ADRIANA MONTEIRO PIROMALI GUARIZO UMA POÉTICA DO ESCREVER E DA ESCRITA EM ÁGUA VIVA, DE CLARICE LISPECTOR São José do Rio Preto – SP 2013 ADRIANA MONTEIRO PIROMALI GUARIZO UMA POÉTICA DO ESCREVER E DA ESCRITA EM ÁGUA VIVA, DE CLARICE LISPECTOR Tese apresentada ao Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, câmpus de São José do Rio Preto, para a obtenção do título de Doutor em Letras (Área de Concentração: Teoria da Literatura.) Orientador: Prof. Dr. Arnaldo Franco Junior São José do Rio Preto - SP 2013 Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca do IBILCE Campus de São José do Rio Preto - UNESP Guarizo, Adriana Monteiro Piromali. Uma poética do escrever e da escrita em Água viva, de Clarice Lispector / Adriana Monteiro Piromali Guarizo. - São José do Rio Preto, 2013. 255f. : il. Orientador: Arnaldo Franco Junior Tese (doutorado) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas 1. Literatura brasileira. 2. Ficção brasileira – História e crítica. 3. Prosa brasileira – Séc. XX – História e crítica. 4. Lispector, Clarice, 1920-1977. – Água viva – Crítica e interpretação. Franco Junior, Arnaldo. II. Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas. III. Título. CDU – B869-31.09 ADRIANA MONTEIRO PIROMALI GUARIZO UMA POÉTICA DO ESCREVER E DA ESCRITA EM ÁGUA VIVA, DE CLARICE LISPECTOR Tese apresentada ao Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, câmpus de São José do Rio Preto, para a obtenção do título de Doutor em Letras (Área de Concentração: Teoria da Literatura). Orientador: Prof. Dr. Arnaldo Franco Junior. Comissão Examinadora Prof. Dr. Arnaldo Franco Junior UNESP – São José do Rio Preto Orientador Prof. Dr. Márcio Schell UNESP – São José do Rio Preto Prof.ª Drª. Diana Junkes Martha Toneto UNESP – São José do Rio Preto Profª. Drª. Aparecida Maria Nunes UNIALFENAS – Minas Gerais Prof. Drª. Guacira Marcondes Machado UNESP – Araraquara São José do Rio Preto 29 de agosto de 2013 Ao Olavo, face humana de Deus em minha vida, ao Arnaldo, pelo indizível, e a esta outra que habita em mim, desde então... AGRADECIMENTOS Agradeço ao meu orientador Prof. Dr. Arnaldo Franco Junior pelo apoio e incentivo incansáveis ao meu trabalho, em especial na fase final de escrita. Sua orientação segura, competente, valorosa e precisa, bem como a confiança depositada em mim, fizeram com que pudesse finalizar este estudo de doutoramento. Não posso deixar de ressaltar o quanto a sua dedicação revela seu profissionalismo, companheirismo e, acima de tudo, respeito ao profissional que está sob sua orientação. Receba minha admiração e gratidão eternas. Também não poderia deixar de agradecer ao Prof. Dr. Rogério Elpídio Chociay, por ter nos acompanhado, quando este trabalho ainda estava em processo embrionário, e por ter acreditado, um dia, no meu potencial. Com esse gesto, teve início minha história no IBILCE/Unesp, ainda como mestranda em Letras. Ao IBILCE/Unesp, por ter me oferecido, durante esses longos sete anos (2006-2013), nos quais fui uma de suas alunas, a possibilidade concreta para que eu pudesse transformar minha realidade cultural, intelectual e, principalmente, humana. Ao Prof. Dr. Márcio Scheel, pelas indicações bibliográficas e preciosas interferências críticas, por ocasião do Seminário de Tese em Andamento, bem como do meu Exame de Qualificação e Defesa. À Profª. Drª. Diana Junkes Martha Toneto, por sua preciosa interferência poética, por ocasião de meu Exame de Qualificação e Defesa. À Profª. Drª. Aparecida Maria Nunes, pela pertinência de suas considerações, em minha Defesa. À Profª. Drª. Guacira Marcondes Machado, pela relevante contribuição poética, em minha Defesa. À Profª. Drª. Roxana Guadalupe Herrera Álvarez, pela densidade de suas observações, por ocasião do Seminário de Tese em Andamento. À Profª. Drª Giséle Manganelli Fernandes, à Profª. Drª. Susana Busato e ao Prof. Dr. Sérgio Vicente Motta, pelas sugestões ao projeto, por ocasião do “X Seminário de Estudos Literários (SEL)” do IBILCE, em 15 de outubro de 2010. Aos Professores Doutores Cláudia Maria Ceneviva Nigro, Aguinaldo José Gonçalves, Sérgio Vicente Motta, Norma Wimmer, pelas importantes considerações suscitadas por meio das disciplinas que ministraram, no meu doutorado. A todos os professores do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL), do IBILCE, que fizeram parte desta minha história, desde o mestrado. A todos os funcionários do IBILCE, em especial aos da Seção de Pós-graduação e aos da biblioteca, pelos serviços prestados de forma competente e calorosa. Ao meu marido, Olavo, por ter promovido todas as voltas (necessárias) à realidade. Às minhas filhas, Gabriela e Maria Clara, por aguardarem, pacientemente, os abraços, as conversas e, até mesmo, os risos e sorrisos, sempre adiados; aos filhos, noras e netos, por suportarem a recorrente ausência, mesmo quando estive presente fisicamente. Aos meus pais, Magali e Antonio (in memoriam), por me ensinarem a persistência e a dedicação. Ao Magnífico Reitor do Unisalesiano, Centro Universitário Católico Salesiano Auxilium – Unisalesiano, Pe. Jair Marques de Araújo, pelo incentivo à formação, e aos Coordenadores de curso, em especial à Profª. Ma. Elaine Moreira da Silva, por todo apoio, nos momentos críticos, e, principalmente, pela paciência. À Miyoko Tanji, Dirigente Regional da DER – Lins, por mais uma vez acompanhar um fechamento de ciclo, em minha vida profissional. A todos os meus alunos, em especial aos do PIBID, Projeto de Iniciação à Docência, do curso de Letras do Centro Universitário Católico Salesiano Auxilium, pelo sofrimento compartilhado. À amiga Paola de Carvalho Buvolini, que, com seu olhar atento, esteve ao meu lado no momento crítico de pôr “ordem no caos”. prazer da pura percepção os sentidos sejam a crítica da razão Paulo Leminski – Distraídos venceremos SUMÁRIO RESUMO ................................................................................................................................. 12 ABSTRACT ............................................................................................................................... 13 “À procura da própria coisa” .................................................................................................... 14 Capítulo I – Aspectos da prosa romanesca de Lispector .......................................................... 21 1.1 Romance: o “caldeirão” da feiticeira .................................................................................. 27 1.2 Clarice Lispector e a recepção crítica ................................................................................. 40 Capítulo II – Impressões, digressões, transgressões: reflexões claricianas sobre o escrever e a escrita ..................................................................................................................................... 61 2.1 Escrever versus fazer literatura........................................................................................... 65 2.2 Escrever e pintar: o diálogo interartes ................................................................................ 77 2.3 Escrever versus não escrever: o silêncio que ronda a escrita ............................................. 85 2.4 Operadores de leitura: o desentranhar de um projeto de escrever e de escrita ................... 91 Capítulo III – Um objeto gritante: escrever, escrita e escrito em Água viva ........................... 96 3.1 Iniciando a travessia: o debater-se nas e com as palavras ................................................ 112 3.2 Desficcionalização: o projeto desarticulador de Água viva .............................................. 119 3.2.1 A fábula e o tempo de duração (a durée) em Água viva................................................ 120 3.2.2 Os personagens de Água viva ........................................................................................ 127 3.2.3 O mosaico Água viva: fragmentos de uma escrita-fala ................................................. 134 3.2.4 A concorrência entre as funções metalinguística e poética em Água viva .................... 151 Capítulo IV – Água viva: a linguagem em seu drama ............................................................ 154 4.1 O fluxo poético-metalinguístico de Água viva: as metáforas, variações de um (mesmo) tema ........................................................................................................................................ 156 4.1.1 A tourada Água viva: o embate ser versus linguagem, ser versus outro ....................... 160 4.1.2 Via crucis e Páscoa no canto da “aleluia”: ser versus vida/morte e escrever/viver versus não escrever/morrer ................................................................................................................ 172 4.1.3 A busca pelo é da coisa: sujeito de linguagem versus linguagem e seus efeitos e possibilidades ......................................................................................................................... 183 4.1.4 O jazz Água viva: o “instante-já” do “escuro uivo humano” em canto gregoriano....... 192 4.1.5 O improviso Água viva: variações de um (mesmo) tema .............................................. 199 4.2 O fluxo metalinguístico-poético de Água viva: a linguagem em movimento .................. 200 4.2.1 A “cadeia” sintática dos períodos .................................................................................. 200 4.2.2 A inversão da sintaxe ..................................................................................................... 206 4.2.3 A alusão ......................................................................................................................... 209 4.2.4 A repetição ..................................................................................................................... 210 4.2.5 Realismo novo: a “coisa-palavra” se fazendo ............................................................... 216 4.3 Sujeito escrevente versus sujeito escritor: função poética versus função metalinguística219 Capítulo V – Água viva: pintando/escrevendo a tela-livro ..................................................... 221 Considerações finais ............................................................................................................... 240 Referências bibliográficas .................................................................................................... 243 Bibliografia ............................................................................................................................ 249 LISTA DE FIGURAS Figura n° 01: “Paysage aux oiseaux jaunes” – Paul Klee – 1923 ............................................ 78 Figura n° 02: “Paysage aux oiseaux jaunes” (dividida ao meio) – Paul Klee – 1923 .............. 80 Figura n° 03: Coluna “Clarice Lispector”, no JB – 1971 ....................................................... 144 Figura n° 04: Fragmento “Escrever as entrelinhas”, na coluna do JB – 1971 ........................ 144 Figura n° 05: “O silêncio dos portais”, na coluna do JB – 1972 ............................................ 145 Figura n° 06: Coluna do JB – 1972 ....................................................................................... 147 Figura n° 07: Coluna “Clarice Lispector”, no JB - 1970 ........................................................ 148 Figura n° 08: Fragmento “Chorando de manso”, na coluna do JB – 1970 ............................ 149 Figura nº 09: “Gruta” – Clarice Lispector .............................................................................. 228 Figura n° 10: “Raiva e reindicação” – Clarice Lispector ....................................................... 230 Figura n° 11: “Escuridão e luz: centro da vida” – Clarice Lispector ..................................... 230 Figura n° 12: “Luta sangrenta pela paz” – Clarice Lispector ................................................. 230 Figura n° 13: “Tentativa de ser alegre” – Clarice Lispector .................................................. 230 Figura n° 14: (sem título) – Clarice Lispector ........................................................................ 230 Figura n° 15: “Cérebro Adormecido” – Clarice Lispector ..................................................... 230 Figura n° 16: “Eu te pergunto por que?” – Clarice Lispector ................................................ 231 Figura n° 17: “Perdida na vaguidão” ´Clarice Lispector ........................................................ 231 Figura n° 18: “Caos, Metamorfose, Sem sentido” – Clarice Lispector .................................. 231 Figura n° 19: “Pássaro da liberdade” – Clarice Lispector ...................................................... 231 Figura n° 20: “Ao amanhecer” – Clarice Lispector ................................................................ 231 Figura n° 21: “Volumes” – Clarice Lispector ........................................................................ 231 Figura n° 22: “Explosão” – Clarice Lispector ........................................................................ 232 Figura n° 23: “Sol da meia-noite” – Clarice Lispector ........................................................... 232 Figura n° 24: (sem título e sem data) – Clarice Lispector ...................................................... 232 Figura n° 25: (sem título e sem data) – Clarice Lispector ...................................................... 232 Figura n° 26: “Medo” – Clarice Lispector ............................................................................. 232 Figura n° 27: “Montes de feno, Efeito de geada” – Claude Monet – 1889 ............................ 235 Figura n° 28: “Montes de feno pela manhã, final de verão” – Claude Monet – 1890 ........... 235 Figura n° 29: “Montes de feno, Efeito de neve” – Claude Monet – 1890-1981 .................... 236 Figura n° 30: “Montes de feno, Sol enevoado” – Claude Monet – 1891 ............................... 236 Figura n° 31: “Montes de feno, Sol poente” – Claude Monet – 1890-1891 .......................... 237 Figura n° 32: “Meda na neve de manhã” – Claude Monet – 1890 ......................................... 237 RESUMO Este trabalho pretende investigar um elemento fundamental na obra de Clarice Lispector, que diz respeito às relações sujeito de linguagem e escrita, passando por suas implicações. Para tanto, intenta observar como tal relação está posta em alguns de seus romances, contos e crônicas e, por fim, em Água viva. Em virtude de portar, como texto, dois modos de escrita: uma mais conformada às convenções de gênero (que, consequentemente, são, também, convenções de crítica, de público leitor e, até mesmo, de mercado, pois livros também precisam ser vendidos) e outra mais rebelde a tais convenções, constituída por inovações, transgressões às exigências, não apenas de gênero, mas também de crítica, de público leitor e de mercado (pois a arte também vive da recusa a ceder a tais demandas), é que Água viva, cremos, se constitui como um núcleo privilegiado de reflexões e/ou a culminância da problemática temático-formal à qual estão vinculados os principais valores da poética clariciana – o que justifica o título “Uma poética do escrever e da escrita em Água viva, de Clarice Lispector”. A partir dessas considerações, o que se impôs ao nosso trabalho foi o estudo do projeto literário da escritora como algo marcado pela tensão entre dois modos de escrita: o fazer literatura e o escrever. O ápice da afirmação do segundo modo de escrita sobre o primeiro se dá, para nós, em Água viva devido tanto ao projeto literário afirmado no livro quanto aos procedimentos que serão estudados neste trabalho. Desse modo, a partir da leitura de Água viva é possível rastrear e pinçar, em outros textos da obra clariciana, fragmentos de reflexões de uma autora que, oscilando entre as posições de escritora e de escrevente, discute com o leitor sobre o que faz, convidando-o a participar de seu texto e a partilhar de sua paixão. Paixão, esta, de escrita. Palavras-chave: Literatura brasileira. Prosa. Água viva. Clarice Lispector. Projeto ficcional. ABSTRACT This work investigates a fundamental element in the work of Clarice Lispector that addresses the relations between the subject of language and that of writing, as well as their implications. To do that, it studies the way these relations are established in some of her novels, short stories, chronicles and ultimately Água viva. Água viva follows two approaches to writing. On the one hand, it tends to abide by the conventions of genre, which are also conventions of criticism, reading, and even of the market. All in all, books have to be sold. On the other hand, it tends to subvert these conventions by innovating and surpassing the exigencies of genre, criticism, reading and market, for art also lives upon resisting such demands. Hence we believe that Água viva is at the very heart of a reflection and/or constitutes the culmination of the thematic and formal debate concerning Clarice’s main poetic principle, which is encapsulated in the title of this work – “A poetics of writing in Água viva”. Due to that, we had to tackle Clarice’s literary project as being marked by the tension between the writing of literature and writing as such in that Água viva epitomizes the prevalence of latter over the former due to the literary project and procedures this work studies. Therefore, the reading of Água viva sheds light on Clarice’s fragmentary reflections which are to be found in other texts of hers as well. These fragments reveal an author caught between the writer and that who writes, the one who discusses her craft with her reader and invites them to participate in her text and to partake her passion for writing. Keywords: Brazilian Literature. Prose. Água viva. Clarice Lispector. Ficcional Project. “À procura da própria coisa” Escrever é tantas vezes lembrar-se do que nunca existiu. Como conseguirei saber do que nem ao menos sei? assim: como se me lembrasse. Com um esforço de “memória”, como se eu nunca tivesse nascido. Nunca nasci, nunca vivi: mas eu me lembro, e a lembrança é em carne viva. Clarice Lispector – “Lembrar-se”. Este trabalho pretende investigar um elemento fundamental na obra de Clarice Lispector, que diz respeito às relações entre o sujeito de e da linguagem1, a escrita e a literatura, passando por suas implicações. Nossa hipótese é a de que Água viva constitui um momento privilegiado na obra de Clarice Lispector por revelar-se como a culminância de uma problemática temático-formal reiteradamente abordada em sua obra literária. À esta problemática estão vinculados os principais valores da poética clariciana, o que justifica o título “Uma poética do escrever e da escrita em Água viva, de Clarice Lispector”. Nesse sentido, como parte da tensa e problemática relação entre o sujeito de e da linguagem, a escrita e a literatura, esta pesquisa dá relevo à investigação de um conflito nuclear na poética de Clarice Lispector: o daquela que escreve versus as demandas normativas dos gêneros que pratica, ou, sinteticamente: Clarice Lispector escrevente versus Clarice Lispector escritora. Embora compreendamos que, na verdade, esse conflito nuclear se constitua no triângulo Clarice Lispector-pessoa, Clarice Lispector-escrevente e Clarice Lispector- escritora, consideramos que a própria Clarice Lispector escritora tenha suprimido a pessoa Clarice Lispector no produto final Água viva (o livro publicado), nosso objeto de estudo, quando suprimiu trechos autobiográficos do manuscrito Objeto gritante, por sugestão do crítico e professor de Filosofia José Américo Pessanha, o que delimita a nossa discussão entre, apenas, dois vértices desse triângulo: Clarice Lispector escrevente versus Clarice Lispector escritora, apesar de a pessoa Clarice Lispector estar, obviamente, implícita nas outras duas. Com esse (re)corte, constatamos o comando da Clarice Lispector escritora, que se sobrepôs às outras duas no produto final de seu trabalho de escrita, assim como em todos os seus demais livros e escritos. Entretanto, postulamos aqui a ideia de que é em Água viva que mais se evidencia a presença da Clarice Lispector escrevente, que reivindica um lugar e uma 1 Nesta pesquisa, alguns conceitos operacionalizaram a nossa leitura. Sujeito de e da linguagem, neste trabalho, refere-se ao usuário da linguagem, que, como tal, está sujeito a ela. Em outras palavras, refere-se àquele que lida com a linguagem e, por meio dela, constrói-se como um sujeito. 15 voz própria ao longo das páginas de Água viva, o que o torna um objeto privilegiado no todo da obra clariciana. Nossa hipótese foi formulada a partir do pressuposto de que Água viva registraria, predominantemente, dois modos de escrita: uma escrita mais conformada às convenções de gênero (que, consequentemente, são também convenções de crítica, de público leitor e, até mesmo, de mercado, pois livros precisam ser vendidos) e outra mais rebelde a tais convenções, constituída por inovações, transgressões às exigências, não apenas de gênero, mas também de crítica, de público leitor e de mercado (pois a arte também vive da recusa a ceder a tais demandas). Neste sentido, por congregar dois modos de conceber a escrita, Água viva se constitui, de nossa perspectiva, como um núcleo privilegiado para a observação do conflito instalado entre as duas instâncias, que, cremos, é nuclear à poética clariciana. Estes dois modos da escrita serão, aqui, considerados, respectivamente, como reflexões sobre o fazer literatura e sobre o escrever. Para Barthes, até o século XIX, “na França, os proprietários incontestáveis da linguagem eram os escritores e somente eles” (BARTHES, 2007a, p. 30). No entanto, ao lado destes, surge um novo grupo, ao qual o crítico prefere nomear de escreventes. Ao comparar os dois grupos, que têm em comum a palavra, Barthes salienta que “O escritor realiza uma função, o escrevente uma atividade” (BARTHES, 2007a, p. 33). Mas ressalta: Não que o escritor seja uma pura essência: ele age, mas sua ação é imanente ao objeto, ela se exerce paradoxalmente sobre seu próprio instrumento: a linguagem; o escritor é aquele que trabalha sua palavra (mesmo se é inspirado) e se absorve funcionalmente nesse trabalho. A atividade do escritor comporta dois tipos de normas: normas técnicas (de composição, de gênero, de escritura) e normas artesanais (de lavor, de paciência, de correção, de perfeição). O paradoxo é que como o material se torna de certa forma seu próprio fim, a literatura é no fundo uma atividade tautológica, como a daquelas máquinas cibernéticas construídas por elas mesmas [...]: o escritor é um homem que absorve radicalmente o porquê do mundo num como escrever. [...] para o escritor, o escrever é um verbo intransitivo (BARTHES, 2007a, p. 33). O escrevente, por sua vez, remete a um grupo de [...] homens “transitivos”; eles colocam um fim (testemunhar, explicar, ensinar) para o qual a palavra é apenas um meio; para eles, a palavra suporta um fazer, ela não o constitui. Eis pois a linguagem reduzida à natureza de um instrumento de comunicação, de um veículo de “pensamento”. Mesmo se o escrevente concede alguma atenção à escritura, esse cuidado nunca é ontológico: não é preocupação. O escrevente não exerce nenhuma ação técnica essencial sobre a palavra; dispõe de uma escritura comum a todos os escreventes [...], na qual se pode, é verdade, distinguir dialetos (por exemplo, marxista, cristão, existencialista), mas muito raramente estilos (BARTHES, 2007a, p. 35-36). 16 Ainda para Barthes, [...] a produção do escrevente tem sempre um caráter livre, mas também um pouco “insistente”: o escrevente propõe à sociedade o que a sociedade nem sempre lhe pede: situada à margem das instituições e das transações, sua palavra aparece paradoxalmente bem mais individual, pelo menos em seus motivos, do que a do escritor: a função do escrevente é dizer em toda ocasião e sem demora o que ele pensa; e esta função basta, acredita ele, para justificá-lo; de onde o caráter crítico, urgente, da palavra do escrevente: ela parece sempre assinalar um conflito entre o caráter irrepressível do pensamento e a inércia de uma sociedade que reluta em consumir uma mercadoria que nenhuma instituição específica vem normatizar. Vê- se assim [...] que a função social da palavra literária (a do escritor), é precisamente de transformar o pensamento (ou a consciência, ou o grito) em mercadoria (BARTHES, 2007a, p. 37). Ainda que estejamos utilizando a mesma nomenclatura de Barthes para denominar os dois sujeitos de escrita de Água viva, esclarecemos que, em nossa análise, ambos não são exatamente iguais. Para Barthes, o escritor seria o sujeito que se utiliza de técnica para escrever e, por sua vez, o escrevente seria aquele que prescinde desta técnica. Não é essa a definição que postulamos para os sujeitos de linguagem manifestos em Água viva, pois, neste livro, apesar de o escrevente demonstrar sua intenção de escrever livremente, nem por isso prescinde da técnica; ao contrário, utiliza-se dela de modo, até mesmo, mais elaborado que o próprio escritor, como procuraremos demonstrar por meio de nossa análise. Por outro lado, o sujeito escritor de Clarice Lispector não concebe a escrita apenas como um fim, como os escritores definidos por Barthes. Considerada essa distinção, podemos afirmar que Água viva é o ápice, na obra clariciana, da afirmação da segunda escrita sobre a primeira e, consequentemente, da afirmação do sujeito escrevente sobre o sujeito escritor, principalmente devido à tensão instalada entre as funções metalinguística e poética no texto. Essa tensão aliada à extrema rarefação fabular (vinculada, inexoravelmente, à máxima dilatação do tempo de duração – durée), à própria singularidade na concepção dos personagens (visto que temos, em Água viva, as três pessoas do discurso e o it, como personagens) e, também, à gênese de Água viva (por considerarmos que esta nos revela muito sobre o nosso objeto de estudo), torna Água viva singular no conjunto da obra de Lispector. Em Água viva, Lispector faz, cremos, a sua mais radical afirmação de uma escrita rebelde às convenções de escrita. Desse modo, a partir da leitura de Água viva, é possível identificar, na obra da escritora, traços e evidências das tensões conflitivas entre o sujeito da linguagem e as demandas normativas da escrita. Sob esse ponto de vista, a leitura analítico-descritiva e analítico-interpretativa de Água viva pode permitir um estudo dos valores estéticos que caracterizam o projeto literário 17 clariciano, pois a referida ficção porta, privilegiadamente, como texto, traços importantes do projeto estético e poético clariciano, um projeto e uma poética marcados pela tensão entre o escrever segundo as convenções (o que denominamos, aqui, de fazer literatura) e o escrever rebelando-se contra normas e convenções (o que denominamos de ato de escrever). Esse caráter de catálogo, digamos assim, de Água viva, permitiria o desenvolvimento de nosso estudo com base no conceito de Fragmento, de Novalis e Friedrich Schlegel, que representou, no campo do pensamento, uma drástica ruptura com ideais de completude nos campos do conhecimento e da reflexão. Sob esse prisma, julgamos ser relevante, para o nosso estudo, refletir sobre os possíveis vínculos da poética clariciana a certas ideias da Estética do Fragmento (mas não, necessariamente, ao programa estético-ideológico do romantismo alemão), a partir dos estudos críticos de Márcio Sheel, em Poética do Romantismo (2010). No tocante às ideias de inacabamento e de abertura da obra de arte, acreditamos que, para nossos fins, seja relevante a leitura de Obra aberta (2005), de Umberto Eco. Considerar Água viva como o ponto de máxima afirmação do conflito escrever versus fazer literatura, o ápice de um projeto, perseguido pela autora, de construir uma escrita radicalmente livre das convenções e, portanto, avessa a classificações, implica abordar os conflitos ser versus linguagem ou palavra versus fundação de algo. Sob esse aspecto, será de extrema importância uma leitura atenta de Benedito Nunes, crítico que fez uma leitura heideggeriana da obra de Lispector, em especial em O drama da linguagem (1989) e O dorso do tigre (1969). Feitas essas considerações, a questão que se impõe a este trabalho é o estudo do trabalho literário de Lispector como algo marcado pela tensão entre dois modos de escrita: o fazer literatura e o escrever, praticados, respectivamente, pela Clarice Lispector escritora e pela Clarice Lispector escrevente2. A nossa hipótese é a de que Água viva é o ápice de algo que Clarice Lispector ambicionava como escrevente, e que, embora afirmado neste livro de um modo radical, teria também se manifestado, em sua obra, tanto em textos nos quais há reflexões sobre o narrar e o fazer literatura quanto naqueles em que há uma reflexão sobre o ato de escrever. A fim de comprovar tal hipótese, um dos objetivos deste trabalho é, tendo por base a leitura de Água viva e de sua fortuna crítica, bem como de textos significativos da crítica clariciana, apontar, nos demais romances, crônicas, contos e nas reflexões de Lispector sobre 2 Obviamente, nosso intuito, ao expor essa e outras dicotomias, é apenas didático, pois, para que se evidencie o processo, é necessário descrevê-lo. No entanto, no ato da leitura, todas essas dicotomias estão completa e complexamente entrelaçadas, dialogando entre si o tempo todo – o que gera tensão entre as distintas instâncias de escrita presentes, em maior ou menor grau, em todos os textos de Clarice Lispector. 18 arte e literatura, a existência de uma reflexão que problematiza as relações entre o sujeito da linguagem e a escrita, que distingue o fazer literatura do escrever, valorizando este último em virtude de ser esta modalidade aquela com a qual Lispector mais se identificava. Esta reflexão se faz presente no todo da obra de Clarice Lispector e, por afetar o resultado final do trabalho de escrita da autora (os textos publicados), inscreve, no sistema literário brasileiro, obras que discutem os limites e as limitações dos gêneros aos quais se vinculam (o romance, o conto, a crônica). Neste sentido, a Lispector escrevente acabará por integrar-se à Lispector escritora, afetando-a na construção de uma obra que se singulariza por portar aspectos inovadores e originais que ampliam, contestando-os, os limites e as limitações do sistema literário no qual se inscreve. Para o desenvolvimento de nossa reflexão vamos, nos dois primeiros capítulos deste trabalho, partir de uma breve leitura dos romances de Clarice Lispector, bem como de uma seleção de suas crônicas e contos aliando a isso, uma abordagem de textos significativos de sua fortuna crítica de modo a, com isso, levantarmos elementos vinculados ao nosso principal objeto de investigação. Entendemos que é necessário, para a nossa perspectiva crítica, ler esse corpus com base nos conceitos e ideias que emergem da própria obra clariciana, cotejando-os, sempre que necessário, com o que a crítica já construiu. Este rastreamento é, para nós, fundamental, pois o dar voz ao autor permite reconhecê-lo no lugar de pensador cujas ideias ganham forma e expressão na obra que criou. Esta exploração dos escritos claricianos estará, em diversos momentos, entretanto, sob o escrutínio de outros críticos e teóricos, procedimento necessário para o estabelecimento de um contraponto entre as leituras da crítica e a da própria escritora. Constitui-se, portanto, como corpus desta tese a ficção Água viva (1973). A leitura dos romances Perto do coração selvagem (1943), A maçã no escuro (1961), A paixão segundo G.H (1964), Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres (1969), A via-crucis do corpo (1974), A hora da estrela (1977) e Um sopro de vida (1978); bem como a de suas crônicas, escritas para o Jornal do Brasil (doravante JB), de 1967 a 1973, compiladas em A descoberta do mundo (1984); a primeira edição de A legião estrangeira, de 19643; a de Outros escritos4, de Onde estivestes de noite, coletânea de crônicas publicada em 1974, e, também, a de suas telas pintadas na década de setenta do século XX, serão, aqui, realizadas de modo incidental e, mesmo, pontual, com o propósito de introduzir (ou de complementar) a discussão proposta a 3Devido ao fato de esta primeira edição conter a primeira seção reservada aos contos e a segunda, denominada por Lispector de “Fundo de gaveta”, às crônicas. 4 Que reúne textos inéditos, dispersos ou que, por alguma razão, não foram divulgados, à época, bem como suas entrevistas e correspondências. 19 partir de nosso objeto privilegiado: a ficção Água viva. Tais leituras servirão de base para desentranhar o que consideramos fundamental do projeto de escrita (e de literatura, enfim) de Clarice Lispector, pois acreditamos como Barthes que a literatura é “um grafo complexo das pegadas de uma prática: a prática de escrever” (BARTHES, 2007b, p. 16). Ao refletir sobre a dicotomia vida versus obra, Barthes afirma que, Em suma, é a obra que é seu próprio modelo; sua verdade não deve ser procurada na profundidade, mas em extensão; e se existe uma relação entre o autor e sua obra (quem o negaria? A obra não desce do céu: só a crítica positivista acredita ainda na Musa), não é uma relação pontilhista, que somaria semelhanças parceladas, descontínuas e “profundas”, mas pelo contrário uma relação entre todo o autor e toda a obra, uma relação das relações, uma correspondência homológica e não analógica (BARTHES, 2007a, 153). Água viva comporta a radicalidade de um projeto que ambiciona borrar (ainda que como efeito metaficcional) os limites entre o viver e o escrever. Sob esse prisma, no terceiro capítulo, “Objeto gritante: escrever e escrita em Água viva”, iniciaremos uma leitura detalhada de Água viva, que se estende ao capítulo quatro, “Água viva: a linguagem em seu drama”, de modo a demonstrar nossa hipótese, privilegiando a identificação e a leitura dos procedimentos de escrita que, sob o nosso ponto de vista, são responsáveis pela radicalização do projeto de escrita e ficção da escritora, a saber: a máxima rarefação fabular, a dilatação do tempo de duração (a durée), a concepção e a construção das personagens, a digressão metalinguística tensionada pela função poética, a prosa descontínua e fragmentada e, também, aspectos da própria gênese do texto. Acreditamos que o caráter fragmentário de Água viva contribua para seu efeito de máximo inacabamento5, afirmando o ato de escrever como valor maior neste texto e, também, projetando-o como valor maior na obra de Clarice Lispector. Este livro, que, cremos, condensa valores fundamentais de uma poética clariciana, possui um discurso aberto. Discurso que, conforme Umberto Eco, [...] é um apelo à responsabilidade, à escolha individual, um desafio a um estímulo para o gosto, para a imaginação, para a inteligência. Por isso a grande arte é sempre difícil e sempre imprevista, não quer agradar e consolar, quer colocar problemas, renovar a nossa percepção e o nosso modo de compreender as coisas (ECO, 2004, p. 280). O último capítulo, “Água viva: pintando/escrevendo a tela-livro” (no qual faremos uma leitura incidental de algumas telas de Clarice Lispector, produzidas, concomitantemente, 5 Termo aqui utilizado com o sentido de algo incompleto, propositalmente não acabado. 20 à escrita de Água viva), põe em foco o diálogo interartes suscitado por Água viva, em virtude de Lispector valer-se desse diálogo e das aproximações interartes de modo mais contundente neste livro, e em algumas de suas crônicas, para tentar definir e explicar o que faz e/ou pretende fazer (ou simular) em sua escrita-literatura-representação-expressão artística. Portanto, para abordar desdobramentos importantes de Água viva, este trabalho recorrerá, quando necessário, e incidentalmente, à problemática da associação entre as artes, pois a autora se vale dela, sobretudo no tocante às artes plásticas, intentando tornar visível para o leitor aquilo que caracteriza seu projeto de escrita e, em decorrência, de literatura. Este trabalho se conclui ao conceber que Água viva, à maneira de uma tela impressionista, flagra um momento: o escrevente escrevendo, ou o sujeito escrevente lidando com sua matéria-prima – a palavra – no ato de escrever. Neste sentido, por resistir a atender às convenções de gênero literário (e suas consequências), Água viva afirma uma poética do escrever, pois concretiza, de modo radical e singular, o ideal de escrita afirmado por Clarice Lispector, com diversas nuances, em toda sua obra. Isso nos permite, por fim, sugerir que Água viva pode ser visto como o esboço de um autorretrato do sujeito escrevente Clarice Lispector. Capítulo I – Aspectos da prosa romanesca de Lispector Gênero revolucionário e burguês, democrático por opção e animado por um espírito totalitário que o leva a romper obstáculos e fronteiras, o romance é livre, livre até o arbitrário e até o último grau da anarquia. Marthe Robert – Romance das origens, origens do romance. Clarice Lispector conquistou, em vida, o que tantos almejam, mas somente obtêm após a morte: o sucesso como escritora. Tal sucesso, alcançado pelo mérito de suas obras, também se deve, em parte, à personagem Clarice Lispector, escritora/mulher singular, de personalidade rara e ambígua, considerada por alguns como feiticeira6, misteriosa7, exótica8, entre outros adjetivos. 6 A fama de “feiticeira” teve início (segundo declarações da própria Clarice em entrevistas) com uma afirmação de um crítico latino-americano. Observe-se uma dessas entrevistas, que Clarice concedeu ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (MIS): “Affonso Romano de Sant’Anna: Você sabia que a Clarice é uma tremenda bruxa? (risos)/ Clarice Lispector: Ah! Isso foi um crítico, não me lembro de que país latino-americano, que disse que eu usava as palavras não como escritora, mas como bruxa. Daí talvez o convite para participar do Congresso de Bruxaria da Colômbia. Me convidaram e eu fui” (MONTERO; MANZO, 2005, p. 158). Essa crítica também foi lembrada por Olga Borelli, em Clarice Lispector: Esboço para um possível retrato: “Um crítico disse certa vez que Clarice não era propriamente uma escritora, pois não usava as palavras como tal, mas como uma forma de bruxaria. Ora, nessa condição fora convidada a participar do Congresso Mundial de Bruxaria, em Bogotá, em 1976, Colômbia” (BORELLI, 1981, p. 56). O crítico a que Clarice e Olga se referem é E. Rodriguez Monegal, que, em “Clarice Lispector”, publicado originalmente em Mundo nuevo nº 06, em dezembro de 1966, afirma: “Clarice Lispector é o maestro do romance experimental dos anos 60. [...] A fenomenologia ajuda Clarice Lispector a pesquisar no que está sob a superfície da consciência humana. Sua tarefa se torna cada vez mais árdua e difícil. Mas mesmo se se teme que certos pressupostos filosóficos de seus romances são, às vezes, algo audaciosos, sua habilidade em criar um mundo totalmente fictício, esses poderes quase que hipnóticos que lhe permitem extrair das palavras mais simples todas as suas virtudes encantadoras, até à unilateralidade de sua visão trágica, tendem a operar no leitor como que um feitiço. [...] Devido ao seu enfoque sobre o todo mitológico, ela é mais feiticeira do que uma escritora (MONEGAL, 1989, p. 201 – grifos nossos). 7 Em torno de Clarice Lispector sempre houve uma aura de mistério, como podemos observar pelos adjetivos e epítetos com os quais era apontada: enigmática, esfinge, entre outros. A título de exemplificação, destacamos esta afirmação de Antonio Callado, por ocasião da morte da autora: “Sempre achei, e disse mesmo a Clarice, que ela era a pessoa mais naturalmente enigmática que eu tinha conhecido” (CALLADO apud GOTLIB, 2009, p. 22). De acordo com Gotlib, essa afirmação expressava a surpresa de Callado, “ao ficar sabendo, pelo ritual do enterro, que Clarice tinha origem judaica” (GOTLIB, 2009, p. 22). 8 Muitos apontam para o traço exótico de Lispector. Destacamos alguns fragmentos de depoimentos sobre ela, para apontar esse traço. Observe-se este, no qual Olga Borelli relata seu primeiro encontro com Clarice Lispector: “Fui atendida com gentileza por uma senhora. Ofuscada pela luz que vinha do terraço, não consegui ver de imediato o rosto de Clarice, só o recorte de seu vulto. [...]/ Em dado momento, atrevi-me a perguntar sobre seus livros e seus personagens; ela inquietou-se e, levantando-se bruscamente, perguntou se eu queria tomar um café. Passou a falar de sua vida, seus filhos, seu passado. Fez-me, é claro, contar um pouco de mim, o tempo corria e eu me decepcionava: não consegui arrancar-lhe a menor palavra sobre seu trabalho./ Ela veio à fundação, autografou os livros, mostrou-se incansável. Ao sair, pediu-me que a acompanhasse de volta para casa. Conversamos mais um pouco e nos despedimos. Dois dias depois, recebo um telefonema seu: pedia-me que fosse vê-la após o meu expediente./ Recebeu-me de forma calorosa. Fez-me sentar e entregou-me uma folha de papel datilografada./ Vi e fiquei atônita. Levantei os olhos e ela sorriu. Pedia-me, por escrito, para ser sua amiga” (BORELLI, 1981, p. 92). Este outro depoimento, coletado por Nádia Gotlib em Clarice – uma vida que se conta, revela o modo distante como é descrita por Antonio Callado, por ocasião do enterro da escritora: “Clarice era uma estrangeira. Não porque nasceu na Ucrânia. Criada desde menininha no Brasil, era tão 22 Olga Borelli9, em Clarice Lispector: esboço para um possível retrato10, intenta, como o título já explicita, esboçar alguns escritos para, por meio destes, traçar um perfil de Clarice Lispector. Publicado em 1981 (pouco tempo após a morte de Clarice, portanto), o livro alterna fragmentos de observações de Olga Borelli (que revelam seu olhar sobre a amiga Clarice Lispector) com fragmentos inéditos de textos da autora, bem como de trechos da intensa correspondência que Lispector mantinha com suas irmãs, Elisa Lispector e Tania Kauffman11. Observe-se uma tentativa de definição, que figura logo nas primeiras páginas: Defini-la é difícil. Contra a noção de mito, de intelectual, coloco aqui a minha visão dela: era uma dona-de-casa que escrevia romances e contos. Dois atributos imediatamente visíveis [em Clarice Lispector]: integridade e intensidade. Uma intensidade que fluía dela e para ela refluía. Procurava ansiosamente, lá, onde o ser se relaciona com o absoluto, o seu centro de força – e essa convergência a consumia e fazia sofrer. Sempre tentou de alguma maneira solidarizar-se e compreender o sofrimento do outro, coisa que acontecia na medida da necessidade de quem a recebia. O problema social a angustiava. Sabia o quanto doíam as coisas e o quanto custava a solidão. São muitos os ‘mistérios’ que aos olhos de alguns a transformaram em mito. Simplesmente, porém, em Clarice não aparecia qualquer mistério. Ela descobria intuitivamente o mistério da vida e do ser humano; em compensação, era capaz de dissimular o seu próprio mistério (BORELLI, 1981, p. 14-15 – colchetes nossos). brasileira quanto não importa quem. Clarice era estrangeira na terra. Dava a impressão de andar no mundo como quem desembarca de noitinha numa cidade desconhecida onde há uma greve geral de transportes. Mesmo quando estava contente ela própria, numa reunião qualquer, havia sempre, nela, um afastamento. Acho que a conversa que mantinha consigo mesma era intensa demais” (GOTLIB, 2009, p. 22). Neste último trecho destacado do prefácio de Entrevistas: Clarice Lispector, publicado pela Editora Rocco, Claire Williams (organizadora do livro) aponta para o traço exótico de Clarice ao entrevistar, de modo nada convencional, seus convidados. Como Williams aponta, suas entrevistas acabavam frequentemente convergindo para três perguntas “abstratas, profundas, filosóficas, estranhas: ‘Qual é a coisa mais importante do mundo?’, ‘Qual é a coisa mais importante para uma pessoa como indivíduo?’ e ‘O que é o amor?’ eram as favoritas” (WILLIAMS, 2007, p. 7). Segundo ela, “Nem sempre os entrevistados conseguiam responder” (WILLIAMS, 2007, p. 7). Observe-se o trecho a seguir (coligido no livro aqui citado), da entrevista concedida a Clarice por Hélio Pellegrino. Após essas três perguntas preferidas, ela pergunta ao entrevistado: “– Hélio, você é analista e me conhece. Diga – sem elogios – quem sou eu, já que você me disse quem é você. Eu preciso conhecer o homem e a mullher./ – Você, Clarice, é uma pessoa com uma dramática vocação de integridade e de totalidade. Você busca, apaixonadamente, o seu self – centro nuclear de confluência e de irradiação de força – e esta tarefa a consome e faz sofrer. Você procura casar, dentro de você, luz e sombra; dia e noite; sol e lua. Quando o conseguir – e este é trabalho de uma vida –, descobrirá, em você, o masculino e o feminimo, o côncavo e o convexo, o verso e o anverso, o tempo e a eternidade, o finito e o infinito, o Yang e o Yin; na harmonia do Tao – totalidade. Você, então, conhecerá homem e mulher – eu e você: nós” (WILLIAMS, 2007, p. 65). 9 Amiga e “secretária particular” de Clarice, que conviveu com ela em seus últimos anos de vida. 10 Olga Borelli apresenta o livro ao leitor da seguinte forma: “Este é um depoimento onde procurei tornar explícitas certas características pessoais que não dizem respeito a uma biografia, mas a particularidades que constituem o que se poderia chamar de ‘trajetória espiritual’ de Clarice Lispector. É uma visão sintética do que seriam as linhas marcantes de sua vida, apreendidas através de episódios por vezes insignificantes, mas que se constituem em fonte de informação para aqueles que desejam conhecer um pouco mais de sua personalidade” (BORELLI, 1981, p. 5). 11 Essas correspondências foram organizadas em Minhas queridas (livro publicado pela Editora Rocco, em 2007, com notas de Teresa Montero). 23 Nádia Battela Gotlib, logo no início de Clarice – uma vida que se conta12, ao apresentar os “Perfis13” de Clarice, observa que as opiniões sobre ela são contrastantes. Para ela, além da visão dos que conviveram14 com a dona-de-casa, mãe, mulher “simples e sem mistérios, como Clarice, aliás, várias vezes afirmou ser e assim querer ser vista” (GOTLIB, 2009, p. 22) há a visão, que [...] privilegia justamente um distanciamento respeitoso também de certa forma cultivado pela própria Clarice, que, ao isolar-se voluntariamente, cercava-se de uma aura de mistério, permanecendo intocável e favorecendo, quem sabe, certas mitificações: belíssima, sobretudo na mocidade; em qualquer época, sedutoramente atraente; antissocial, esquisita, complicada, difícil, mística, bruxa... (GOTLIB, 2009, p. 22). Após apontar mais algumas “visões” de Clarice (do filho mais novo, Paulo; da irmã Tania Kauffmann; do crítico Tristão de Athayde; do jornalista, escritor e amigo Otto Lara Resende; do amigo, escritor e psiquiatra Hélio Pellegrino; do amigo, compadre e crítico Affonso Romano de Sant’Anna; do diplomata Lauro Escorel, de sua esposa Sara Escorel e do jornalista Paulo Francis), Nádia finaliza apontando para alguns traços dos diversos perfis de Clarice, [...] diferentemente vistos pela empregada, pela vizinha, pelos parentes, amigos, jornalistas, críticos, escritores[:] Próxima. Distante. Vaidosa. Terna. Sofrida. Lisérgica. Vidente. Visionária. Intuitiva. Adivinha. Estrangeira. Enigmática. Simples. Angustiada. Dramática. Judia. Insolúvel (GOTLIB, 2009, p. 24 – colchetes nossos), mas adverte que, [...] ao passar por eles, é preciso considerá-las apenas como vestígios de uma identidade, traços de um “ser quase” Clarice, lembrando o que ela mesma certa vez contou a respeito de uma amiga sua: “[...] uma amiga minha foi tirar retrato de uma baiana e ela não deixou: ‘Minha alma você não tira’” (GOTLIB, 2009, p. 24). Tanto Olga Borelli quanto Nádia Gotlib captaram, como se pode observar, a impossibilidade de apreender apenas uma Clarice Lispector. Há várias Clarices. No esforço 12 Publicado pela Editora Ática em 1995, o livro une uma extensa pesquisa sobre a vida da escritora à análise arguta de Gotlib sobre sua obra, em movimentos convergentes e dissonantes. Nesse livro, uma das ideias postuladas por Gotlib é a de que Clarice Lispector tenha se ficcionalizado, enxergando-se como uma personagem. Olga Borelli também parece chegar à mesma conclusão, neste trecho: “Pode parecer paradoxal, mas ela não vivia à cata do significado das coisas: este era puro resultado do texto. Não seria exagero dizer, neste caso, que ela não escrevia seus livros; antes, era escrita por eles” (BORELLI, 1981, p. 79 – grifos nossos). A título de exemplificação, pode-se ver a entrevista de Gotilb para a TV Cultura, disponível em http://www.youtube.com/watch?v=-1eNXAmOHiM. 13 Título desse primeiro capítulo da biografia. 14 Como Geni Rodrigues, uma das empregadas domésticas que trabalhou com Clarice Lispector (por cinco anos e sete meses, segundo Gotlib). http://www.youtube.com/watch?v=-1eNXAmOHiM 24 de Olga para esboçar um possível retrato, percebe-se essa dificuldade, que Nádia explicita ao revelar os vários perfis de uma mesma Clarice vista por vários ângulos. Não apenas por sua personalidade complexa, mas principalmente pela singularidade de seu projeto ficcional (cuja marca, para a maioria dos críticos, consiste em uma rarefação dos eventos no plano fabular, o que lhe permitiu construir as diretrizes próprias de uma escrita pulsante, oblíqua, enviesada, que performatiza ou, nos termos de Benedito Nunes, dramatiza15 a própria linguagem), a obra de Clarice Lispector é reconhecida nacional e internacionalmente. Desde a publicação de seu primeiro romance, Perto do coração selvagem, no início da década de 40, Clarice Lispector atraiu a atenção da crítica literária, devido à peculiaridade de sua escrita. Boa parte da primeira fortuna crítica da escritora (dos anos 40 aos 50) já a apontava como original. Dentre eles, podemos destacar Lúcio Cardoso e Sérgio Milliet. Sérgio Milliet (sem dúvida o crítico que com maior entusiasmo se referiu à originalidade de Lispector) afirma, logo no início de seu Diário Crítico, em 15 de janeiro de 1944: Raramente tem o crítico a alegria da descoberta. Os livros que recebe dos conhecidos consagrados não lhe trazem mais emoções. Já sabe o que contêm, seria capaz de sobre eles escrever sem sequer folheá-los. Quando porém o autor é novo, há sempre um minuto de curiosidade intensa: o crítico abre o livro com vontade de achar bom, lê uma página, lê outra, desanima, faz nova tentativa, mas qual! As descobertas são raras mesmo. Pois desta feita fiz uma que me enche de satisfação (MILLIET, 1987, p. 4). A descoberta que o encheu “de satisfação” foi sua leitura de Perto do coração selvagem, iniciada aleatoriamente, pela página 160, conforme relata o crítico, porque além de o algarismo o agradar, “a disposição tipográfica era simpática” (MILLIET, 1987, p. 4). E, ao final do artigo, ratifica a originalidade de Lispector, ao afirmar: “Pela primeira vez um autor nacional [...] penetra até o fundo a complexidade psicológica da alma moderna, alcança em cheio o problema intelectual” (MILLIET, 1987, p. 4). Lúcio Cardoso, em resenha publicada em março de 1944, no Diário Carioca, sobre esse mesmo romance de estreia de Lispector, aponta para a originalidade de sua autora ao afirmar: “não há dúvida de que estamos diante de uma singular personalidade, que sabe 15 Benedito Nunes é o primeiro crítico a investigar o que seria o projeto escritural de Clarice Lispector. Por meio de uma avaliação clara e objetiva, sua leitura destaca os princípios opostos (complementares e radicais) que constituem o narrador e as personagens claricianos. 25 captar do mundo exterior e interior, e muitas vezes da sua fusão, uma visão perfeita” (CARDOSO, 1944, p. 3 – grifos nossos). Segundo T.S. Eliot, em “Tradição e talento individual”, Nenhum poeta, nenhum artista, tem sua significação completa sozinho. Seu significado e a apreciação que dele fazemos constituem a apreciação de sua relação com os poetas e artistas mortos. Não se pode estimá-lo em si; é preciso situá-lo, para contraste e comparação, entre os mortos. Entendo isso como um princípio de estética, não apenas histórica, mas no sentido crítico. É necessário que ele seja harmônico, coeso, e não unilateral; o que ocorre quando uma nova obra de arte aparece é, às vezes, o que ocorre simultaneamente com relação a todas as obras de arte que a precedem (ELIOT, 1989, p. 39). Em outras palavras, Eliot afirma que, em última análise, não existe talento individual capaz de criar sozinho o novo e o original desconsiderando a herança do sistema literário no qual se insere. Grandes obras, segundo ele, invertem a lógica usual: surgem como desafio de leitura, mas fundam seus antecessores à medida que iluminam algo que possa ter passado despercebido pelos críticos em outras épocas e obras, reavivando, desse modo, o sistema literário e artístico. Situar Clarice Lispector no sistema literário é o que essa primeira crítica de seu trabalho teve como tarefa. O que, de certa forma, causou a essa crítica certo desconforto foi, porém, justamente o caráter inusitado do trabalho de escrita da autora, certamente reconhecido como uma novidade, mas, também, considerado problemático ou insuficiente em determinados aspectos16. A obra de Lispector funda um novo horizonte de recepção, impondo à crítica uma revisão de suas leituras, principalmente no que se refere ao gênero romance17. 16 A título de exemplo, veja-se o texto “A experiência incompleta: Clarisse Lispector”, de Álvaro Lins. Um dos mais importantes críticos dos anos 40, Lins afirma que Lispector fracassa na construção do gênero romance: “Ao que estou informado, a autora é ainda muito jovem, uma quase adolescente. E esta circunstância torna bem mais impressiva a experiência de ficção tentada no seu livro. [...] Há, neste livro, além da experiência que representa, dois aspectos a fixar: a personalidade de sua autora e a realidade de sua obra. Li o romance duas vêzes, e ao terminar só havia uma impressão: a de que êle não estava realizado, a de que estava incompleta e inacabada a sua estrutura como obra de ficção” (LINS, 1963, p. 189 – grifos nossos). Antonio Candido, depois de reconhecer os méritos da escritora estreante em “No raiar de Clarice Lispector”, finaliza seu texto afirmando: “Dêste estofo são feitas as grandes obras. O livro de Clarice Lispector certamente não o é, mas poucos como êle têm, ultimamente, permitido respirar numa atmosfera que se aproxima da grandeza. E isto, em boa parte, porque a sua autora soube criar o estilo conveniente para o que tinha a dizer. Soube transformar em valôres as palavras nas quais muitos não vêm mais do que sons ou sinais. A intensidade com que sabe escrever e a rara capacidade de vida interior poderão fazer desta jovem escritora um dos valôres mais sólidos e, sobretudo, mais originais da nossa literatura, porque esta primeira experiência já é uma nobre realização” (CANDIDO, 1970, p. 131 – grifos nossos). 17 Gênero cujo paradigma é o modelo do século XIX, o romance oitocentista, do qual José de Alencar pode ser citado como exemplar. Esse modelo de romance: a) privilegia a ação (contextualizada espacial e temporalmente); b) tem como centro uma personagem principal (ou um conjunto de personagens principais); c) encontra-se organizado em capítulos; d) possui um conflito como grande elemento estruturador da narrativa e e) pode possuir núcleos secundários de ação, sempre hierarquicamente vinculados à ação, ao tema e ao conflito principais. 26 A tarefa de situar o trabalho de Clarice Lispector num quadro de gêneros literários concebidos com certa rigidez normativa – o traço característico da crítica e do sistema literário brasileiro no século XIX e na primeira metade do século XX – não era simples, como apontam alguns críticos da década de setenta, entre eles Amariles Guimarães Hill, que afirma: O romance continuava na marcha do novo realismo descoberto pelos autores nordestinos da década de 30. É bem verdade que nem tudo era seca, retirantes e engenhos. [...] Mas a popularidade alcançada pelo grupo nordestino – José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Amando Fontes, Graciliano – deixava apenas pequena faixa de leitores para outros tipos de romance que não o social. [...] Eis porque um texto como Perto do coração selvagem surge envolto na maior estranheza naquele ano de 1944. Ninguém preparara o terreno. Próximo dele só os romances de Cornélio Pena, os quais, apesar da extraordinária qualidade, não conseguiam romper a popularidade do romance social e formar público (HILL, 1976, p. 138-139 – grifos nossos). De uma forma ou de outra, toda a primeira crítica do trabalho de Clarice Lispector aponta para, dentre outros traços característicos, um trabalho híbrido com o narrador e com a durée, o tempo da duração (que ganha força em razão da escassez fabular) – traços, estes, até então inexistentes na literatura brasileira, e cujo antecedente maior talvez seja, para alguns críticos – como para Silviano Santiago, em Ora (direis) puxar conversa! (2006), por exemplo –, a obra madura de Machado de Assis, a quem Clarice, entretanto, não foi vinculada nesse momento inicial de sua abordagem pela crítica. O que é observado mais intensamente por esta primeira crítica como algo inovador e original (mas nem sempre como algo positivo), é o hibridismo de gêneros18 e o inacabamento como traços constitutivos da escrita clariciana. Tais características podem ser encontradas em todos seus escritos, tanto nos romances, quanto nos contos, na crônica, na literatura infantil e, até mesmo, nas suas cartas. Apesar de consagrada, em 1960, com a coletânea de contos Laços de família19, é com o romance, gênero híbrido por natureza, que Lispector surge e se afirma no panorama literário brasileiro. 18 Apesar de esta primeira crítica não utilizar essa terminologia, já apontava para o fenômeno, mas quase sempre de modo negativo (como defeito). Vale, nesse ponto, ressaltar o fato de que essa primeira crítica não era formada, ainda, por pessoas com formação universitária em Letras, mas, sim, por intelectuais que possuíam formação erudita e, não raro, autodidata no campo dos Estudos Literários. Isso os impediu de constatar, por exemplo, que o romance é, por excelência, desde a sua origem, um gênero híbrido por articular o sublime e o prosaico dos gêneros Trágico e Cômico, respectivamente. Ou, ainda, que o gênero romance (justamente por não comportar uma forma fixa, ou um único modelo, mas, sim, variados modelos e formas) pode ser considerado como proteiforme, marcando-se pela possibilidade de hibridização desde a sua origem. Tal debate será instaurado, de fato, pela crítica literária, a partir dos anos 50 do século XX e incorporado, a partir daí, como dado em razão dos questionamentos ao normativismo e da progressiva substituição deste por uma abordagem mais científica. 19 Alguns críticos, como Eduardo Portela, por exemplo, chegaram a afirmar que a autora era melhor contista do que romancista. Observe-se que esta ideia de que Lispector é melhor contista do que romancista está, ainda, vinculada à crítica normativa, que elege determinados modelos de gênero como fôrmas cuja rigidez o trabalho de escrita clariciano questiona. 27 1.1 Romance: o “caldeirão” da feiticeira Romance, segundo o Dicionário de Termos Literários, de Massaud Moisés, é uma palavra originada de romans (vocábulo provençal), “do latim romanice, em língua românica (por oposição a latine loqui, língua latina” (MOISÉS, 2004, p. 400). Este termo exibe dois sentidos, em vernáculo: 1) composição poética tipicamente espanhola, de origem popular, de autoria não raro anônima e de temática lírica ou/e histórica, geralmente em versos de sete sílabas, ou redondilhas maiores. O vocábulo “rimance” alterna com “romance” e corresponde, até certo ponto, à balada medieval; 2) composição em prosa (MOISÉS, 2004, p. 400). De acordo com Moisés, [...] podem-se assinalar características que tornam o romance distinto das demais fôrmas em prosa, notadamente o conto e a novela: a sua mobilidade não traduz indiferenciação, mas poliformia ou convergência de numerosas facetas na estruturação de um organismo vivo (MOISÉS, 2004, p. 400). Ainda na Idade Média, o termo romance nomeava as composições literárias de cunho popular, folclórico. Em virtude de estas possuírem um caráter fantasioso e imaginativo, o termo romance passou a denominar narrativas em prosa e em verso. A partir do século XII, aproximadamente, passou a nomear narrativas de aventuras imaginárias e fantásticas. Segundo Massaud Moisés (1979, p. 92), esse termo (como o entendemos, atualmente) surge apenas no século XVIII, com o romantismo. Sérgio Vicente Motta, em seu artigo “A viagem de Brás Cubas na lombada de um livro de ouro”, afirma entender “essa forma literária [romance] como um desdobramento moderno da antiga poesia épica” (MOTTA, 2006, p. 18 – colchetes nossos). Acrescenta, ainda, que o romance nascera [...] do reencontro das vertentes da “História” e da “ficção”, cuja bifurcação, na árvore genealógica do gênero narrativo, deu-se a partir do tronco épico, na passagem da epopéia oral grega para a invenção da narrativa em prosa escrita. A partir do nó formado por esse reencontro de galhos, durante o período renascentista, surgem os embriões do romance em obras como Lazarillo de Tormes e Dom Quixote de La Mancha, para ficarmos no âmbito da literatura hispânica, mas a forma desenvolve-se e expande as suas fronteiras pela Europa nos séculos XVII e XVIII (MOTTA, 2006, p. 18). No Brasil, o gênero, cujo precursor fora Antonio Gonçalves Teixeira e Souza (O filho do pescador, 1843), chegou tardiamente (MOISÉS, 1979). Ainda segundo Moisés (1979), foi 28 Joaquim Manoel de Macedo o responsável pela sua difusão, no romantismo. Na sequência, vieram José de Alencar, Machado de Assis, Aluísio Azevedo, entre outros, representantes do romance oitocentista. O romance brasiliro atingiu, com o modernismo, sua maioridade, ou uma maior autonomia, com autores como Jorge Amado, José Lins do Rego, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, entre outros. Em Teoria do romance, Donald Schüler, ao refletir sobre uma possível morte do romance, afirma que este “está morrendo e deve continuar a morrer. Um gênero que perdeu a possibilidade de morrer é que realmente está morto [...]. Alimentando-se de muitas mortes, é que o romance se mantém vivo” (SCHÜLER, 1989, p. 9). Para Marthe Robert, a única lei do romance “é a expansão indefinida” (ROBERT, 2007, p. 13), pois esse gênero, que rompeu com todos os paradigmas dos gêneros clássicos, apropriou-se “de todas as formas de expressão, explorando em benefício próprio todos os procedimentos sem nem sequer ser solicitado a justificar seu emprego” (ROBERT, 2007, p.13). E continua: Da literatura, o romance faz rigorosamente o que quer: nada o impede de utilizar para seus próprios fins a descrição, a narração, o drama, o ensaio, o comentário, o monólogo, o discurso: nem de ser a seu bel-prazer ou simultaneamente, fábula, história, apólogo, idílio, crônica, conto, epopéia; nenhuma prescrição, nenhuma proibição vem limitá-lo na escolha de um tema, um cenário, um tempo, um espaço; nada em absoluto o obriga a observar o único interdito ao qual se submete em geral, o que determina sua vocação prosaica: ele pode, se julgar necessário, conter poemas ou simplesmente ser “poético” (ROBERT, 2007, p. 14 – grifos nossos). O romance se “mantém vivo” (SCHÜLER, 1989, p. 9), como “organismo vivo” (MOISÉS, 2004, p. 400), justamente por fazer “da literatura [...] rigorosamente o que quer” (ROBERT, 2007, p. 13). Robert chama a atenção, aqui, para uma questão importante: o romance pode comportar, como gênero, as transformações, ao longo da História, pelas quais passou a Literatura. Para Roland Barthes, Não há linguagem escrita sem rótulo [...]. Também esta [a Literatura] deve assinalar qualquer coisa, diferente de seu conteúdo e da sua forma individual, e que é o seu próprio fechamento, precisamente aquilo que a faz impor-se como Literatura. Daí um conjunto de signos dados sem nenhuma relação com a ideia, com a língua ou com o estilo, e destinados a definir, na espessura de todos os modos de expressão possíveis, a solidão de uma linguagem. Esta ordem sacral dos signos escritos estabelece a Literatura como uma instituição e tende evidentemente a abstraí-la da História, porque não se estabelece nenhum fundamento sem uma ideia de perenidade; ora é no ponto em que a História é recusada que ela age mais claramente; portanto é possível traçarmos uma história da linguagem literária que não seja nem a história da língua nem a dos estilos, mas apenas a história dos signos da Literatura, e podemos prever que esta história formal manifestará a seu modo, 29 que não é o menos claro, a sua ligação com a História profunda (BARTHES, 2006, p. 7-8 – colchetes nossos). Barthes está, aqui, em O grau zero da escritura (2006), iniciando sua análise sobre as profundas transformações pelas quais passou a Literatura, por meio dos questionamentos via escrita e os estados de sua “solidificação progressiva” (BARTHES, 2006, p. 8), através da História. Para isso, inicia apontando para o fato de a forma da escrita variar de acordo com a História. Na época dos românticos e clássicos, por exemplo, Barthes aponta para uma escrita única criada pela “unidade ideológica” da burguesia, pois, segundo ele, “nos tempos burgueses a forma não podia ser dilacerada, visto que a consciência humana também não o estava” (BARTHES, 2006, p. 8). A partir do momento, segundo o autor, que “o escritor deixou de ser uma testemunha do universal para se tornar uma consciência infeliz (por volta de 1850), o seu primeiro gesto foi escolher o compromisso de sua forma, quer assumindo quer recusando a escrita do seu passado” (BARTHES, 2006, p. 8). A partir daí, segundo o crítico, a escrita Clássica “explodiu [...] e toda a Literatura, desde Flaubert até os nossos dias, tornou-se uma problemática de linguagem” (BARTHES, 2006, p. 8 – grifos nossos), momento em que a Literatura consagrou-se como “um objeto” (BARTHES, 2006, p. 8). Assim, de acordo com ele, [...] de há cem anos para cá, toda a escrita é um exercício de domesticação ou de repulsão face a esta Forma-Objeto que o escritor encontra fatalmente no seu caminho, que ele tem de encarar, enfrentar, assumir, e que não pode nunca destruir sem se destruir a si mesmo como escritor (BARTHES, 2006, p. 9). Dando sequência ao seu raciocínio, Barthes afirma que a escrita passou por “estados de uma solidificação progressiva” (BARTHES, 2006, p. 10). São eles: a) “objeto de um olhar; b) um fazer e c) um assassínio, a ausência. Estes últimos, a que ele denomina de O grau zero da escritura, ou de “escritas brancas”, revelam o [...] próprio movimento de uma negação e a incapacidade para o realizar numa duração, como se a Literatura, que desde há um século tende a transmutar a sua superfície para uma forma sem hereditariedade, só encontrasse a sua pureza na ausência de qualquer signo, propondo por fim a realização deste sonho órfico: um escritor sem Literatura (BARTHES, 2006, p. 10). Não por acaso, Barthes aponta Madame Bovary, de Flaubert, como o texto que constituiu definitivamente a Literatura como “Objeto”. Neste romance, Flaubert realiza inovações, em relação à forma espacial, as quais serão encontradas, futuramente, no romance moderno. Ainda para Barthes, o que se inicia com Flaubert – a “construção da Literatura- 30 Objeto” (BARTHES, 2006, p. 10) – tem o seu coroamento com Mallarmé, que, para ele, concentrou seus esforços “numa destruição da linguagem, de que a Literatura seria apenas o cadáver” (BARTHES, 2006, p. 10). O que o leva a afirmar que [...] encontramos no Romance esse aparelho [que proporciona a busca de uma Literatura impossível, dando início à Modernidade] simultaneamente destrutivo e ressurrecional próprio de toda a arte moderna. O que se trata de destruir é a duração, isto é, a ligação inefável da existência: a ordem, quer seja a do contínuo poético ou a dos signos romanescos, a do terror ou a da verossimilhança, a ordem é um assassínio intencional. Mas o que reconquista o escritor é ainda a duração, porque é impossível desenvolver uma negação no tempo sem elaborar uma arte positiva, uma ordem que tem de ser outra vez destruída (BARTHES, 2006, p. 36 – grifos e colchetes nossos). Por isso mesmo, o gênero romance, como bem apontou Schüler, “está morrendo e deve continuar a morrer” (SCHÜLER, 1989, p. 9). Para Erwin Rosenthal, “O romance moderno veicula uma surpreendente imagem de realidades atuais, na medida em que, simultaneamente, focaliza e mistura estados de consciência e aspectos concretos do mundo em torno” (ROSENTHAL, 1975, p.1). Ele afirma, ainda, que os romances modernos transformaram-se em entes híbridos quando comparados aos romances tradicionais, fato que impede sua apreensão como um todo unitário. Como ente híbrido, o romance moderno expõe-se, segundo Rosenthal, como um “universo fragmentário”, à medida que busca, como toda obra literária, o “descobrimento da realidade”. Como a realidade moderna caracteriza-se de forma bem diversa “daquela que caracterizava tempos passados, intensificou-se a desconfiança em relação a obras escritas nos moldes de convenções superadas, induzindo finalmente à busca de novas possibilidades” (ROSENTHAL, 1975, p. 1), de romances que representem essa realidade multifacetada e moderna. Uma das formas dessa representação de novas possibilidades é a moderna consciência linguística, que permitiu aos romancistas abordarem, por meio da linguagem e de seu trabalho de escrita, questionamentos, dúvidas, incertezas, indecisões próprios da modernidade e do homem que nela e sob ela vive. Justamente por isso, a linguagem tornou-se o cerne das cogitações no romance moderno (ROSENTHAL, 1975, p.1), traço, este, que se estende ao longo do século XX e, deste, para o século XXI. O que é dizível ou não (e por que o seria ou não), o que é passível de ser expresso, ou não, por meio da linguagem, o que se depreende ou não desta, são reflexões compartilhadas, não raro fragmentariamente, por meio do romance moderno, com o leitor. Deste último, o romance exige uma coparticipação à medida que “estimula reflexões através de uma auto- 31 análise progressiva” (ROSENTHAL, 1975, p. 1). Além de fragmentário, o romance moderno coloca em primeiro plano o material linguístico, promovendo uma abordagem crítica da linguagem e de suas possibilidades e problemas. A fim de discorrer sobre esse tema, Rosenthal realiza o seu estudo, que objetiva demonstrar em que consiste esse “universo fragmentário” do romance moderno, a partir de uma concepção moderna do mundo. O crítico afirma que De um modo geral, o romance moderno não considera atribuição sua decifrar mistérios ou concretizar os fenômenos flutuantes da vida atual. Antes de mais nada pretende mostrar o porquê de sua natureza enigmática e revelar os motivos pelos quais a realidade moderna precisa ser apresentada de forma “flutuante”, isto é, imprecisa, coruscante, camaleônica (ROSENTHAL, 1975, p. 8 – grifos nossos). Outra característica marcante do romance moderno é o diálogo interartes que ele, muitas vezes, propositalmente suscita. Em “Reflexões sobre o romance moderno”, Anatol Rosenfeld apoia-se em três hipóteses para aproximar o romance moderno da pintura. A primeira, de que existe certo Zeitgeist, um espírito unificador comum a todas as manifestações culturais. A segunda, o fato da desrealização20 na pintura, que deve ser considerado, segundo o autor, como de grande importância, devido à quebra da perspectiva e, consequentemente, do espaço tridimensional. E a terceira, de que as transformações sofridas pelas artes, de um modo geral, também passam pelo romance. Em suas palavras, “À eliminação do espaço, ou da ilusão do espaço, parece corresponder no romance a da sucessão temporal. A cronologia, a continuidade temporal foram abaladas, ‘os relógios foram destruídos’” (ROSENFELD, 1985, p. 80). Para Rosenfeld, “O romance moderno nasceu no momento em que Proust, Joyce, Gide, Faulkner começam a desfazer a ordem cronológica, fundindo passado, presente e futuro” (ROSENFELD, 1085, p. 80). Consequentemente, para Rosenfeld, “espaço e tempo, formas relativas de nossa consciência, [...] são por assim dizer denunciadas como relativas e subjetivas” (ROSENFELD, 1985, p. 81), tanto no romance quanto na pintura modernos. “A consciência como que põe em dúvida o seu direito de impor às coisas – e à própria vida psíquica – uma ordem que já não parece corresponder à realidade verdadeira” (ROSENFELD, 1985, p. 81). Justamente daí, para o crítico, decorre a dificuldade na recepção dessa pintura e desse romance, em virtude de a 20 Segundo o autor, esse termo se refere ao fato da pintura ter deixado de ser mimética e de negar-se a reproduzir ou recriar a realidade sensível. 32 [...] arte moderna negar o compromisso com este mundo empírico das “aparências”, isto é, com o mundo temporal e espacial posto como real e absoluto pelo realismo tradicional e pelo senso comum. Trata-se, antes de tudo, de um processo de desmascaramento do mundo epidérmico do senso comum (ROSENFELD, 1985, p. 81). Rosenfeld aponta para um dado importante: ao duvidar da “posição absoluta da ‘consciência central’” (ROSENFELD, 1985, p. 81), a arte moderna promove a reflexão crítica sobre “as posições ocupadas pelo sujeito cognoscente” (ROSENFELD, 1985, p. 81) não apenas temática, mas estruturalmente. Conforme ele salienta, “A visão de uma realidade mais profunda, mais real, do que a do senso comum é incorporada à forma total da obra” (ROSENFELD, 1985, p. 81). Conforme aponta o crítico, se o “homem não vive apenas ‘no’ tempo, mas [...] é tempo [...] não-cronológico” (ROSENFELD, 1985, p. 82), muitos “dos romances mais famosos [modernos] procuram assinalar não só tematicamente e sim na própria estrutura essa ‘discrepância’ entre o tempo no relógio e o tempo na mente” (ROSENFELD, 1985, p. 82 – colchetes nossos) e, para exemplificar, cita Vírginia Woolf e Angústia (1936), de Graciliano Ramos. A partir de sua leitura de Angústia, Rosenfeld passa a explorar os possíveis vínculos entre romance e pintura, romance e metalinguagem, romance e fragmentariedade, romance e mundo/homem moderno. Destaquemos, pois, alguns pontos dessa leitura. Para ele, o leitor se perde no tempo e no monólogo interior da personagem e, nesse “movimento giratório [...] tem de participar da própria experiência da personagem” (ROSENFELD, 1985, p. 83). Essa confusão temporal, nessa tentativa de se reproduzir o “fluxo de consciência [...] leva à radicalização extrema do monólogo interior” (ROSENFELD, 1985, p. 83), fazendo com que o narrador de Angústia – “intermediário [...] que nos apresenta a personagem no distanciamento gramatical do pronome ‘ele’ e da voz do pretérito” (ROSENFELD, 1985, p. 83) – desapareça. Com esse desaparecimento, “A consciência da personagem passa a manifestar-se na sua atualidade imediata, em pleno ato presente, como um Eu que ocupa totalmente a tela imaginária do romance” (ROSENFELD, 1996, p. 84). Além disso, conforme o crítico aponta, sem “o intermediário, substituído pela presença direta do fluxo psíquico, desaparece também a ordem lógica da oração e a coerência da estrutura que o narrador clássico imprimia à seqüência dos acontecimentos” (ROSENFELD, 1996, p. 84), o que, nos termos de Rosenfeld, “esgarça”, também, as relações de causa e efeito. Essas modificações, para ele, correspondem à abolição “do espaço-ilusão na pintura” (ROSENFELD, 1985, p. 84), que ele denomina desrealização. 33 Na verdade, essa desrealização projeta a expressão do artista, que passa a questionar a visão totalizante ou totalizadora do mundo: se a perspectiva, no Iluminismo, criara a ilusão do espaço tridimensional e projetara o mundo a partir de uma consciência, tornando absoluto o que é relativo, sua quebra demonstraria, na Modernidade, a precariedade desse absoluto, sua condição de ilusão de ótica seja no plano dos efeitos visuais, seja no plano ideológico e filosófico. Essa desrealização é comum a todas as artes do século XX. Observe-se o quanto as considerações de Roesenfeld encontram paralelos em Erich Auerbach (1971), crítico que, ao refletir sobre o romance moderno (e alguns escritores contemporâneos), aponta para algumas de suas peculiaridades. Afirma que: Tudo é, portanto, uma questão da posição do escritor diante da realidade do mundo que representa; posição que é, precisamente, totalmente diferente da posição daqueles autores que interpretam as ações, as situações e os caracteres das suas personagens com segurança objetiva, da forma que, anteriormente, ocorria em geral (AUERBACH, 1971, p. 470 – grifos nossos). Ao apontar para algumas das peculiaridades de estilo dos escritores modernos, Auerbach afirma que uma delas, a questão da “representação pluripessoal” reflete-se, como possibilidade, no tratamento dado ao tempo. Tais apontamentos são feitos com base na leitura de To the Lighthouse (Passeio ao farol), de Virgínia Woolf, no capítulo intitulado “A meia marrom”: Queremos descrever, primeiramente, este processo, com base ao exemplo que temos ante nós. Já dissemos acima que o processo da medição do cumprimento da meia e as palavras ditas em conexão com o mesmo só poderiam ter levado muito menos tempo do que um leitor atento, que nada deixa escapar, precisa para ler o trecho – mesmo admitindo que entre a medição e o beijo reconciliador na testa tenha havido uma pequena pausa. Mas o tempo da narração não é empregado para o processo em si – este é reproduzido com bastante brevidade –, mas para as interrupções; há intercaladas duas longas digressões, cuja relação temporal com o processo periférico parece, contudo, ser muito diferente. A primeira, a representação daquilo que acontece na consciência de Mrs. Ramsay durante a medição (mais precisamente, entre a primeira admoestação distraída e a segunda, acerba, dirigidas a James, para que fique com a perna firme), encaixa temporalmente no processo periférico e é meramente a sua representação o que requer mais segundos, ou talvez até mais minutos, do que a medição: porque o caminho percorrido pela consciência é completado, por vezes, muito mais rapidamente do que a linguagem é capaz de reproduzir, pressupondo-se que se queira ser compreendido por um terceiro, e é isso que aqui se tenciona (AUERBACH, 1971, p. 471-472). O crítico afirma, ainda, que [...] a moderna representação do tempo interior une-se a uma concepção neoplatônica, segundo a qual o verdadeiro arquétipo do objeto estaria na alma 34 do artista; de um artista que, encontrando-se ele próprio no objeto, liberou-se como observador do objeto e enfrenta seu próprio passado (AUERBACH, 1971, p. 476 – grifos nossos). Desde as primeiras abordagens do trabalho de Lispector, a crítica constata sua ênfase nos processos, explosões e descobertas interiores, nas relações entre personagens e coisas, nos alumbramentos e deslumbramentos impulsionados por fatos aparentemente insignificantes, banais e cotidianos. Tal procedimento é um dos principais elementos que faz com que sua obra seja, recorrentemente, comparada à de Virgínia Woolf. No último capítulo de Mímesis21, ao referir-se aos romances modernos, Auerbach aponta para essa tendência que, sob seu ponto de vista, é especialmente evidente em Woolf: Ela se atém a acontecimentos pequenos, insignificantes, escolhidos ao acaso: a medição da meia, um fragmento de conversa com uma criada, um telefonema. Não ocorrem grandes mudanças, momentos cruciais exteriores da vida, ou catástrofes, e também, em geral, no romance do farol elas são mencionadas só rapidamente, sem preparação nem contexto, de forma aproximada e, por assim dizer, apenas informacional. A mesma tendência apresenta-se também com os outros escritores, muito diferentes entre si, como, por exemplo, em Proust e Hamsun (AUERBACH, 1971, p. 480). Observe-se que, nesse trecho, Auerbach aponta para outra característica: a questão do tempo está intrinsecamamente vinculada à rarefação fabular. Para Auerbach, houve uma “deslocação do acento”: [...] muitos escritores apresentam os acontecimentos pequenos e, enquanto mudança exterior de destino, insignificantes por si próprios, ou antes, como pretexto para o desenvolvimento de motivos, de aprofundamento perspectivo num meio ou numa consciência ou no pano de fundo histórico. Renunciaram a representar a história das suas personagens com pretensão a integridade exterior, sob a conservação do decurso cronológico e acentuando as mudanças exteriores e significativas do destino. O grandioso romance de James Joyce [...] tem como moldura o decurso de um dia, exteriormente insignificante, de um professor de ginásio e de um corretor de anúncios; abrange menos de vinte e quatro horas de suas vidas, de forma semelhante ao farol de Virgínia Woolf, que descreve parte de dois dias muito distantes entre si (AUERBACH, 1971, p. 480 – grifos nossos). A rarefação fabular (intrinsecamente ligada ao “esgarçamento” do tempo de duração) seria o correspondente, na narrativa, da desrealização (de Rosenfeld) na pintura. Se a fábula se rarefaz porque os eventos tornam-se mínimos, a vida subjetiva da(s) personagem(ns) ganha corpo e vai para o primeiro plano. Os escritos de Clarice Lispector evidenciam isso, e nosso 21 Obra em que Auerbach aborda a questão da representação da realidade. Seus estudos partem da Odisséia, em “A cicatriz de Ulisses”, para chegar à modernidade, com To the Lighthouse, de Virgínia Woolf, no capítulo “A meia marrom”, no qual também se refere a Flaubert e Proust, entre outros. 35 trabalho pretende defender a ideia de que é Água viva o texto mais radical nesse aspecto, trazendo para o primeiro plano, como drama (e conflito dramático), essa discussão, por meio das especulações do enunciador – um enunciador dividido entre as (e pelas) dimensões conflituais que estabeleceu com a escrita. E por trazer essa discussão de modo poético, expondo o leitor à linguagem em seu drama, convida-o a partilhar das “flutuações” e incertezas que animam tanto o enunciador como o texto que ele escreve/escreveu. Não nos interessa, neste trabalho, apontar possíveis influências, na obra clariciana. Procuramos apenas evidenciar, em consonância com boa parte de sua fortuna crítica, alguns pontos confluentes às poéticas de alguns autores modernos, entre eles Virgínia Woolf, James Joyce, Marcel Proust e, ainda, Katherine Mansfield, a única autora que, de fato, Lispector admitiu haver lido com uma identificação total22. Como o apontado por Auerbach, em relação à Virgínia Woolf, Lispector também opta pela rarefação da fábula, também realiza um trabalho de alongamento do tempo de duração (a durée) e, do mesmo modo, dá relevo a acontecimentos inscritos na ordem do cotidiano. Entretanto, tais acontecimentos, aparentemente banais e insignificantes, permitem um mergulho profundo de seus personagens, particularmente os narradores, na própria experiência. Ocorre, aí, o que Olga de Sá (2000) denominou epifania, em A escritura de Clarice Lispector. Entretanto, conforme a própria crítica constata, tal efeito já é percebido pela primeira crítica de Lispector, que, contudo, não tinha ainda condições de nomeá-lo como tal ou, mesmo, de valorizá-lo. Olga de Sá faz um passeio pela fortuna crítica clariciana, desde Álvaro Lins, que (embora jamais tenha utilizado esse termo) investiga o fenômeno ao tentar definir “romance lírico” ou romance de “realismo mágico” quando aponta para “a apresentação da realidade com um caráter de sonho” (SÁ, 2000, p. 164). Isso, entretanto, para ele, é uma deficiência, “como se a escritora apelasse para os recursos da poesia ao lhe faltarem os da estrutura romanesca” (SÁ, 2000, p. 164). Justamente por apreender tal procedimento como “defeito” do romance, o crítico aponta para o capítulo “O banho” (considerado magistral por Candido, por exemplo) como “ponto de desgaste do espírito do 22 Ao ser questionada por João Salgueiro (na entrevista concedida a ele, a Affonso Romano de Sant’Anna e a Marina Colasanti, na sede do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro) sobre o autor que teria influenciado sua escrita, Clarice responde: “Então, com o primeiro dinheiro que eu ganhei, meu primeiro mesmo, entrei, muito altiva, numa livraria para comprar um livro. Aí mexi em todos e nenhum me dizia nada. De repente eu disse: ‘Ei, isso aí sou eu.’ Eu não sabia que Katherine Mansfield era famosa, descobri sozinha. Era o livro Felicidade” (LISPECTOR apud MONTERO; MANZO, 2005, p. 159). Olga Borelli também faz uma referência a esse fato, em Esboço para um possível retrato: “Adulta, trabalhando como jornalista, levou um susto quando, ao receber o primeiro ordenado, entrou numa livraria e descobriu o livro Felicidade, de Katherine Mansfield. Exclamou então: ‘Isto sou eu!’” (BORELLI, 1981, p. 66). 36 romance” (SÁ, 2000, p. 164), visto que este “é uma das mais significativas epifanias do livro” (SÁ, 2000, p. 164). Olga passa ainda por Sérgio Milliet, Roberto Schwarz, Massaud Moisés, Luiz Costa Lima, entre outros, até destacar o fato de que Benedito Nunes utiliza o sintagma “descortínio silencioso23” para nomear o fenômeno descrito por praticamente toda a crítica que, de um modo ou de outro, deteve-se sobre a, então, estranha escrita clariciana. Mas é no apontamento crítico de Sá em relação a Affonso Romano de Sant’Anna que encontramos algo extremamente significativo para a nossa perspectiva, que considera Água viva como o momento máximo de, para usar do termo destacado por Sá, epifania no todo da obra clariciana, por considerá-lo como o resultado de um exercício radical (e sem concessões) do escrever e da escrita: Para Affonso Romano de Sant’Anna, num trabalho publicado em 1973, a narração de Clarice Lispector converge para a tematização da linguagem, como um fenômeno de epifania. No ponto de maior intensidade de uma dualidade invariante, denominada por Romano: - eu e o outro, dualidade que se dissimula por sob disfarces vários, situa-se um estágio avançado da narrativa, onde ocorre a epifania, como momento necessário e insustentável de tensão. A narrativa tem seu momento de exceção para o indivíduo, que vislumbra o que poderia ver e ter e fica, para sempre, ferido nos olhos; exceção para o narrador, diante da linguagem (SÁ, 2000, p. 167). E para ratificar o exposto, Sá transcreve de Sant’Anna o seguinte trecho: “A linguagem alude, é a possibilidade do impossível, o êxito do fracasso, a tentativa da fala diante do silêncio” (SANT’ANNA, 1973, p. 209). Segundo Olga de Sá, Clarice [...] trabalha desgastando a linguagem, denunciando o ato de escrever, alertando constantemente a consciência do leitor para o fato insofismável, mas esquecido, de que ele é leitor e ela escreve, isto é, faz literatura, inventa universo de palavras. Tanto o ato de escrever quanto o ato de ler são questionados, na ficção de Clarice, em agonia do confronto com o ser e o viver (SÁ, 2004a, p. 16 – grifos nossos). Como muito bem ressaltou Sá, o grande tema clariciano é o confronto entre a 23 Para Nunes, o termo refere-se à experiência contemplativa e silenciosa provocada pela fascinação das coisas nos personagens claricianos, “um saber arraigado à percepção em estado bruto” (NUNES, 1995, p. 123), “independentemente do entendimento verbal e discursivo” (NUNES, 1995, p. 123). Para ele, “a náusea é o modo extremo” (NUNES, 1995, p. 122) desse descortínio contemplativo, pois “Manifestando-se como um mal-estar súbito e injustificável que do corpo se apodera e do corpo se transmite à consciência, por uma espécie de captação mágica emocional, a náusea (mais primitiva do que a angústia e como esta esporádica) revela, sob a forma de um fascínio da coisa, a contingência do sujeito humano e o absurdo do ser que o circunda” (NUNES, 1995, p. 117). 37 necessidade de dizer e a experiência de ser24, ou a escrita (a linguagem e a representação, em última análise) como algo que se insere entre o ser e o mundo, o ser e sua constituição subjetiva. Em outras palavras, o grande problema posto pela obra de Lispector é a necessidade de dizer versus a necessidade de persuadir o leitor (de modos variados que vão da sedução à agressão, da fascinação ao ludíbrio, passando pelas identificações próximas ou distanciadas). Isso porque ao dizer, não diz nem apenas nem exatamente o que diz, aludindo, sempre, a outros sentidos num processo que se quer infinito. É como se a escrita clariciana fosse composta de uma lalíngua25 por meio da qual o discurso “escapa”, revelando-se precário, jamais totalizado ou totalizável26. Para Barthes, Uma maneira de ligar o leitor a uma teoria da Narração ou, mais amplamente, a uma Poética, seria considerar ele mesmo como ocupante de um ponto de vista (ou sucessivamente de vários); em outras palavras, tratar o leitor como uma personagem (mesmo que não necessariamente privilegiada) da ficção e/ou do Texto. Demonstrou-se isso para a tragédia grega: o leitor é aquela personagem que está no palco (mesmo clandestinamente) e que sozinha ouve o que cada um dos parceiros do diálogo não ouve; sua escuta é dupla (e, portanto, virtualmente múltipla) (BARTHES, 2003a, p. 40-41 – grifos nossos). Esse leitor de duplo estatuto de que fala Barthes é aquele que, mais do que decodificar o texto (ler as letras, palavras, sentidos, estruturas; ler os sentidos dados), é capaz de sobrecodificá-lo, interagindo com o texto. Em outras palavras, esse leitor “não decifra, produz, amontoa linguagens, deixa-se infinita e incansavelmente atravessar por elas: ele é essa travessia” (BARTHES, 2003a, p. 41). Esse leitor, que é a própria travessia, é o exigido pela obra clariciana. Como se pode ler em A paixão segundo G.H., 24 É justamente por essa temática que Heidegger se impôs à leitura de Clarice Lispector realizada por Benedito Nunes. Já em O dorso do tigre (1ª edição em 1969), Nunes aponta para o viés heideggeriano dessa obra. Nosso intuito, aqui, não é o de nos aprofundarmos nessa questão, tanto por considerarmos que tal leitura demandaria um tempo maior do que o que dispomos neste estudo de doutoramento (tendo em vista o viés crítico que adotamos neste trabalho) quanto pelo fato de que esta leitura já foi brilhantemente realizada pelo referido crítico da obra clariciana. 25 Nos termos de Haroldo de Campos, tradutor responsável por esse significante lacaniano, “lalangue”. Para o crítico, longe de significar uma ausência de linguagem, como poderia sugerir o termo “alíngua” (que alguns tradutores de Lacan adotaram), lalíngua ou lalangue remete-nos ao domínio do onomatopaico, ou seja, não mais uma linguagem arbitrária, mas motivada, para ele “o oposto de não-língua, de privação de língua”. Uma língua tensionada pela função poética. (CAMPOS, “O afreudisíaco Lacan na galáxia de lalíngua”. Disponível em: http://hdl.handle.net/10437/42. Acesso em 29/04/2013). 26 Maria das Graças Fonseca Andrade, no artigo “Escrita e escuta de corpo inteiro”, estuda Água viva a partir da noção lacaniana de lalíngua. http://hdl.handle.net/10437/42 38 Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu. E é inútil procurar encurtar caminho e querer já começar sabendo que a voz diz pouco, já começando por ser despessoal. Pois existe a trajetória, e a trajetória não é apenas um modo de ir. A trajetória somos nós mesmos. Em matéria de viver, nunca se pode chegar antes. A via-crucis não é um descaminho, é a passagem única, não se chega senão através dela e com ela. A insistência é o nosso esforço, a desistência é o prêmio (LISPECTOR, 1998b, p. 176 – grifos nossos). O projeto ficcional de Clarice Lispector trabalha recorrentemente a falha na construção. Esse fracasso, como nos adverte Benedito Nunes (NUNES, 1976, p. 137), num sentido filosófico do termo, é o fracasso do Ser (que aceita a impossibilidade de alcançar a plenitude) e da linguagem (que se revela precária, à medida que expõe sua impossibilidade de exprimir o inexprimível, de dizer o indizível). Conforme ressalta o referido crítico, De fato, a romancista, ora neutralizando os significados abstratos das palavras, ora utilizando-os na sua máxima concretude, pela repetição obsessiva de verbos e substantivos, emprega um processo que denominaremos técnica de desgaste, como se, em vez de escrever, ela desescrevesse, conseguindo um efeito máximo de refluxo da linguagem, que deixa à mostra o “aquilo”, o inexpressado (NUNES, 1976, p. 137-138 – grifos nossos). E esse é o drama da linguagem27 que anima a escrita clariciana, a qual, Jamais triunfante, [...] assombrada pelo silêncio porque assombrada pela presença mística da coisa, sempre ameaçando-a com o risco do emudecimento, é uma escritura conflitiva, autodilacerada, que problematiza, ao fazer-se e ao compreender-se, as relações entre linguagem e realidade (NUNES, 1995, p. 145 – grifos nossos). Nosso trabalho concebe Água viva como obra singular na literatura clariciana por entendermos que, neste texto, Lispector radicaliza na apresentação, ao leitor, da linguagem em seu drama, pois se consideramos que há no texto uma luta entre sujeito escrevente e escritor (posições-funções ocupadas pela narradora identificada, em última análise, com Clarice Lispector), há aí, também e ocupando o núcleo da intriga, uma luta entre as funções metalinguística e poética. Silviano Santiago, em palestra apresentada em um simpósio sobre Clarice Lispector, realizado a 17 de outubro de 1997, na University of Texas at Austin, intitulada “A aula inaugural de Clarice Lispector”28, define o projeto literário da autora, logo na introdução, como aquele que, na história da literatura brasileira, “inaugura tardiamente a possibilidade de 27 Expressão cunhada por Nunes no título de sua leitura crítica global do universo ficcional clariciano, O drama da linguagem, para nomear a tensão dessa escrita, que busca expressar o inefável. 28 Texto originalmente publicado no jornal Folha de São Paulo em 07/12/1997. 39 uma ficção que, sem depender do desenvolvimento circunstanciado e complexo de uma trama novelesca oitocentista, consegue alcançar a condição de excelência atribuída pelos especialistas” (SANTIAGO, 1997, p. 5). Em 2004, ao publicar, com modificações, esse texto como capítulo de O cosmopolitismo do pobre: crítica literária e crítica cultural, intitulando-o de “A aula inaugural de Clarice Lispector: cotidiano, labor e esperança”, Santiago afirma que A literatura de Clarice, na sua radicalidade, se alimenta da palavra, é “um mergulho na matéria da palavra”, ou seja, ela está na capacidade que tem a palavra de se suceder a uma outra palavra, sem a necessidade de buscar um suporte alheio ao corpo das próprias palavras que se sucedem em espaçamento. Basta-lhe o suporte da sintaxe (SANTIAGO, 2004, p. 233). Há, portanto, um desligamento de significantes que esgarça o lastro de uma palavra a outra e, nesse sentido, a sintaxe estaria para o fazer literatura e a subversão desta estaria para o escrever. Santiago aponta, ainda, para o fato de que A trama novelesca de Clarice não reflui da, nem conflui para a história literária escrita em moldes oitocentistas, para a história como entendida naquele contexto. É um rio que inaugura o seu próprio curso para, como a serpente uróboro, desaguar na nascente. A literatura é literatura – eis a fórmula mais simples e mais enigmática para apreender o sentido da aula inaugural de Clarice (SANTIAGO, 2004, p. 233). Aula inaugural, esta, que teve o seu início não com o romance Perto do coração selvagem, mas sim com o conto “Triunfo”, de 1940, publicado no semanário Pan29. No entanto, é com Perto do coração selvagem que Lispector estreia, de fato, no cenário da literatura, causando um verdadeiro