UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANA E SOCIAIS WASLAN SABÓIA ARAÚJO VIAJAR POR CASTELA NOS SÉCULOS XIV E XV: ORDENAMENTO DO ESPAÇO E DAS RELAÇÕES ENTRE OS HOMENS FRANCA 2024 WASLAN SABÓIA ARAÚJO VIAJAR POR CASTELA NOS SÉCULOS XIV E XV: ORDENAMENTO DO ESPAÇO E DAS RELAÇÕES ENTRE OS HOMENS Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", como pré-requisito para a obtenção do título de Doutor em História Área de concentração: História e Cultura Social Orientadora: Susani Silveira Lemos França FRANCA 2024 A663v Araújo, Waslan Sabóia Viajar por Castela nos séculos XIV e XV : ordenamento do espaço e das relações entre os homens / Waslan Sabóia Araújo. -- Franca, 2024 284 p. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca Orientadora: Susani Silveira Lemos França 1. Viagens. 2. Castela. 3. Organização territorial. 4. Mobilidade. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Dados fornecidos pelo autor(a). VIAJAR POR CASTELA NOS SÉCULOS XIV E XV: ORDENAMENTO DO ESPAÇO E DAS RELAÇÕES ENTRE OS HOMENS Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré- requisito para a obtenção do título de Doutor em História. Área de concentração: História e Cultura Social Orientadora: Susani Silveira Lemos França BANCA EXAMINADORA Presidente: _________________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Susani Silveira Lemos França, UNESP/Franca. 1º Examinador:_____________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Aline Dias da Silveira, Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC 2º Examinador:______________________________________________________________ Prof. Dr. Douglas Mota Xavier de Lima, Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA 3º Examinador:_____________________________________________________________ Prof. Dr. Jaime Estevão dos Reis, Universidade Estadual de Maringá - UEM 4º Examinador:_____________________________________________________________ Prof. Dr. Paulo Catarino Lopes, IEM / CHAM - FCSH Universidade Nova de Lisboa Franca, 14 de fevereiro de 2024. Para Susani AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente a minha orientadora Susani Silveira Lemos França pelo incansável comprometimento e cuidado que dedicou tanto na elaboração deste trabalho como nas demais etapas da minha formação, bem como por todo o carinho e amizade que sempre me ofereceu de tão bom grado. Em relação à viabilização da pesquisa, agradeço o financiamento oferecido pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP – Processo nº 2019/03545-4). Meus agradecimentos, também, aos professores doutores Jaime Estevão dos Reis e Douglas Mota Xavier de Lima por terem participado do exame de qualificação, pela leitura cuidadosa e pelas sugestões para o aprimoramento do trabalho. Agradeço imensamente aos amigos Ana Carolina Viotti e Rafael Afonso Gonçalves, sempre tão atenciosos, presentes e dispostos a ajudar em todas as esferas possíveis, bem como pela mostra de profissionalismo e empenho, igualmente de suma importância. Ao Jean Marcel de Carvalho França, por todos os ensinamentos oferecidos. Especialmente agradeço a todos aqueles que acompanharam cotidianamente esta jornada: à Adrielli de Souza Costa por todo o carinho, companheirismo e alegria que me proporciona. À Janaína Salvador Cardoso e ao Rodolfo Nogueira da Cruz pela grande amizade que foi construída nesses anos e mantida diariamente, e por toda a ajuda – seja em questões pessoais, seja em questões profissionais – com a qual sempre pude contar. Ao Gabriel Ferreira Gurian, por todas as trocas, amizade e ajuda que me ofereceu sempre tão prontamente. À toda a minha família, por todo o carinho e apoio incondicional. Aos meus pais Maria Leticia Saboia Araujo e José Emilde dos Santos Vidal, por toda a formação e ensinamentos, assim como o amor e exemplo de vida; à minha tia Izélia Saboia Araujo, pelo amparo que me ofereceu no fim da graduação e ao meu irmão Francisco Ailton e minha cunhada Thaís Carolina por todo o carinho. ARAÚJO, Waslan Sabóia. Viajar por Castela nos séculos XIV e XV: ordenamento do espaço e das relações entre os homens. 2024. 284f. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Franca, 2024. Resumo: Durante a segunda metade do século XIV, houve um aumento exponencial dos registros de viagens efetuadas em terras da Coroa de Castela. Esses informes atestam a profusão de visitas estrangeiras nesse sítio que figurou como um destino muito caro aos coetâneos desse período. Paralelamente, os registros informam sobre a experiência de traslado por paragens castelhanas, inventariando os desafios e auxílios que poderiam ser encontrados ao longo das jornadas. Concomitantemente ao aumento dos relatos acerca dos deslocamentos, houve um esforço dos poderes locais em ordenar e controlar melhor o território utilizado pelos transeuntes, castelhanos e estrangeiros. As Cortes desempenharam um papel decisivo nesse processo. Em tais assembleias, foram recorrentes as petições que versavam sobre os cuidados necessários para conservação dos espaços transitáveis e sobre outros elementos relacionados aos deslocamentos. Isto posto, o principal alvo do presente trabalho é interrogar, nesse contexto, o cotidiano das jornadas, com ênfase sobre as condições de viagem e as diversas tentativas de normatização do espaço nos territórios sob domínio da Coroa castelhana. Importa questionar quem viajava, por que viajava e que condições foram oferecidas aos viajantes, visando compreender qual o peso das viagens naquele tempo, bem como quais foram as estratégias para a viabilização dessa atividade em solo castelhano. Debruçar-nos-emos, pois, sobre o período que se estende entre a segunda metade do século XIV e o final do século XV, ou seja, um contexto de redefinição e fortalecimento do controle territorial, que, por sua vez, repercutiu nas dinâmicas dos traslados por aquelas plagas. Palavras-chave: Viagens, Castela, Organização territorial, Mobilidade. ARAÚJO, Waslan Sabóia. Traveling around Castille in the 14th and 15th centuries: organization of space and relationships between men. 2024. 284 pages. Thesis (Doctorate in History) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Franca, 2024. Abstract: During the second half of the 14th century, there was an exponential increase in records of journeys made in lands of the Crown of Castile. These reports attest to the profusion of foreign visitors to this place, which was a very dear destination to the contemporaries of that period. At the same time, the records provide information about the experience of moving around Castilian places, listing the challenges and assistance that could be encountered along the journeys. Concomitantly with the increase in reports about the journeys, there was an effort by local authorities to better organize and control the territory used by the travelers, both Castilian and foreign. The Cortes played a decisive role in this process. In these assemblies, petitions were frequently raised regarding the necessary care for the conservation of passable spaces and other elements related to travel. That said, the main objective of this work is to interrogate, in this context, the daily routine of the journeys, with an emphasis on the conditions of travel and the various attempts to regulate the space in the territories under the rule of the Castilian Crown. It is important to question who traveled, why they traveled, and what conditions were offered to travelers, to understand the importance of travel at that time, as well as what strategies were used to make this activity viable on Castilian soil. We will therefore focus on the period that extends from the second half of the 14th century to the end of the 15th century, that is, a context of redefinition and strengthening of territorial control, which, in turn, had an impact on the dynamics of transfers across those regions. Keywords: Travel, Castile, Territorial Organization, Mobility. Sumário INTRODUÇÃO 9 Capítulo 1. Visitar e percorrer um espaço ordenado 19 1.1 Destinos almejados, terras segmentadas 25 1.2 Território unificado, espaços ordenados 44 1.2.1 Vigilância sobre os espaços: o controle dos ermos 60 Capítulo 2. Assegurar os espaços transitáveis 76 2.1 Os direitos de passagem por terras castelhanas 81 2.2 A defesa das vias 102 2.2.1 Cuidar e separar os caminhos 115 2.2.2 Vigiar e manter os caminhos 122 Capítulo 3. Proteger e acolher aqueles que transitavam 134 3.1 Agressões e injúrias sofridas 137 3. 2. Compensações e garantias oferecidas 156 3.2.1 Os caminhos, espaços de crime e desordem 160 3.2.2 Estratégias de combate e punição 169 3. 3 Receber e ser recebido: os auxílios ao longo do caminho 186 3.3.1 A hospitalidade caritativa 195 3.3.2 A hospedagem privada e as estratégias de recepção em Castela 203 CONSIDERAÇÕES FINAIS 219 CATÁLOGO DAS VIAGENS DE ESTRANGEIROS POR TERRAS CASTELHANAS (SÉCULOS XIV E XV) 224 BIBLIOGRAFIA 255 Documentos: 255 Estudos: 259 9 INTRODUÇÃO No ano de 1351, o rei D. Pedro I (1334-1369) de Castela convocou os representantes dos estamentos que compunham a sociedade castelhana – prelados, nobres e representantes municipais1 – a se dirigirem à cidade de Valladolid para a realização de Cortes.2 Dentre as diversas “petições gerais” feitas ao mandatário nessa reunião, uma trata especificamente da compra e venda de cavalos. Nela, destaca-se que os moradores “das cidades e vilas das fronteiras de Aragão e Navarra” solicitavam o auxílio real para conseguirem se deslocar “sãos e salvos até as vilas e lugares”3 onde residiam, com a ajuda dos animais adquiridos.4 Embora esse pedido tenha como objetivo primário a regulamentação da aquisição de bens, concomitantemente ele expressa um interesse de que fossem incluídas, nas diretrizes maiores daquelas terras, algumas benesses para aqueles que, por algum motivo, precisassem percorrer o território castelhano. A preocupação evidenciada nessas Cortes de Valladolid contempla, exclusivamente, os súditos que solicitavam ao monarca garantias para seus deslocamentos cotidianos. Contudo, ao analisarmos mais detidamente a atuação da Coroa de Castela – designação comumente usada para se referir aos reinos sob a autoridade do rei de Castela e Leão –,5 entre a segunda metade do século XIV e o final do XV, é possível notar outros indicadores de uma disposição – presente nas mais variadas esferas da sociedade – de assegurar e regrar deslocamentos efetuados em plagas castelhanas. Deste modo, em 1466, mais de cem anos depois das Cortes de Valladolid, o rei da dinastia dos Trastâmaras, Enrique IV (1425-1474), oferecia uma carta comendatória ao 1 O'CALLAGHAN, J. F. Las cortes de Castilla y León (1230-1350). LAS CORTES de Castilla y León en la Edad Media: actas de la primera etapa del Congreso Científico sobre la Historia de las Cortes de Castilla y León, Burgos 30 de septiembre a 3 de octubre de 1986. Dueñas: Simancas Ediciones S. A., 2002, Vol. I, p.157. 2 “[…] porque en estas Cortes que yo agora fiz en Valladolit el Infante don Fferrnando de Aragon marques de Tortossa mio primo e mio adelantado mayor dela frontera et los per lados e rricos omes et los delas A Ordenes dela caualleria dela mi tierra e los otros ffijos dalgo que y eran conmigo, et otrosi los procuradores de todas las çibdades e villas et llugares del mio ssennorio que yo mandé llamar alas dichas Cortes, me fezieron peticiones generales que cunplian a toda la mi tierra[…].” Ibid., p.01. 3 Todas as citações diretas de fontes são fruto de traduções livres efetuadas ao longo do trabalho de pesquisa. 4 “Alo que piden los delas cibdades e villas e logares delas ffronteras de Aragon e de Nauarra queles ffaga merced por que puedan venir ssaluos e sseguros ffasta las villas e logares do moran con los cauallos que conpraren en el mio ssennorio […].” CORTES de los antiguos Reinos de León y de Castilla. Madrid: Imprenta y Estereotipia de Rivadeneyra, 1863, tomo II, p. 60. 5O presente estudo fará uso do termo Coroa para denominar o conjunto de reinos e posses que se encontravam sob a autoridade do rei de Castela e Leão. Essa denominação foi recorrente entre os séculos XIV e XV, como se vê na menção feita por Afonso XI (1311-1350) nas Cortes de Madrid, no ano de 1329, em que o rei se refere à “Coroa” dos seus “reinos”, evidenciando como o termo se referia às terras e aos súditos conjuntamente. Para maiores detalhes: ORDENAMIENTO de las Córtes celebradas en Madrid, en la era 1367 (año 1329) . In. CORTES de los antiguos Reinos de León y de Castilla. Madrid: Imprenta y Estereotipia de Rivadeneyra, 1861, tomo I, p. 416- 417. 10 conde de Blatná,6 Jaroslav Lev de Rožmitál7 (1425-1486), cavaleiro e cunhado do rei da Boêmia,8 que viajou por diversos reinos cristãos entre os anos de 1465 e 1467.9 Na missiva, o viajante era apresentado como um “amado vassalo” do imperador do Sacro Império Romano- Germânico, Frederico III (1415-1493), que desejava “ir a diversos lugares” dos reinos sob autoridade do monarca castelhano. Dado esse “laudável propósito”, Enrique IV ordenava que todos os “ilustres e veneráveis príncipes seculares e eclesiásticos”, bem como os oficiais regionais fizessem o possível para que o nobre viajante gozasse “em seu caminho” de “plena segurança”. Encomendava, do mesmo modo, a boa acolhida do estrangeiro em todos os lugares do reino e que, no “tocante à segurança e presteza da viagem”, esse boêmio e seu séquito contassem com passagem livre e segura “pelos passos, pontes, terras, reinos, domínios, distritos, cidades, fortalezas, castelos e vilas”. Determinava, para mais, que não fosse cobrado dele nenhum tipo de tributo durante suas jornadas, e que tampouco fosse submetido a qualquer “inconveniente” que comprometesse seu “ir e vir”.10 A missiva do rei, em suma, era um documento que tinha como objetivo servir de salvo-conduto ao séquito, ou seja, garantir-lhe 6 Atualmente localizada nas proximidades de Blatná, uma cidade checa na região da Boêmia do Sul, distrito de Strakonice. 7 Na fonte consta o nome em castelhano como León de Rosmithal de Blatna, e na versão em latim Leo de Rosmital et Blatna (1425-1486). 8 O rei Jorge de Poděbrady (1420-1471). 9 Maiores informações sobre os viajantes citados ao longo do texto podem ser consultadas no catálogo de viagens que se encontra no final do estudo. 10“ Enrique, por la gracia de Dios, rey de Castilla, de León, de Toledo, de Galicia, de Sevilla, de Córdoba, de Murcia, de Jaén, de los Algarbes, de Algeciras y de Gibraltar; senor de Vizcaya y de Molina, a todos y a cada uno de nuestros serenisimos hermanos los reyes, a los ilustres y venerables príncipes seculares y eclesiásticos, a los magníficos duques, marqueses, barones y demás nobles y clientes; a los oficiales de cualesquiera ciudad, tierra, villa, fortaleza, dondequiera que estén constituídos, ya de nuestra jurisdicción o de la de otros, de cualquier grado, dignidad, preeminencia o condición que sean, a quienes estas nuestras letras fueren presentadas, salud y aumento de amor en el Senor. Habiéndose presentado ante Nos el noble y barón León de Rosmithal y Blatna, deudo del muy ilustre Federico, siempre augusto sagrado emperador de romanos y su amado vasallo, y deseando, por ciertas causas que mueven su ánimo, ir a diversos lugares de nuestros reinos y de otras partes del mundo, aprobando Nos su laudable propósito y deseando que el susodicho León goce en su camino y en todas partes plena seguridad y franquicia, a todos vosotros os encomendamos con verdadero afecto, y os rogamos, y a nuestros súbditos mandamos, que adondequiera que vaya, si llega a vos, en su viaje, le acojàis en contemplación nuestra y lo tratéis favorablemente, y en lo tocante a la seguridad y presteza del viaje le mostréis buena voluntad a él, a su séquito, a sus caballos, a sus cosas y a todos sus bienes para que vaya por pasos, puentes, tierras, reinos, dominios, distritos, ciudades, fortalezas, castillos y villas y cualesquiera otros lugares de nuestra jurisdicción o de la vuestra por tierra o por agua, sin pagar ningún tributo, peaje, gabela o cualquier otra exacción y sin ninguna molestia, y los consintâis ir y venir, y morar a él y a los suyos, y a sus caballos y cosas dónde y como le fuera menester, provendole los arriba nombrados por su parte de seguro salvoconducto, lo que os tendremos por cosa muy grata y por singular servicio, ofreciéndonos a lo mismo y a mayores cosas. Dado en Olmedo a veinte dias del mes de julio de mil y cuatrocientos y sesenta y seis, duodécimo de nuestro reinado.” MERCADAL, J. G. Viajes de extranjeros por España y Portugal: desde los tiempos más remotos hasta comienzos del siglo XX. Salamanca: Junta de Castilla y Leon Consejeria de Educacion y Cultura, 1999, p. 252-253. 11 segurança e bom acolhimento no trânsito por outros reinos, contando com algum apoio dos poderes locais.11 Tanto naquele texto das Cortes de 1351, como neste documento de 1466, é possível notar a preocupação de garantir as viagens. A missiva endereçada ao cavaleiro da Boêmia refere-se a um auxílio a um tipo específico de viagem, aquelas protagonizadas por um membro de uma camada social que gozava de facilitações ao longo de suas viagens, os nobres.12 Ainda que dirigida a uma figura de condição destacada que seguia em viagem, o documento, entretanto, oferece detalhes acerca do que poderia auxiliar um viajante durante seus traslados. Destinada a poupar o visitante de possíveis infortúnios ao longo de seu percurso, traz uma listagem dos pormenores que compunham o cotidiano de uma viagem em um espaço específico: as terras sob jurisdição da Coroa de Castela. Em outras palavras, a carta de Enrique IV permite vislumbrar certos elementos compreendidos pelos coetâneos como imprescindíveis para a efetuação da prática de viajar.13 Dentre os aspectos mencionados no documento, é possível destacar elementos como: a segurança nos caminhos por onde o viajante viria a perambular; a boa acolhida nos pontos de parada; o tratamento digno dispendido a ele, seus seguidores e suas posses; o trânsito livre pelos diversos tipos de espaços e ambientes; bem como a isenção de possíveis tributos que lhe fossem cobrados para seguir suas jornadas. Em suma, encontramos nessa carta do rei Trastâmara uma síntese do que era esperado pelos coevos para realizar uma viagem menos custosa ou penosa. Esse sumário de condições que favoreceriam o deslocamento pode ser complementado com dados que constam na documentação legislativa da Coroa de Castela, em que se nota a recorrência de discussões acerca de assuntos ligados à prática das viagens. Tal recorrência é perceptível, em especial, nas Cortes régias, entre os temas deliberados pelos monarcas a partir das demandas dos representantes do reino.14 No âmbito dessa esfera decisória, em que se 11 BELLO LEÓN, J. M. Extranjeros en Castilla (1474-1501). Notas y documentos para el estudio de su presencia en el reino a finales del siglo XV. La Laguna-Tenerife: Litomaype, S.L, 1994, p.26. 12 Sobre essa relação da viagem e dos segmentos mais altos da sociedade medieval, tanto a historiadora canadense Margaret Wade Labarge, como o espanhol Luís Ángel Garcia de Cortázar afirmam que os membros das camadas mais abastadas medievais contavam com uma rede de suporte e facilitações durante suas viagens. Assim, além das condições materiais superiores, um dos elementos que mais auxiliavam nas viagens de nobres, membros eclesiásticos e monarcas, era justamente o pertencimento a um estamento social distinto, que lhes garantia um tratamento diferenciado dos demais, mesmo quando se dirigiam a terras pouco conhecidas. LABARGE, M. W. Viajeros medievales: los ricos y los insatisfechos. Segunda Edição, Madrid: Nerea, 2000, p. 305-304; GARCIA DE CORTAZAR, J.A. Los viajeros medievales. Madrid: Santillana, 1996, p. 40-41. 13 FERREIRA PRIEGUE, E. Saber viajar: arte y técnica del viaje en la Edad Media. In: IV Semana de Estudios Medievales, Nº. 4, 1993, Najera, Atas de congresso, Najera: Instituto de Estudios Riojanos, 1994, p. 49-57. 14 Sobre o papel das Cortes como espaço de deliberação e negociação entre rei e sociedade, é importante destacar que parte da historiografia que se dedicou ao estudo dessa instituição, na passagem do século XIX para o XX, defendeu que as Cortes foram precursoras do sistema parlamentarista moderno, por constituírem um órgão de limitação dos poderes senhoriais e monárquicos e por terem o privilégio sobre a promulgação de leis. Contudo, 12 operavam o cumprimento e a execução da justiça em nome da paz e do sossego da comunidade,15 as atividades itinerantes estiveram entre as principais preocupações dos castelhanos; preocupações notáveis tanto pelo que se vê nas petições que partiam dos súditos, quanto pelo que se depreende das diretrizes estabelecidas pelos mandatários, visando solucionar, de alguma forma, as demandas debatidas. As diretrizes emitidas pelas Cortes possuíam poder de lei, devendo ser respeitadas por todos aqueles que se encontravam nos domínios da Coroa de Castela. A atenção despendida aos elementos para amparar os viajantes e assegurar o trânsito daqueles que buscavam cruzar as distâncias em Castela suscita a indagação do porquê e para quê se viajava, bem como do porquê os viajantes mereciam ter seu trânsito garantido. A relação entre as viagens e o poder16 régio começa a tornar-se mais direta a partir da segunda metade do Trezentos, quando o monarca Afonso XI criou ferramentas que garantiam maior atuação do rei na aplicação da justiça dentro das fronteiras do território,17 firmando, assim, a autoridade régia na elaboração das leis e na garantia do seu cumprimento, em combate após um aumento no número de estudos voltados às Cortes na década de 1970, essas perspectivas anacrônicas foram revistas, havendo então um redimensionamento da interpretação sobre as Cortes, tendo em vista as especificidades históricas em que elas estavam inseridas. Dessa forma, pode-se afirmar que as Cortes não constituíram a única ferramenta da qual a monarquia castelhana se valeu para legislar, uma vez que os reis fizeram uso da promulgação de Ordenamentos diretos durante o século XIV e das Pragmáticas a partir do final do século XV. Contudo, é importante ressaltar que, embora essas reuniões entre monarcas e representantes dos estamentos sociais servissem como foro para promulgação dos ordenamentos escritos unilateralmente pelo Concelho Real, elas também podiam colaborar com a constituição de uma legislação que partia das demandas dos súditos pela prerrogativa da petição. Em ambos os casos, os ordenamentos promulgados nas Cortes formaram parte do direito da terra. Para maiores esclarecimentos, ver: MARTIÍNEZ MARINA, F. Teoría de las Cortes o grandes Juntas Nacionales de los Reinos de León y Castilla, Madrid: Imprenta de D. Fermín Villalpando, 1813; PISKORSKIĬ, V. Las Cortes de Castilla: en el período de tránsito de la Edad Media a la Moderna, 1188-1520. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1930; PÉREZ-PRENDES, J. M; DE ARRACÓ, M. Cortes de Castilla. Espanha: Editorial Ariel, 1974; LADERO QUESADA, M.A. Las Cortes Medievales en Castilla y León. In. As Cortes e o parlamento em Portugal 750 anos das Cortes de Leiria de 1254. Leiria, 2004, Atas de congresso internacional, Leiria: Asamblea da Republica, 2006, pp.80-105; LAS CORTES de Castilla y León en la Edad Media: actas de la primera etapa del Congreso Científico sobre la Historia de las Cortes de Castilla y León, Burgos 30 de septiembre a 3 de octubre de 1986. Dueñas: Simancas Ediciones S. A., 2002, Vol. I, p.156-180; MILIDDI, F. Las transformaciones de las Cortes de Castilla y León en la segunda mitad del siglo XIV. Repensando la categorización de la Historiografía liberal. In. Anales de historia antigua, medieval y moderna. Instituto de Historia Antigua y Medieval, Buenos Aires, Nº. 43, pp. 159-190, 2011. 15 DE LA CANAL, M. A. P. La justicia de la Corte de Castilla durante los siglos XIII al XV. Historia. Instituciones. Documentos, Sevilha, Nº. 2, 1975, p. 389. 16 Acerca de outros casos que abordam as dinâmicas entre esses dois conceitos, ver: FRAY, J.L. Routes, flux et lieux centraux au Moyen Âge : Quelques réflexions. FRAY, J.L. Routes, flux et lieux centraux au Moyen Âge: Quelques réflexions. Siècles. Cahiers du Centre d’histoire «Espaces et Cultures», Nº. 25, p. 83-92, 2007; SZABÓ, T. Viabilità terrestre maggiore e minore, nell'Europa, centrale. In. GENSINI, S. (Ed.). Viaggiare nel medioevo. Pisa: Pacini, 2000, pp. 19-38. 17 MARTINEZ DIEZ, G. Panorámica jurídica baja-medieval en la corona de Castilla. Boletín de la Institución Fernán González. Burgos, Ano 64, Nº. 204, 1985, p. 40; DE DIOS, S. Las Cortes de Castilla y León y la administración central. In: LAS CORTES de Castilla y León en la Edad Media: actas de la primera etapa del Congreso Científico sobre la Historia de las Cortes de Castilla y León, Burgos 30 de septiembre a 3 de octubre de 1986. Dueñas: Simancas Ediciones S. A., 2002, vol. II, p. 263. 13 à dispersão dos poderes locais.18 Essa reformulação hierárquica das normas é acompanhada por uma reorganização do comando territorial,19 na esteira de mudanças iniciadas por Fernando III (1201-1252) em 1230, com a união dos reinos de Castela e Leão e a posterior anexação de outros reinos aos domínios do rei de Castela.20 Ainda na segunda metade do século XIV, foram dissolvidos os limites internos que dividiam as regiões21 e foi adotada uma administração mais coesa e centralizada,22 indo na contra mão de nações vizinhas.23 Não por acaso, ao listar os lugares por onde Jaroslav Lev de Rožmitál deveria seguir em segurança, Enrique IV menciona os reinos como parte integrante de seus domínios, afirmando, por meio do salvo-conduto, a autoridade central. Foi neste período que os procuradores das vilas e cidades passaram a atuar de modo mais ativo nas Cortes, através das petições e pleitos sobre problemas pontuais ou gerais.24 Nesse mesmo período, houve uma mudança na forma como as leis outorgadas nas Cortes eram divulgadas, com os cadernos de petições, antes separados do caderno de leis, assumindo igualmente caráter legal;25 mudança que se deveu ao peso dos procuradores como principais requerentes de normas e da atuação dos monarcas nas Cortes. Esses ajuntamentos funcionavam como um instrumento do fazer governativo, sendo um dos principais meios por onde a coroa poderia exercer o poder de ordenar os mais diversos aspectos concernentes ao reino, por meio de normas e ordenamentos promulgados nessas reuniões em que os súditos se faziam 18 GONZÁLEZ ALONSO, B. Poder regio, cortes y régimen político en la Castilla bajomedieval (1252-1474). In. LAS CORTES de Castilla y León en la Edad Media: actas de la primera etapa del Congreso Científico sobre la Historia de las Cortes de Castilla y León, Burgos 30 de septiembre a 3 de octubre de 1986. Dueñas: Simancas Ediciones S. A., 2002, Vol. II, p.226-227. 19 MONSALVO ANTÓN, J.M. Atlas histórico de la España medieval. Madrid: Sintesis, 2014, p. 236. 20 Os monarcas de Castela passaram a ser nomeados reis de Castela, Leão, Toledo, Galícia, Sevilha, Córdoba, Murcia e Jaén. LADERO QUESADA, M.A. Las regiones históricas y su articulación política en la Corona de Castilla durante la Baja Edad Media. En la España medieval, Madrid, Nº. 15, 1992, p.215-216. 21 LADERO QUESADA, M.A. Reconquista y definiciones de frontera. Revista da Faculdade de Letras. Historia, Porto, Nº. 15, 1998, p. 662. 22 LADERO QUESADA 1992, op. cit., p. 215. 23 Em especial da Coroa de Aragão, que também passou por um processo de anexação de territórios, mas manteve um regime mais autônomo entre os reinos que a compunham: Aragão, Valencia e Catalunha. Quanto a Navarra e Portugal, embora tenham conhecido avanços territoriais, não chegaram a anexar de outros reinos em maior escala. LADERO QUESADA, M.A. Las regiones históricas y su articulación política en la Corona de Castilla durante la Baja Edad Media. En la España medieval, Madrid, Nº 15, 1992, p. 684-685. 24 Sendo também nesta centúria que o número de cidades com direito de voto nas Cortes se fixa em 17, respectivamente Burgos, Leão, Zamora, Toro, Salamanca, Segóvia, Ávila, Valladolid, Sória, Toledo, Córdoba, Murcia, Jaén, Cuenca, Madrid, Guadalajara e Sevilha, somando a essas a cidade de Granada a partir de 1492. Para maiores detalhes ver: GONZÁLEZ MÍNGUEZ, C. Vitoria en las Cortes medievales: las Cortes de Soria de 1380. Espacio tiempo y forma. Serie III, Historia Medieval, Madrid, Nº. 04,1988, p. 229. 25 GONZÁLEZ ALONSO, B. Poder regio, cortes y régimen político en la Castilla bajomedieval (1252-1474). In. LAS CORTES de Castilla y León en la Edad Media: actas de la primera etapa del Congreso Científico sobre la Historia de las Cortes de Castilla y León, Burgos 30 de septiembre a 3 de octubre de 1986. Dueñas: Simancas Ediciones S. A., 2002, Vol. II, p.226. 14 representados, ao menos em parte, perante o soberano.26 Desse modo, tanto pelos debates acerca dos problemas que assolavam o reino como pelo seu papel no regimento da justiça e das finanças,27 as Cortes eram ambientes em que os problemas e interesses, correntes no reino, eram expostos e debatidos visando uma possível solução sob a égide do rei. Esse cenário de reestruturação da reorganização em Castela trouxe uma alteração na forma como os problemas relacionados aos deslocamentos eram tratados. Antes desse período houve medidas, promulgadas por autoridades locais e régias, que tratavam de temas ligados às viagens, com algumas dessas, inclusive, exercendo importância basilar para as discussões propostas neste estudo.28 Contudo, a centralização política implicou em um aumento do número de normas que visavam solucionar demandas desse tipo, daí a maior recorrência desses temas. Isso pode ser atribuído ao papel das Cortes como instrumento de tomada decisão e seu funcionamento, em que as ações executivas eram respostas direcionadas aos requerimentos apresentados pelos representantes dos estamentos sociais, que sintetizavam anseios e interesses costumeiros. Dessa forma, a partir da frequência dos assuntos relacionados à viagem é possível estimar que esses temas ganharam sistematicidade com a criação de consensos direcionados às questões relacionadas ao viajar. Esse aumento da produção legislativa coincidiu com o surgimento exponencial de escritos que relatavam experiências de viagem por terras da Coroa de Castela. Tais visitas eram realizadas com motivações diversas, como a busca por destinos sacros de grande renome, como a cidade de Santiago de Compostela, e outros pontos de peregrinação que se tornaram mais famosos entre os séculos XIV e XV, como alguns locais de culto mariano.29 Além do mote religioso, havia interesses comuns entre a nobiliarquia e a cavalaria, tais como o combate aos últimos resquícios mulçumanos em terras ibéricas do Emirado Nacérida de Granada, ou a busca por participar de torneios com ilustres adversários da nobreza castelhana. Para além dos viajantes que possuíam essas motivações, é possível mencionar aqueles que visitaram as terras de Castela como emissários em missões diplomáticas; 26 MARTINEZ DIEZ, G. Panorámica jurídica baja-medieval en la corona de Castilla. Boletín de la Institución Fernán González. Burgos, Ano 64, Nº. 204, 1985, p. 40. 27 LADERO QUESADA, M. A. Cortes de Castilla y Leons y fiscalidad regia (1369-1429). In: LAS CORTES de Castilla y León en la Edad Media: act.as de la primera etapa del Congreso Científico sobre la Historia de las Cortes de Castilla y León, Burgos 30 de septiembre a 3 de octubre de 1986. Dueñas: Simancas Ediciones S. A., 2002, Vol. I, p. 291-293. 28 Adiantamos aqui a importância de algumas leis promulgadas nas Siete Partidas, importante compilado jurídico que foi retomado e confirmado por Afonso XI no Ordenamento de Alcalá de Henares. 29 BECEIRO PITA, I. De las peregrinaciones al viaje interior. Las transformaciones en la religiosidad nobiliar castellana. Cahiers de linguistique hispanique médiévale, Lyon, Vol.30, Nº1, 2007, p. 110. 15 um tipo de atividade que vinha se tornando mais corrente nos últimos séculos do medievo.30 Havia, ainda, os benefícios financeiros que poderiam ser obtidos no acesso a pontos de interseção das intricadas rotas comerciais, como a cidade de Sevilha na Andaluzia.31 Esse último motivo foi consideravelmente potencializado a partir dos processos de expansão efetuados no Quatrocentos, que estimulavam as viagens em busca de terras e recursos.32 É importante ressaltar que, embora muitas viagens tivessem um objetivo principal, os viajantes não restringiam seus itinerários a um programa fixo, sendo comum a visita a destinos que não necessariamente tinham ligação com o propósito original. Dado o elevado número de viagens e os seus pormenores, as iniciativas serão examinadas em suas particularidades ao longo do texto e, ao final, será incluído um catálogo das viagens com as informações mais detalhadas. Esses registros do quotidiano das viagens contêm não apenas informes acerca das condições de traslados, mas deixam ver, igualmente, as expectativas dos viajantes acerca do que seria um tratamento justo com aqueles que cruzavam terras que não eram as suas. Dessa forma, os registros de viagem oferecem um panorama sobre as potencialidades e, principalmente, as fragilidades das estruturas e costumes que amparavam a prática da viagem e que eram, por sua vez, regulados pelas leis castelhanas. Em vista dessa relação, o cotejo desses corpora documentais se mostrou o melhor caminho para entender tanto os desafios enfrentados como as estratégias pensadas pelos coetâneos para solucionar esses problemas e promover os deslocamentos no âmbito das terras da Coroa de Castela durante os séculos XIV e XV. Esse conjunto documental é também rico para se interrogar sobre o peso dessa atividade entre os castelhanos, haja vista o momento de estabilidade territorial que antecede uma reorganização daquilo que se compreendia como terras castelhanas.33 A exemplo dos aspectos reunidos na carta oferecida por Enrique IV a Jaroslav Lev de Rožmitál, as indicações sobre a prática da viagem em Castela estavam organizadas a partir de 30 PÉQUIGNOT, S. Les diplomaties occidentales, XIIIe-XVe siècle In. Les relations diplomatiques au Moyen Âge. Formes et enjeux : XLIe Congrès de la SHMESP (Lyon, 3-6 juin 2010) [en ligne]. Paris : Éditions de la Sorbonne, 2011. Disponível em : http://books.openedition.org/psorbonne/16382 Acessado em 08.10.2021. 31 RÍOS TOLEDANO, D. Comercio, puertos y rutas marítimas en Andalucía a fines de la Edad Media. Estado de la cuestión y perspectivas. In. SOLÓRZANO TELECHEA J. A; MARTÍN PÉREZ, F. (Coord.). RUTAS de comunicación marítima y terrestre en los reinos hispánicos durante la baja Edad Media movilidad, conectividad y gobernanza. Madrid: Ediciones de La Ergástula, S.L, 2020, p. 244-251 32 PHILLIPS, J.R.S. La expansión medieval de Europa. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1994, p.263; LOPES, P. O Medo do mar nos descobrimentos – Representações do fantástico e dos medos marinhos no final da Idade Média. Lisboa: Tribuna da História, 2009, p. 17. 33 O escopo temporal analisado se encerra no início imediato do século XVI, dada a interpretação de que seria um momento de consumação dessa reorganização territorial, como pode ser visto com a criação cargos territoriais como o Adelantado de Tenerife e Las Palmas, nas Canárias, em 1503-1504, ou a criação da Capitania General de Granada após a tomada pelos reis Católicos. Para maiores detalhes, ver: LADERO QUESADA, M.A. Las regiones históricas y su articulación política en la Corona de Castilla durante la Baja Edad Media. En la España medieval, Madrid, Nº 15, 1992, p. 227-229. http://books.openedition.org/psorbonne/16382 16 dois tipos de circunstâncias: as que envolviam relações, amigáveis ou hostis, estabelecidas entre os viajantes e os demais indivíduos ao longo de suas jornadas; e as que implicavam na interação entre transeuntes e os espaços por onde passavam.34 Essas duas preocupações de fundo que persistem nos informes de viagens e nos registros legislativos e administrativos da Coroa de Castela, funcionaram como categorias iniciais,35 que possibilitaram uma melhor compreensão da relação dos deslocamentos com a organização da sociedade castelhana.36 Tendo isso em vista, o estudo busca contemplar ambas as categorias que faziam parte do cotidiano das viagens: o espaço e as relações humanas com os que estavam de passagem. O primeiro capítulo, intitulado “Visitar e percorrer um espaço ordenado”, teve como objetivo analisar como as terras sob o controle da Coroa castelhana constituíram um espaço transitável, de grande prestígio, que ganhou contornos mais definidos no decorrer dos séculos XIV e XV. Um processo devedor, em grande parte, do fazer legislativo castelhano, que atuou como ferramenta ordenadora desse espaço, utilizado por indivíduos que, durante seus deslocamentos, puderam vivenciar, e registrar, a experiência de translado em um território regulado. Dessa forma, o intuito do capítulo foi o de examinar a configuração do território que atuou como pano de fundo das viagens avaliadas neste trabalho, buscando avaliar como a organização territorial acabou, de alguma forma, por afetar as deslocações e as suas condições de efetivação. Após estabelecer a configuração das terras castelhanas como um espaço dotado de regras que interferiam na experiência dos viajantes, o segundo capítulo, “Assegurar os espaços 34 Importante ressaltar que esse tipo de divisão a respeito das viagens medievais já foi empregado pelo historiador italiano Guido Castelnuevo em Difficoltá e pericoli del Viaggio, no entanto, tal separação focou apenas nas questões que traziam perigos aos viajantes durante seus itinerários e não, em sentido mais amplo, como será utilizado aqui. Para maiores detalhes, ver: CASTELNUOVO, G. Difficoltá e pericoli del viaggio. In. GENSINI, S. (Ed.). Viaggiare nel medioevo. Pisa: Pacini, 2000, p.47-50. 35 Categorias generalizantes atuam, por vezes, como moldes iniciais e auxiliam na formulação do trabalho histórico, segundo Paul Veyne. Ao observarmos um determinado problema, em um determinado contexto, por meio do uso de tais generalidades, é possível circunscrever certas especificidades sobre o objeto estudado, enquadrando e descrevendo os processos históricos específicos de forma a melhor defini-los. VEYNE, P. Le quotidien et l’intéressant : entretiens avec Catherine Darbo-Peschanski. Paris: Les Belles Lettres, 1995, 170-174; VEYNE, P. Foucault revoluciona a história. Como se escreve a história, Brasília: UnB, 1998, p.53-57. 36 Joaquín Rubio Tovar defendeu a ideia de que a viagem seria uma prática que se interligava a todas as esferas de existência do homem medieval. Contudo, o filólogo focou em estudar tal presença da viagem apenas como uma tópica que abrangia toda a produção literária desse período. Não se busca, no presente trabalho, defender a viagem como estrutura definidora e estruturante de todas as ações e esferas da comunidade humana. Na verdade, o intuito do trabalho é o de justamente interrogar qual o real peso que a prática do deslocamento teve na configuração da sociedade castelhana entre os séculos XIV e XV. Assim, busca-se entender a razão de certas atitudes serem tomadas frente a determinados problemas, a fim de se compreender melhor como os homens daquele tempo pensaram formas de assegurar e ordenar sua vivência no mundo. Para maiores esclarecimentos, ver: TOVAR, J. Viajes, Mapas y Literatura en la España Medieval. In. VIAJES y viajeros en la España medieval, Actas del V Curso de Cultura Medieval, Nº 5, 1993, Palencia, Ata de congresso, Madrid: Polifemo, 1997, pp. 09-36; BOUDON, R. Ação. In. BOUDON, R. Tratado de sociologia. Zahar, 1995, p. 58; CHAZEL, F. Poder. In. BOUDON, R. Tratado de sociologia. Zahar, 1995, p. 229-233. 17 transitáveis”, é dedicado a investigar a formação de regras direcionadas diretamente aos espaços utilizados ao longo das viagens, com a intenção de avaliar se houve entre os castelhanos uma preocupação em manter tais espaços e viabilizar a circulação por eles. Esse olhar sobre a regulação dos locais que apoiavam os que se deslocavam será dirigido para as formas de regulação dos direitos de passagem, pedágios e outros tributos, e o seu papel no controle dos espaços transitáveis, bem como aos cuidados com os espaços cotidianamente utilizados nas viagens, ou seja, elementos da rede viária castelhana, como os caminhos e pontes, que possibilitaram que o trânsito pelas extensões fosse possível. O intuito maior desse capítulo é compreender como as necessidades e problemas relatados pelos viajantes foram levados em conta por parte dos responsáveis pela condução desses lugares, de forma a compreender como a concorrência desses interesses influenciou no regramento do espaço transitável. Uma vez concluída a análise sobre as relações entre ordenação dos espaços e a mobilidade, o terceiro capítulo, intitulado “Proteger e acolher aqueles que transitavam”, ocupa- se da relação entre a viagem e a construção de normas que visavam a regulação das condutas e as ações dos indivíduos ao longo de seus itinerários, fosse dos que viajavam, fosse dos que recebiam. Entre os diversos tipos de relações estabelecidas entre viajantes e naturais das terras, duas mereceram especial enfoque: as agressões e ofensas sofridas nos caminhos e as ações voltadas para a hospedagem e pouso de viajantes durante suas jornadas. A escolha dessas formas de interação tão distintas uma da outra – com uma configurando um perigo e outra um auxílio indispensável a qualquer viagem de maior fôlego – é justificável por sua recorrência na documentação, tanto a de cunho descritivo como a normativa, e por ilustrarem o que garantia o bom andamento das viagens e o não prejuízo aos locais. Ademais, a ordenação desses dois tipos de ações correntes mereceu normativas que visavam amparar aqueles que viajavam, permitindo observar as relações entre indivíduos que viajavam e aqueles com quem conviviam ao longo dos itinerários, bem como as tentativas de se regulamentar as ações que afetavam, diretamente, os deslocamentos em terras castelhanas. Os três capítulos retratam, em maior ou menor grau, as interações entre autóctones e viajantes, bem como aquelas entre viajantes e o espaço percorrido, uma vez que a separação dessas categorias não era exata. Assim, enquanto o primeiro capítulo aborda mais as relações com o território, o intermediário expõe como as ações humanas interferiam na relação com os espaços e o terceiro se concentra nas relações humanas. Em todos os capítulos, entretanto, como se procura mostrar, essas facetas se mostram intercaladas, pois o controle sobre os espaços partia justamente das relações e ações humanas, e a coordenação das ações humanas era organizada tendo em vista determinados espaços, em especial as vias de traslados. 18 Em suma, a organização desta tese visa dar a conhecer um pouco da regulação dos espaços a serem percorridos, dos elementos de trânsito e das ações que interferiam nas viagens. O exame desses componentes não tem como alvo, propriamente, os graus de eficiência, mas o modo como a prática do deslocar foi pensada e qual foi o valor conferido a ela, observando-se tanto as iniciativas para prover meios para aqueles que perambulavam, como as impressões desses em relação às condições para cruzar sítios castelhanos. 19 Capítulo 1. Visitar e percorrer um espaço ordenado Na referida carta direcionada a Jaroslav Lev de Rožmitál, o rei Enrique IV fez votos para que o cavaleiro boêmio conseguisse passar com tranquilidade pelos passos, pontes, reinos, domínios, cidades, vilas e demais sítios sob a sua jurisdição. Com a intenção declarada de prover-lhe uma viagem mais tranquila em seus domínios, o monarca castelhano cuidou de salientar a diversidade de lugares e ambientes que caracterizavam tais possessões e com a qual um viajante poderia vir a se deparar em seus itinerários. A atenção ao espaço1 encontra-se igualmente presente nos testemunhos dos viajantes dos séculos XIV e XV.2 Gilles le Bouvier (1386-1455), viajante francês que visitou Castela na primeira metade do Quatrocentos,3 escreveu um livreto sobre todos os reinos que conheceu durante suas jornadas particulares e embaixadas em nome do monarca do reino da França, Carlos VII (1403-1461), a quem serviu como Rei de armas.4 Na sua obra, intitulada Le libre de la description des pays, Bouvier abre suas descrições afirmando que: 1Pensamos aqui no espaço como qualquer área indeterminada que existe na materialidade física, embora reconheçamos a vasta discussão no campo epistemológico da geografia, da história e da antropologia sobre este conceito. Para maiores esclarecimentos. BARROS, J. A. Geografia e História: uma interdisciplinaridade mediada pelo espaço. Geografia, Londrina, Vol. 19, Nº. 3, pp. 67-84, 2010; MACHADO, M. S. Geografia e epistemologia: um passeio pelos conceitos de espaço, território e territorialidade. Geo UERJ, Rio de Janeiro, N.º 1, pp. 17-32, 1997; REYNAUD A. BRUNET, R; FERRAS, R; THERY, H. Les Mots de la géographie, dictionnaire critique, 1992, coll. Dynamiques du territoire. Travaux de l'Institut Géographique de Reims, REIMS, N°83-84, 1993, pp. 148-154; PROVANSAL, D. Espacio y territorio: miradas antropológicas. Barcelona: Edicions Universitat Barcelona, 2000, p.148-154; RAFFESTIN, C. A produção das estruturas territoriais e sua representação. In. SAQUET, M.A; SPOSITO, E. S. (Org.).Territórios e territorialidades: teorias, processos e conflitos. São Paulo: Expressão Popular: UNESP. Programa de Pós-Graduação em Geografia, 2008, p. 23-36; THER RÍOS, F. Antropología del territorio. Polis Revista Latinoamericana, Nº. 32, 2018, p.496-497. 2 Sobre a relação da descrição espacial como traço distintivo do gênero de narrativas de viagens quatrocentistas, consultar: BÉGUELIM ARGÍMON, V. La geografía en los relatos de viajes castellanos del ocaso de la Edad Media: análisis del discurso y léxico. Zaragoza: Pórtico, 2011, p. 65-98; PÉREZ PRIEGO, M.A. Estudio literario de los libros de viajes medievales. Epos: Revista de filología, Madrid, Nº. 1, 1984, p. 220-230. 3 Gilles le Bouvier foi um viageiro contumaz, iniciou suas viagens em 1406, acompanhado por seu suserano e tio, o duque de Berry, Jean de Valois (1340-1416). Embora seus escritos não marquem as datas de suas viagens, sua visita a Castela ocorreu provavelmente após 1426, seis anos após ser foi nomeado como rei das armas de Charles VII e passa a atuar como emissário do rei em certas ocasiões. 4 Esse seria o mais alto cargo dentro da função dos oficiais de armas, um tipo de função outorgada pelos monarcas e outras autoridades, que se ocupava da observação e fiscalização dos brasões e emblemas régios e nobiliárquicos, bem como dos arquivamentos de documentos referentes a essas matérias, tanto no âmbito interno como externo dos reinos. Um cargo, pois, que atuou muito em assuntos nobiliárquicos e diplomáticos. PAVIOT, J. Une vie de héraut : Jean de la Chapelle, poursuivant Faucon, héraut Savoie (1421-1444). Revue du Nord, Lille, Nº 366-367, 2006, p. 869; STEVENSON, K. The Scottish King of Arms. In. HILTMANN, T. (Dir.) – Les autres rois. Études sur la royauté comme notion hiérarchique dans la société au bas Moyen Âge et au début de l'époque moderne. München: Oldenbourg Wissenschaftsverlang CmbH, 2010, p. 70 ; COUHAULT, P. Les hérauts d’armes et le savoir géographique (XVe-XVIe siècles). Revue de géographie historique. [On line] Nº. 17-18, 2020. Disponível em < https://rgh.univlorraine.fr/articles/view/134/Les_herauts_d_armes_et_le_savoir_geographique_XVe_XVIe_siecl es.html> Acesso em 20.05.2021 https://rgh.univlorraine.fr/articles/view/134/Les_herauts_d_armes_et_le_savoir_geographique_XVe_XVIe_siecles.html https://rgh.univlorraine.fr/articles/view/134/Les_herauts_d_armes_et_le_savoir_geographique_XVe_XVIe_siecles.html 20 Porque muitas pessoas de várias nações e lugares se deleitam e tomam prazer com o modo como eu outrora andei a conhecer o mundo e as diversas coisas que há nele, e também porque muitos querem saber sem ir até lá, e outros querem ver, ir e viajar, eu comecei este pequeno livro, segundo meu entendimento, para que aqueles que o virem conheçam a verdadeira maneira, a forma e as propriedades das coisas que existem em todos os reinos cristãos e em outros reinos onde estive; suas extensões, as montanhas que lá estão, e os rios que por aí passam, a qualidade dos países,5 dos homens, e outras coisas estranhas, como mais tarde será revelado.6 Segundo Bouvier, o principal motivo para escrever seu livro era, pois, o de prover conhecimento sobre as terras alheias para aqueles que quisessem conhecer esses outros lugares e costumes, mas não conseguiriam empreender tal missão. Uma preocupação que, portanto, atenderia à curiosidade crescente sobre as terras longínquas e sobre o desconhecido, especialmente notável nos reinos cristãos desde o século XIII.7 Conjuntamente a essa indicação sobre os atrativos do diverso e do distante, Bouvier assevera a importância do caráter prático de seu escrito, que poderia servir como um guia para futuros viajantes, pelo que se empenharia em descrever aquilo vivido durante seus trajetos da forma mais fidedigna possível; em especial quanto aos traços da geografia estrangeira, como montanhas, rios e a própria extensão dos 5 A nomenclatura país é utilizada por Bouvier para descrever um determinado recorte regional dotado de características próprias. 6 “Pource que plusieurs gens de diverses nacions et contrées se délectent et prennent plaisir comme j'ay fait le temps passé à vëoir le monde, et les diverses choses qui y sont, et aussi pour ce que plusieurs en veullent savoir sans y aler, et les aultres veullent vëoir, aler, et voyager, j'ay commencé ce petit livre, selon mon petit entendement, afin que ceulx qui le verront puissent savoir au vray la manière, la forme et les propriétés des choses qu'ilz sont en tous les royaulmes crestiens et des aultres royaulmes où je me suis trouvé de la longueur d'ceulx, des montaignes qui y sont, et des fleuves qui y passent, de la propriété des païs, des hommes, et des aultres choses estranges, comme cy après sera déclairé.” BOUVIER, G. Le libre de la description des pays. Paris : Ernest Leroux editeur, 1808, p. 30. 7 Essa valorização sobre o diverso estava intimamente relacionada aos avanços materiais das viagens, que se dirigiam para lugares distantes. Avanços esses que resultaram de melhorias nas comunicações, como a revitalização das estradas, construções de pontes e outras obras que possibilitavam acesso mais rápido, e seguro, a localidades diferentes, bem como pelo desenvolvimento dos meios de transportes: como a utilização de materiais mais duráveis nos terrestres e o surgimento inovações técnicas nas viagens aquáticas, como o leme de cadaste que atravessava o casco, permitindo o controle da navegação marítima mais estável. E a bússola que auxiliava na orientação de viagens mais distantes; ambas as inovações implementadas durante o século XII. A isso somava-se o descobrimento de rotas mais variadas, o que também possibilitou o aumento no número de deslocamentos que eram efetuados. Assim, as viagens operavam uma espécie de retroalimentação, na medida que, quanto mais se conseguiam empreender viagens, mais se produziam conhecimentos legados por essa prática, e mais ela se mostrava atrativa aos coetâneos. FRANÇA, S.S.L. Mulheres dos Outros: Os viajantes cristãos nas terras a (séculos XIII-XV). São Paulo: Editora Unesp, 2015, p.18-19; HOWARD, D. Writers and pilgrims medieval pilgrimage narratives and Posterity. Los Ángeles: University of California Press, 1980, p.106; AZNAR VALLEJO, E. Viajes y descubrimientos en la Edad Media. Madrid: Síntesis, 1994, p.16-18; MOLLAT, M. Los exploradores del siglo XIII al XVI: Primeras miradas sobre nuevos mundos. México: Fondo de Cultura Económica, 1990, p. 86-89; BRAUDEL, F. (Org.) O mediterrâneo: o espaço e a história. Lisboa: Teorema, 1987, p.49; SOLÓRZANO TELECHEA J. A; MARTÍN PÉREZ, F. (Coord.). Rutas de comunicación marítima y terrestre en los reinos hispánicos durante la baja Edad Media movilidad, conectividad y gobernanza. Madrid: Ediciones de La Ergástula, S.L, 2020, p.10. 21 reinos visitados. O francês, portanto, coloca a descrição do espaço percorrido como alvo das suas orientações aos futuros viajantes.8 Bouvier foi apenas um dos muitos viajantes a ressaltar a importância das configurações do espaço para aqueles que viajariam. O monge turíngio da Ordem dos Servos de Maria9, Hermann Künig (1450-?), do mosteiro de Vach,10 que fez uma peregrinação a Santiago de Compostela, provavelmente no ano de 148611, escreveu, em 1495, um “pequeno livreto” que, segundo suas palavras, deveria “descrever” os “caminhos” e “passos” que integraram seu itinerário até a cidade na Galícia, de forma a melhor auxiliar todos “os irmãos” que se dirigissem a “Santiago”. 12 Tanto para o oficial que vinha da França, como para o religioso da Turíngia, o conhecimento espacial sobre o longínquo se mostrava como uma ferramenta útil a todos aqueles que buscassem se aventurar na visitação de reinos estrangeiros. Juízo esse compartilhado entre os demais indivíduos que perambularam por terras castelhanas no período aqui estudado. A descrição e a mensuração13 do espaço, como se vê, foram tópicas quase obrigatórias nos informes acerca de viagens14 efetuadas em plagas da Coroa de Castela, mas os próprios castelhanos esboçaram elucubrações acerca do espaço e de como deveriam lidar com ele. 8 Importante ressaltar que as informações que Bouvier achou por bem registrar eram direcionadas tanto a membros de sua ocupação, que como será demonstrado mais adiante, atuavam constantemente em viagens, como para qualquer indivíduo que planejasse executar um deslocamento de maior fôlego. 9 Ordem religiosa de frades devotos de Nossa Senhora das Dores. Os seus membros religiosos são normalmente chamados de Frades Servos de Maria ou Servitas. 10 Localizado na região da Turíngia, às margens do rio Werra. 11 HERBERS, K; PLÖTZ, R. In. VACH, H.K. A peregrinaxe e o camiño a Santiago de Hermannus Künig de Vach, a “clásica” guía de peregrinos alemana (1495). Santiago de Compostela: consello da cultura, 1999, p.11. 12 “Eu, Hermann Künig de Vach, \quero coa axuda de Deus\ compoñer un pequeno libriño, \que se ha de chamar ‘o camiño de Santiago’. Nel quero describir camiños e pasos\e de que xeito todo irmán de Santiago\ se ha de prover com\ bebida e comida,\ e nel tampouco quero\ deixar sen amenta-las moitas maldades dos capóns.” VACH, H.K. A peregrinaxe e o camiño a Santiago de Hermannus Künig de Vach, a “clásica” guía de peregrinos alemana (1495). Santiago de Compostela: consello da cultura, 1999, p. 43. 13 As descrições geográficas construídas nos séculos XIV e XV eram maiormente baseadas na percepção qualitativa e simbólica do espaço, uma compreensão corrente até o final do século XV, quando se iniciou um processo paulatino de enfraquecimento, com o aumento de conhecimentos empíricos acumulados pelas viagens, e após a redescoberta de escritos clássicos, como os de Cláudio Ptolomeu (90-168), a exemplo de sua Geographia, que atuou como ponto de inflexão para a concepção espacial. Contudo, mesmo não sendo um consenso, houve, antes dessas mudanças conceituais, esforços para construir uma representação do mundo físico que se valesse de algum grau de exatidão. Nas relações sobre viagens, por exemplo, foram comuns as tentativas de medição de distâncias incluídas nas descrições de lugares, como será melhor desdobrado mais a adiante. Para maiores detalhes, ver: CROSBY, A.W. A mensuração da realidade: a quantificação e a sociedade ocidental - 1250-1600. São Paulo: Ed. UNESP, 1999, p.99-105; BÉGUELIM ARGÍMON, V. La geografía en los relatos de viajes castellanos del ocaso de la Edad Media: análisis del discurso y léxico. Zaragoza: Pórtico, 2011, p. 389-395. 14 É importante ressaltar que nem todos esses informes acerca de viagens possuem a forma de uma narrativa escrita em prosa – que possibilitaria assim uma descrição mais farta e detalhada do espaço e comumente é relacionada ao gênero documental das narrativas de viagem. Contudo, mesmo aqueles que não respeitam esse molde de escrito contribuem para algum tipo de marcação espacial sobre o território castelhano. Sobre a questão formal dos relatos de viagens, ver: CARRIZO RUEDA, S.M. Construcción y recepción de fragmentos de mundo. In. CARRIZO RUEDA, S.M. Escrituras del Viaje. Buenos Aires: Biblos, 2008, p.10-11; POPEANGA, E. Lectura e investigación de los libros de viajes medievales. Filología Románica, Anejo I. Madrid, 1999, p.14-16; RUBIO TOVAR, J. Libros españoles de viajes medievales. Madrid: Taurus, 1986, p. 38-41. 22 Esse tipo de reflexão emerge, por exemplo, nas páginas do Libro del cavallero et del escudeiro, especificamente no capítulo XLVIII, intitulado Commo el cauallero ançiano responde al cauallero novel que cosa es la tierra, em que um neófito nas artes da cavalaria inquire um veterano sobre o que seria “a terra” e qual seria sua serventia para os homens. O cavaleiro mais velho explica que nenhum homem poderia responder tal questão a contento. Contudo, esforça-se em elaborar um comentário sobre o tema, ao afirmar que “Deus colocou no mundo os reis e os senhores para manter as gentes na justiça, no direito e na paz”, e para tal tarefa “os encarregou da terra”.15 Assim, na visão do infante Juan Manuel (1282-1348), autor desta obra, e nobre castelhano letrado,16 a terra constituiria um espaço onde os homens que ocupavam postos de liderança deveriam assegurar o bem-estar dos povos. Esse livro escrito pelo sobrinho de Afonso X (1221-1284), na primeira metade do século XIV, é um tratado moral sobre a cavalaria, que incluía, em seus capítulos, ensinamentos sobre a natureza, com o intuito de reunir conhecimentos partilhados sobre a constituição do mundo; um tipo de reflexão que se tornou cada vez mais comum em Castela na passagem do XIV para o XV.17 Ao discorrer sobre a terra enquanto espaço habitável, o nobre castelhano ressalta que esta seria parte integrante da criação divina e, como tal, teria como significado principal de sua existência o usufruto por parte dos humanos.18 Mesmo sem perder de vista que o espaço terrestre seria uma dádiva do Criador para os homens, Juan Manuel mostra o peso das ações humanas na ordenação dos entornos geográficos,19 desvelando como o espaço ganhava significado, na medida em que era utilizado e organizado pela ação dos homens. Assim, deixava de ser compreendido como mera 15 “Et, fijo, commo quier que entre Dios et los omnes ay muy pequenna conparacion, pero por que Dios puso en el mundo los reyes et los sennores para mantener las gentes en justiçia et en derecho et en paz, et los acomendo la tierra para fazer esto, […]” MANUEL, D. J. Libro del cauallero et de lo escudero. Barcelona: Red imprecions SL, 2018, p.64 16 O infante Juan Manuel teve um treinamento típico da alta nobreza castelhana, com uma iniciação no manuseio de armas, juntamente com a apresentação de estudos clássicos, o que possibilitou que ele se tornasse um escritor prolífico, sendo seu trabalho mais conhecido o livro intitulado Conde Lucanor. Embora algumas de suas obras tenha se perdido, como El Libro de las cantigas ou El Libro de la cavallería, outras foram copiadas depois de sua morte e chegaram aos dias atuais, como o Libro del Cavallero et del escudeiro ou o Libro de los Estados. Toda sua produção tinha como traço em comum a compilação de saberes estabelecidos no seu contexto, com o intuito de promover uma melhor formação daqueles que, como ele, compunham o estamento nobiliárquico. MONTERO BOSTARRECHE, A; DÍAZ LÓPEZ, M, A; GUTIÉRREZ MURILLO, M, M. Los conocimientos de la naturaleza en la baja edad media: las clasificaciones de don Juan Manuel (1282-1348) en el Libro del cavallero et del escudero (1326-1328). Boletín de la Real Sociedad Española de Historia Natural. Sección biológica, Madrid, Nº. 111, 2017, p.20; JANIN, E. El conocimiento en el libro enfenido de don juan manuel: concepción del saber y estrategias de transmisión. Revista de Poética Medieval, Madrid, Nº. 15, pp. 65-82, 2005. 17 NAVARRO GONZALEZ, A. El mar en la literatura medieval castellana. La Laguna: Universidad de la Laguna, 1962, p. 73. 18 ABERTH, J. An environmental history of the Middle Ages: The crucible of nature. Londres e Nova York: Routledge Taylor&Francis Group, 2013, p.05. 19 Ibid., p.05. 23 delimitação física para se tornar uma configuração onde se poderiam concretizar diversas intervenções e relações humanas, entre as quais as viagens. Nessa mesma passagem, é destacado o vínculo entre o espaço e o exercício da justiça, separando-se as competências de seus responsáveis. A obra menciona a “diferença” entre os oficiais da justiça, subordinados a uma autoridade maior, e os reis e senhores, que ocupavam o posto mais alto na hierarquia terrena. Segundo os dizeres do cavaleiro ancião, aqueles que administravam a justiça em um território a mando de outrem deveriam fazê-lo por meio das “leis”, uma vez que eles próprios estavam a elas submetidos. Diferentemente desses oficiais, os reis não estavam “submetidos a ninguém, além de Deus” e, por esse motivo, o emprego da justiça vindo desses agentes amparava-se na tomada de decisões segundo a “verdade”, sem que pudessem agir a seu bel prazer. Na soma de ações possíveis, duas seriam imprescindíveis: a primeira, era que cabia “aos reis julgar” decisões anteriores a eles como “verdade”; a segunda, que não transferissem “a outrem as coisas que cabiam” a eles julgarem, nem assumissem para si o que cabia a outros. Assim, nas palavras de Juan Manuel, o respeito dessas máximas faria com que “a terra” fosse “mantida” como era devido.20 Os escritos do infante Juan Manuel, para além da reflexão sobre a regulação do espaço, traduzem em certa medida o compromisso dos relatos de viagens de passar adiante algum tipo de conhecimento sobre o mundo conhecido até então; em especial o Libro del Cavallero et del Escudero, que trata justamente de um diálogo no qual um cavaleiro experiente responde às perguntas de um jovem que iniciava seus feitos na arte da cavalaria.21 Os saberes que o nobre 20 “[…] por ende, los reyes et los sennores, que non an otro iuez sobre si sinon Dios, deuen catar que los pleitos que ante ellos vinieren que los judguen segund lo que fuere verdad. Et entrel juyzio de los sennores et de los ofiçiales que ellos ponen et an de judgar los pleitos por fueros et por leys, ay esta diferençia: los juezes que son puestos por otro non deuen iudgar los pleitos que ante ellos vienen segund ueen nin segun lo que ellos saben, sinon segund lo que es razonado entre ellos o lo que fallaren en aquellas leys o en aquellos fueros por que an de judgar. Esto es por que son sometidos aquellas leys o aquellos fueros por que an de judgar et de dar cuenta. Mas los reys et los grandes sennores, por que no son sometidos nin an de dar cuenta sinon a Dios, non deuen judgar si non por la verdad que sopieren çierta mente, et non deuen creer que lo que ellos cuydan que aquello es la verdat nin se deuen arrebatar fasta que lo sepan çierta mente. Mas de que la sopieren, deuen lo judgar segund verdat et sin ninguna mala entençion, et deuen se acordar que Dios los puso en aquel estado et que a el an a dar cuenta et que del an a reçebir galardon bueno o malo segund los juyzios que dieren. […] Otrosi deuen catar mucho los reys et los grandes sennores que fagan las cosas commo deuen. Ca todos los sus fechos son en dos maneras: o son tales que non pueden nin los deuen acomendar a otri, sinon fazer los et librar los ellos mismos, o son tales que non pertenesçe de los librar ellos et los deuen acomendar a otro. […] Fijo, commo quier que los reys et los grandes sennores an muchas cosas de fazer para guardar sus almas et sus cuerpos et sus estados et las tierras que les son acomendadas, çierto sed que los que estas dos cosas guardan que guardaran todo lo que les cunple para Dios et para el mundo: la vna, que judguen las cosas que ante ellos vinieren con verdat et con derecho commo desuso es dicho; la otra es que las cosas que el a de librar que las non acomiende a otri; et las que otri ouiere de librar, que se non enbargue dellas. Et faziendolo asi, sera la tierra mantenida por los sennores commo deue.” MANUEL, D. J. Libro del cauallero et de lo escudero. Barcelona: Red imprecions SL, 2018, p.64-65. 21 O escudeiro é ordenado cavaleiro após participar de uma reunião das Cortes. Para maiores detalhes, ver: Ibid., p.19. 24 castelhano procurou compartilhar eram, em grande parte, aqueles que se relacionavam com a educação dos nobres,22 construindo em seus escritos uma defesa da ação das elites na definição da ordem social estabelecida,23 traço recorrente na produção letrada do período.24 Dessa forma, na obra mencionada, Juan Manuel inclui apontamentos acerca do mundo natural e de como esse se relacionava com os homens. No caso da terra como espaço geográfico, o que se destaca na fala do infante é a relação entre ela e o estabelecimento de regras jurídicas e seus promotores. Na tentativa de descrever o que seria o espaço que comportava os reinos dos homens, esse letrado achou por bem reforçar os laços entre os territórios e o fazer da justiça. Na sua visão, a melhor forma de manter as terras era a observância de regras que afetavam tanto reis quanto aqueles que os auxiliavam na administração. No caso desses últimos, o aspecto de maior importância deveria ser o respeito a normas escritas que já tinham sido anteriormente fixadas. Já no caso dos reis, que em questão de autoridade ficavam abaixo apenas de Deus, restava o cumprimento de dois aspectos fundamentais: o respeito a outras esferas que aplicavam a justiça e o respeito a decisões e julgamentos dos predecessores. O cumprimento de tais normas por parte dos monarcas demonstraria não apenas seu lugar na hierarquia como também seu temor a Deus, de quem ele seria o maior representante e defensor.25 Essas ações destinadas a conservar as terras estavam, por sua vez, justificadas pela responsabilidade dos reis de assegurar a ordem dentro dos espaços ocupados, fazendo uso da justiça e das leis, uma tarefa que os próprios monarcas fizeram questão de se mostrarem conscientes. Em 1445, o rei Juan II (1405-1454) emitiu, nas Cortes de Olmedo, uma lei acerca de como as terras do reino deveriam ser defendidas pelo povo. Logo no início da normativa, consta que o “Reino” era como se chamava qualquer terra que tivesse “como senhor um rei”, e esse por sua vez ganhava tal nome “pelos feitos” empreendidos visando manter a terra na “justiça e direito”, que – como ensinavam os antigos – seriam como “a alma e o corpo”; entes separados, mas que, por meio do “ajuntamento” – termo que poderia referir-se tanto ao ato de unir coisas, como as reuniões dos estamentos durante as Cortes –, se tornariam indivisíveis.26 Tal como na 22 SANCHEZ, M. Programa educativo del infante D. Juan Manuel. Historia de la Educación. Revista interuniversitaria, Salamanca, Nº. 5, 1986, pp. 131-148 ; RUCQUOI, A. Éducation et société: dans la Péninsule ibérique médiévale. Histoire de l'Éducation, Lyon, Nº. 69, 1996, p. 18. 23 PISNITCHENKO, O. Modelo cavaleiresco de Dom Juan Manuel e cavalaria castelhano-leonesa na passagem do século XIII para XIV. SIGNUM-Revista da ABREM, Rio de Janeiro, Vol. 18, Nº. 1, 2017, p.13-24. 24 ANTONIO MARAVALL, J. La concepción del saber en una sociedad tradicional. In. Estudios de historia del pensamiento español. Madrid: Ediciones cultura hispánica, 1983, p. 249-253. 25SENELLART, M. As artes de governar. São Paulo: Editora 34, 2006, p. 156: SÁNCHEZ-ARCILLA BERNAL, J. La administración de justicia real en León y Castilla (1252-1504). 2015. Tese de Doutorado. Madrid: Universidad Complutense de Madrid, p. 14-18. 26 “Regno es llamado la tierra que ha rrey por sennor, e el ha otrosi nonbre rrey por los fechos que ha de fazer en ella manteniendo la en justiçia e con derecho: e por ende segunt dixieron los sabios antiguos son commo alma e 25 passagem do Libro del cavallero et del escudero, a lei delega ao rei o dever de manter as terras por meio da justiça e do direito, entendido este como a retidão almejada e a justiça como o meio de alcançá-la.27 Para unir esses aspectos básicos para o cuidado com os territórios, estavam as instituições responsáveis pela administração dos assuntos do reino e pela manutenção do próprio território. Embora cada testemunho acima aludido trate de forma diferente os espaços, eles permitem divisar uma questão importante: se, por um lado, os registros de viagens deixam ver a importância da descrição geográfica para o andamento da prática dos deslocamentos; por outro, testemunhos como o Libro del cavallero et del escudeiro e as diretrizes legislativas das Cortes apontam para uma disposição de se criar, mediante a produção de leis, um território ordenado e justo e, por consequência, um ambiente transitável, que garantisse o respeito a certas normas em prol do bem comum. Dito isto, importa indagar como se lidou com as peculiaridades de um território que passava por mudanças na sua organização territorial, com redefinição dos limites externos e barreiras internas. Em suma, importa indagar a reconfiguração de um espaço geográfico que começava a se tornar mais fixo, comportando já as necessidades ligadas aos deslocamentos cada vez mais comuns. 1.1 Destinos almejados, terras segmentadas Uma vez estabelecido o peso da reflexão acerca do espaço no quotidiano castelhano dos séculos XIV e XV e nos registros de viagens, é oportuno esmiuçar quais foram os espaços que serviram de cenário para essas viagens e quais as razões para o prestígio desse destino. As terras da Península Ibérica figuraram, entre cristãos dos séculos medievais, como um destino atrativo para as diversas formas de viagens. Essas idas de viajantes estrangeiros rumo às terras hispânicas,28 entretanto, despertaram maior interesse dos estudiosos a partir do século XIX, quando os estudos passaram a mapear e reunir diversos relatos de viagens que descreveram cuerpo que maguer sean en si departidos, el ayuntamiento les faze ser vna cosa , onde maguer el pueblo guardase al rrey en todas las cosas sobre dichas[…]” CORTES de los antiguos Reinos de León y de Castilla. Madrid: Imprenta y Estereotipia de Rivadeneyra, 1866, tomo III, p. 475. 27 DE DIOS, S. Las Cortes de Castilla y León y la administración central. In. LAS CORTES de Castilla y León en la Edad Media: actas de la primera etapa del Congreso Científico sobre la Historia de las Cortes de Castilla y León, Burgos 30 de septiembre a 3 de octubre de 1986. Dueñas: Simancas Ediciones S. A., 2002, Vol. II, p.317. 28 Embora não houvesse a concepção de Espanha como uma região formal, termos como Hesperis, Iberia, España la Mayor e la Menor, las Españas eram comumente utilizados para designar a junção dos povos que habitavam a Península. Para maiores esclarecimentos, ver: ANTONIO MARAVALL, J. El concepto de España en la Edad Media. Madrid: centro de estudios constitucionales, 1997, P. 53-62. 26 aquelas plagas.29 Contudo, em sua maior parte, esses estudos interpretaram as viagens de estrangeiros sendo feitas unicamente para a Península Ibérica como um destino unificado, elegendo o século XV como alvo, justamente pela maior ocorrência de registros acerca de viagens vindas de lugares além das fronteiras.30 Quando se observam detidamente as divisões territoriais que compunham a Península Ibérica, certas nuances revelam a diversidade do território. No caso de Castela, há registros de visitantes cristãos já na segunda metade do século XIV,31 como, por exemplo, os relatos de duas embaixadas32 do reino de Navarra enviadas a Castela durante o reinado de Pedro I: a primeira 29 Esse movimento foi inaugurado com os esforços de Juan Riaño Facundo e sua obra Viajes de Extranjeros por España em el siglo XV, de 1877, que atribuía as visitas de estrangeiros ao ímpeto religioso e bélico dos viajantes que viam na Península um local onde poderiam realizar essas aspirações. Depois desse estudo inicial, houve, ainda ano século XIX, outros estudiosos que publicaram trabalhos, alargando a lista de viajantes medievais, bem como aumentando o recorte temporal das viagens até o século XVII: como a obra Viajes de Extranjeros por España y Portugal en los siglos XV, XVI y XVII, de Javier Liske, que ,além de avançar o recorte temporal, também trouxe o contributo de relatos de viagens vindas do Leste europeu, como Nicolás de Popielovo (?-?), Johannes Dantiscus (1485 - 1548), Erich Lassota von Steblau (1550 - 616) e Jacobo Sobieski (1580- 646). No século XX, até as décadas de 30, houve alguns trabalhos, com destaque para os do crítico literário italiano Arturo Farinelli, que chegaram a incluir viajantes que visitaram as terras espanholas durante o século XIX. Assim, após um certo desinteresse, durante o período do pós-guerra, estudiosos como José Garcia de Mercadal voltaram suas atenções para o tema dos viajantes estrangeiros. García Mercadal, em particular, lançou uma trilogia de livros que reúne relatos que que vão desde as primeiras referências escritas de que se tem notícia na Península, até o fim do XIX. Para maiores detalhes, consultar: FACUNDO RIAÑO, J. Viajes de extranjeros por España en el siglo XV. Boletín de la Sociedad Geográfica de Madrid, Madrid, Nº. 10, tomo III, ano11, pp. 289-301, 1877; LISKE, J. Viajes de extranjeros por España y Portugal en los siglos XV, XVI y XVII. Madrid: Casa Editorial de Medina, 1878. Traducido y anotado por don Félix Rozanski; FARINELLI, A. Viajes por España y Portugal desde la Edad Media hasta el siglo XX. Divagaciones bibliograficas. Madrid: Centro de Estudios Históricos, 1921; GARCÍA MERCADAL, J. Viajes por España. Madrid: Alianza Editorial, 1972. 30 Tal ideia foi defendida por estudiosos mais antigos, como José Facundo Riaño, e mais atuais, como José Garcia de Mercadal. MERCADAL, J. G. España vista por los extranjeros. Madrid: Biblioteca nueva, 1917, p.89; FACUNDO RIAÑO, J. Viajes de extranjeros por España en el siglo XV. Boletín de la Sociedad Geográfica de Madrid, Madrid, Nº. 10, tomo 111, ano11, 1877, p.290. 31 Existem alguns registros de cristãos por terras castelhanas, ou mesmo ibéricas, em momentos anteriores ao estudado, como o Iter pro peregrinis ad Compostellam, talvez o mais famoso guia de peregrinação a Santiago de Compostela, escrito entre 1135 e 1140 pelo francês Aimerico Picaud (?-?) e incluído no Liber Sancti Jacobi, manuscrito iluminado dado ao papa Calixto II (1060 - 1124). Contudo, pode-se destacar a produção nada desprezível de registros de cunho geográfico por mãos árabes e mulçumanas, como o famoso tratado geográfico Kitab nuzhat al-mushtaq, ou Opus Greographicum, por Muhammad al Abu-Idrisi-al, Aldrisi, (1100 -1165) e o livro Taqwim al-Buldan de Ismael Imad-Ab-Din-Al-Ayubi (1273-1331), também conhecido como Abulfeda, livro no qual o escritor sírio descreve uma grande variedade de reinos incluindo informações geográficas como as longitudes. 32 A primeira foi liderada por dois nobres Pero Alvarez de Rada (?-?) e Gil García de Iániz (?-?), senhor de Otazu, no ano de 1352. Já a segunda embaixada foi enviada no ano de 1362 e teve como emissário o Frei Pedro Huisse, Bispo de Castimonia ( ?-?). Ambas demonstram a tendência daquele momento de escolher como representantes, indivíduos de relevância social e experientes nas comunicações e dinâmicas das cortes, uma vez que ainda não havia servidores especializados nessa ocupação, mas indivíduos que devido sua posição social e conhecimentos receberia incumbências ocasionais. Contudo, esses conhecimentos passavam a ser cada vez mais valorizados para essa atuação, como pode-se notar na recorrente escolha de indivíduos experimentados para esse tipo de incumbência, como Alvarez de Rada e García de Iániz que foram escolhidos para atuar em outras missões ao longo do século XIV. Para maiores detalhes, ver: DE LIMA, D. M. X. Novos olhares sobre a diplomacia medieval. Revista TransVersos, Vol. 3, Nº. 3, 2015, p.80; PÉQUIGNOT, S. Les diplomaties occidentales, XIIIe-XVe siècle. In. SHMESP, Les Relations diplomatiques au Moyen Âge. Formes et enjeux, Paris: Publications de la Sorbonne, 2011, p. 52. 27 saiu de Pamplona no ano de 1352 por ordem do infante D. Luís de Navarra, ou Luís de Evreux (1341-1376), 33 regente durante a ausência de seu irmão, o rei Carlos II (1332- 1387), que se encontrava na França como tenente-general da região francesa do Languedoc;34 a outra que seguiu, em 1362, a serviço do próprio Carlos II, com “ordens secretas” a serem tratadas com “o rei de Castela”.35 As duas viagens parecem tratar de assuntos sigilosos, o que, possivelmente, resultou em relatos menos detalhados.36 Contudo, ambas geraram relatórios acerca das despesas feitas durante os deslocamentos, incluindo os itinerários percorridos pelos emissários forâneos. Na percepção dos castelhanos do Trezentos e Quatrocentos, estrangeiro seria qualquer indivíduo que não fosse súdito da Coroa; assim, súditos da Coroa de Aragão37, de Portugal, de Navarra e de Granada eram todos vistos como estrangeiros.38 Desse modo, as embaixadas navarras e seus escritos constituem um testemunho de forasteiros sobre a experiência do deslocar por Castela, ao mesmo tempo em que apontam um motivo corrente que levou visitantes àquelas plagas: as tratativas diplomáticas. As expedições de comitivas diplomáticas destacam-se entre as principais experiências viageiras em Castela e nos demais reinos conhecidos39 a merecerem registro.40 Entre os relatos de viagens por Castela, há, inclusive, episódios de embaixadas que percorreram esse território visando alcançar outros destinos, como a embaixada portuguesa que se dirigiu ao Concílio de 33 LINCOLN, K. C. (ed). Desde Estella a Sevilla, Cuentas de un Viaje (From Estella to Sevilla, Records of a Trip). eHumanista: Journal of Iberian Studies, Santa Barbara, Nº. 35, 2017, p. 580. 34 SUÁREZ FERNÁNDEZ, L. História de España. Madrid: Gredos, 1978, p. 433. 35 CARRASCO PEREZ, J; VILLEGAS DÍAZ, L. R. (ed.) Nueva Embajada de Navarra a Castilla en 1362. las Cuentas del Viaje. Historia. Instituciones. Documentos, Sevilha, Nº. 8, 1981, p.116. 36 Ibid., p.88. 37 E por conseguinte todos os seus integrantes como aragoneses, catalães, valencianos e maiorquinos. 38 BELLO LEÓN, J. M. Extranjeros en Castilla (1474-1501). Notas y documentos para el estudio de su presencia en el reino a finales del siglo XV. La Laguna-Tenerife: Litomaype, S.L, 1994, p.09. 39 Durante o período tardo medieval, as relações diplomáticas entre reinos ocidentais passaram por um processo de dinamização e desenvolvimento, tal como se nota com o uso cada vez mais frequente do termo embaixador – derivado do latim ambassiator – para denominar enviados que representavam seus senhores, como na utilização desse título em registros sobre embaixadas como o de Lanckman de Valckenstein, de 1451, ou o de Roger Machado de 1488, para se referir aos responsáveis pelas missões. Concomitantemente, houve nesse período uma predileção por indivíduos com maior experiência e conhecimento para desempenhar as missões. Todos esses elementos figurariam como parte de um contexto de aperfeiçoamento dessas incumbências, algo que seria potencializado com o surgimento de embaixadas permanentes executadas por poderes italianos já no século XV, algo que se distanciava muito das missões esporádicas mais comuns nas centúrias passadas. Para maiores esclarecimentos: DE LIMA, D. M. X; DE SOUSA, W. M. O Diário de Nicolau Lanckman de Valckenstein: uma embaixada entre a peregrinação e a diplomacia. Revista de História da UEG, Vol. 13, Nº. 1, 2024, p. 10; PÉQUIGNOT, S. Les diplomaties occidentales, XIIIe-XVe siècle. In. SHMESP, Les Relations diplomatiques au Moyen Âge. Formes et enjeux, Paris: Publications de la Sorbonne, 2011, p. 47-66. 40BECEIRO PITA, I. La tendencia a la especialización de funciones en los agentes diplomáticos entre Portugal y Aragón (1412-1465). In. El Poder Real en la Corona de Aragón. XV Congreso de Historia de la Corona de Aragón. Vol. 2. Zaragoza: Gobierno de Aragón, 1994, p. 441-455; CAÑAS GÁLVEZ, F. P. La diplomacia Castellana durante el reinado de Juan II: la participacíon de los letrados de la cancillería real em las embajadas regias. In. Anuario de estudios medievales (AEM) 40/2, julio-diciembre de 2010, p. 691-722; WATKINS, J. Toward a New Diplomatic History of Medieval and Early Modern Europe. Journal of Medieval and Early Modern Studies, Durham, Nº. 38, pp. 01-14, 2008. 28 Basileia,41 liderada pelo conde de Ourém e marquês de Valença, D. Afonso (1402/3-1460), e que atravessou Castela no ano de 1436. É também o caso da comitiva do Sacro Império Romano-Germânico, que chegou a terras ibéricas com o intuito de negociar os detalhes do casamento da infanta D. Leonor de Portugal (1434-1467) com o imperador Frederico III (1415- 1493). Essa comitiva fez passagem por Castela para chegar ao reino vizinho, mas aproveitou o percurso para visitar lugares dentro do território castelhano, como o centro de peregrinação, Santiago de Compostela. 42 Além do móbil diplomático, Castela apresentava aos homens desse período alguns traços mais característicos, que se mostraram atrativos para os de fora e dinamizadores dos mais diversos deslocamentos internos.43 Desse modo, os viajantes que deixavam encontravam uma variedade de destinos que os levava a desviar-se dos rumos previamente estabelecidos.44 A exemplo disso, pode-se mencionar a comitiva que acompanhou o duque da Borgonha e conde de Flandres, Filipe IV (1478-1506), e sua esposa, a infanta Joana de Castela (1479- 1555), pelas terras castelhanas, em 1502 – ocasião do falecimento dos demais herdeiros de Isabel I de Castela (1451-1504) e Fernando II de Aragão (1452-1516).45 Essa portentosa 41 Foi o décimo sétimo concílio ecumênico de bispos e membros do clero da Igreja. Iniciado no ano de 1431 em Basileia, foi transferido para Ferrara em 1438 por ordem do Papa Eugênio IV (1383-1447). DOS REIS, J. C. Os Concílios Ecumênicos (V). Revista de História, São Paulo, Vol. 33, Nº. 68, 1966, p. 314 42 Para maiores detalhes, consultar: SCHAFFER, M. E. (Trad. Ed.) Como o Conde Dourem foi ao Concilio de Basilea, e o que passou no caminho, e assy ao Papa. An update and a new perspectiveon the Diario da Jornada do Conde de Ourém. eHumanista: Journal of Iberian Studies, Santa Barbara, Nº. 31, pp. 171-232, 2015; NASCIMENTO. A.A. (Ed. Trad.). LEONOR de Portugal imperatriz da Alemanha. Diário de viagem do embaixador Nicolau Lanckman de Valckenstein. Lisboa: edições Cosmos, 1992. 43 Escolhemos compartimentar os eixos explicativos sobre os deslocamentos internos e as viagens de estrangeiros por enxergamos que os primeiros compõem parte das particularidades que irão fundamentar em grande parte as discussões jurídicas e legislativas. Enquanto, os deslocamentos fruto de visitações estrangeiras, embora se relacionem e abordem temas viageiros corriqueiros, apresentam visões mais gerais sobre a prática da viagem. Deste modo, esses dois tipos de deslocamentos serão cotejados de acordo com a explanação de temas com os quais possuíram maior relação. 44 Compreendemos que durante o período medieval, mesmo as viagens encomendadas por autoridades a fim de cumprir determinados desígnios, não restringiam seus itinerários apenas ao cumprimento da missão, uma vez que desvios e mudanças poderiam ocorrer tanto por escolhas como por necessidades impostas. Isto posto, entendemos que a flexibilidade dos trajetos e destinos fazia parte das viagens medievais em si, contudo, ao analisar a formação dos territórios castelhanos, bem como os registros de viagens que surgiram a partir do século XIV, defendemos que a Coroa de Castela oferecia a disposição dos viajantes uma multiplicidade de locais que se relacionavam com os interesses de diversos tipos de viajantes, indo desde os valores guerreiros até religiosos, passando pela busca de ganhos materiais. Dessa forma, parece possível afirmar que embora o ato de viajar contemplasse os desvios, o fato de se encontrar em um território com destinos de grande fama, influenciava na escolha dos indivíduos em viagem. 45 No final do século XV a quantidade de possíveis descendentes dos Reis Católicos dentro da Península Ibérica se esgotou quase por completo com a morte, em 1497, do Infante Juan (1478-1497), príncipe das Astúrias e herdeiro do trono, e de seu filho nascituro com Margarida da Áustria (1480-1530). Logo depois, a infanta Isabel (1470-1498), casada com o rei Manuel I de Portugal (1469-1521), também veio a falecer ao dar à luz a criança que também morreu pouco tempo depois. Assim, restando apenas a opção da infanta Joana e seu marido borgonhês. Para maiores esclarecimentos: SUÁREZ FERNÁNDEZ, L. Historia de España. Edad Media. Madrid: Gredos, p.665-667; VALDEÓN BARUQUE, J. La Dinastía de los Trastámaras. Madrid: El Viso, 2006, p. 285-286. 29 comitiva foi integrada pelo cavaleiro da região de Hainaut, na Valônia ,46 Anthoine de Lalaing (1480-1540), camareiro mor de Filipe IV. 47 Esse nobre valão aproveitou-se da viagem para escrever uma obra na qual registrou a vida e os feitos do futuro Filipe I de Castela,48 havendo grande destaque em seus escritos para essa ida até as terras ibéricas.49 Embora o objetivo principal de Lalaing fosse acompanhar e narrar as jornadas em busca dos sogros reais do duque de Borgonha, o cavaleiro se permitiu abandonar a companhia de seu senhor para conhecer outros locais que chamavam a atenção de viajantes. Consta em seu relato que “Anthoine de Lalaing”, o “compilador dessas coisas”, como ele se chamava, acompanhado de “Charles de Lausnoy” e “Anthoine de Quiévrains”, deixou a comitiva de Felipe IV em Burgos para “ir a Santiago”.50 Nesta cidade, Lalaing visitou a igreja dedicada ao culto do Apóstolo Tiago, talvez o destino castelhano de maior renome, dado ter se consolidado como o solo onde repousaram os restos mortais do apóstolo de Jesus Cristo, Tiago Maior.51 A Igreja de Santiago de Compostela, localizada na Galícia, foi, juntamente com Jerusalém e Roma, um dos três lugares de maior renome entre cristãos a partir do século XII,52 pois lá vingou a crença de que, após martirizado e morto no oriente, no século I, o apóstolo Tiago teve seu corpo transportado em uma arca de pedra pelo mediterrâneo até a Galícia, então província romana da Hispânia – local onde outrora havia pregado a doutrina cristã. Tal narrativa enraizou-se na história daquele lugar e alguns estudiosos fazem referência a testemunhos da 46 Domínio territorial dentro do Sacro Império Romano-Germânico medieval, abrangia o que é atualmente a fronteira entre Bélgica e França. 47 A partir do século XIII e XIV, o camareiro e demais cargos relacionados ao âmbito doméstico de grandes senhores passaram a deter maior prestígio e autoridade, chegando até a tornar-se, em alguns casos, cargos que se passavam de modo hereditário nas famílias vassalas. BECEIRO PITA, I. Criados, Oficiales y Clientelas Señoriales em Castilla (Siglos XI- XV). In. Cuadernos de Historia de España LXXV, Buenos Aires: Instituto de Historia de España “Claudio Sánchez- Albornoz”, 1998-1999, p.66-74. 48 Um personagem muito presente nos diversos cenários políticos no final do século XV – por ser filho do imperador Maximiliano I (1459-1519), bem como um forte partidário do monarca da França Charles VIII em suas empreitadas por predomínio sob outros reinos – Felipe IV foi o primeiro membro da casa de Habsburgo a ser rei de Castela. FAGEL, R. El mundo de Felipe el Hermoso: la política europea alrededor de 1500. In. ZALAMA, M. A; VANDENBROECK, P. (Ed.). Felipe I el Hermoso: la belleza y la locura. Madrid: CEEH, 2006, p. 51-66. 49 Além dessa relação que descreve em pormenores a ida do duque por terra até Castela, houve ainda um outro documento que descreveu outro de autoria anônima que relata uma outra viagem marítima do nobre até Castela no ano de 1506. DEL CERRO BEX, V. Itinerario seguido por Felipe I El Hermoso en sus dos viajes a España. Chronica nova: Revista de historia moderna de la Universidad de Granada, Granada, Nº. 8, pp. 59-80, 1973. 50 “Le samedi, XIXe, Monsigneur et Madame visetèrent l’hospital du Roy avoec le conestable, le comandeur major et pluseurs comtes. Lequel jour Anthoine de Lalaing, signeur de Montegny, recoeilleur de ces choses, et Charles de Lausnoy, signeur de Sainctzelles, et Anthoine de Quiévrains, signeur de Monceaux, partirent de Bourghes, pour aller à Sainct-Jacques.” LALAING, A. Voyage de Philippe le Beau en Espagne, en 1501. In. GACHARD, L. P. Collection des voyages des souverains des Pays-Bas. Bruxelas: Hayez, 1876, p.155. 51 FRANÇA, S.S.L. Peregrinos e centros de peregrinação. In. FRANÇA, S.S.L; DE SOUSA NASCIMENTO, R.C; LIMA, M. P. Peregrinos e peregrinação na Idade Média. Editora Vozes Limitada, 2018, p.42-43. 52 CRISTÓVÃO, F. A. Condicionantes culturais da literatura de viagens: estudos e bibliografias. Cosmos: Lisboa, 1999, p.83-109. 30 existência do túmulo desde o século IV.53 E dado que as relíquias foram um aspecto de suma importância para a concepção da sacralidade medieval, na medida em que concediam ao mundo físico uma relação com o divino, criou-se, nesse local, um culto ao santo que ganhou proporções gigantescas, com narrativas milagrosas que auxiliaram na transformação dessa região em um local onde os cristãos se sentiam mais próximos a Deus. A cidade passou, pois, a ser vista como um destino prestigiado, um grande centro de peregrinação e um elo entre os itinerários cristãos.54 Este que foi um dos maiores centros de peregrinação da Cristandade atraiu diversos outros viajantes, que deixaram seus lares tendo como propósito cardinal encaminhar-se diretamente até a cidade na Galícia, a exemplo do nobre gascão Nompar de Caumont (1391- 1446), em 1419; o armênio Mártir (?-?), bispo de Arzendjan,55 que visitou a cidade em 1492, bem como o já mencionado peregrino Hermann Künig, no final do século XV.56 A essas peregrinações premeditadas pode-se juntar as de outros peregrinantes que, como Lalaing, se desviaram de suas rotas originais atraídos pela sacralidade do lugar. Pode-se dizer que houve muitos viajantes que visitaram Castela com mais de um objetivo em mente e, em quase todas as viagens, a rota para o túmulo do Apóstolo não era esquecida.57 Contudo, tal ímpeto peregrino não se restringia apenas a Santiago, havendo outros lugares que possuíam igual interesse aos 53DE PARGA, L. V. Las peregrinaciones a Santiago de Compostela. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, Escuela de Estudios Medievales, 1948, p.11-52; MENACA, M. Sur l’origine du chemin de Saint Jacques. In. LES communications dans la Péninsule Ibérique au Moyen- Age. Actes du colloque tenu à Pau les 28 et 29 mars 1980 sous la directions de P. Tucoo-Chala. Ata de congresso, Pau, 1980. Paris: CRNS, 1981, p.111-113. 54 Para maiores detalhes, ver: RUCQUOI, A. et al. The Way of Saint James: a sacred space? International Journal of Religious Tourism and Pilgrimage, Dublin, Vol. 7, Nº. 05, p. 41-47, 2019. DUPRONT A. Puissances du pèlerinage. Perspectives anthropologiques. In. DUPRONT. A. (Ed.) La quête du sacré. Saint-Jacques de Compostelle. Turnhout: Brepols, 1985, pp. 175-252. 55 Atualmente denominada Erzincan, cidade da região da Anatólia Oriental da Turquia. 56 Para maiores detalhes, ver: MERCADAL, J. G. Viajes de extranjeros por España y Portugal: desde los tiempos más remotos hasta comienzos del siglo XX. Salamanca: Junta de Castilla y Leon Consejeria de Educacion y Cultura, 1999, p. 391-398; CAUMONT, N. Voyaige d'oultremer en Jhérusalem par le Seigneur de Caumont l'an 1418. Publié pour la première foi d'après le manuscrit du Musée Britannique par le Marquis de La Grange. Paris : A. Aubry, 1858 ; HERBERS, K; PLÖTZ, R. In. VACH, H.K. A peregrinaxe e o camiño a Santiago de Hermannus Künig de Vach, a “clásica” guía de peregrinos alemana (1495). Santiago de Compostela: consello da cultura, 1999. 57 Pode-se ressaltar dois casos em específico de viagens que, tais como a de Lalaing, deixaram por algum tempo seu intuito principal para visitar Santiago de Compostela. Um desses casos foi a embaixada enviada, no ano de 1428, por outro duque da Borgonha, Felipe III (1396-1467), para tratar do casamento do duque com a infanta de Portugal Isabel (1397-1471). Uma comitiva que foi integrada pelo pintor Jan van Eick (1390-1441), que seguia com a missão de pintar um retrato da infanta. Uma vez em Lisboa, alguns dos membros dessa comitiva decidiram deixar o reino lusitano para irem até Santiago de Compostela. A outra, antes referida, foi a das tratativas do casamento da infanta D. Leonor de Portugal com o imperador Frederico III, que também levou seus integrantes a Santiago. Para maiores detalhes, ver: VASCONCELOS, J. Voyage de Jehan Van Eyck (1428-1430). Revista de Guimarães, Nº. 14, Vol.01, 1897, p. 16; NASCIMENTO. A.A. (Ed. Trad.). Leonor de Portugal imperatriz da Alemanha. Diário de viagem do embaixador Nicolau Lanckman de Valckenstein. Lisboa: edições Cosmos, 1992, p. 25. 31 peregrinos, a exemplo do sítio descrito por Lalaing como “o lugar mais lindo e onde havia o convento mais rico de toda a Espanha”,58 referindo-se ao mosteiro de Santa Maria de Guadalupe, ou Nossa senhora de Guadalupe, localizado mais ao sul, entre a cidade de Cáceres e Granada. Esse mosteiro foi entregue aos cuidados da ordem dos jerônimos em 1389 por Juan I (1358-1390) e ganhou grande prestígio ao longo do século XV, com o fortalecimento do culto mariano entre os cristãos.59 A partir daí, tornou-se crescente o interesse de muitos viajantes sobre esse centro de peregrinação, 60 que foi se tornando um importante destino no Quinhentos, já figurando como um local de grande renome e destaque na descrição de Lalaing. As observações a respeito de desvios dos itinerários não se restringiram, no entanto, apenas aos locais religiosos. Lalaing, por exemplo, demonstra interesse em descrever sua ida a outros destinos comuns para viajantes de séculos anteriores, atraídos por interesses diversos dos do nobre, como o caso das cidades mercantis de Burgos e Sevilha. Sobre essa última, o viajante fez um elogio a seu interior por ser uma cidade “formosa e grande”, e por ter todas as suas ruas “pavimentadas”. Ainda sobre o interior da urbe, o estrangeiro afirmou que, nas proximidades de uma Catedral em construção, ficaria localizada a “Bolsa”, local onde se reuniriam os “mercadores”, como faziam em “Bruges” e na “Antuérpia”.61 Nesse trecho, o visitante destaca a existência da Lonja, espécie de edifício público, onde comerciantes e mercadores se reuniriam para tratar de assuntos relacionados a seus negócios, principalmente aqueles que diziam respeito 58“Le vendredi, secondt jour de septembre, ouyrent illee messe à Nostre-Dame, monastère de tordre Sainct- Jhéromme, où sont bien cent religieus, est le plus beau lieu et le plus rice cloistre d'Espaigne.” LALAING, A. Voyage de Philippe le Beau en Espagne, en 1501. In. GACHARD, L.P. Collection des voyages des souverains des Pays-Bas. Bruxelas: Hayez, 1876, p.199. 59 BECEIRO PITA, I. De las peregrinaciones al viaje interior. Las transformaciones en la religiosidad nobiliar castellana. Cahiers de linguistique hispanique médiévale, Lyon, Vol.30, Nº. 1, 2007, p.111. 60 Dentre os relatos de viajantes que narraram visitas à Santa Maria de Guadalupe estão Vâclav Sasek (?-?) e Gabriel Tetzel (1426-1479) acompanhantes de andanças do cavaleiro boêmio Jaroslav Lev de Rožmitál em 1466; o comerciante de Bruges Eustache de la Fosse (?-1523) que chegou ao mosteiro no ano de 1480, após sua malfadada expedição à África; e o religioso armênio Mártir, bispo de Arzendjan, que percorreu uma grande quantidade de destinos sacros castelhanos em 1492. Para maiores detalhes, ver: MERCADAL, J. G. Viajes de extranjeros por España y Portugal: desde los tiempos más remotos hasta comienzos del siglo XX. Salamanca: Junta de Castilla y Leon Consejeria de Educacion y Cultura, 1999, p. 267\282; DE LA FOSSE, E; DE CARVALHO, J. M; ALVIM, P. Crónica de uma viagem à Costa da Mina no ano de 1480. Lisboa: Vega, 1992, p.111-112; MERCADAL, J. G. Viajes de extranjeros por España y Portugal: desde los tiempos más remotos hasta comienzos del siglo XX. Salamanca: Junta de Castilla y Leon Consejeria de Educacion y Cultura, 1999, p.397; MERCADAL, J. G. Viajes de extranjeros por España y Portugal: desde los tiempos más remotos hasta comienzos del siglo XX. Salamanca: Junta de Castilla y Leon Consejeria de Educacion y Cultura, 1999, p. 36