência faz parte do “patrimônio da humanidade”. Entretanto, as recentes crises ambientais, o desenvolvimento científico para fins militares e a subordinação da ciência aos interesses econômicos nos levam a questionar qual a contribuição real da ciência para o bem estar humano e para manter os valores éticos5. Shiva (1993) afirma que a construção dos conhecimentos científicos e os sistemas políticos e econômicos estão fortemente arrolados, uma vez que a ciência está associada a um conjunto de valores. Sendo assim, pode-se considerar importante que os indivíduos tenham conhecimento dos conceitos que envolvem determinados temas para apoiarem ou não certas políticas que envolvem os assuntos. De acordo com alguns trabalhos que discutem esse assunto (AULER e DELIZOICOV, 2001; GONZALEZ et al., 1996; BAZZO et al., 2003; LINSINGEN, 2007) constatamos que a concepção de uma Ciência isenta de valores e apoiada na perspectiva da imparcialidade, neutralidade e autonomia, pode desencadear o desenvolvimento de mitos6 científicos. Entre esses mitos, destacamos o salvacionismo, a essencialidade e o reducionismo. Auler e Delizoicov (2001) discutem em seus trabalhos o mito do salvacionismo, que aparece relacionado com o trabalho científico e, em particular, aos avanços da Ciência e 5 Sendo os valores éticos entendidos, para Lacey, como sendo o bem estar de todas as pessoas de todos os lugares do mundo, e que pode ser afetado por nossas ações. 6 Entendemos como “mito científico” algumas concepções isentas de reflexões críticas. Esses mitos foram encarados como manifestações da concepção de isenção de valores na atividade científica. Maiores detalhes consultar Auler e Delizoicov (2001). 34 Tecnologia (CT). Segundo a perspectiva salvacionista, a CT sempre são desenvolvidas para solucionar os problemas da humanidade. Percebemos que nesta concepção está arraigada uma concepção linear de progresso7. Entretanto, o desenvolvimento CT não pode ser considerado livre de valores e interesses políticos e econômicos. Nas palavras de Auler e Delizoicov (2001, p. 4): (...) o desenvolvimento científico-tecnológico não pode ser considerado um processo neutro que deixa intactas as estruturas sociais sobre as quais atua. Nem a Ciência e nem a Tecnologia são alavancas para a mudança que afetam sempre, no melhor sentido, aquilo que transformam. O progresso científico e tecnológico não coincide necessariamente com o progresso social e moral (SACHS, 1996 apud AULER E DELIZOICOV, 2001, p. 4). A ideia de que os problemas hoje existentes, e os que vierem a surgir, serão automaticamente resolvidos com o desenvolvimento cada vez maior da CT, estando a solução em mais e mais CT, está secundarizando as relações sociais em que essa CT é concebida (AULER E DELIZOICOV, 2001, p. 4). Essa concepção equivocada, que se baseia no discurso de que a CT é desenvolvida para beneficiar as maiorias, faz com que a sociedade espere que a solução de seus problemas venha somente do desenvolvimento científico, esquecendo-se, no entanto, das dimensões históricas, sociais, econômicas e culturais. De acordo com Auler e Delizoicov (2001), a CT podem, sim, contribuir significativamente no campo técnico, no entanto, existem outras dimensões que devem ser consideradas. Por entender que a ciência é algo desenvolvido necessariamente para resolver os problemas da sociedade e melhorar a qualidade de vida das pessoas, a concepção salvacionista da ciência acaba por culminar em uma perspectiva essencialista. A essencialidade, outro mito científico, prevê que o trabalho científico é absolutamente necessário e indispensável para a sobrevivência da espécie humana. Bazzo et al. (2003) discutem em seu trabalho que essa essencialidade é resultado do modelo linear de desenvolvimento, que postula que o bem estar social é uma consequência 7 A concepção linear de progresso propõe que o desenvolvimento científico promove o desenvolvimento tecnológico, que implica em desenvolvimento econômico, promovendo, portanto, desenvolvimento social. Essa concepção pode ser assim representada: DC → DT → DE → DS. Maiores detalhes consultar González et al. (1996). 35 automática do progresso científico. Sendo assim, a ciência é tida como algo essencial para que haja bem estar social, e as soluções para os problemas, sejam eles de cunho econômico, político, ambiental, etc., estariam apenas no aumento da produção científica e tecnológica (LINSINGEN, 2007). Auler e Delizoicov (2001) discutem que essas perspectivas, que desconsideram que a ciência faz parte de um conjunto cultural, sendo influenciada pelo período histórico em que está inserida, mostram-se bastante reduzidas, uma vez que ignoram o fato de que a atividade científica é praticada por indivíduos imersos em um contexto social. Neste mesmo trabalho, os autores apresentam uma discussão interessante sobre as concepções do desenvolvimento científico e tecnológico. São elas: a concepção reducionista e a concepção ampliada. Segundo os autores: A reducionista, em nossa análise, desconsidera a existência de construções subjacentes à produção do conhecimento científico-tecnológico, tal como aquela que leva a uma concepção de neutralidade da Ciência-Tecnologia. A perspectiva ampliada, (...) busca a compreensão das interações entre Ciência-Tecnologia- Sociedade (CTS), associando o ensino de conceitos à problematização desses mitos (AULER E DELIZOICOV, 2001, p. 4). Sendo assim, uma concepção reducionista do desenvolvimento científico ignora os valores presentes na Ciência, culminando numa concepção apenas prática e utilitarista do conhecimento científico e tecnológico. Nesta perspectiva, os valores sociais, históricos e culturais não são contemplados, culminando numa concepção bastante ingênua e limitada da realidade. Segundo Auler e Delizoicov (2001), espera-se que os cidadãos sejam capazes de participar ativamente das decisões sobre CT, de forma democrática, questionando a ideologia dominante do desenvolvimento tecnológico. Entretanto, para que isto ocorra, é preciso que os indivíduos desenvolvam uma concepção ampliada do desenvolvimento científico, não se limitando ao simplismo observado na concepção reducionista. 36 Entendemos que a pluralidade de novas compreensões acerca da natureza da ciência é imprescindível para balizar as escolhas dos indivíduos. Aceitar a ciência como “verdade absoluta” e como o único conhecimento verdadeiro, é mergulhar numa perspectiva reducionista, uma vez que a ciência não é uma fonte soberana de um conhecimento inquestionável. 37 Questões relacionadas à produção do conhecimento científico, e, em especial, ao desenvolvimento de tecnologias ligadas à área de manipulação gênica, envolvem aspectos políticos, sociais, econômicos, científicos, religiosos ou legais e acabam convergindo para as salas de aula, fato que amplia a importância da área educacional nas questões éticas (RAZERA, 2000). Durante a docência o professor irá deparar-se com diversas questões que envolvem aspectos éticos e ele deverá estar preparado para lidar com esse tipo de situação. Sendo assim, consideramos importante que nos cursos de Licenciatura se construam bases concretas que possibilitem ao professor enfrentar essa problemática na sala de aula. Iniciaremos este capítulo apresentando uma breve definição acerca dos valores bioéticos que discutiremos neste trabalho. Posteriormente, realizaremos uma discussão acerca das relações entre estes valores e a formação docente. 2.1 Breve histórico da Bioética e a Corrente Principialista. A Bioética, que pode ser entendida como “o exame moral interdisciplinar e ético das dimensões da conduta humana na área das ciências da vida e da saúde” (POST, 2004, p. 11; REICH, 1994), é bastante recente, sendo internacionalmente reconhecida em 1971, por meio de uma publicação do norte americano Van Rensselaer Potter (GARRAFA, 2005, p. 9). Em seu trabalho intitulado “Bioethics: Bridge to the Future”, Potter solicita a criação de uma nova Ciência, que faça uma intersecção entre o saber biológico e os valores humanos, uma vez que, para ele, há um constante desenvolvimento do conhecimento científico, em especial na 38 Biologia, mas há um atraso em relação às reflexões necessárias a sua utilização. Durand (2007, p. 20) explica: Espantado com o desenvolvimento exponencial do conhecimento científico (especialmente na Biologia) e com o atraso da reflexão necessária a sua utilização, Van Rensselaer Potter pede a criação de uma nova ciência – uma ciência da sobrevivência – que se baseia na aliança do saber biológico (bio) com os valores humanos (ética). Se a geração atual é marcada pela preocupação com a sobrevivência, explica ele, é por causa da separação existente entre nossas duas culturas, a cultura científica e a cultura clássica (as humanidades). As duas se desenvolveram separadamente, sem se influenciar. É urgente estabelecer uma aliança entre elas (bio-ética). O saber dessa aliança será da ordem da sabedoria, e constituirá uma ponte rumo ao futuro (DURAND, 2007, p. 20). Garrafa (2006, p. 130) explicita que “a Bioética foi criada, pelo menos inicialmente, para defender os indivíduos mais frágeis nas relações entre profissionais de saúde e seus pacientes ou entre empresas/institutos de pesquisa e os cidadãos”. Esta necessidade pode ser entendida se analisarmos casos clássicos de pesquisas abusivas envolvendo seres humanos. Podemos citar, por exemplo, o chamado “Caso Tuskegee”, ocorrido no estado do Alabama, nos Estados Unidos. Entre 1940 e 1972, quatrocentos indivíduos negros portadores de sífilis foram mantidos sem tratamento para que pudessem ser obtidos dados referentes ao desenvolvimento natural da doença. Outro caso que citamos como exemplificação ocorreu em 1960, quando uma população de indígenas Ianomâmis foi contaminada propositalmente durante uma campanha de vacinação com um microrganismo que produz sintomas semelhantes aos do sarampo. O objetivo desta pesquisa, que foi desenvolvida por uma equipe de geneticistas americanos, era estudar as reações desta população, que permaneceram sem tratamento8. Diante de acontecimentos como os mencionados, a Bioética “estendeu-se, como formulação normativa, da pesquisa terapêutica comum, instituindo-se assim o que se entende hoje como princípios fundamentais da Bioética, considerada na sua significação ampla de ética da vida” (LEOPOLDO E SILVA, 2002, p. 40). Os quatro princípios básicos da Bioética, 8 Os casos apresentados foram retirados de uma página virtual, de autoria do professor José Roberto Goldim, e estão disponíveis em: http:// http://www.bioetica.ufrgs.br 39 que constituem uma corrente denominada principialismo, são: autonomia, justiça, beneficência e não maleficência. Explicitamos o conceito de autonomia, na perspectiva principialista, nas palavras de Ferrer e Álvarez (2005, p. 123): Embora o conceito de autonomia tenha sua origem na teoria política, estendeu-se às pessoas individuais e é essa aplicação a que interessa em nosso contexto. A autonomia pessoal refere-se à capacidade que têm as pessoas para se autodeterminar, livres tanto de influências externas que as controlem, como de limitações pessoais que as impeçam de fazer uma genuína opção, como poderia sê-lo a compreensão inadequada do objeto ou das circunstâncias da escolha. Isso significa que o respeito pela autonomia exige, ao menos, que o indivíduo tenha o direito a: “1) ter seus próprios pontos de vista, 2) fazer suas próprias opções e 3) agir em conformidade com seus valores e crenças pessoais” (FERRER E ÁLVAREZ, 2005, p. 125). O conceito de justiça pode ser entendido como: A justiça tem a ver com o que é devido às pessoas, com aquilo que de alguma maneira lhes pertence ou lhes corresponde. Quando a uma pessoa correspondem benefícios ou responsabilidades na comunidade, estamos diante de uma questão de justiça. A injustiça inclui uma omissão ou perpetração que nega a alguém ou lhe tira aquilo que lhe era devido, que lhe correspondia como coisa sua, seja porque lhe foi negado seu direito, seja porque a distribuição de encargos não foi equitativa (FERRER E ÁLVAREZ, 2005, p. 138). Podemos basear o princípio da justiça, portanto, no critério da igualdade, isto é, que pessoas iguais possuem o direito de receberem tratamento igualitário. O conceito de beneficência, conforme explicitam Ferrer e Álvarez (2005, p. 132), pode ser entendido como: (...) qualquer ação humana levada a cabo para beneficiar a outra pessoa. A beneficência está relacionada com a “benevolência” e com o princípio ético de beneficência. Por benevolência se entende o traço de caráter ou a virtude que dispõe a agir beneficamente em favor de outros, ao passo que o princípio da beneficência se refere à obrigação moral de agir para beneficiar os demais. 40 Por fim, entende-se o conceito de não maleficência como “a obrigação de não causar dano intencionalmente” (FERRER E ÁLVAREZ, 2005, p. 128), ou ainda pode ser interpretado como a obrigação de evitar o mal. Além destes quatro princípios, que fazem parte da corrente Bioética Principialista desde a sua fundação, outros princípios podem ser acrescentados ao realizar uma discussão com enfoque bioético. Entre eles, destacamos o princípio da precaução. Lacey (2006) discute em seu trabalho que as inovações tecnocientíficas sempre se associam a riscos. Sendo assim, precauções devem ser tomadas para que os possíveis danos sejam amenizados. O autor denomina esta atitude de princípio da precaução: As inovações tecnocientíficas vêm sempre acompanhadas de riscos. Em algumas situações, o conhecimento científico disponível não permite que se façam juízos definitivos acerca do caráter dos riscos, sua significância e a probabilidade de que causem sérios danos; entretanto, pode apoiar ou ser consistente com a plausibilidade (não alta confirmação) de conjecturas específicas de que uma inovação poderia (não necessariamente de que seja altamente provável) produzir danos possivelmente irreversíveis às pessoas, aos arranjos sociais ou à natureza. Nessas situações, o princípio de precaução (PP) recomenda tomar precauções especiais e, dependendo da condução de pesquisa apropriada sobre os riscos, adiar decisões finais acerca de se, e sob quais condições, implementar efetivamente a inovação (LACEY, 2006, p. 373). Isto é: O princípio de precaução recomenda que, antes de implementar as inovações tecnocientíficas, sejam tomadas precauções especiais e que se conduza pesquisa detalhada e de largo alcance sobre os riscos potenciais dessas inovações (LACEY, 2006, p. 373). Lacey (2006) discute nesse artigo que o princípio da precaução pode ser entendido como um ato de cautela em relação às aplicações dos conhecimentos científicos e tecnológicos produzidos. Ele prevê a incorporação de valores éticos no desenvolvimento científico, avaliando os riscos sociais e ambientais que podem ser decorrentes de determinadas atividades. Ignorar os riscos que podem surgir com a implementação de determinados produtos tecnocientíficos, acreditando que “nenhum risco é sério” ou que “a 41 ciência resolverá todos os problemas” é mergulhar numa concepção reducionista da atividade científica. Para Goldim (2002) o princípio da precaução, assim como os quatro princípios que compõe a corrente principialista, não deve ser encarado como uma barreira ao desenvolvimento científico, e sim, como uma proposta necessária para resguardar os interesses da sociedade como um todo. Admitir a real possibilidade de ocorrência de danos e a necessária avaliação destes malefícios, com base nos conhecimentos científicos disponíveis, é o verdadeiro desafio que está sendo feito a toda comunidade científica. 2.2 O Ensino de Bioética na formação de professores de Biologia. Um dos principais desafios que aparece na formação de professores de Ciências é a fusão entre os conteúdos científicos aprofundados e atualizados com concepções humanas que auxiliem seu futuro papel na formação crítica de seus alunos (LIMA et al., 2008). Devido à intensa produção científica e tecnológica no campo da Biologia, biólogos e professores de ciências estão cada vez mais se deparando com problemas bioéticos relacionados a conflitos entre os novos conhecimentos biológicos, as aplicações biotecnológicas e os valores bioéticos presentes na sociedade. Feijó et al. (2008, p. 11) e Barchifontaine (2006, p. 197) explicitam: As situações de conflito vivenciadas em nosso cotidiano provém, em parte, do grande desenvolvimento científico e tecnológico de nossa era. Nesse cenário, ganha espaço a Bioética, pois permite o diálogo multidisciplinar e a reflexão plural sobre essas situações conflitantes (FEIJÓ et al, 2008, p. 11). No cerne das preocupações da bioética estão os dilemas relacionados à saúde, à vida e a morte e o seu equacionamento diante das mudanças valorativas e culturais e os avanços tecnológicos e científicos, sem que sejam ultrapassados os princípios básicos da sociedade (BARCHIFONTAINE, 2006, p. 197). 42 Entendemos que o aumento considerável de informações relacionadas à Biologia, bem como as aplicações biotecnológicas destes conhecimentos aumentam significativamente a necessidade de que discussões bioéticas estejam presentes na formação dos licenciandos em Ciências Biológicas, possibilitando que, durante sua formação, o graduando possa desenvolver uma concepção menos equivocada da atividade científica e se sinta preparado para abordar temas que envolvem discussões bioéticas com seus futuros alunos. As Diretrizes Curriculares para os cursos de Licenciatura e Bacharelado em Ciências Biológicas estabelecem, na definição das habilidades e competências necessárias ao futuro profissional da área, que: [ao concluir o curso de graduação o biólogo deve ser capaz de] avaliar o impacto potencial ou real de novos conhecimentos/tecnologias/serviços e produtos resultantes da atividade profissional, considerando os aspectos éticos, sociais e epistemológicos (BRASIL, 2001, p. 5, grifo nosso). Propostas relacionadas à ética no processo de formação do ser humano aparecem também inclusas nos documentos oficiais referentes à formação básica, o que influencia diretamente a formação do licenciando em Ciências Biológicas. Os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (2000, p. 68, grifo nosso) propõe que um dos papéis da escola é proporcionar o desenvolvimento de competências que permitam aos estudantes “reconhecer e avaliar o caráter ético do conhecimento científico e tecnológico e utilizar esses conhecimentos no exercício da cidadania”. Da mesma forma, a Lei 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB), artigo 35, inciso III, determina que uma das finalidades do Ensino Médio será “o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico”. Sendo assim, o papel do professor vai além dos aspectos cognitivos, uma vez que ele deve dirigir metodologias ou estratégias que requerem conhecimentos mais específicos e 43 formais sobre valores éticos. Assim, entendemos que os projetos pedagógicos dos cursos de licenciatura devem ser elaborados de modo a permitir que os futuros professores desenvolvam uma concepção menos distorcida da atividade científica, podendo, posteriormente, discutirem com propriedade as questões éticas das novas tecnologias com seus futuros alunos. 2.3 O papel do discurso do professor nas discussões sobre valores. Os professores possuem papel significativo na formação de cidadãos, pois participam da vida dos alunos por alguns anos. Desta forma, o discurso do professor pode influir no pensamento dos estudantes sobre determinados conceitos, bem como na construção de alguns de seus valores e em sua concepção de ciência. Todo discurso tem um caráter ideológico e ao compreender seu significado o professor pode tentar evitar, ao menos minimamente, a transmissão implícita de valores. Segundo Fourez (1995, p. 189) as pessoas, em geral, veiculam suas ideologias de maneira inconsciente, ou seja, “as representações ideológicas por nós veiculadas existem independentemente de nossas intenções”. Sendo assim, para o autor, é imprescindível uma análise precisa para distinguir quais são os conteúdos ideológicos presentes em nossos discursos, a fim de podermos decidir se queremos ou não propagar essas ideologias. Fourez (1995, p. 179) chama de discurso ideológico “os discursos que se dão a conhecer como uma representação adequada do mundo, mas que possuem mais um caráter de legitimação do que um caráter unicamente descritivo”. Sendo assim: (...) considerar-se-á então que uma proposição é ideológica se ela veicula uma representação do mundo que tem por resultado motivar as pessoas, legitimar certas práticas e mascarar uma parte dos pontos de vista e critérios utilizados (FOUREZ, 1995, p. 179). Segundo o autor (FOUREZ, 1995) é possível distinguir dois tipos de discursos ideológicos: 44 - Discurso ideológico de Primeiro Grau: também chamado de normal, é tido como inevitável, e, portanto, aceitável e designa “as representações da construção das quais se pode ainda facilmente encontrar vestígios” (FOUREZ, 1995, p. 187). Seria nesse tipo de discurso que a prática científica construiria os seus conceitos. - Discurso ideológico de Segundo Grau: que, de acordo com as palavras do autor (FOUREZ, 1995, p. 187), é “profundamente manipulador ao apresentar como naturais opções que são particulares”, uma vez que este tipo de discurso representa uma ideologia cujos traços de sua construção não aparecem, ou seja, “a maior parte dos vestígios da construção foram suprimidos”. Sendo assim, os discursos ideológicos do primeiro grau são aceitáveis, uma vez que neles aparece a parcialidade de sua construção. Entretanto, os de segundo grau são inaceitáveis, pois restringem a liberdade das pessoas (FOUREZ, 1995). Fourez (1995) acredita ser impossível um discurso desprovido de ideologias, uma vez que todos os indivíduos possuem uma representação de mundo influenciada pelo meio social. Desta forma, entendemos ser indispensável no Ensino de Ciências uma reflexão acerca dos conteúdos ideológicos dos discursos, uma vez que “se lida diretamente com a transmissão de toda uma concepção ideológica de mundo” (RAZERA E NARDI, 2006, p. 60). Isto significa que a escola deve ser um lugar privilegiado para discussões acerca dos valores que influenciam a atividade científica, bem como as questões éticas que envolvem o desenvolvimento tecnológico. Os recentes desenvolvimentos biotecnológicos, ao mesmo tempo em que abriram novas perspectivas em campos como a saúde e o meio ambiente, proporcionaram vários dilemas bioéticos, entre eles o uso das células-tronco embrionárias (que se relaciona com a problemática do momento em que se inicia a vida, e, portanto, do quanto é lícito eliminar uma vida para salvar outra), os alimentos transgênicos (que apresenta uma série de questões ainda 45 pendentes, tanto na área ecológica, como a problemática da hibridação com plantas nativas, quanto na área da saúde, como a questão da toxicidade e da alergenicidade que não serão resolvidas apenas com a rotulação, e na área econômica, como a dependência dos produtores de um pequeno número de empresas), a reprodução assistida (e questões como a seleção de embriões em clínicas de fertilização), entre outros. Com o avanço das técnicas em manipulação gênica e as frequentes notícias relacionadas ao Projeto Genoma, é praticamente impossível que os estudantes não tenham conhecimento destas descobertas e permaneçam alheios às questões Bioéticas que envolvem estes assuntos (BONZANINI, 2005). Isso significa que a necessidade das escolas oportunizarem discussões sobre estes temas se torna cada vez maior, uma vez que decisões pessoais relacionadas aos resultados destas tecnologias são cruciais nas respostas da sociedade. As novas descobertas na área de ciência e tecnologia possibilitaram novas perspectivas em campos como do meio ambiente e da saúde. Entretanto, vale salientar que, para que se possa realizar uma discussão efetiva sobre a aplicabilidade e o desenvolvimento das novas tecnologias, é importante que se tenha claro quais os valores que influenciam a atividade científica9. Concepções distorcidas da ciência, ou seja, conectadas a pressupostos como o salvacionismo, o essencialismo, a neutralidade, a autonomia, a imparcialidade e o reducionismo podem culminar em tomadas de decisões desponderadas e inconsequentes, que muitas vezes ignoram os princípios básicos da Bioética. Entendemos que a sociedade precisa participar das discussões sobre estas novas tecnologias, sendo capaz de opinar com responsabilidade sobre questões tanto de interesse pessoal como coletivo. Para isso as instituições universitárias voltadas para a formação de professores devem assumir os desafios postos por essa nova abordagem Bioética, uma vez 9 Discussões acerca dos valores presentes na atividade científica encontram-se no Capítulo 1. 46 que o professor é um agente humano que na sala de aula precisará tomar decisões que podem modificar o modo de pensar de seus alunos e da sociedade. 47 Neste capítulo detalharemos a metodologia utilizada no presente estudo. Para melhor compreensão do plano da investigação, dividimos os procedimentos metodológicos em seis etapas: 1) a caracterização do estudo; 2) a amostra envolvida; 3) a elaboração do instrumento de coleta de dados; 4) a validação do instrumento de coleta de dados; 5) a análise estatística e 6) interpretação dos dados estatísticos. Enfatizamos que, anteriormente ao início deste trabalho, o projeto de pesquisa inicial foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa (Anexo F). Na sequência, apresentamos a descrição detalhada de cada uma destas etapas. 3.1 Caracterização do estudo. Para que pudéssemos analisar os dados de um modo mais amplo, entendemos que a melhor opção para este estudo seria a combinação de diferentes métodos de análise dos resultados, conforme proposto pelo projeto europeu de investigação “Biology, Health and Environmental Education for better Citizenship”10 e por CUNHA (2008)11. Desse modo, optamos por utilizar técnicas dos métodos quantitativos, como alguns tratamentos de dados estatísticos, pois isto nos permitiria um direcionamento maior das questões de investigação. Segundo Grácio e Garrutti (2005) atualmente faz-se necessária a superação da dicotomia das abordagens qualitativa e quantitativa. Além disso, é preciso aproximar a área de 10 O Projeto BIOHEAD-CITIZEN assume que temas como Biologia, Saúde e Educação Ambiental diferem de um país para outro. Com o propósito de analisar opiniões ou reações dos professores acerca de diversos assuntos relacionados à evolução, à saúde e ao ambiente e buscando-se identificar a possível influência dos valores e das práticas sociais de referência nas respostas obtidas, foi construído e validado um instrumento de coleta de dados, baseado na escala do tipo Likert (detalhamentos desta escala vide tópico 3.3.1). Destacamos que os trabalhos originados a partir do projeto demonstram as potencialidades que a análise estatística utilizada fornece para a interpretação dos dados obtidos. 11 Assim como no Projeto BIOHEAD-CITIZEN, CUNHA (2008) também fez uso da análise estatística para a análise dos seus dados. Visando a busca de subsídios para a introdução do enfoque CTS no Ensino de Ciências, o autor desenvolveu e validou uma escala do tipo L ikert. Após a aplicação do instrumento em 250 indivíduos, foi desenvolvida uma análise multivariada para a interpretação dos dados. 48 Educação com a quantificação, pois isto possibilita uma concepção mais completa dos problemas que encontramos em nossa realidade. De acordo com os autores, “as quantificações fortalecem os argumentos e constituem indicadores importantes para análises qualitativas” (GRÁCIO E GARRUTTI, 2005, p. 119). Sendo assim: (...) destacamos a relevância da complementaridade entre as tendências que orientam as atuais pesquisas, para a resolução de problemas de diversas naturezas. Nesse sentido, no presente trabalho, consideramos que também no âmbito educacional deve haver a complementaridade entre os enfoques metodológicos para que se possa alcançar resultados de pesquisa mais amplos e globais (GRÁCIO E GARRUTTI, 2005, p. 120). Gil (1999, p. 35) também expõe que “os procedimentos estatísticos fornecem considerável reforço às conclusões obtidas”, uma vez que apresentam razoáveis graus de precisão, tornando-os bastante aceitos entre os pesquisadores. Destacamos que neste trabalho, ao utilizarmos os métodos estatísticos, não pretendemos, em momento algum, generalizar as amostras a um universo maior. O objetivo deste uso foi direcionar as questões de investigação, identificando, entre os dados obtidos, quais eram as variáveis mais importantes. Além disso, a análise estatística nos permite validar o instrumento de coleta de dados, tornando os resultados mais confiáveis. 3.2 Sujeitos da Pesquisa. Participaram da pesquisa 118 universitários, divididos em três grupos: estudantes do curso de Licenciatura em Ciências Biológicas (LCB); estudantes do curso de Bacharelado em Ciências Biológicas (BCB) e estudantes do curso de Licenciatura em Letras (LL). O foco deste trabalho são os estudantes de Licenciatura. No entanto, decidimos aplicar o instrumento nos alunos dos cursos de Bacharelado em Ciências Biológicas e Letras para podermos comparar o padrão de respostas destes estudantes com os licenciandos, uma vez que os estudantes de Bacharelado não possuem em sua grade curricular disciplinas pedagógicas, 49 enquanto que os estudantes de Letras não tiveram, em sua graduação, disciplinas relacionadas à área de Ciências Biológicas. Todos os estudantes que participaram desta pesquisa são provenientes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), no entanto, pertencem a Campi diferentes. Os estudantes do curso de Licenciatura em Ciências Biológicas (LCB) que participaram desta pesquisa são provenientes do Campus de Bauru – SP. Esta instituição foi escolhida devido à facilidade de acesso a estes graduandos, uma vez que eles pertencem à mesma instituição que esta pesquisa foi desenvolvida. Os estudantes do curso de Bacharelado em Ciências Biológicas (BCB) são provenientes do Campus Experimental do Litoral Paulista, localizado na cidade de São Vicente – SP. Este Campus foi escolhido pelo fato de ser o único que possui, dentre todos os outros cursos de Ciências Biológicas, estudantes que cursaram somente a modalidade “Bacharelado”, não tendo contato, portanto, com as disciplinas pedagógicas presentes na modalidade “Licenciatura”. Por fim, os estudantes do curso de Licenciatura em Letras (LL) participantes desta pesquisa são provenientes do Campus de Araraquara – SP. Este Campus foi escolhido, dentre outros que apresentam este curso, devido a facilidade de acesso aos estudantes e a menor distância geográfica. A caracterização da amostra pode ser verificada no Quadro 1. 50 As informações necessárias para que pudéssemos realizar esta caracterização foram obtidas a partir do instrumento de coleta de dados aplicados, e serão utilizadas apenas para nos fornecer uma caracterização geral dos participantes. Para poderem participar da pesquisa, os estudantes deveriam estar no último ano de um curso de formação inicial. Esse critério foi utilizado porque partimos do pressuposto que alunos do último ano estão cursando as últimas disciplinas de sua graduação, e, portanto, deveriam estar preparados para exercerem suas profissões. Os cursos foram selecionados do seguinte modo: a) Licenciatura em Ciências Biológicas: tendo em vista a necessidade da participação da população nas escolhas éticas e o papel do professor no processo de formação dos cidadãos, resolvemos analisar qual a concepção de ciência e as percepções dos alunos de Quadro 1: Caracterização da amostra. Amostra LCB BCB LL TOTAL Número de respondentes 42 37 39 118 SE XO (% ) Feminino Masculino 83,3 16,7 67,6 32,4 89,7 10,3 80,5 19,5 Idade Média 23,0 22,2 22,3 22,5 RE LI GI ÃO (% ) Agnóstico/Ateu Católico Protestante Outro Não respondeu 16,7 47,6 0,0 19,0 16,7 36,1 27,8 11,1 19,4 5,6 10,3 59,0 12,8 15,4 2,5 20,5 45,3 7,7 17,9 8,6 51 Licenciatura em Ciências Biológicas acerca das questões bioéticas12 que permeiam os avanços tecnológicos e científicos. Durante os anos de graduação os estudantes de Licenciatura em Ciências Biológicas tiveram (ou ao menos deveriam ter tido) contato com diversas atividades e rotinas nos laboratórios, além de se aprofundarem em conteúdos específicos desta ciência. Além disso, por estarem terminando um curso de formação de professores, uma série de disciplinas filosóficas e pedagógicas foi ministrada a estes estudantes. Desse modo, consideramos significativo questionarmos quais as concepções que estes estudantes apresentam em relação a atividade científica. A matriz curricular do curso de Licenciatura em Ciências Biológicas compõe o Anexo A. b) Bacharelado em Ciências Biológicas: Durante a graduação, semelhante aos estudantes do curso de Licenciatura, os alunos do Bacharelado tiveram contato com disciplinas de conteúdos específicos das diferentes áreas que compõe as Ciências Biológicas, além de participarem de atividades laboratoriais que exigem experimentações e resultados quantificáveis. Entretanto, diferentemente do grupo anterior, os respondentes que compõem este grupo não tiveram, durante sua formação, contato com as disciplinas pedagógicas, apenas uma pequena carga horária de disciplinas filosóficas13. Assim, a decisão por levantar as concepções dos estudantes do curso de bacharelado ocorreu com o objetivo de comparar o padrão de respostas deste grupo com o grupo formado pelos estudantes de Licenciatura, analisando, então, qual a influência que as disciplinas pedagógicas e filosóficas podem ter nas decisões e concepções dos indivíduos. 12 Quando utilizamos o termo “questões bioéticas” estamos considerando a vertente exposta no Capítulo 2. 13 O curso de Bacharelado em Ciências Biológicas possui em sua matriz curricular apenas uma disciplina filosófica, totalizando 4 créditos. Em contrapartida, o curso de Licenciatura em Ciências Biológicas apresenta 60 créditos de disciplinas pedagógicas e filosóficas. 52 A matriz curricular do curso de Bacharelado em Ciências Biológicas compõe o Anexo B. c) Licenciatura em Letras: a decisão por levantar as concepções dos estudantes do curso de letras objetivou comparar o padrão de respostas destes estudantes com os dois grupos especificados anteriormente. Os respondentes que compõem este grupo, diferente dos anteriores, não tiveram durante sua graduação quaisquer contatos com atividades e rotinas nos laboratórios de Biologia, não trabalharam conteúdos específicos desta ciência, e não têm em sua matriz curricular discussões acerca da filosofia da ciência, epistemologia da ciência e história da ciência. Outros cursos que não pertencem à área de Ciências da Natureza, como Pedagogia, Geografia, Educação Artística, etc. poderiam ter sido escolhidos, entretanto, optamos pelos estudantes de Letras do Campus da UNESP de Araraquara pela facilidade de acesso aos respondentes. A matriz curricular do curso de Licenciatura em Letras compõe o Anexo C. 3.3 Elaboração do Instrumento de Coleta de Dados. Durante o processo de desenvolvimento deste trabalho, não encontramos na literatura pertinente nenhum instrumento de coleta de dados que nos permitisse relacionar e obter as concepções que buscávamos analisar. Sendo assim, optamos pela construção do nosso próprio instrumento de coleta. 3.3.1 Caracterização do instrumento Como instrumento de coleta de dados optamos pela construção de uma escala do tipo Likert: Definimos uma escala como uma medida composta construída com base numa estrutura de intensidade entre os itens da medida. Na construção de escalas, os padrões de resposta entre vários itens são ponderados, enquanto na construção de índices as respostas individuais são ponderadas e os escores independentes somados. 53 Por esta definição, o método de medição desenvolvido por Rensis Likert, chamado escalonamento Likert, representa uma maneira mais sistemática e refinada de construir índices (BABBIE, 2003, p. 232). Basicamente, essa escala consiste numa série de afirmações, em que o respondente deve expressar seu grau de concordância ou discordância de cada afirmação, sendo que cada posição representa um valor numérico. Segundo Babbie (2003, p. 232): O escalonamento Likert também se presta a um método bastante direto de construção de índices. Já que se usam categorias idênticas de resposta para os vários itens que medem uma variável, cada um desses itens pode ser ponderado de maneira uniforme. Com cinco categorias de respostas, escores de 0 a 4 ou 1 a 5 podem ser atribuídos, levando em conta a “direção” do item (por exemplo, atribuir o escore 5 a “concordo fortemente” nos itens positivos e a “discordo fortemente” nos itens negativos). Cada respondente recebe então um escore geral, representando a soma dos escores recebidos pelas respostas aos itens individuais (BABBIE, 2003, p. 232). Para este instrumento utilizamos uma escala com quatro variantes, sendo: 1) concordo plenamente, 2) concordo, 3) discordo, 4) discordo plenamente. Optamos pela retirada da alternativa central “não concordo nem discordo”, presente em grande parte das pesquisas que utilizam esta escala, a fim de se evitar a tendência central nas respostas, e forçar o respondente a se posicionar de modo efetivo. A retirada desta alternativa tem sido defendida por muitos autores, uma vez que sua interpretação pode ser bastante ambígua, pois pode indicar ausência de opinião por parte dos respondentes ou indecisão diante da afirmativa (BEERE, 1973). Essa escala apresenta uma série de vantagens, como, por exemplo, fornecer direções sobre a concepção do respondente em relação a cada item do instrumento. Nas palavras de Pereira (2001, p. 65): [o amplo aceita desta escala reside] no fato de que ela tem a sensibilidade de recuperar conceitos aristotélicos da manifestação de qualidades: reconhece a oposição entre contrários; reconhece gradiente; e reconhece situação intermediária (PEREIRA, 2001, p. 65). 54 Outra vantagem deste tipo de escala é a não ambiguidade das categorias de respostas, como exposto por Babbie (2005), pois, uma vez que elas já estão previamente determinadas, evitam que os respondentes criem respostas que possam dificultar a interpretação por parte do pesquisador. 3.3.2 O instrumento utilizado neste estudo O instrumento que formulamos divide-se em três partes. A primeira parte é composta por questões relacionadas às perspectivas bioéticas e científicas dos respondentes. A segunda trata da formação dos futuros professores em relação a essas questões. Por fim, a terceira parte refere-se aos dados pessoais dos respondentes, como idade, gênero, religião e formação acadêmica14. O instrumento completo constitui o Anexo D. Para determinar a quantidade de assertivas presentes no instrumento consideramos as perspectivas propostas por Cunha (2008): para que a escala apresente um índice de confiabilidade aceitável (fato que discutiremos no item 3.4) e que as dimensões da análise pretendida sejam alcançadas, o instrumento de coleta precisa ter um número mínimo de assertivas; no entanto, uma escala muito extensa pode diminuir o empenho dos respondentes, diminuindo o grau de confiabilidade das respostas. Considerando essas duas perspectivas, elaboramos um instrumento composto por trinta e cinco questões que, conforme dito anteriormente, dividem-se em três partes. Na sequência, apresentamos a descrição detalhada de cada uma das partes que compõe o instrumento. 14 A terceira parte do instrumento foi utilizada apenas para caracterização da amostra, não sendo incluída na análise dos dados. 55 A) Primeira parte: questões referentes às perspectivas bioéticas e científicas dos respondentes. A primeira parte do instrumento é composta por 17 questões, que estão embasadas em dois eixos temáticos15: um deles é composto por questões que buscam avaliar as concepções de ciência dos respondentes, o outro, por assertivas que discutem as influências de valores éticos e morais na atividade científica. A seguir, discutimos cada um desses eixos. A1) Concepções de Ciência. As assertivas que abordam esse tema visam discutir a conexão entre valores e atividade científica. Para compor o nosso instrumento, fundamentamo-nos em alguns autores (LACEY, 1998; 1999; 2003; 2008; AULER e DELIZOICOV, 2001; GONZALEZ et al., 1996; BAZZO et al., 2003; LINSINGEN, 2007) que discutem a questão da influência dos valores na atividade científica, conforme apresentamos no Capítulo 1, e dos princípios bioéticos apresentados no Capítulo 2. Os pressupostos utilizados para a elaboração destas assertivas foram, principalmente, a neutralidade, o salvacionismo, a essencialidade e o reducionismo. Utilizamos, também, os princípios que compõe a corrente bioética Principialista16 e o Princípio da Precaução, expostos no Capítulo 2. O eixo “Concepções de Ciência” é composto por onze questões baseadas no referencial teórico exposto. Estas assertivas podem ser visualizadas no Quadro 2. 15 Esses eixos temáticos foram estabelecidos por meio das Análises dos Componentes Principais (ACP). Detalhes podem ser encontrados no Capítulo 4, item 4.2. 16 São eles: autonomia, justiça, beneficência e não maleficência. 56 Quadro 2: Questões que abordam as concepções de ciência dos respondentes. 1. Considero fundamental a utilização de células-tronco embrionárias em pesquisas para fins terapêuticos. Concordo plenamente Discordo plenamente 2. Acredito que, rotulando os alimentos transgênicos e dando à população a oportunidade de escolher se quer consumir este produto ou não, resolveremos os problemas éticos que envolvem este tema. Concordo plenamente Discordo plenamente 6. As técnicas de manipulação genética são desenvolvidas para melhorar a qualidade de vida das pessoas. Concordo plenamente Discordo plenamente 8. Nenhuma tecnologia é boa ou ruim, isto depende do seu uso.17 Concordo plenamente Discordo plenamente 10. As recentes técnicas de clonagem terapêutica garantirão a cura de muitas doenças. Concordo plenamente Discordo plenamente 11. Desenvolvimento científico gera desenvolvimento social. Concordo plenamente Discordo plenamente 12. Sou favorável a clonagem terapêutica para a produção de órgãos e células-tronco. Concordo plenamente Discordo plenamente 13. Os estudos com células-tronco embrionárias irão oportunizar novas terapias que diminuirão o sofrimento das pessoas cometidas por doenças incuráveis. Concordo plenamente Discordo plenamente 14. Agrada-me a ideia de que as técnicas de fertilização in vitro, com a seleção de pré-embriões, permitam, no futuro, que as pessoas escolham as características físicas e intelectuais dos seus filhos. Concordo plenamente Discordo plenamente 16. Caso surja um ser humano imune às doenças emergentes, sou favorável que sejam feitos clones desse indivíduo. Concordo plenamente Discordo plenamente 17. Agrada-me a ideia de uma seleção de pré-embriões, antes de sua transferência para o útero materno, em clínicas de fertilização in vitro, porque isso permite a eliminação daqueles que apresentam características indesejáveis. Concordo plenamente Discordo plenamente A2) Influências de valores éticos na atividade científica. As assertivas que abordam esse tema visam estabelecer relações entre a autonomia da ciência na perspectiva de Lacey (1998) e os aspectos éticos que surgem com o desenvolvimento científico e tecnológico. Deste modo, embasamos as assertivas do instrumento que compõe este eixo nos pressupostos da autonomia e da imparcialidade, proposto por Hugh Lacey e apresentado no Capítulo 1 desta dissertação, e, assim como o Eixo