1 Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Campus de Rio Claro Universalismo e Relativismo no Trabalho com Valores em Educação Ambiental: Construindo Sentidos Dissertação de Mestrado Universidade Estadual Paulista – Rio Claro Lisiane Abruzzi de Fraga Orientadora: prof(a) Dr(a) Dalva Maria Bianchini Bonotto 2 3 Agradecimento Agradeço a Deus a oportunidade de participar na construção de sentidos para vida junto aos familiares, amigos (as) e todos (as) os que não abdicam do comprometimento com o Outro – seja no encontro com as vozes que nos parecem íntimas ou com as que nos inquietam. Considero este trabalho como parte dessa construção, o qual não pertence a mim, mas a todos (as) que estiveram presentes nos diálogos dos quais fiz parte no período de elaboração do mesmo e aos que ainda irão dialogar com as palavras nesta dissertação presentes. Por isso, não atribuo a mim o direito de dedica-lo. Mas desejo que cada um (a) reconheça, de alguma forma, sua presença, como algo que escapa ao nosso controle e descrição, dada a impossibilidade de sua substituição e repetição. 4 Aja de maneira a desejar ver as decisões que você toma se aplicarem também aos seres que mais ama. (Ferry, 2013, p.244) 5 Sumário: 1) Introdução 8 2) Racionalismo e Valores 16 3) O educador reflexivo e o agir pedagógico 32 4) Autoridade, Liberdade e os Valores em relação 39 5) Procedimentos de pesquisa 48 6) Apresentação do material 56 6.1) Breve descrição dos sujeitos de pesquisa e de seus ambientes de trabalho 56 6.1.1) A pedagogia e os vínculos afetivos 56 6.1.2) A área da saúde e a ideia de causa e consequência 57 6.1.3) A filosofia e os incômodos 58 6.1.4) A sociologia e a democracia 59 6.2) Breve descrição dos projetos elaborados e dos processos de elaboração 59 6.2.1) Valores e compromisso 60 6.2.2) Valores e humanização 61 6.3) Vivências da Pesquisadora junto aos sujeitos de pesquisa 62 6.3.1) Partindo do compromisso com o humano 63 6.3.2) A beleza resistindo à coisificação do humano 64 6.3.3) Coletivo e Singular 64 6.3.4) A prática pedagógica como discurso 65 7) Sentidos Construídos 67 7.1) Experiência e compromisso 67 7.2) Resgatando a sensibilidade 87 7.3) Política, cognição e afetividade 93 7.4) Estudantes protagonistas 105 8) Dos sentidos construídos a possíveis respostas para questão de pesquisa 112 9) Considerações Finais 120 6 Resumo Este trabalho de pesquisa surge da consideração da Educação Ambiental como possibilidade de subversão ou resistência à lógica utilitarista e racionalista que prevalecem na estrutura da sociedade e, em consequência nos espaços de educação formal. Neste encontram-se reflexões, a partir de análises que realizei, acerca da predisposição à universalização e/ou ao relativismo que possa estar presente nas práticas pedagógicas envolvendo o trabalho com valores no campo da Educação Ambiental. Apresento a relevância do conhecimento a respeito da questão, além da responsabilidade e do compromisso do educador e da sociedade, necessários para possibilitar a construção de novos sentidos relativos aos valores assumidos coletivamente, com relação à questão ambiental. No entanto, tal construção deve se dar de forma a garantir a autonomia dos sujeitos e, ao mesmo tempo, impedir que tais valores justifiquem injustiças, dificultando o encontro com a alteridade. Discuto o quanto as práticas pedagógicas podem predispor à universalização e/ou ao relativismo com relação aos valores trabalhados em Educação Ambiental, por meio da análise dialógica, que utiliza Bakhtin como referencial metodológico. Foram observadas práticas pedagógicas de professores do ensino médio e último ano do ensino fundamental, que propuseram-se a elaborar e desenvolver, junto aos (às) estudantes com os (as) quais trabalham, atividades envolvendo valores e a temática ambiental. Os sentidos construídos a partir deste trabalho de pesquisa apontam para necessidade de valorização dos encontros, em sua singularidade, no ambiente escolar, como possibilidade de quebra tanto dos riscos de universalização como de relativismo durante o trabalho com valores nas práticas de Educação Ambiental. Isso pode contribuir para a formação de um sujeito livre e comprometido, o qual saberá como agir em cada momento singular, participando na construção de sentidos para realidade, existindo como sujeito ético. Sua liberdade não o impedirá de perceber a natureza humana e não humana, afastando-se do relativismo compreendido como indiferença. E nenhuma lei será álibi para coisificar o outro ou justificar injustiças, distanciando-se do universalismo. Palavras-chave: Valores, Educação Ambiental, Alteridade, Universalismo, Relativismo, Construção de Sentidos 7 Abstract This research comes from the consideration of the Environmental Education as a possibility of subversion or resistance against the rationalist and utilitarian logic that prevails in the society structure and as consequence in the formal Education spaces. This work brings reflections from analysis I have performed about universalization and/or relativism predisposition that is probably present in the pedagogic practices involving the work with values in the Environmental Education field. I present the relevance of the knowledge upon this matter, besides the educator and society’s responsibility and accomplishment, necessaries to the construction of new meanings relative to the collectively assumed values, related to the environmental question. However, such construction must happens in a way that it guarantees the subjects’ autonomy and, at the same time, preventing that such values justify injustices, making the meeting with otherness difficult. I discuss, through the dialogical analysis – based on Bakhtin’s methodology –, how much the pedagogical practices may predispose the Environmental Education values to universalization and/or relativism. Pedagogical practices of late middle school and high school teachers, who accepted elaborate and develop activities involving environmental values and themes with their students, were observed. The achieved meanings through this research indicate the necessity of the valorization of the meetings, in their singularity, in the school environment, as a possibility to overcome both universalization and relativism during the work with values in the Environmental Education practices. This may contributes towards the formation of a free and engaged subject, who will know how to act in each singular moment, participating in the construction of meanings to reality, existing as an ethical subject. His freedom will not prevent him to realize both human and non-human nature, turning away of the relativism, understood as indifference. And no law will be alibi to reify the other or justify injustices, turning away of the universalism. Keywords: Values, Environmental Education, Otherness, Universalism, Relativism, Meanings Construction. 8 1) Introdução: Neste trabalho, considero a Educação Ambiental como possibilidade de ampliar espaço no ambiente escolar para resistir, de certa forma, à coisificação do humano. Reconheço no trabalho com a temática ambiental uma chance para a abertura da educação a uma formação humana holística e envolvida com a construção de valores na formação de seres sociais que somos, através da valorização do diálogo com o Outro (humano, não humano e o outro de si mesmo1). Essa consideração parte da realidade da crise ambiental que tem estado constantemente em pauta nos debates em diferentes setores de nossa sociedade. Compartilho da visão de Educação Ambiental apresentada no Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global que considera o papel central da educação na formação de valores e na ação social, através de envolvimento pessoal, das comunidades e das nações para criar sociedades sustentáveis e equitativas (p.29). Segundo Bornheim (1985, p.24): a natureza deixou de ser o grande repositório, eternamente inesgotável, no qual o homem exauriria indiscriminadamente a sua riqueza. Daí surgiu uma nova necessidade, e consequentemente um novo tipo de compromisso. Se estivermos dispostos a escutar, não nos abstraindo da relação com o outro em sua alteridade, assumindo nosso compromisso com a vida e com a construção de nossa história, a crise ambiental pode estar produzindo a necessidade que estimulará a “reinvenção” de nossa liberdade.2 Um dia, perguntamos o que somos e o que são os demais entes, qual seria nossa essência. Depois, questionamos como funcionamos nós e os demais seres. Houve tempo de buscar o porquê, e tempo de ser útil. Talvez seja o momento de perguntar o que queremos ser, fazer e tornar existente, que relações queremos estabelecer conosco, com o outro e com o ambiente que nos constituam em nosso modo de estar no mundo e pensá-lo. Esses questionamentos me levam às considerações que Hermann (2010) faz sobre a experiência estética frente ao mundo e à vida. 1 Ponzio (2010, p.52) se refere a esse outro de si mesmo compreendendo que a singularidade não é característica do eu, mas do encontro. Assim, minha resposta vem da compreensão da palavra do outro e não de um eu que já a possui como ideia anterior, podendo ser outra em relação a outro interlocutor e contexto. 2 Essa possibilidade relaciona-se com o conceito de liberdade apresentado por Bornheim (1985), descrito neste trabalho. 9 Para Hermann (2010, p.34): A visibilidade de determinados problemas da condição humana só se torna possível pela abertura do jogo da aparência que a experiência estética proporciona, naquilo que é percebido no acontecimento do mundo, num momento único de seu acontecer. Nessa perspectiva, a experiência estética se dá no relacionamento entre o sujeito e o objeto estético, e isso implica compreender que o sujeito se transforma nessa experiência. Mas como reencontrar o tempo da experiência que em nada se relaciona com o tempo da produção, para reestabelecer os encontros que nos reconstituem como sujeitos, apropriando-se de sua liberdade, a qual não basta escolher, porque anseia recriar-se? Como retornar à razão sensível que, como aponta Hermann (2010), não desvincula cognição e emoção, de modo que esta não corresponda à visão estereotipada de que seria irracional, não aprendida, reação corporal (p.102)? Considero a Educação Ambiental propícia à construção de novos sentidos para as relações humanas com o outro (humano e não humano) em sua alteridade, por meio do trabalho com valores, considerando os aspectos apresentados por Bonotto (2008): cognição- afetividade-ação. Entende-se por cognição a reflexão acerca das ações e sentimentos envolvidos na construção de valores para sua melhor compreensão e apropriação; por afetividade, o trabalho de sensibilização, percepção e expressão dos sentimentos com relação ao valor construído; e por ação, a experiência do valor em construção. Essa perspectiva dialoga com a proposta de Carvalho, M. (2006), a qual aponta para as dimensões do conhecimento, dos valores e da participação política da Educação Ambiental (ver fig. 1). Figura 1: Inserção da proposta de Bonotto (2008) na proposta de Carvalho (2006) (conforme BONOTTO e CARVALHO, 2012, p.51). É impossível negar a afinidade entre valores reivindicados nos trabalhos com a temática ambiental e a tentativa de superação da razão instrumental, por meio da reconstrução 10 das relações com o outro (humano e/ou demais seres), na vivência de práticas pedagógicas democráticas que visam à integração do humano suplantando a dicotomia entre natureza e cultura. Observei isso em um levantamento de artigos de Educação Ambiental que se referem a questões valorativas, onde apareciam com frequência as seguintes ideias: crítica à cultura ocidental (considerada excessivamente racional e antropocêntrica), propostas de valorização do ambiente no processo de aprendizagem, valorização de aspectos psicológicos e locais, valorização do coletivo, valorização da literatura, valorização das culturas com maior contato com a natureza, ênfase em mudança cultural e de atitudes. Destaco, entre os artigos, os seguintes: Blenkinsop (2012) no Canadá e Karaarslan, Ertepinar e Sungur (2012) na Turquia, que descrevem com otimismo experiências pedagógicas baseadas na motivação, para desafiar valores tradicionais da sociedade e para promover atitudes ambientalmente responsáveis, respectivamente. Na primeira, os participantes da pesquisa são crianças de 5 a 12 anos vivendo (por um curto período de tempo) a experiência de uma escola ecológica, a qual funciona em ambiente ao ar livre, sem a organização escolar tradicional, motivados pelo grupo, revendo seus valores culturais constantemente e apoiando sua conduta ecológica no “bem do planeta”, apesar das experiências do sofrimento criado, por exemplo, nas dificuldades de relacionamento com pessoas com as quais possuíam vínculos afetivos (que já não as reconheciam). Na segunda, apoiada na teoria da autodeterminação de Darner, que aponta para a importância de oferecer suporte psicológico às necessidades de competência (sentir-se capaz de encontrar soluções), de “parentesco” (sentir-se pertencente a um grupo) e de autonomia (aqui entendida como sentir-se escolhendo livremente), participaram professores de ciências em formação cursando uma disciplina específica de Educação Ambiental. O suporte às necessidades psicológicas funciona como motivação para comportamentos considerados pelos aplicadores da proposta como ambientalmente responsáveis ou pró-ambientais. Esses trabalhos, que parecem apontar para universalização de valores considerados superiores, valorizando o que anteriormente denominamos “bom caráter”, e a experiência do “sacrifício da boa conduta”, apoiado pelo grupo, quase como uma “missão”, evidenciam a necessidade de ampliar as pesquisas acerca dos aspectos valorativos que as práticas de Educação Ambiental têm enfatizado, de modo a percebermos se temos contribuído 11 verdadeiramente com a formação do sujeito eticamente autônomo, com a universalização ou com o relativismo de forma simplista e reducionista. Questiono, nos dois trabalhos que destaquei, se a ansiedade para responder ao excessivo racionalismo ou à coisificação do humano não pode estar ampliando a dicotomia entre razão e emoção à medida que nos arma contra a primeira. O caminho do diálogo com o Outro (humano ou não humano) talvez esteja mais próximo do que Sidekum (2002) chamou de racionalidade substancial do que de uma ausência de razão. Nos apresentamos nos encontros singulares com corpo e mente. Importante enfatizar que o sujeito eticamente autônomo não é entendido neste trabalho como aquele que impõe sua identidade controlando sua atitude e palavra, mas sim aquele que está aberto ao diálogo, responsabilizando-se por seus atos em cada experiência singular. Como afirma Ponzio (2010), a relação não acontece entre mim e o outro, mas naquilo que cada um é na relação com a outra palavra e como provavelmente não teria sido fora daquele encontro (p.40). Isso se assemelha ao que considero importante também para a Educação Ambiental. Segundo Tozoni-Reis (2006, p(s) 97, 106): Educação ambiental é dimensão da educação, é atividade intencional da prática social, que imprime ao desenvolvimento individual um caráter social em sua relação com a natureza e com os outros seres humanos, com o objetivo de potencializar essa atividade humana, tornando-a mais plena de prática social e de ética ambiental. [...] Conscientização, como princípio da educação ambiental, não é um resultado imediato da aquisição de conhecimentos sobre os processos naturais, mas a reflexão filosófica e política, carregada de escolhas históricas que resultam na busca de uma sociedade sustentável. Outras pesquisas, no âmbito da Educação Ambiental, têm apontado para possibilidades de trabalhos com a temática ambiental envolvendo a ação mais comprometida com a emancipação do sujeito. Observa-se isso, por exemplo, na pesquisa realizada por Degasperi (2012) ao descrever o pedido de participação na câmara de vereadores feito por um aluno, durante uma das aulas por ela analisadas. Aponta, inclusive, que essa dimensão esteve em menor proporção nos demais trabalhos por ela analisados. Outros trabalhos, como o de Alves (2013), reconhecem práticas educativas envolvendo a temática ambiental onde existe a “preocupação em valorizar a emancipação dos sujeitos e a sua autonomia em seus próprios processos formativos, em resgatar seus valores e em orientá-los para a compreensão dos contextos e realidades nos quais eles se inserem”. 12 Embora esta pesquisa estivesse focada na relação entre as experiências pessoais, acadêmicas e profissionais do (a) educador (a) com sua atuação docente, e não em práticas elaboradas com intenção de promover um trabalho com a dimensão axiológica, tanto esta quanto a pesquisa anteriormente citada sugerem a possibilidade de um trabalho com valores em Educação Ambiental em uma perspectiva que considera o papel da subjetividade na história, como defendido por Sidekum (2002) e Freire (2013). Segundo Freire (2013, p(s) 31, 40): Pensar certo, do ponto de vista do professor, tanto implica o respeito ao senso comum no processo de sua necessária superação quanto o respeito e o estímulo à capacidade criadora do educando. Implica o compromisso da educação com a consciência crítica do educando, cuja “promoção” da ingenuidade não se faz automaticamente. [...] se precisa é possibilitar que, voltando-se sobre si mesma, através da reflexão sobre a prática, a curiosidade ingênua, percebendo-se como tal, se vá tornando crítica. Por estar de acordo com a proposta de Freire (2013), considero importante que, durante a formação do (a) educador (a), sejam construídos sentidos que integrem as dimensões da Educação Ambiental, anteriormente apresentadas, constituindo-o como sujeito, evitando que a prática seja posteriormente reduzida a técnicas já não mais refletidas e/ou indiferentes à resposta do outro. Grün (2011) aponta as áreas de silêncio do currículo, ligadas à nossa ideia de autonomia pautada exclusivamente na razão, descartando o ambiente físico. Nesses currículos, em geral, predomina a lógica matemática para análises, a abstração e a ilusão do controle da natureza através dos conhecimentos científicos. Grün (2011) apresenta como exemplo o estudo das reações químicas nos livros-texto analisadas com ausência absoluta de referência ao fato de que só podem ocorrer em um ambiente físico (p.53). Este autor aponta também que o “eu” é visto como usuário de tecnologias e os “recursos naturais” como os que sustentam a estas (p.49). Podemos incluir aqui que chegamos a tal ponto de soterramento da alteridade que fomos transformando o próprio humano em recursos. Meu valor está na minha utilidade. Estamos inclusive, com a soberania de um “eu” da identidade, nos desumanizando. Como afirma Ponzio (2010), “O direito a infuncionalidade é o direito de valer por si, como alteridade não relativa. O infuncional é o humano” (p.142). Levando em conta os referenciais presentes neste trabalho, considero a Educação Ambiental uma possibilidade de subversão ou resistência à lógica utilitarista e racionalista 13 que prevalecem na estrutura dos espaços de educação formal. É verdade que toda a educação deve ser ambiental e que todo ambiente pode envolver educação à medida que abriga relações. Contudo, para que isso ocorra, é necessária a intencionalidade do sujeito que se coloca aberto, em relação, que assume seu ato responsivo e sua participação no diálogo. Uma proposta de Educação Ambiental comprometida pode expressar uma palavra outra de um sujeito que, mesmo pertencente a uma sociedade da funcionalidade, da identidade e que exalta a liberdade de palavra, como descreve Ponzio (2010), deseja estabelecer relação com a alteridade da natureza dos demais seres e com sua natureza outra, de ser não apenas cognitivo, mas afetivo e social. Essa proposta de Educação Ambiental está presente na proposta de Bonotto (2008) para o trabalho com valores. Na mesma perspectiva, Carvalho, I. (2004) aponta para a possibilidade de uma nova relação com a natureza, pautada na sensibilidade ecológica fundada na crença de uma relação simétrica e de alteridade (p.105). Aqui entraria a escuta para percepção dos limites da capacidade de regeneração e suporte da natureza. Uma Educação Ambiental preocupada em desenvolver a escuta, o diálogo com o outro (humano e não humano), pode favorecer o que Carvalho (2004) considera uma atitude ecológica e cidadã, que implica desenvolver capacidades e sensibilidades para identificar e compreender os problemas ambientais, comprometendo-se com as decisões, entendendo o ambiente como uma rede de relações entre sociedade e natureza (p.181). Concordo com Ferry (2013) que aponta como ponto forte da ecologia levar ao centro do debate político a preocupação com o futuro e com o outro, incitando a sair do imediatismo capitalista e midiático (p.105). O mesmo reconhecimento ocorre, por parte de Bonotto, com relação à Educação Ambiental. Bonotto (2007) reconhece nos elementos, práticas e ideias presentes no Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global valores assumidos que se relacionam com a valorização da vida, valorização da diversidade cultural, valorização de diferentes formas de conhecimento, valorização de uma sociedade sustentável e valorização de uma vida participativa (p.299). Bonotto (2003) enfatiza ainda em seus trabalhos a importância da apreciação, elaboração ou fruição estética nas práticas pedagógicas, valorizando as vivências, a escuta e o diálogo cotidiano ou por meio de obras artísticas. Bonotto (2003) defende que: 14 [...]a experiência estética frente à natureza pode significar uma possibilidade de relação ser humano-natureza desinteressada, oposta à visão sujeito-objeto, de caráter reducionista e utilitário, estimulada pela ciência moderna. A experiência do belo parece ir ao encontro da ideia apresentada por Ponzio (2010) sobre o calar/escutar que não deve ser sinônimo do silêncio/ouvir. Estes últimos seriam apenas o reconhecimento do outro de dizer, enquanto os primeiros estão relacionados à produção de sentido da voz que nos altera. Refletindo pautada nas questões relevantes para os referenciais apresentados, pergunto: existem valores ambientalmente desejáveis? Se observarmos os discursos oficiais proferidos na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992 e o “Tratado de educação ambiental para sociedades sustentáveis e responsabilidade global”, aprovado no Fórum das Organizações Não-Governamentais, que se reuniam paralelamente às reuniões da Conferência, iremos perceber as divergências existentes com relação aos valores considerados ambientais. Enquanto na Conferência aparece forte a ideia de desenvolvimento associado a comportamentos e tecnologias voltadas à preservação (ou redução da degradação ambiental), no segundo aparece uma proposição de transformação do sistema produtivo e do consumismo, valorizando uma sociedade pautada na solidariedade e cooperação. Essa diversidade de valores é razão para abster-se do trabalho com valores? Neste trabalho, parte-se do princípio de que, ao contrário, faz-se necessário trazer as diferentes vozes, carregadas de valores, para o debate no ambiente escolar. Como aponta Carvalho, M. (1999, p. 39): A escola, para cumprir sua função social, não pode deixar de considerar, entre os diferentes temas por ela tratados, aqueles identificados pela sociedade como significativos nos diferentes momentos históricos. Neste sentido, torna-se imperativo a incorporação por essa instituição de questões relacionadas com a temática ambiental. Mas como abordar a temática, considerando os conflitos valorativos, num ambiente historicamente sustentado pelo mito do “conhecimento científico”? Com base nos referenciais apresentados, propus, neste trabalho de pesquisa, estabelecer diálogos com educadores (as) sobre suas práticas pedagógicas as quais envolvem o trabalho com valores em Educação Ambiental, construindo sentidos que permitam perceber em suas práticas pedagógicas relações com a universalização, o relativismo e o diálogo, 15 buscando verificar as possibilidades de se favorecer maior abertura às práticas que valorizam as relações (dialógicas), promovendo maior autonomia3 dos sujeitos frente a questões socioambientais. Assim, apresento como objetivos específicos da pesquisa construir, no diálogo com o educador (a): 1) Sentidos relativos às motivações e escolhas do (a) educador (a) para trabalhar com valores envolvendo a temática ambiental; 2) Sentidos relativos às experiências/vivências do educador durante o trabalho com valores envolvendo a temática ambiental e sua relação com universalização, relativismo e dialogismo durante as práticas pedagógicas. Este trabalho de pesquisa encontra-se, portanto, no campo da Educação Ambiental, porque considero, assim como Carvalho (2004), que a aprendizagem é um ato dialógico que requer a compreensão das mútuas relações entre a natureza e o mundo humano (p.82). 3 Autonomia está sendo considerada, de acordo com a perspectiva de Freire (2013), vinculando decisão e responsabilidade, como experiência respeitosa da liberdade. Liberdade compreendida na mesma perspectiva de Bornheim (1985), dependente do compromisso. 16 2) Racionalismo e Valores O humano é um ser social, em constante relação indivíduo/indivíduo, indivíduo/sociedade, indivíduo/natureza e sociedade/natureza. Nessas relações, sempre se fez presente a luta, direta ou indireta, pelos recursos disponíveis, pela sobrevivência. Isso torna inadequada uma abordagem excessivamente romântica quando tratamos dessas interações. Mas, por outro lado, apesar dessa realidade imposta pela natureza, o ser humano tem aprimorado, com o passar dos séculos, a consciência que possui de sua própria existência, dos demais seres, do meio no qual vive, da influência destes sobre si e de sua atuação sobre os mesmos. Quando o humano se percebe com sua violência e fragilidade, a angústia se faz presente. O medo torna-se inevitável. Múltiplos caminhos, dentre fortalezas interiores e apropriação da liberdade, vão sendo construídos. Alves (2004) aponta como um dos detonadores do pensamento o fato de que “Pensamos porque não estamos felizes com o que somos” (p.62). E as normas/regras de conduta moral vão sendo elaboradas como forma do humano proteger-se, por uma questão de sobrevivência. Essas normas inicialmente foram justificadas como sendo vontade dos deuses, elaboradas e obedecidas pelo medo. A partir de Platão, com o “mito da caverna”, a princípio estaria sendo aberta a possibilidade da quebra das regras que conformavam o humano no cotidiano, arriscando-se em busca da “verdade”. Porém, apesar dessa possibilidade de reconstruir normas/regras agora pautadas na razão, a ideia de verdade desvincula-se do mundo concreto e estabelece-se no pensamento abstrato. A razão, consciente de si, assim como os mitos engendrados pela mesma, não confia na natureza humana. E a condenação de Sócrates (mestre para Platão) também contribuiu para o reforço da ideia de que o conhecimento é condição para governar (Sidekum, 2002, p.31), de modo a nos afastar da barbárie e das injustiças. Através do pensamento abstrato, busca-se a libertação das sensações e dos instintos. É necessário desconfiar continuamente, para elevar-se sobre si e aproximar-se da verdade do mundo ideal, essência das coisas. Aristóteles, discípulo de Platão, questiona seu mestre, apontando para a ideia de que a sociedade é uma realidade, exclusiva e própria do ser humano. E, como aponta Sidekum (2002), surgem a partir de Aristóteles, em sua filosofia do direito natural, as primeiras raízes 17 da ética como forma da consciência da subjetividade, voltada para o bem do indivíduo, dentro de sua natureza (p.31). Não obstante, o idealismo platônico parece ter deixado marcas profundas na sociedade ocidental, marcando nossas formas de interpretar o mundo, sejam científicas (métodos para que nossos sentidos não ocultem a verdade) ou religiosas (separação do espírito/mente do corpo). E as normas/regras sociais criadas a partir da razão permanecem claramente movidas pelo anseio de proteger-nos de nós mesmos, ou seja, de nossa natureza. Considero que a ciência moderna teve papel importante na reivindicação pelo reconhecimento da experiência, pela valorização da dúvida e da interpretação do mundo concreto. Porém, a mesma ciência a partir da qual o humano se volta para a natureza e sua realidade material, através das experimentações, jamais se afasta da ideia de uma verdade apreendida por meio da separação entre o objeto e nossas sensações, limitada à razão, que acredita nos fazer superiores. A experiência leva o (a) humano (a) ao encontro de sua impotência para uma compreensão clara da possível essência das coisas. Como não poderiam experimentá-la, cientistas abdicaram da fantasia de conhecer as coisas como são, e limitaram-se a descrever suas funcionalidades, de modo que pudessem se tornar úteis e menos assustadoras. Desconsideraram também (e, por vezes, ainda desconsideram) a realidade de que suas interpretações são construídas nas relações que estabelecem com os outros (humanos e/ou não humanos). Talvez porque para responder a questões de funcionalidade, a compreensão do gênero humano se faz mais importante do que suas possíveis singularidades, dado que só serve como resultado significativo o que é reproduzível e substituível. Baseando-se na supervalorização do pensamento, permanecem as sensações vistas como ilusões, sendo os instintos associados à escravidão e a razão à liberdade. A natureza do humano define-se cada vez mais em seus discursos como dicotômica entre o que é sentido e o que é compreendido, entre o que faz e o que pensa. Tanto a visão de “essência das coisas” quanto a limitação às suas funcionalidades reduzem a existência, pois não consideram as relações e a realidade do inacabamento. Segundo Sidekum (2002, p.167): Considerando a nossa crise atual a partir da perspectiva da racionalização [...] conduz histórico-socialmente à hegemonia de uma racionalidade formalizante e objetivante, reivindicada a partir de uma metafísica da subjetividade, na qual o sujeito e sua razão se autonomizam, livres, portanto, de toda referência a qualquer objetividade e transcendência. Seria uma razão subjetivada, ocupada em analisar, calcular e quantificar, e autoconstituída num único tribunal da experiência. Tudo 18 isso em relação à sua contraparte substantiva, onde moram a sensibilidade, os valores, os desejos e as utopias, impossíveis de articular desde sua lógica. Sidekum (2002) está apontando a ênfase na racionalidade formal como aspecto principal da crise de valores que temos vivido. A razão desvinculada de sensibilidades, valores, desejos e utopias, faz do (a) humano (a) uma peça em um jogo de xadrez, onde este (a) torna-se meio e não fim. Como não conseguimos nos reconhecer em nossa integridade como instintos e racionalidade, onde as vozes das emoções e da razão se alteram simultaneamente, construímos duas dentre as concepções apontadas por Tozoni-Reis (2008) relativas à relação homem-natureza: a que considera o sujeito natural e a que considera o sujeito cognoscente (p.29). Na primeira, temos uma visão romantizada de nossos instintos naturais, onde bastaria que retornássemos a eles para harmonizar nossa relação com o ambiente. Na segunda, a razão eleva o espírito de forma que, através do conhecimento, seríamos capazes de garantir o controle e o uso da natureza por uma eternidade para sustentar a vida humana na Terra. Poderíamos nos perguntar se, anjos ou técnicos, não estaríamos igualmente abdicando de sermos humanos, com nossas sensações e compreensões, com nossas emoções e responsabilidades/intencionalidade sobre o que criamos. Talvez a influência do idealismo no Ocidente possa explicar a ideia defendida por Heesoon Bai (2012), em seu ensaio teórico, da diferenciação entre a moral ocidental e a moral oriental. Esta autora descreve a moral ocidental como discursiva, presa às palavras, ligada a normas, regras, formas adequadas de viver; enquanto a moral oriental estaria preocupada em favorecer a consciência, questionando a ansiedade, a insegurança e o medo, diminuindo o excesso de atividades humanas para concentrar-se no sentido da existência individual e coletiva. Ainda assim, poderíamos nos questionar se a forma com que os orientais trabalham suas emoções também não ocorre fundamentalmente no campo racional, do trabalho das emoções para o controle, ou o que denominam “desapego”. Seria necessário um estudo aprofundado para posicionar-se a esse respeito. Poderíamos considerar que a desconfiança de nós mesmos, à qual me referi anteriormente, favorece uma educação moral que coloca as regras de conduta acima do humano que as constrói. As regras, progressivamente, deixam de ser construídas por nós (o que expressaria nossa tentativa de caminharmos em direção a algo que valorizamos) e passam a nos moldar, como se tivéssemos sido criados para cumpri-las. Muitas vezes, inclusive, tiram nossa responsabilidade sobre o que executamos, como se fosse determinado fora de nós (seja 19 por Deus, por autoridades, pelo conhecimento, por especialistas, entre outros). E, provavelmente por isso, nossa educação apresenta foco maior nas punições e/ou reforços a “comportamentos adequados” do que na construção dos sentidos que envolve a moral, suas construções históricas (contextos) e possibilidades de reconstrução (abertura a mudanças). Dispostos a assumir nosso papel criador da realidade, com nossas emoções e cognição, podemos nos aproximar da terceira concepção apontada por Tozoni-Reis (2008) da relação homem-natureza: a que considera o sujeito histórico (p.29). Depois de assumirmos nossa historicidade, podemos nos perguntar: O que queremos ver no mundo? Como queremos viver? O que queremos criar? Que relação queremos estabelecer com o outro (humano e não humano)? Essas perguntas só fazem sentido quando assumimos nossa historicidade, porque considero que as resposta às questões anteriores não surgem do campo teórico como propõe a moral kantiana, mas são constantemente construídas e reconstruídas na existência real, nos diálogos estabelecidos entre os diferentes sistemas de valores que se apresentam como possíveis, na vivência dos eventos singulares em que as perguntas exigem respostas. Como afirma Bakhtin (2010, p(s) 58-59): tal existir como evento singular não é algo pensado: tal existir é, ele se cumpre realmente e irremediavelmente através de mim e dos outros – e, certamente, também no ato de minha ação-conhecimento; ele é vivenciado, asseverado de modo emotivo- volitivo, e o conhecer não é senão um momento deste vivenciar-asseverar global. [...] não é definível pelas categorias de uma consciência teórica não participante, mas [...] pelas categorias do efetivo experimentar operativo e participativo da singularidade concreta do mundo. Considero neste trabalho, como Vygotsky (2001), que os valores morais são construídos nas relações sociais, diálogos estabelecidos, e, em se tratando da educação formal, vivências no ambiente escolar. Valores morais são construídos na experiência real dos alunos de escolhas que potencializem o bem-estar humano durante as práticas escolares. Compreendo moral segundo a perspectiva de Aranha e Martins (1992), que apontam para realidade de uma moral constituída, ou seja, construída social, cultural e historicamente; e de uma moral constituinte, que deixa em aberto a possibilidade constante de reconstrução das anteriores. Contudo, penso que o sujeito ético não se limita ao sujeito moral. Segundo Sidekum (2010, p.20-21): 20 A ética não se propõe a orientar cada indivíduo, o que deve fazer ou omitir, mas fornece normas, elementos gerais para que cada sujeito em uma situação concreta e histórica realize um ethos verdadeiramente humano e humanamente justificável. Gostaria de apresentar aqui como exemplo uma passagem da vida de Jesus que poderia ilustrar o que compreendo como atitude ética. Porém, enfatizo tratar-se apenas de uma reflexão sobre uma experiência humana, desvinculada de quaisquer aspectos religiosos. É possível reconhecer como “espírito da lei” de guardar o sábado um aspecto caro à nossa humanização ou luta contra a coisificação do (a) humano (a). É importante o “tempo”, “tomar tempo”, reivindicação humana tão viva até a atualidade. Mas posto diante da doença de alguém, Jesus não se nega ao trabalho para salvar a vida, mesmo quebrando as regras. A moral constituída refletida poderia ser reconstruída ou modificada se considerarmos a dimensão constituinte da moral. Mas havia um sentido nesta lei. Precisaria a lei ser modificada? Ou apenas que o sujeito ético se responsabilizasse por seu ato, de cumpri-la ou não, na situação concreta em que lhe é exigida uma resposta? A construção do sujeito ético acontece na valorização das vivências, das relações humanas não como meios para se chegar a determinadas respostas, mas como valorosas em si mesmas. Recordo a fala de uma colega de trabalho, em uma conversa informal, dizendo que os trabalhos são apenas pretextos para os seres humanos se encontrarem. Faz-se necessário criar espaço nas escolas para o que Ponzio (2010) descreve como o encontro de palavras. Precisamos aprender a escutar. Mas, que “escutar”? Segundo Ponzio (2010, p.135): Duas possibilidades: limitar-se a ouvir, também no sentido de ouvir e obedecer (até “escutar” é reduzido ao sentido de ouvir e obedecer) assim como a comunicação globalizada quer que ouçamos; ou ouvir, no sentido de prestar atenção, perceber este mesmo ouvir, ou seja, escutar no sentido de saber compreender e responder, mas, sobretudo, no sentido de dar tempo ao outro, o outro de si e o outro por si. A responsabilidade sem álibi proposta na obra de Bakhtin (2010) aponta para o diálogo onde a resposta não é justificável por um sistema único de valores, nem pelo papel social atribuído ao sujeito, nem por sua identidade (eu individual), mas em sua experiência de diálogo verdadeiro com o outro. O ato responsável nasce de uma experiência onde não se é indiferente ao Outro, onde não é colocado o estereótipo do Outro antes da escuta de sua palavra. Não existem verdades universais, mas experiências verdadeiras, que encontram respostas responsáveis e singulares, onde, como afirma Ponzio (2010), “cada um não tem medo do outro, mas medo pelo outro, e não pensa o outro, mas pensa no outro” (p.29). 21 Neste trabalho, compartilho do posicionamento de Bakhtin (2010, p.46), o qual afirma que: Para o dever não é suficiente apenas a veracidade, é necessário o ato de resposta do sujeito, que provém do seu interior, a ação de reconhecimento da veracidade do dever [...]. Não existem normas morais determinadas e válidas em si, mas existe o sujeito moral [...] ele saberá em que consiste e quando deve cumprir o seu dever. Segundo essa linha de pensamento, conforme apontei anteriormente, a ação de cumprir ou não um dever moral constitui um evento único, que envolve relações e o ato de resposta do sujeito moral, responsável e sem álibi. E considerando esta perspectiva, é importante observar para a formação do sujeito ético as críticas apontadas por Ponzio (2010) e por Hermann (2010) a respeito da compreensão de “formação” fortemente presente em nossas sociedades, atrelada à utilidade e à funcionalidade, sem tempo para a vivência/experiência real do Outro. Contudo, é interessante que, apesar da persistência de nos escondermos sob o véu das normas/regras sociais já estabelecidas, não parecemos confortáveis. Como sugere Bai (2012), somos “espíritos famintos”, doentes emocionalmente, desejando devorar tudo, sem que nada nos sacie profundamente. Percebemos que nossos valores já não correspondem àqueles que nos impomos. Isso parece evidente na frequência com que posicionamentos tais como a ênfase no coletivo, a valorização do lugar nos processos de aprendizagem, a valorização das culturas com maior contato com a natureza, o questionamento ao racionalismo, o resgate da literatura popular e da arte, tão contrários às nossas realidades culturais e sociais, aparecem em nossas pesquisas de Educação Ambiental. 4 Ampliando a análise dessa questão, outros aspectos podem justificar esse desconforto: desde as decepções com as promessas advindas da ciência moderna sobre o “bem estar” que promoveria até a percepção do humano de sua transformação em objeto. Segundo Adorno e Horkheimer (1985, p. 40): O preço da dominação não é meramente a alienação dos homens com relação aos objetos dominados; com a coisificação do espírito, as próprias relações dos homens foram enfeitiçadas, inclusive as relações de cada indivíduo consigo mesmo. Ele se reduz a um ponto nodal das reações e funções convencionais que se esperam dele 4 Faço essa afirmação observando um breve levantamento que fiz em artigos envolvendo a Educação Ambiental em periódicos internacionais para disciplina de Seminários de Pesquisa, bem como os trabalhos que costumam ser apresentados nos eventos dos quais participei e as pesquisas que aparecem no grupo de pesquisa do qual fez parte este trabalho. Portanto, não se trata de um dado estatístico rigoroso. Acredito ser algo que mereça ser explorado/aprofundado. 22 como algo objetivo. O animismo havia dotado a coisa de uma alma, o industrialismo coisifica as almas. Se a dialética expõe a contradição que constitui o esclarecimento em libertador e dominador simultaneamente, permite-nos desconfiar que, neste mesmo movimento dialético, podemos encontrar na própria razão, que por ora nos instrumentaliza, os desconfortos e questionamentos próprios da consciência do homem sobre sua existência marcada pela construção de sentidos, evidenciados através da angústia que tem produzido as reivindicações e críticas anteriores. Mas parece que essas críticas não estão sendo acompanhadas de ações na mesma intensidade com que as levantamos. Por que isso ocorre? Importante observar como a separação entre a compreensão da realidade (por exemplo, dos problemas sociais) e a ação (organizar-se para transformar) se evidencia no campo educacional. Segundo Trilla (1992, p.101-102): Parece que, en general, justificadamente ou no, existe una mayor tolerancia social hacia la simple transmisión de ideas que hacia la inducción de conductas. Por decirlo de otra forma, se puede estar de acuerdo en que en la escuela se debatan “teóricamente” los temas controvertidos y en que incluso el profesor participe beligerantemene en el debate, pero, en cambio, oponer mucha más resistencia a que en la escuela se incite a pasar a la acción. Probablemente esto és así porque se sabe que, por lo general, las acciones comprometen mucho más que las ideas. No mundo das ideias, podemos ser “bons” sem nos expormos. Compreendemos o outro com nossa inteligência, mas nos reconhecemos impotentes diante das estruturas. A responsabilidade está sempre fora de nós, porque não existe compromisso com o outro. E, da mesma forma, no universo da abstração, somos tolerantes com a existência do outro, mas não com sua presença. Eu aceito que você seja como é desde que deixe que eu seja como sou, aceito seu direito de dizer desde que tenha minha hora de dizer. A tolerância convive com a indiferença nesta forma extrema de relativismo. Aqui ocorre o problema apontado por Ponzio (2010): a liberdade de palavra e não a liberdade da palavra. Não há encontro de palavras. Cada um sente-se proprietário da palavra que pronuncia ou compreende seu eu como determinado por esta palavra, de modo que não se deixa afetar pela palavra outra. Permanecemos apostando no universo do pensamento platônico, onde o conhecimento e as verdades independem da materialidade. Porém, no grau de complexidade das sociedades modernas, torna-se cada vez mais difícil – ou até impossível – ignorar completamente a presença do outro. Como aponta Sidekum (2002) acerca da filosofia de Levinas, através da relação com o outro encontro em seu olhar uma constante interpelação de justiça (p.149). 23 Refletimos acerca da afirmação existencialista de que estamos condenados a ser livres e das palavras de Bakhtin (2010) que defendem não haver regras morais válidas em si, mas sim sujeitos morais (p.45). Mas apropriar-se dessa liberdade ou reconhecê-la na vida, assumir escolhas como atos responsáveis, exige da racionalidade substantiva do humano, referida por Sidekum (2002). Pois, como afirma Bakhtin (2010), o mundo teórico/abstrato não fornece nenhum critério para nossa vida como agir responsável, permanecendo igual e idêntico a si mesmo, independente de existir ou não quem vivencie o fato, por desconsiderar a singularidade do sujeito (p.52). Parece fundamental que nossos espaços de formação humana considerem isso. Segundo Bakhtin (2010): Viver uma experiência, pensar um pensamento, ou seja, não estar de modo algum indiferente a ele, significa antes afirmá-lo de uma maneira emotivo- volitiva. O verdadeiro pensamento que age é pensamento emotivo-volitivo, é pensamento que entoa e tal entonação penetra de maneira essencial em todos os momentos do pensamento. O tom emotivo-volitivo envolve o conteúdo inteiro do sentido do pensamento na ação e o relaciona com o existir-evento singular. Também considero neste trabalho o pensamento de Vygotsky (2004), para o qual “só tem valor aquela virtude paga com relação positiva com a atitude, e a compreensão da sua essência verdadeira”, pois, “o ético é sempre livre em termos psicológicos” (p.307). Este autor comenta, ao diferenciar a escolha da obediência entre crianças de diferentes faixas etárias, que é possível a justiça subordinada à obediência e a justiça prolongada por um caminho autônomo (p.214). Essa autonomia não se refere aos ideais de um suposto eu, mas à capacidade de reconhecer nas vivências a possibilidade de construir respostas justas – que não estão dadas para além da experiência que pede uma decisão. Ser livre psicologicamente não diz respeito a controle ou escolha de uma identidade, mas de não agir por opressão interna provocada pelo medo, ou por sentimento de culpa, e sim estar livre para real experiência do valor em questão. Aponto ainda relevante a compreensão de Vygotsky (2004) de que a moral, sendo produto da psicologia social, é mutável, de modo que o que em uma época e lugar se considera mal pode em outra/o considerar-se o maior dos méritos (p.295). Por isso, considero significativa a proposta de educação moral apresentada pelo professor Puig, que considera a formação de indivíduos livres e responsáveis, capazes de enfrentar a indeterminação humana, movendo-se de forma consciente e autônoma nos planos pessoal e coletivo. Seu trabalho propõe atividades e estratégias que desenvolvem o exercício da reflexão sobre as próprias 24 atitudes e escolhas, o colocar-se no lugar do outro buscando compreender sua perspectiva da realidade, o debate, a experiência de conflitos morais, dentre outros, nos quais o educador favorece o surgimento dos conflitos sócio cognitivos, o diálogo, a construção de critérios de juízo moral, sempre preservando a diversidade de opiniões. Puig (1998) defende que, através da educação como clarificação de valores, é possível, por exemplo, que o sujeito seja capaz de “guiar a conduta moral de modo mais ajustado aos desejos e valores próprios” (p.71). É importante enfatizar que essas estratégias envolvem experiências de conflitos morais e não apenas reflexões abstratas. Segundo Puig e García (2010, p.72-73): Dialogar de maneira correta significa estar disposto a escutar e reconhecer os pontos de vista dos demais envolvidos, renunciar aos próprios interesses e convicções em benefício do interesse coletivo quando necessário [...] colaborar para chegar a um acordo justo e envolver-se ativamente na melhoria da compreensão mútua. Assim, a relevância do diálogo para personalidade dos indivíduos requer o desenvolvimento de práticas educativas e de ações específicas que [...] colaborem para formar cidadãos responsáveis e comprometidos. Assim, ao lado das constantes afirmações de Puig em relação à autonomia do sujeito, observa-se em algumas estratégias educativas propostas por esse autor a ideia de que existam alguns valores que deveriam ter sua formação favorecida intencionalmente durante as práticas pedagógicas. Isso faz com que se levante o questionamento, apresentado por Arantes a Puig (2007), sobre a conveniência ou não de se assumir ou se estabelecer critérios morais comuns a diferentes culturas e indivíduos. A essa pergunta, Puig (2007) responde que “Nem a diferença nem o que compartilhamos universalmente nos exime de responsabilidade de não prejudicar ninguém e de avaliar em cada situação se alguém está saindo prejudicado” (p.147). Mas é possível que em toda situação “ninguém saia prejudicado”? Ainda que não o seja, é possível que o diálogo autêntico reduza a desigualdade entre diferentes vozes nos debates, para construção de soluções pautadas por princípios mais democráticos. Como fugir do racionalismo formal – como denomina Sidekum (2002), em troca de maior confiança nas relações que estabelecemos com a alteridade? Diante dessas reflexões, considero que na formação de sujeitos morais que superem o relativismo e o universalismo é de grande importância o papel das práticas pedagógicas que valorizem o encontro, a experiência/vivência do Outro, que tentem ir além dos costumeiros limites colocados pela história e cultura em que nascemos e que influenciam a construção de nossos valores primeiros (ligados à história e à cultura envolvidas na construção de nossos 25 próprios valores). Nesse sentido, chama-nos a atenção uma pesquisa realizada na Turquia, por Tuncay, Tüzün e Teksoz (2012), a qual apontou que o raciocínio moral convencional (quando somos regidos por leis ou pressões sociais) é muito comum entre professores de ciências em formação naquela região. Esse contexto nos faz pensar sobre a possibilidade de ser este um motivo para nosso desconforto relacionado à modernidade: o descompasso entre nossos discursos de liberdade e nossas atitudes pautadas em normas que parecem pairar acima de nossas consciências, como se trouxessem em si sentidos não construídos por nós. Muitas vezes, até mesmo nossos estudos sobre as emoções humanas são para encontrar mecanismos para controlá-las e nos tornarmos adequados, como se “saudável” fosse a constante busca da ausência de dor e/ou do que é agradável individualmente. Temos medo de assumir nossa liberdade porque, ao contrário das ideologias às quais esta basta como direito (natural e/ou jurídico), a consciência da liberdade exige ato responsável (assumir a escolha), conhecendo os contextos, a história, a natureza, as possibilidades e suas probabilidades, assim como a impossibilidade do controle sobre todas as variáveis, ou seja, a indeterminação relativa da consequência. A exigência de uma escolha e a inevitabilidade de resposta não necessariamente implicam compromisso com o ato. Como afirma Puig (2007): Nós, os seres humanos, estamos obrigados a decidir de que maneira queremos viver. Somos obrigados a isso porque vivemos no mundo em estado muito precário – nascemos inacabados e com uma grande plasticidade – e porque tão pouco estamos programados – não temos um percurso final nem um destino totalmente previstos. [...] Procurar uma resposta à pergunta ‘como viver?’ e aplicá-la a vida individual e coletiva é a tarefa central da moralidade. [...] Por conseguinte, ‘como viver?’ se converte numa pergunta eterna, numa interrogação que nossos alunos devem aprender a formular e responder, procurando novas e melhores soluções. Se nossa formação escolar não nos permitir falar sobre o que nos angustia, inquieta ou emociona, se nos privar de conhecimentos acumulados pela humanidade (não apenas acadêmicos) que nos permitam refletir sobre o que valorizamos (bem como sentir) e os porquês, abstendo-se de envolver-se, transformando-se apenas em ferramenta para o trabalho ou para o status, facilmente condenaremos a razão ao pragmatismo, a natureza à agressividade, a liberdade ao individualismo e a moral a regras ou leis. Com raiz nesse questionamento, teve início a elaboração desta pesquisa. Como já apresentado, considero irreal a ideia de que em toda situação seja possível que ninguém saia prejudicado, até em função da diversidade e complexidade dos processos de construção de valores morais nas sociedades modernas (como também mencionado anteriormente). A 26 princípio, ao aproximar-me das leituras referentes à proposta de Puig, perguntei-me se esta não estaria levando à universalização de valores, de modo a favorecer a opressão social sobre o indivíduo. Posteriormente, durante reflexões suscitadas pelos levantamentos bibliográficos envolvendo o tema em questão, não pude ignorar a relevância do trabalho com valores durante os processos de formação humana, dada a atual instabilidade nesse campo, que tem aberto a um perigo apontado por Vygotsky (2004) “da renúncia a qualquer moderação ética e a completa arbitrariedade no comportamento infantil” (p.299), se caminharmos para o completo relativismo dos valores. Essa questão, sobre o risco da completa indiferença, é reforçada por Reboul (2000, p.79): Mas endoutrina-se igualmente quando aqueles que se educam são abandonados ao deixa-andar, à ilusão da escolha, à ignorância do que poderiam saber. Pois há sempre uma educação: se nós, educadores, renunciarmos a comunicar os valores, outros se encarregam, os camaradas, os meios de comunicação, a língua corrente [...] Nos nossos dias, o grande perigo de endoutrinamento, aparentemente, não vem da religião nem da política, mas da indiferença, ou de certa demissão dos próprios educadores. É importante levar em conta que, em espaços onde o diálogo e a contradição permanecem presentes, a universalização, ainda que se constitua momentaneamente acerca de um valor, dificilmente permanece. As sensações provocadas pelas contradições (entre reflexão, sentimentos e ações durante o diálogo e a experiência do valor) deixam sempre espaço para a dúvida sobre os valores construídos, desde que criemos um ambiente onde não seja reforçada a ideia de superioridade do que é construído mentalmente em relação a dúvidas suscitadas pela experiência. Afinal, essa ideia de superioridade da razão poderia manter os valores como máximas inquestionáveis, mas para as quais nos sentimos incapazes; quero dizer, reduziria a contradição entre reflexão e ação à ideia de que sabemos o que é “certo”, mas somos fracos para realizar. Isso desvalorizaria a experiência considerando que apenas o pensamento deveria ser levado em conta para reorientar a ação, nunca a vivência sendo considerada na reconstrução do pensamento (permanência da ênfase no pensamento platônico). Segundo Grün (2011): A educação ambiental surge hoje como uma necessidade quase inquestionável pelo simples fato de que não existe ambiente na educação moderna. Tudo se passa como se fôssemos educados e educássemos fora de um ambiente. [...] A adição do predicado ambiental que a educação se vê agora forçada a fazer explicita uma crise da cultura ocidental. [...] A crise ecológica, vista como um sintoma da crise da cultura ocidental, tem engendrado uma ampla investigação a respeito dos valores que sustentam nossa cultura. 27 A valorização do ambiente como espaço de vivência, de encontros e construção de valores na escola é considerada neste trabalho como uma possibilidade de subverter a ordem totalizante da formação. Pois, como afirma Alves (2004, p.62): Quando estou feliz, meus olhos veem a árvore e descansam nela. Não penso outras coisas. [...] Quando estou doente, meus olhos veem a árvore, mas não descansam nela. Penso. E o corpo, no pensamento, vai para um outro lugar. Pensamos porque não estamos felizes onde estamos. De modo algum desvaloriza-se aqui o pensar emaranhado em toda experiência humana, posto que a razão faz parte de nossa natureza, de nosso sentir. Compreendo nesta reflexão uma crítica ao pensamento que olha para a experiência de fora dela. “[...] meus olhos veem a árvore [...] Não penso outras coisas”, ou seja, estou por inteiro na presença do outro, na vivência singular. Não preciso ausentar-me para dar razão ou valor a esse evento. É fundamental refletir ainda acerca da dicotomia subjetividade (singular) – historicidade (coletivo), provavelmente fruto da tentativa das ciências humanas de se enquadrar nos moldes racionalistas da ciência moderna para serem aceitas como ciência. Pesquisadores positivistas das sociedades modernas, em suas tentativas (importantes) de compreender as estruturas, interpretaram os sujeitos nas condições de fantoches sociais, desconsiderando sua atuação sobre as superestruturas, descartando sua subjetividade, receosos de que houvesse um completo relativismo quanto às análises envolvendo fenômenos sociais. Por outro lado, pesquisadores pós-modernos, em suas tentativas de questionar o positivismo (também importantes), caíram muitas vezes no psicologismo/subjetivismo, transformando pesquisas em meras descrições de eventos particulares, desvinculados da cultura e da história, como se os sentidos fossem construídos individualmente. Sidekum (2002) aponta para a superação dessa dicotomia, à medida que considera a possibilidade da intersubjetividade, ou seja, de que o sentido da experiência de um indivíduo, como sujeito, seja compartilhado por outros indivíduos. Assim, a ética abarca o diálogo permanente entre a vivência (pessoal, concreta e histórica) e as normas (coletivas, culturais e históricas) no processo de humanização. Ao contrário do controle sobre a natureza (incluindo o controle sobre nossa própria natureza), são as incertezas que se apresentam em nossas experiências como sendo inerentes à existência. É, por vezes, desesperador perceber que, por mais injustas que sejam as possibilidades, sempre estamos optando. É angustiante reconhecer que, diante da opressão, há 28 os que preferem a tranquilidade da submissão, os que escolhem caminhos táticos na tentativa de levar à transformação e os que aceitam a morte para não abdicar de seus princípios. Contudo, existe a possibilidade de que a consciência da liberdade e da incerteza não conduza necessariamente ao desespero e/ou à estagnação. Isso pode ocorrer quando partilhamos, construímos e/ou questionamos juntos nossos valores morais, abrindo-nos para auscultar5. A escola poderia ser um espaço muito propício para esse trabalho com valores se considerarmos a rica experiência de intersubjetividade presente nesse grupo social (comunidade escolar) que reúne tamanha diversidade de vozes. Apesar disso, conforme indicam alguns autores que fundamentam esse trabalho (Sidekum e Herman), além de nossa própria prática profissional, quando existe a discussão relativa a questões valorativas, observamos a forte presença de uma razão kantiana pautando os debates morais nas escolas. Conforme descreve Sidekum (2002), a moral kantiana pauta-se nos seguintes pontos: “Age de tal forma que o motivo de tua ação possa ser constituído em princípio universal [...] Age de tal forma que tenhas sempre a vontade racional e livre em ti e nos outros como fim e não como meio [...] Age de tal forma como se fôssemos ao mesmo tempo legislador e súdito no reino das vontades livres e racionais” (p.44). O mesmo autor aponta ainda que, segundo a razão kantiana, como ser racional o homem destaca-se da natureza, à medida que a sua razão aparece como mediadora entre a lei e a sua ação (p.60). A filosofia da moral kantiana pauta-se sobre o que devo ou não devo fazer, e sobre a possibilidade de universalização desse dever. O racionalismo de Kant parece negar a possibilidade de que o vivido como evento único/singular participe da construção do juízo moral. Ou, nas palavras de Hermann (2010): No âmbito educacional, a teoria kantiana teve forte penetração sobretudo pela convergência entre o conceito de autonomia e as expectativas educacionais da modernidade. Caberia à educação formar moralmente o homem, visando à autonomia, comprometido com a escolha de fins universalizáveis. [...] a dificuldade de situar as normas em um determinado contexto deve-se ao seu caráter 5 Auscultar = palavra utilizada na obra de Bakhtin (2011, p.100-101) para se referir à atenção à voz do outro além da palavra pronunciada, compreendendo-a em sua singularidade e no diálogo que estabelece com outras vozes (que compartilham ou que se opõem à sua) no decorrer da história. Para Bakhtin (2011, p.101), é possível que, no plano da atualidade, confluam e polemizem o passado, o presente e o futuro; apontando Dostoiévski como um autor que tinha a sensibilidade para auscultar (perceber) essas vozes na realidade presente. Ponzio (2010) compreende essa ausculta como uma escuta que não apenas reconhece o direito do outro de dizer, mas produz sentido à voz do outro, sendo alterado por esta. 29 excessivamente abstrato, aprisionada pelo conceitual, insensível às peculiaridades de cada circunstância. Para esta autora, a ampliação de espaço para a experiência estética de obras de arte (pinturas, poemas, músicas, ...) pode nos fazer vigilantes contra o excesso de racionalismo na educação, o qual tem instrumentalizado o outro (p.135), sendo uma possibilidade para uma contínua construção da experiência, produzindo um ethos sensível, que reconheça nosso próprio limite no entendimento do outro, contribuindo para a abertura à alteridade (p.136). Também é importante considerar que, para alcançar o questionamento dos valores, para construí-los e reconstruí-los, reivindicá-los, ou correr riscos pelos mesmos, é necessário termos nos apropriado da dimensão social da vida humana. Como afirma Sidekum (2002), o homem fora de sua existência político-social não existe, ou, pelo menos, não é relevante (p.35). Nós existimos nas relações que estabelecemos com o outro (outro humano e/ou não humano). Ou, como aponta Buber (1979), “Não há eu em si, mas apenas o eu da palavra princípio eu-tu e o eu da palavra princípio eu-isso”. Se a relação com o outro é pautada no princípio eu-isso, coisificando-o, minha ideia de dever estará associada ao cumprimento do contrato por conveniência, numa relação de troca, onde o eu mede o custo-benefício da conduta (aprovação social, garantia da manutenção de recursos naturais, evitar conflitos, dentre outros). Se, ao contrário, estabeleço com o outro uma relação que tenha a expressão eu-tu por princípio, reconhecendo-o como sujeito, minha noção de dever estará associada ao respeito e responsabilidade para com a alteridade que se apresenta no diálogo comigo. E nessas relações construímos sentidos ao que nos cerca, primeiramente, através das sensações e/ou da afetividade, e, posteriormente, através de reflexões e escolhas de atitudes morais por meio das quais construímos nossa personalidade, conforme valores atribuídos à vida, ao humano e ao não humano, com base nessas experiências do outro. Contudo, Ponzio (2010) aponta a importância de estar atento para que, assumindo esta relação eu-tu proposta por Buber, não estejamos apenas admitindo as relações entre sujeitos que nos obrigam a passar o direito de palavra ao outro, sem sermos afetados. Ponzio (2010) defende que a relação não é entre, mas aquilo que cada um é no encontro da outra palavra com a palavra outra (p.40). Se os valores são construídos nas relações que estabelecemos com o outro, é de indiscutível importância o papel do educador (embora não único) nesse processo. Precisamos 30 de educadores que se coloquem à ausculta e dispostos a correr os riscos inerentes à quebra dos monólogos que constituem a base de nossas concepções de aula. Bakhtin (2010) também se posiciona criticamente em relação à herança racionalista que considera que o verdadeiro se reconhece por sua universalidade e identidade, enquanto a verdade ligada à singularidade seria artística e irresponsável. Este autor, em sua obra Para Uma Filosofia do Ato Responsável, aponta que quanto mais estivermos próximos de uma unidade teórica, reduzidos a uma identidade repetitiva, mais pobres e genéricas serão as experiências singulares, menor a abertura ao diálogo, à experiência emotivo-volitiva, afastando-nos do ato na sua responsabilidade sem álibi. Por outro lado, essa associação entre arte e brincadeira, que a desconecta do caráter de seriedade atribuído às ciências, pode ser uma porta para sensibilizar-nos à presença do outro. Se a obra artística não tem como obrigação resolver um problema ou interpretar uma realidade, podemos desarmar-nos diante desta, seja em sua criação ou em sua apreciação. A obra de arte é valorativa, ideológica, cultural, sem o peso de ter que apresentar uma verdade. Para criação e apreciação não há o estereótipo da ingenuidade, permitindo a presença das utopias. A originalidade não deixa excluir o estranho. A dor se faz singular, de modo que não passa despercebida, ou não se esconde em números. Considero então importante refletir sobre o risco de que a Arte como disciplina escolar, pensada sob a forma de um currículo, tenha seu reconhecimento reivindicado, como ocorreu com as ciências humanas, na tentativa de enquadramento nos moldes racionalistas. Voltamos às técnicas, à história da Arte ocidental, às interpretações deterministas, reducionistas. Há muitas releituras e pouca criação. Como apontam Marin e Oliveira (2005): O formalismo que se enraíza nas ciências é o mesmo que engessará a relação do ser humano com o mundo e com sua história. O estruturalismo dá indícios disso, na mesma convergência em que a arte busca um grau de concretude. A necessidade do não-formalismo no campo da arte é a dimensão da gênese do impressionismo, que traz nas deformações do objeto um apelo para a percepção livre [...] Não defendo o esvaziamento de conteúdo no estudo das obras artísticas, mas a presença real de sujeitos que com este conteúdo dialogam, com suas reflexões, intuições, valores, ideologias. A obra de arte não está acabada, do mesmo modo que as ciências, mas em constante diálogo com os sujeitos que com essas palavras se encontram. 31 Ainda segundo Marin e Oliveira (2005): A Educação Ambiental [...] comunga com a educação estética a urgência de despertar no humano um olhar sobre si mesmo e o reconhecimento da expressão de suas dimensões não conceituais como zonas de conhecimento capazes de fundar um novo posicionamento ético diante do outro e do mundo. Compreendo, portanto, a Educação Ambiental como significativa possibilidade de sensibilização humana, buscando reconciliação entre razão e emoção em nossa formação. 32 3) O educador reflexivo e o agir pedagógico Talvez uma das maiores dificuldades para implantar uma prática pedagógica pautada no diálogo, trabalhando com valores na construção de um sujeito ético, seja o fato de que educador e educando precisam desalojar-se, sair da zona de conforto social. É difícil perceber que não estamos no controle, e mais ainda ficar expostos, o que é inevitável quando nos abrimos ao diálogo. É difícil ainda descobrir que o outro é muito mais do que as representações que lhe atribuímos. Segundo Sidekum (2002), o filósofo Kierkegaard aponta para a experiência ética como sendo a subjetividade ferida face à interpelação do absolutamente outro, que infinitamente reclama por justiça e põe minha subjetividade em questionamento (p.106). A atenção a essa interpelação é uma das formas de resistência à petrificação e imposição de valores. As sensações provocadas pelas contradições na experiência das relações humanas deixam sempre espaço para a dúvida sobre o valor constituído, tornando permanente a reflexão sobre as normas morais de conduta (atitude do sujeito ético). Herman (2010) aponta o romance de Dostoiévski como provocador por “incitar o estranhamento das crenças habituais, por intermédio de uma liberdade do sensível contra o embrutecimento da percepção automatizada, que não percebemos numa rígida estruturação racional de princípios éticos abstratos” (p.107). Ainda de acordo com a autora (2010), Nietzsche já havia nos alertado, desde o século XIX, para os perigos da vulgarização da cultura, reduzida a uma cultura jornalística, que nos impede de interpretar a própria experiência para além da “verdade” apresentada (p.113). Trocamos a arte pela notícia. Trocamos a escuta pela sentença. Gostaria de frisar que considero que tal perspectiva não se trata de relativismo, mas sim de uma experiência de humanismo no ambiente escolar, valorizando o encontro dialógico e a singularidade deste. Nossa realidade material e limitada nos impele a construir valores como humanos que somos (totalidade), mas também nos coloca em constante reavaliação desses valores, muitas vezes motivada pelos encontros únicos com o outro em sua alteridade (singularidade). É importante enfatizar que a singularidade referida e/ou evento único não são sinônimo de desconsideração da realidade histórico-social na qual os participantes do diálogo estão inseridos. A constituição do sujeito em sua alteridade não está desvinculada de sua realidade material, embora não se reduza a esta (constituindo-se no diálogo com o diferente de 33 si). Isso aparece claramente na perspectiva instaurada por Levinas, descrita por Sidekum (2002), de um novo humanismo dentro da perspectiva filosófica, principalmente no campo da ética, reconhecendo a alteridade do outro além das perspectivas da subjetividade, do psiquismo (p.147); uma intersubjetividade que acontece na existência humana através da relação intersubjetiva e na exigência infinita de justiça para com o outro (p.149). Isso exige uma ética sensível. Esta ética sensível, como comentada anteriormente, também é vislumbrada por Herman (2010), que destaca o papel das emoções em suas construções. Segundo essa autora (2010, p.102): As emoções têm uma dimensão cognitiva, vinculada a certas crenças éticas. Aquilo que nos provoca medo, por exemplo, está ligado ao que acreditamos que possa causar dano em nossas vidas. Assim, as emoções não correspondem às visões estereotipadas de que seriam irracionais, não aprendidas, reações corporais [...] Sidekum (2002) indica como fundamental a consciência histórica para transformação do mundo e da própria história (p.179), e aponta para a realidade de que a sociedade política e econômica está órfã de utopia (p.199). É preciso não apenas saber como agir segundo os próprios valores, mas ampliar a sensibilidade e o diálogo com o outro em sua alteridade, de modo a favorecer a tomada de decisão coletivamente, que leve em conta contextos, pluralidade cultural e princípios democráticos. Acontece que, para que a autonomia seja construída, é necessário criar espaços onde exista a necessidade de escolha, com reflexão e envolvimento (emocional, ideológico, político, filosófico). Nesse sentido, uma prática educativa que intencione trabalhar com a construção de valores, resistindo às visões cientificistas de ensino, pode contribuir com a formação do humano como sujeito ético, na medida em que propicia ao jovem a possibilidade de vivência de conflitos morais, desde que o educador esteja comprometido em garantir que o debate não fique reduzido ao comportamento individual/pessoal, considerando os aspectos sociais, históricos, políticos, ideológicos, dentre outros, que envolvem os temas em questão, estimulando tomadas de decisões coletivas e não apenas a lealdade pessoal aos próprios valores. Segundo Hermann (2010, p.132): 34 Considerando, sobretudo, as éticas racionalizadas, a relação com o outro se torna alvo de muitas críticas, porque nossas ações, ao atender demandas universais, negligenciam as particularidades dos contextos e sacrificam a alteridade, indicando a pouca efetividade de princípios éticos abstratos. Este tema passa a ter uma atenção especial na ética contemporânea e, mais especificamente, na educação, como exigência de uma sociedade que enfrenta conflitos de grupos que têm diferentes orientações valorativas e, com frequência, acreditam na superioridade de uma cultura, baseada em critérios técnico-científicos. Nesse sentido, é fundamental que o educador esteja atento para que, durante as estratégias para construção de valores voltados à humanização, não esteja reforçando o que Apple (2003) identifica como uma posição neoconservadora carregada de um sentimento de perda da moralidade, uma visão quase idílica de pessoas da mesma mentalidade que partilharam normas e valores e em que a “tradição ocidental” reinava suprema (p.57, 58). É importante estar atento para que o sentimento de estranhamento a que se refere Hermann (2010), que pode ampliar nossas condições de reconhecimento da alteridade (p.134), não seja suprimido pela fantasia de que os valores comuns em nossa cultura são mais humanos. A valorização da polidez, por exemplo, definida como civilidade, pode estar desconsiderando seu caráter cultural, excluindo, no próprio ambiente escolar, aqueles que não encontram a forma mais delicada de colocar suas ideias. Esse risco aumenta se nosso pensamento se limitar à ideia de que a escola é o “lugar do científico”, compreensão frequente em nossa sociedade, de que o (a) professor (a) é um técnico que deve apenas dominar conhecimentos e conhecer, portanto, técnicas pedagógicas para torná-los acessíveis aos (as) estudantes, pois dessa forma o trabalho valorativo talvez não supere discursos e modelos moralizantes para favorecer determinados comportamentos, como se os valores morais fossem construídos apenas racionalmente. Se considerarmos valores como construções racionais, desvinculados dos aspectos culturais, os colocamos em graus de evolução, de modo a hierarquizar a humanização das pessoas, excluindo-as ou reduzindo suas vozes nos diálogos. Contrária a essa perspectiva, Hermann (2010) aponta que a experiência estética pode ser uma possibilidade de familiarização com o estranho de nós mesmos, com nossas contradições mais fortes, e esse estranhamento atuaria decisivamente na revisão de nossas crenças e no questionamento sobre o respeito exacerbado pelas convenções (p.134) que costumam reduzir o outro. Aí surge uma questão primordial para construção da prática pedagógica: a formação do educador. Se não existisse convergência entre membros de diversas ideologias políticas a 35 respeito do relativo poder das práticas pedagógicas e/ou do educador sobre a construção/formação do humano além dos conhecimentos técnicos, os debates acerca de qual deveria ser a postura do educador não seriam tão recorrentes. Estes demonstram que, como afirmou Freire (2013), a educação não vira política por causa da decisão do educador, mas é política (p.108), porque exige constantemente, por parte do educador, um posicionamento ao optar por uma posição de neutralidade ou por um posicionamento claro, por trabalhar autoridade e/ou liberdade, por uma aula monólogo ou dialógica, pelo grau de participação discente nas atividades propostas, por uma prática que inicie no cotidiano, que ignore a realidade local e/ou que morra nesta, por um rigor científico ou por um saber pragmático, dentre outras decisões carregadas de valores e ideologias. Isso aponta para as responsabilidades profissionais do professor. Segundo Freire (2013, p.141): Não sendo superior nem inferior a outra prática profissional, a minha, que é a prática docente, exige de mim um alto nível de responsabilidade ética de que a minha própria capacitação científica faz parte. É que lido com gente. Se reconhecermos o papel relevante das práticas pedagógicas na construção da democracia, do posicionamento sem álibi nas diferentes situações sociais, e elegermos a educação ambiental como um dos contribuintes com essa formação humana, através do trabalho com valores, será fundamental a formação docente e a ênfase em seu compromisso ético, estimulando questões como: O que entendemos por democracia? Interessante o posicionamento de Ponzio (2010) com relação à democracia como escuta da palavra outra. O autor nos recorda quantas atitudes completamente estranhas à democracia são justificadas absurdamente como formas de defendê-la, e aponta que, muitas vezes, na reivindicação da democracia há arrogância, quando acreditamos que somos democráticos e temos o dever de transmitir essa forma de ser. Mas, na verdade, somente o outro poderia reconhecer se estamos sendo democráticos. Ponzio (2010) afirma: A designação correspondente a “democracia”, se fosse seriamente afirmada, seria sinônimo de “sociedade aberta de eus abertos”, sociedade do encontro, da escuta, da diferença não indiferente. [...] A democracia não é uma “invenção”, nem uma descoberta, nem uma fórmula de governo, muito menos uma fórmula de solução. É uma atitude, que como tal subsiste apenas até o ponto em que, de volta em volta, for assumida por cada um, e não apenas por quem governa; uma atitude em relação ao outro; e é, portanto, o outro em primeiro lugar que pode reconhecer uma atitude digna de tal nome. Importante refletir que a pesquisa anteriormente citada nesse trabalho, realizada na Turquia por Tuncay, Tüzün e Teksoz (2012), a qual apontou a predominância do nível padrão 36 de raciocínio moral convencional entre professores em formação, identificou ainda entre esses professores perspectivas mais ecocêntricas em relação às análises dos problemas ambientais, ou seja, que privilegiam os direitos e cuidados com relação à natureza (que não inclui o humano), independente do contexto, desconsiderando questões sociais e culturais. Os pesquisadores relacionaram essa observação ao fato de muitas respostas serem dadas com base em princípios formais, noções de direito, cultura popular, o que indica forte presença de valores morais ligados à ideia de normas, leis e regras. Isso parece indicar a necessidade de uma formação docente mais reflexiva e comprometida com a construção de propostas pedagógicas que permitam às escolas superar a reprodução desses padrões. Os sujeitos parecem afirmar que amam a natureza ou que devemos respeitá-la, que tem valor em si, mas não pautados na relação que estabeleceram com esta e sim nos pensamentos elaborados sobre o que a natureza é ou deixa de ser, o que devem ser ou deixar de ser em relação a esta. Considero que uma possibilidade para essa superação aparece na proposta de Carvalho, M. (2006), a qual defende que as práticas de Educação Ambiental devem abarcar igualmente três dimensões: conhecimentos, valores éticos e estéticos, e participação política (p.27). A ênfase em qualquer dessas dimensões, em detrimento das demais, pode desfavorecer o trabalho desejado. É possível associar a priorização dos conhecimentos, dos valores éticos e estéticos, ou da participação política (quando desvinculados entre si), respectivamente, ao desenvolvimento da razão instrumental, do comportamentalismo, e do ativismo, todos desvinculados dos compromissos com a experiência do diálogo e com a formação do sujeito ético. Pesquisa realizada por Degasperi (2012), na cidade de Rio Claro, no Estado de São Paulo, investigando o trabalho de construção de valores durante a prática educativa envolvendo a temática ambiental de professores da rede estadual, apontou que os professores, marcadamente, partiam da dimensão cognitiva para apoiarem seu trabalho com valores, ligando-se àquela dos conhecimentos, populares ou científicos, que parecem enfatizar um caráter racional à construção de valores e, em conjunto, de valores e conhecimentos (p.205). Essa dificuldade com as demais dimensões está, provavelmente, ligada à nossa formação racionalista vinculada à visão pragmática da educação (razão instrumental), já discutida. A mesma autora aponta para a experiência de abertura dos educadores em questão, de modo que, apesar de se apresentar a estes como um desafio maior, não se fecharam às demais dimensões (afetivas e da ação), conforme foram surgindo em suas experiências na prática 37 pedagógica, constatando a criação, a inovação e a presença real do professor em sua prática intencional e responsável (p. 204, 205). Considerando que esses professores estavam envolvidos em projeto de formação que considerava o educador como responsável pela construção de suas práticas, estimulando a ação-reflexão-ação, essa pesquisa reafirma a ideia que está sendo defendida neste trabalho de um educador pesquisador e participante na construção das práticas pedagógicas, e não apenas como aplicador de metodologias distribuídas em manuais técnicos. É importante observar que, quando me refiro a um educador pesquisador e participante, não estou me associando à ideia contemporânea do profissional que deve “reciclar-se”, enchendo seu currículo de cursos que ampliem sua atualização em relação às novas informações e descobertas científicas; mas sim aos espaços de diálogos favorecidos nos grupos de estudos que não têm como base o que Freire (2001) denominou “educação bancária”, e sim a construção de sentidos em um ambiente polifônico, onde não existem especialistas, apenas conhecimentos, vozes diferentes e sujeitos não indiferentes. Quem vivencia experiências de diálogo em formação enriquece suas possibilidades de escuta e atitude responsável no ambiente pedagógico em que irá atuar como educador. Concordo com o posicionamento de Freire (2013, p.30), segundo o qual: Fala-se hoje, com insistência, no professor pesquisador. No meu entender, o que há de pesquisador no professor não é uma qualidade ou uma forma de ser ou de atuar que se acrescente à de ensinar. Faz parte da natureza da prática docente a indagação, a busca, a pesquisa. O de que se precisa é que, em sua formação permanente, o professor se perceba e se assuma, porque professor, como pesquisador. E é importante enfatizar que a profissão do professor, considerando suas exigências éticas que envolvem assumir a intencionalidade de suas práticas, requer tempo para refletir a ação, de modo a ser possível responder de forma responsável à necessidade apontada por Tozoni-Reis (2006) “de superação das propostas educativas ambientais ingênuas e descomprometidas, social e politicamente, em busca de atividades mais consistentes e consequentes comprometidas com a construção de sociedades mais justas e igualitárias”(p.108), ou, como apontou Freire (2013), com a formação do sujeito comprometido com a ética universal do ser humano enquanto marca de sua natureza, social e histórica, que nos reconhece como seres condicionados mas não determinados (p(s) 19-20). A prática pedagógica exige tempo de disponibilidade para o outro, de abertura para a escuta. A ansiedade em produzir muito em pouco tempo do que se espera do educador em seu 38 papel social, para corresponder às expectativas da sociedade de mercado que vê inclusive o próprio humano como recurso, favorece os monólogos nos espaços educacionais em detrimento do diálogo, e a confusão entre o direito de cada um dizer o que quiser e a democracia que não comporta a indiferença. Segundo Ponzio (2010, p.149): Tempo disponível para quê? O tempo de trabalho com o seu lazer é o tempo de identidade. Este é funcional à reprodução do sistema, à manutenção do ciclo de produção, à reconfirmação dos papéis e das posições sociais vigentes. [...] o tempo disponível é tempo da não indiferença, da singularidade, da qualificação. Neste, a relação social baseada na sua identidade compreende uma relação social de alteridade, de outro em relação a outros. Isso diz respeito à própria alteridade sacrificada na abstração do trabalho indiferente e na necessidade do trabalho útil. Isso significa que o tempo reivindicado não é sinônimo de tempo para “recuperar as energias” para produzir mais, não é o tempo extensão do trabalho, tempo este em que precisamos estar fazendo algo para sermos socialmente reconhecidos ou identificados como alguém. O tempo de que necessitamos é o tempo do nada, da atenção, da presença, da escuta, do diálogo que se constrói e não que tem um produto pré-determinado. Precisamos do tempo da inutilidade. 39 4) Autoridade, Liberdade e os Valores em Relação Antes de iniciar o debate, apresento o que compreendo como valores, por considerar que a concepção dessa palavra-chave presente no trabalho deva estar clara. A palavra valor, segundo Japiassu e Marcondes (2001), literalmente, em sua origem latina, significa coragem, bravura, caráter do homem. Assim, considero valores tudo aquilo que construímos para dar sentido à nossa existência, para sustentar nossa coragem diante da vida, constantemente reconstruídos em nossas vivências. Essas construções às quais me refiro não ocorrem no campo subjetivo de um eu identificado com os “pesos” valorativos que atribui às coisas e seres que o cercam, direcionando suas ações. As construções que reconheço como valores são inacabadas, devido a seu caráter relacional. Esse caráter relacional do valor, como aponta Paya (2000), apoiando- se em Frondizi, resume-se na relação triangular entre sujeito-objeto-processo de valoração. Como afirma Paya, “no se puede analizar ningún valor si no se hace en relación con el sujeto que valora” (p.17), ou seja, nenhum valor é abstrato. Um dos prováveis motivos para recusarmos assumir o trabalho com valores como parte de nossas práticas pedagógicas, atribuindo essa responsabilidade exclusivamente às famílias, diz respeito às nossas experiências históricas de organização social ligadas ao autoritarismo. E, ironicamente, as famílias também temerosas em lidar com a questão confiam, muitas vezes, à escola, por atribuir a esta o que consideram conhecimentos sobre educar. Então, surge a pergunta: como queremos formar sujeitos éticos, que assumam a responsabilidade sobre suas escolhas, se tudo que veem em nós é que, diante do conflito, abstemo-nos de decidir? Não estará esta abstenção sendo licenciosa com a ordem estabelecida? É possível refletir que pessoas que nunca tiveram que participar de um debate para defender algo que lhes é caro, que nunca foram contrariadas por uma autoridade ou regra estabelecida, não apenas podem tender a tomar decisões arbitrárias segundo seus desejos individuais como se apregoa, mas inclusive tornarem-se legalistas se isso lhes parecer confortável, desresponsabilizando-se por suas atitudes. As escolhas passam a ser associadas ao gosto pessoal, à ideologia escolhida individualmente, à índole e maneira de ser de cada sujeito, como se pudesse existir um “eu” para além das relações estabelecidas entre sujeitos e entre estes e a sociedade em que estão 40 inseridos. E, ao mesmo tempo, as regras passam a ser vistas como deveres pautados em alguma espécie de conhecimento que, por vezes, foge ao entendimento do sujeito. O medo de sermos autoritários e injustos nega o caráter de construção constante da própria ideia de justiça, fazendo com que esta pareça algo natural decorrente de esforços/méritos pessoais. Segundo Freire (2013, p.65): É interessante observar como, de modo geral, os autoritários consideram amiúde, o respeito indispensável à liberdade como expressão de incorrigível espontaneísmo e os licenciosos descobrem autoritarismo em toda manifestação legítima da autoridade. A posição mais difícil, indiscutivelmente correta, é a do democrata, coerente com seu sonho solidário e igualitário, para quem não é possível autoridade sem liberdade e esta sem aquela. A autoridade a que o autor se refere como necessária, da qual compartilho, diz respeito ao conhecimento e à responsabilidade assumida pelo profissional dado seu compromisso com a sociedade e com o grupo em trabalhar para formação humana. Se o professor se abstiver de tomar uma atitude (da forma mais sensível possível para com os envolvidos) diante de posturas que se oponham aos valores democráticos, provavelmente estará sendo licencioso com o exercício abusivo da liberdade individual, permissivo com a autoridade arbitrária (pautada no poder/força física e/ou psicológica, e não na responsabilidade). Por sua vez, a liberdade referida como desejável é aquela em que indivíduos não indiferentes assumem sua escolha, tendo claras as implicações associadas às diversas possibilidades, não apenas respeitando os limites colocados pelas liberdades dos demais, mas responsabilizando-se coletivamente, assumindo as consequências de suas escolhas (incluindo o risco pela defesa de valores que lhes são caros). Muitas vezes, por receio de oprimir, pensamos estar garantindo a liberdade do outro quando o protegemos da experiência do sofrimento que determinada atitude pode infligir a si e/ou a outrem. Isso ocorre por não conseguirmos desassociar sofrimento e castigo/punição. O castigo/punição é autoritário e opressor à medida que não dialoga com nossa atitude, não busca compreendê-la nem questioná-la, mas apenas coibir sua repetição, enfraquecer o sujeito. O sofrimento pergunta, inquieta, pode modificar ou reforçar a atitude, dialoga com esta. Exemplifico a reflexão do parágrafo anterior com uma experiência pessoal como estudante na escola básica. Durante o ensino fundamental, estudei em uma escola metodista que costumava premiar a honestidade. Quando o (a) professor (a) se equivocava ao corrigir 41 uma avaliação, atribuindo nota mais alta do que a real, sempre lhe mostrávamos e ganhávamos elogios, além do conceito não ser modificado. Quando fui para a escola pública, no ensino médio, e o mesmo fato ocorreu, o professor modificou a nota de 10 para 9, ou de 9 para 8. Recordo que um colega o questionou, dizendo que estávamos sendo punidos pela honestidade. Mas permaneci com a mesma postura. Até que, em uma avaliação de biologia, tendo tirado 5 por um equívoco do professor - pois a nota deveria ser menor, não consegui repetir a atitude. Guardei a avaliação sem discuti-la. Lembro que foi bastante sofrido esse momento na adolescência. Não proponho discutir aqui se a atitude foi ética ou não, mas a percepção que se deu sobre a diferença entre abdicar quando sobra ou quando pesa. A voz do outro e do outro de mim só pode aparecer quando não me foi ocultado o preço da escolha. Como aponta Bornheim (1985), “a liberdade surge através do compromisso, ela se constrói à medida que assume a alteridade” (p.24). Se me abstraio do que resulta de minhas atitudes e palavras, abdico de construir sentidos com minhas escolhas, limitando a ação ao que me é particularmente confortável no momento, como o animal que corre para comer o alimento que largam todos os dias em sua jaula ou troca a ração pelo biscoito que a criança jogou para dentro. Será isso liberdade? Penso que não. Como afirmou Bornheim (1985, p.22): A terrível afirmação de Borgson, de que a maioria dos homens nasce e morre sem nunca ter experimentado um único ato livre, pode acobertar a antipatia de certo elitismo, mas ela aponta sem dúvida a uma dimensão correta do problema: não faz sentido defender uma natureza humana passivamente livre. Verifica-se, no máximo, um condicionamento no homem para a liberdade, mas o acicate que “inventa” a liberdade deriva todo inteiro da necessidade do compromisso. Interessante observar como é possível que mesmo em movimentos significativamente revolucionários prevaleça a passividade da atitude que se justifica nos papéis sociais, que acabam se constituindo como álibis para as atitudes. Isso predomina, provavelmente, pela racionalização de nossas análises excessivamente abstratas, descartando a experiência humana singular. Como afirma Hermann (2010), “Formação é um trabalho de si mesmo, numa abertura dialética entre a experiência no mundo e um projeto de mundo”. Parece que muito investimos em nossos projetos de mundo e pouco em nossas experiências no mundo, as quais, como apontado anteriormente, aprendemos a associar às nossas fraquezas. Outra questão relevante diz respeito ao receio de anulação da diversidade cultural em nome de uma suposta civilização global. Temos receio de que as diferenças sejam hierarquizadas, apresentadas como diferentes graus de evolução humana, oprimindo e excluindo culturas com menor participação nos debates mundiais. 42 Convém, contudo, refletir nesse momento sobre o empobrecimento cultural para os diversos grupos quando se fecham para o diálogo. O isolamento cultural pode acarretar a opressão intracultural e a exclusão cada vez maior do diferente, recoberta por uma falsa ideia de aceitação. É significativo considerarmos cada vez mais o valor de diálogos interculturais em que estejam presentes as diferentes vozes, com igualdade de poder. No verdadeiro diálogo, não há hierarquização das vozes, toda palavra é ouvida atentamente, considerando seu potencial de alterar e sua possibilidade de ser alterada. A palavra posta em diálogo não está para o convencimento, mas como participante da construção de sentidos própria da linguagem. Como afirma Frondizi (2005): Ni el “cosmopolitismo sin contenido” (vacuas cantinelas acerca de la humanidade común), ni el “provincialismo sin lágrimas” (a cada uno lo suyo) [...] se precisa em cambio fortalecer el poder de la imaginación para captar lo que hay frente a nosotros. Aprofundando o debate acerca do receio do educador em posicionar-se, se os valores são construções de caráter relacional, é impossível ao humano negar sua constante participação nesse ato. Quero dizer, não há como abster-se de participar da construção de valores onde há encontros. Onde existem sujeitos dialogando, existem construções de valores. Segundo Paya (2000): Los valores se definen, pues, como cualidades estructurales que surgen de la relación entre un sujeto y un objeto. Pero, como muy bien precisa Frondizi, esa relación no se da en el vacío, sino en un contexto. A la importancia del contexto en el desarrollo de los valores es a lo que Frondizi denomina ecologia del valor. Além de não construírem valores em si mesmos, em uma consciência una, os sujeitos encontram-se, segundo Paya, pautando-se em Frondizi, em ambientes físicos, culturais, sociais, com um conjunto de necessidades e aspirações, em determinada condição espaço- temporal. Esses ambientes e condições em que se encontram os sujeitos não determinam seus valores, e sim influenciam o diálogo entre os sujeitos. Toda conversa que ocorre no ambiente escolar entre professor (a) e aluno (a) está permeada por muitas vozes suas e de toda materialidade em que se encontram. O próprio não dizer está repleto de posicionamentos e ideologias. Como aponta Grün (2007), “O significado vivo das palavras contrasta radicalmente com o significado dos termos técnicos e da linguagem científica” (p.112). Não há como dizer “Bom dia” sem valorar. 43 Por isso, considero, como Freire (2013, p.40), que: A prática docente crítica envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer. O saber que a prática docente espontânea ou quase espontânea, “desarmada”, indiscutivelmente produz é um saber ingênuo, um saber de experiência feito, a que falta a rigorosidade metódica que caracteriza a curiosidade epistemológica do sujeito. [...] quanto mais me assumo como estou sendo e percebo a ou as razões de ser de por que estou sendo assim, mais me torno capaz de mudar, de promover-me, no caso, do estado de curiosidade ingênua para o de curiosidade epistemológica. É fundamental que o professor assuma sua posição conscientemente, que esteja atento às palavras que diz e às que lhe são ditas, disponibilizando-se para constante construção. Não defendo que tudo seja completamente controlado, que se perca o encantamento, a beleza de aceitar o inusitado, a espontaneidade de gestos na construção das relações humanas que ocorrem em sala de aula. O que não é possível defender é uma espontaneidade total que descaracterize o trabalho profissional do professor, anulando seu compromisso ético e social. Uma espontaneidade total pode ser associada à indiferença. É preciso respeitar a espontaneidade da palavra outra, inesperada, surpreendente. Mas respeitá-la significa colocar- se em diálogo com esta a partir do próprio posicionamento. Outro ponto a ser refletido relaciona-se com os conflitos que podem existir entre posicionamentos do educador, da escola e da família. Gostaria de enfatizar que, com todo o respeito e consideração pelo papel e mesmo dever dos pais quanto à educação de seus filhos, se a família fosse única responsável por trabalhar com valores, precisaríamos viver em guetos. Não é possível viver em sociedade pluralista, de forma democrática e aberta a transformações para uma realidade mais humana e justa, se as famílias resolverem fechar seus filhos em bolhas, alimentando-os apenas de suas visões de mundo, seus valores, suas crenças, sua