Unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara – SP SAMARA DOS SANTOS CARVALHO A BRANQUITUDE DESVELADA: o romance Clara dos Anjos e as relações raciais e de gênero na Primeira República ARARAQUARA, SP 2024 SAMARA DOS SANTOS CARVALHO A branquitude desvelada: o romance Clara dos Anjos e as relações raciais e de gênero na Primeira República Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Ciências Sociais. Linha de pesquisa: Cultura, Democracia e Pensamento Social Orientador: Prof. Dr. Carlos Henrique Gileno ARARAQUARA – SP 2024 Unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara – SP SAMARA DOS SANTOS CARVALHO A branquitude desvelada: o romance Clara dos Anjos e as relações raciais e de gênero na Primeira República Banca examinadora ___________________________________________________________________________ Presidente e Orientador: Prof. Dr. Carlos Henrique Gileno – UNESP/Araraquara, SP ___________________________________________________________________________ Membro Titular: Prof. Dr. Moacir de Freitas Junior – UFJF/Juiz de Fora, MG __________________________________________________________________________ Membro Titular: Prof. Dr. Paulo Eduardo Teixeira – UNESP/Marília, SP ___________________________________________________________________________ Membro Titular: Prof. Dr. Dagoberto José Fonseca – UNESP/Araraquara, SP ___________________________________________________________________________ Membro Titular: Prof.ª. Dra. Eva Aparecida Silva – UNESP/ Araraquara, SP Tese defendida e aprovada em: 27 de março de 2024. Araraquara, 2024 A nós, mulheres negras, cujos imperativos da vida não nos dão a opção de desistir. Agradecimentos Agradeço profundamente à minha família pelo amparo incondicional ao longo desta jornada. Aos meus pais, Eduardo e Jandira, cujo amor e encorajamento foram minha âncora nos momentos de dúvida e minha força nos momentos de desafio. Ao meu irmão e ao meu sobrinho, Sandro Luiz e João Eduardo, pelo suporte constante e por sempre acreditarem em mim. Agradeço também às minhas primas, Carina e Vanessa, por sempre vibrarem pelas minhas conquistas. Muito obrigada a todos os membros da minha família por sempre respeitarem minhas escolhas e apoiá-las sem julgamento. Vocês são a expressão da importância que o respeito mobilizou em minha formação pessoal. Ao meu companheiro, Gabriel Marco, por todo amor, paciência e companheirismo. Seu apoio e encorajamento foram fundamentais nessa jornada. Ao meu orientador, Carlos Henrique Gileno, por toda assistência e carinho. Obrigada por não me deixar desistir e por respeitar minhas escolhas em relação à elaboração da tese. À querida Elisângela da Silva Santos, cujo acolhimento, escuta atenta e humanidade, diante das minhas dificuldades, foram fundamentais no desenvolvimento da tese. Serei sempre grata ao seu amparo. Aos professores Dagoberto José Fonseca e Mirlene Simões, cujos apontamentos realizados no exame de qualificação foram fundamentais para a finalização do trabalho. Aos membros da banca de defesa, Eva Aparecida Silva, Dagoberto José Fonseca, Moacir de Freitas Junior e Paulo Eduardo Teixeira, pelo respeito durante a arguição, pela leitura e correção atenta do trabalho. Às minhas amigas “maloca querida”, Camilla Gato, Daniela Rodrigues, Joyce Souza, Mayra Fernandes e Talita Brito, que me acompanham por toda vida e vibram pelas minhas conquistas. A amizade de vocês é uma dádiva. Aos amigos Gilberto Bonadio, Reggis Ferreira, Marta da Mata, Laís Landim, Ana Carolina Guedes, Tânia, Vanessa Marino, Tiago Rosa, Thadeu Almeida, Rubens de Farias, Caroline Mendes, Nattany Ribeiro, Jacqueline Oliveira, Rose Barbosa, Tatiana Fernandes, Larissa Ladalardo, Amanda Marqui, Dayane Araújo, Dayana Prado, Ariane Mendonça, Marcela Machado, Danielle Ribeiro, Eloá Schuler e Tatiana Lobosque, que estiveram ao meu lado, compreendendo minha ausência e me incentivando a persistir. Meus sinceros agradecimentos a cada um de vocês que, independentemente da distância, sempre estiveram ao meu lado. Aos colegas de trabalho da E.E. Professor Primo Ferreira, Colégio do Carmo, Colégio Jean Piaget e Colégio Progresso, pois sempre manifestaram apoio, emprestaram muitos livros, cederam seus ouvidos para que eu lhes contasse sobre o avanço da pesquisa e me motivaram a não desistir. Aos funcionários e professores do Programa de Pós-Graduação da Unesp-Araraquara, por toda dedicação e atenção. A cada um de vocês, meus sinceros agradecimentos! Obrigada! Letras de Pedra, pau, espinho e grade “No meio do caminho tinha uma pedra”, Mas a ousada esperança de quem marcha cordilheiras triturando todas as pedras da primeira à derradeira de quem banha a vida toda no unguento da coragem e da luta cotidiana faz do sumo beberragem topa a pedra pesadelo é ali que faz parada para o salto e não o recuo não estanca os seus sonhos lá no fundo da memória, pedra, pau, espinho e grade são da vida o desafio. E se cai, nunca se perdem os seus sonhos esparramados adubam a vida, multiplicam são motivos de viagem. Conceição Evaristo Se você não pisar no rabo de um cachorro, ele não morderá você Provérbio da África Centro-Oriental Resumo Em 1922, Afonso Henriques de Lima Barreto publica seu último romance, Clara dos Anjos, meses antes de seu falecimento. O romance narra uma história de sedução e abandono vivenciada pela personagem-título, uma jovem mestiça de origem humilde. Descrita pelo autor como “uma natureza amorfa, pastosa, que precisava de mãos fortes que a modelassem e fixassem”, a protagonista é alienada em relação à sua condição racial, cuja trajetória de vida é marcada pela exclusão social e pelo racismo, problemáticas centrais em diversas obras de Lima Barreto. O objetivo do trabalho consiste em analisar, no romance Clara dos Anjos, a emergência de uma crítica à construção social branquitude como um marcador simbólico de distinção social diante das aspirações democráticas do Brasil na Primeira República. A hipótese apresentada é que se pode aferir originalidade e pioneirismo em Lima Barreto ao desvelar o racismo e ao problematizar a branquitude como uma ideologia, ou seja, como um constructo capaz de produzir ideias acerca da realidade social. A metodologia utilizada é a análise literária, realizada a partir da perspectiva empregada por Antônio Candido (2000), que consiste em demonstrar, de forma dialética, as particularidades da obra literária em que os elementos caracterizados como externos – os fatores sociais – tornam-se internos, ou seja, desempenham papel fundamental na estrutura narrativa, convertendo-se em expressão estética. Consoante a esta perspectiva, adota- se também como referencial Sevcenko (1999), que vislumbra a literatura como missão, e Bosi (1982), ao caracterizar a obra de Lima Barreto como romance social, em que as condições da vida particular do ator se entrelaçam com a denúncia social presente em sua obra. Busca-se compreender a obra literária enquanto objeto de investigação sociológica sob dois aspectos indissociáveis: a literatura como um fenômeno social de produção, comercialização e consumo, como também, o referencial de uma época, que permite levantar reflexões acerca das contradições raciais e sociais do contexto histórico vivenciado por Lima Barreto. Por fim, aborda-se a importância de analisar relações étnico-raciais como um fenômeno relacional, compreendido em sua esfera simbólica, atrelada a contextos sociais e políticos específicos. Palavras-chave: Clara dos Anjos; Lima Barreto; branquitude; racismo; gênero; Primeira República; Brasil. Abstract In 1922, Afonso Henriques de Lima Barreto published his last novel, Clara dos Anjos, months before his death. The novel tells a story of seduction and abandonment experienced by the title character, a young black woman of humble origin. Described by the author as “an amorphous, pasty nature, which needed strong hands to shape and fix it,” the protagonist is alienated in relation to her racial condition, whose life trajectory is marked by social exclusion and racism, central issues in several works by Lima Barreto. The aim of the work is to analyze in the novel Clara dos Anjos the emergence of a critique of the social construction of whiteness as a symbolic marker of social distinction in the face of Brazil’s democratic aspirations in the First Republic. The hypothesis presented is that one can ascertain an original and pioneer spirit in Lima Barreto by unveiling racism and problematizing whiteness as an ideology, that is, as a construct capable of producing ideas about social reality. The methodology used is literary analysis, carried out from the perspective employed by Antônio Candido (2000) which consists in demonstrating, in a dialectical way, the particularities of the literary work in which the elements characterized as external – the social factors – become internal, that is, they play a fundamental role in the narrative structure, becoming an aesthetic expression. In accordance with this perspective, we also adopt as a reference Sevcenko (1999) who envisages literature as a mission and Bosi (1982) when characterizing Lima Barreto’s work as a social novel, in which the conditions of the actor’s private life intertwine with the social denunciation present in his work. We seek to understand the literary work as an object of sociological investigation under two inseparable aspects: literature as a social phenomenon of production, marketing and consumption, as well as, the reference of an era, which allows us to raise reflections about the racial and social contradictions of the historical context experienced by Lima Barreto. Finally, we address the importance of analyzing ethnic-racial relations as a relational phenomenon, understood in its symbolic sphere, linked to specific social and political contexts. Keywords: Clara dos Anjos; Lima Barreto; whiteness; racism; gender; First Republic LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Retrato de Lima Barreto em forma de grafite .......................................................... 14 Figura 2 - Grafite de Lima Barreto em meio aos seus livros .................................................... 16 Figura 3 - A Bênção .................................................................................................................. 77 Figura 4 - A Redenção de Cam ................................................................................................. 78 Sumário INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 13 1 LIMA BARRETO: O PENSADOR IMPRESCINDÍVEL DO SUBÚRBIO CARIOCA ............. 34 1.1 A réplica cidadã: a vida de Lima Barreto e as transformações socioespaciais do Rio de Janeiro na ordem republicana ................................................................................................................ 37 1.2 A literatura negra de Lima Barreto ........................................................................................ 58 1.3 A obra literária em foco: considerações metodológicas sobre a análise sociológica do romance Clara dos Anjos....................................................................................................................... 69 2 A BUSCA PELA COMPREENSÃO DE SI: CIÊNCIA E RACISMO NO SÉCULO XIX ......... 77 2.1 A Redenção de Cam .............................................................................................................. 77 2.2 Positivismo, evolucionismo e darwinismo social: o impacto da perspectiva da raça no surgimento das ciências sociais ............................................................................................................. 80 2.3 Silvio Romero, Euclides da Cunha e Nina Rodrigues: considerações sobre os precursores da sociologia no Brasil ............................................................................................................................... 88 2.4 A eugenia no Brasil ............................................................................................................. 101 3 EPISTEMOLOGIAS INSURGENTES DO SÉCULO XX-XXI: PERSPECTIVAS CRÍTICAS SOBRE A COLONIALIDADE E O RACISMO NAS CIÊNCIAS SOCIAIS ................................... 110 3.1 A emergência dos Estudos Pós-Coloniais e Decoloniais ..................................................... 111 3.2 W. E. B. Du Bois e Frantz Fanon: reflexos da intelectualidade negra no mundo de brancos 120 3.3 Os estudos críticos da branquitude aportam no Brasil ........................................................ 129 3.3.1 A branquitude enquanto categoria de análise ................................................................ 132 4 CLARA DOS ANJOS E AS DINÂMICAS SOCIAIS NA PRIMEIRA REPÚBLICA: RELAÇÃO DE RAÇA E GÊNERO NO SUBÚRBIO CARIOCA ........................................................................ 138 4.1 A elaboração do romance Clara dos Anjos .......................................................................... 139 4.2 Muito além dos trilhos da central: a formação do subúrbio carioca na perspectiva ficcional de Lima Barreto ................................................................................................................................... 143 4.3 Masculinidade marginal: personagens masculinas e os alter egos de Lima Barreto ........... 147 4.4 O impacto da branquitude nos papéis sociais de mãe e esposa: análise das personagens femininas 158 4.5 A branquitude desvelada entre Clara e Cassi: a ela a culpa, a ele a desculpa ..................... 170 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................................. 188 REFERÊNCIAS .................................................................................................................................. 191 13 INTRODUÇÃO Existe na cabeça do negro poeta uma busca de criar o certo que contenha mais que a pura beleza do verso e que assimilável seja por um outro negro que se pendura no trem das seis e vê nas costas a torre da Central Não como um rasgo indecente ou como um berro de concreto que invade os olhos da gente [...] A procura persiste, mistura, verte verbos tristes para descobrir que tem muito a aprender da dialética maior que existe E se esconde toda na placidez das marmitas que voltam cansadas da vida todos os dias no trem das seis José Carlos Limeira, Cadernos negros 3, p. 91. Em dezembro de 2021, o projeto Negro Muro1, que visa produzir arte urbana com o intuito de memorar grandes nomes da cultura negra na cidade do Rio Janeiro, concluiu um grafite em homenagem ao escritor Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922). A pintura foi realizada em um muro situado ao número 20 da rua Major Mascarenhas, no bairro de Todos os Santos, Zona Norte, ao lado da última residência em que o autor viveu com sua família por duas décadas e onde morreu, precocemente, aos 41 anos, em novembro de 1922. 1 Matéria completa sobre o projeto e imagem dos grafites disponíveis em https://g1.globo.com/rj/rio-de- janeiro/noticia/2021/12/25/projeto-negro-muro-homenageia-lima-barreto-com-arte-em-todos-os-santos-zona- norte-do-rio.ghtml. Acesso em dez. 2023. https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/12/25/projeto-negro-muro-homenageia-lima-barreto-com-arte-em-todos-os-santos-zona-norte-do-rio.ghtml https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/12/25/projeto-negro-muro-homenageia-lima-barreto-com-arte-em-todos-os-santos-zona-norte-do-rio.ghtml https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/12/25/projeto-negro-muro-homenageia-lima-barreto-com-arte-em-todos-os-santos-zona-norte-do-rio.ghtml 14 Figura 1 - Retrato de Lima Barreto em forma de grafite Fonte: Negro Muro O grafite, produzido em um muro de 15 metros de largura, teve como inspiração a casa – chamada carinhosamente por ele de Vila Quilombo – e os arredores do subúrbio em que o romancista viveu – que estão presentes em diversas crônicas de sua autoria. Entre os desenhos, destaca-se o retrato de Lima Barreto vestindo o fardão – traje exigido na cerimônia de posse da Academia Brasileira de Letras – ABL, instituição pela qual teve duas candidaturas negadas e uma última retirada pelo próprio autor antes mesmo de receber um parecer, favorável ou não. Segundo o produtor cultural Pedro Rajão, responsável pelo trabalho de pesquisa para a elaboração do painel, o desenho foi pensado como uma forma de provocação à rejeição do romancista pela ABL: "Ele tentou mais de uma vez em vida, e agora no muro ele é um imortal devidamente reconhecido. Fizemos como forma de denúncia à instituição que ignorou a grandeza desse autor"1. Outro fato curioso é a desaprovação de Barreto sobre os seus retratos, conforme afirmou Lilia Schwarcz, autora da mais recente biografia de Lima Barreto, chamada Triste Visionário (2017). Em 15 entrevista de divulgação da obra, ao apresentar o projeto de elaboração da capa, a autora afirmou que, no decorrer da pesquisa, identificou passagens em seus textos nas quais Barreto afirma não gostar dos seus retratos. A começar por sua cor – que ele mesmo caracterizava como um tom de pele “azeitonado” –, mas, também, por serem os retratos, em sua maioria, retirados nos períodos que sucederam as duas internações do autor na Colônia dos Alienados, instituição designada aos cuidados de pacientes em tratamento psiquiátrico. A homenagem conferida ao artista em formato grafite – gênero de arte visual criado no seio dos guetos e da cultura urbana negra – é um reconhecimento póstumo a um dos principais escritores brasileiros que, no decorrer de sua vida, não teve a devida aclamação, mas que vem ganhando a merecida notoriedade na contemporaneidade. Lima Barreto – escritor pobre, negro, alcoólatra – vivenciou eventos fundamentais da história do Brasil: viu de perto, ainda menino, a cerimônia da Abolição no centro da capital fluminense; acompanhou a transição do regime monarquista para o republicano – que trouxe a esperança de expansão do status cidadão aos socialmente excluídos – e testemunhou o florescer do subúrbio carioca para além dos trilhos da Central, como consequência da “inserção compulsória do Brasil na Belle Époque” (Sevcenko, 1999). A obra de Lima Barreto registrou, no campo literário, o cotidiano de um Brasil que pouco aparecia nos livros, jornais e teses científicas. Registrou o modo de vida da gente suburbana, a “arraia-miúda”2 – trabalhadores, pobres, negros, migrantes e imigrantes – com a sensibilidade que só quem viveu os dissabores da exclusão social seria capaz de retratar com tamanha humanidade. Todavia, não se contentou em apenas descrever o “outro” (no sentido antropológico atribuído ao termo). Penejou sobre si e sobre as próprias angústias e frustrações que lhe acompanharam por toda a vida – as quais podem ser identificadas nas inúmeras personagens que ganharam forma em seus romances e crônicas. Em seus textos, escreveu também sobre os estabelecidos: atacou figuras públicas, políticos conservadores, endereçou críticas ferinas à imprensa, aos acadêmicos e à rigidez de seus textos, aos “medalhões”3 do funcionalismo público, à burguesia carioca e seu modo hipócrita de conduzir a vida. Ao lermos suas obras, temos a impressão de que nenhum acontecimento do cotidiano da sociedade carioca do início do século XX escapou-lhe à escrita. 2 Expressão popularmente utilizada para referir-se ao povo. 3 A expressão medalhão, muito popular nos séculos XIX e XX, faz referência a homens que ocupavam cargos importantes cuja posição de destaque se dava devido à influência familiar, dos amigos e do dinheiro. Na prática, eram pessoas que não possuíam mérito para os cargos que ocupavam. Machado de Assis publica na Gazeta de Notícias, em 1881, o conto “Teoria do Medalhão”, que narra o diálogo entre um pai e seu filho, aconselhando-o a tornar-se um medalhão e a ocupar um ofício por conveniência e aceitação social. 16 Figura 2 - Grafite de Lima Barreto em meio aos seus livros Disponível em https://negromuro.com.br/. Acesso em dez. 2023 O artista gráfico Pedro Rojão, na referida entrevista cedida ao “G1” – Portal de notícias do Grupo Globo – conta que o projeto Negro Muro havia homenageado o romancista em outra ocasião, no ano de 2018, na Rua Vilela Tavares, no bairro do Méier, também na zona Norte. Contudo, o grafite foi apagado posteriormente pelo novo proprietário do imóvel. Em defesa do homenageado, o artista reitera: Dessa vez, ele vai ficar precisamente no local onde ele viveu. E um detalhe importante é o imenso acervo dele, que a gente conseguiu incluir na arte. Incrível pensar que, em um bairro que era rural, com chão de barro ainda, há mais de 100 anos atrás, havia um grande escritor preto que detinha um acervo dessa magnitude (Rojão, 2021). No ensaio O direto à literatura, Antônio Candido (2011[1988]) argumenta em prol da literatura como um direito, ao possibilitar – diante da complexidade de sua natureza – humanização e “integridade espiritual”. O texto traz pertinentes reflexões sobre a importância e a defesa dos direitos humanos como um componente fundamental à expansão da cidadania. O autor infere sobre as contradições históricas de seu tempo, se comparado a outros períodos em que a humanidade4 não havia atingido um patamar tão sofisticado de racionalidade e 4 Ao abordar o termo “humanidade”, Candido faz referência aos avanços trazidos pelo paradigma moderno de ciência cuja abrangência se deu no Ocidente. https://negromuro.com.br/ 17 domínio técnico sobre a natureza. Trata-se de um período de barbárie, embora seja uma barbárie fruto da civilização5. O desenvolvimento da indústria, as avançadas técnicas de produção agrícola, as descobertas científicas na área da saúde e as inovações tecnológicas poderiam propiciar níveis inigualáveis de satisfação de necessidades nunca sonhadas pela humanidade. No entanto, conforme destaca, “os mesmos meios capazes de fomentar o progresso de alguns podem provocar a degradação da maioria” (Candido, 2011, p. 169). As contradições apontadas pelo autor são condizentes às emergências e às tensões sociopolíticas que marcaram a sociedade brasileira no último quartil do século XX. Publicado em 1988, o texto alude à Redemocratização e à promulgação da mais recente Constituição Federal, cunhada como “constituição cidadã” (Rocha, 2008), por tornar formal o combate a injustiças historicamente gestadas na formação social brasileira, destacando-se a criminalização do racismo6, a demarcação de terras indígenas e o princípio da função social da terra como norma que deve orientar as atividades agrárias, a regulamentação dos direitos trabalhistas no campo e a proteção ambiental. Diante desses acontecimentos, a pobreza e a exclusão social deixam de ser vistas como questões insolúveis ou aquém das determinações mundanas – residindo no campo sobrenatural como castigo divino ou destino – e passam, sumariamente, a serem compreendidas como questões emergenciais que podem ser debatidas e mitigadas. Cuidadosamente, Candido (2011, p. 171) frisa que, mesmo que não haja efetivamente um empenho para que tais problemáticas sejam sanadas, a “injustiça social constrange” e a “insensibilidade em face da miséria deve ser pelo menos disfarçada”. Em um segundo momento, após explanar sobre a importância dos direitos humanos frente ao combate às injustiças, Candido define como literatura “todas as criações de toque poético, 5 A relação entre barbárie e civilização é uma temática recorrente nos estudos filosóficos do século XX, mais precisamente no contexto pós-Segunda Guerra. Entre eles, destaca-se “A dialética do Esclarecimento”, publicado em 1947 pelos filósofos alemães Theodore Adorno e Max Horkheimer. O texto aborda as contradições inscritas no projeto iluminista e sua relação com a razão instrumental, cujo comprometimento com o progresso e cientificismo repousa, em muitos aspectos, sobre o utilitarismo e a barbárie, conforme foi observado no processo de ascensão do Nazismo na Europa. 6 A luta do Movimento Negro Unificado-MNU, desde a década de 1970, foi fundamental para a tipificação do racismo como crime inafiançável e imprescritível sob legitimidade constitucional. Promulgada em 1988, no centenário da Abolição, a participação do movimento negro possibilitou, para além do âmbito penal, formalizar o compromisso do Estado em combater injustiças sociais e propiciar políticas públicas em prol da população negra no âmbito jurídico. A respeito do tema, destaca-se o trabalho de Natália Néris “A voz e a palavra do Movimento Negro na Constituinte de 1988”, publicado em 2018 pela Editora Letramento. 18 ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade” (2011, p. 176). Nessa perspectiva, a literatura é entendida como “manifestação de todos os homens em todos os tempos” e, como tal, é condição imprescindível à formação humana, pois possibilita uma reflexão acerca dos valores preconizados e refutados pela comunidade. Ela confere ao ser social humanidade, ao fornecer a “possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas” inscritos na sociabilidade, nas relações pessoais e coletivas, nas dinâmicas simbólicas das representações religiosas e artísticas e na concretude das determinações econômicas, sociais e políticas. Diante de uma realidade marcada por assimetrias sociais, exclusão de minorias e necessidades materiais tão primárias – como alimentação e moradia –, pensar a literatura como direito imprescindível pode se manifestar ao senso comum como necessidade secundária ou mesmo supérflua a determinados grupos sociais. Desse modo, a literatura não é uma manifestação desinteressada, mas um agir potente, que possibilita enxergar mazelas subjetivas e coletivas e aponta caminhos para a construção de uma identidade nacional autorreferente; ela traz reflexões sobre anseios humanos, alimenta esperanças e, em certos aspectos, denuncia as injustiças e as contradições sociais mais pungentes de um povo. Antônio Candido encerra sua reflexão sobre a importância da literatura destacando que a luta pelos direitos humanos é a luta em defesa de uma sociedade na qual todos tenham acesso à cultura, sem a diferenciação entre a esfera erudita e popular. Certamente, não significa que o autor esteja destituindo a importância da discussão que o tema exige. Pelo contrário, sua defesa é por uma sociedade justa em que o respeito aos direitos humanos perpasse pela fruição da arte e da literatura em suas múltiplas modalidades. No contexto das discussões que envolviam o Brasil de 1988 frente ao processo de Redemocratização, a criminalização e o combate ao racismo – agora sancionados como compromisso no âmbito legal – expressam a conquista de décadas de luta do movimento negro brasileiro, tanto em sua perspectiva cultural, quanto militante e acadêmica. Entre diversas personalidades, Abdias do Nascimento (2020), Lélia González (1984), Neusa Santos Souza (2021) e Sueli Carneiro (2005) denunciaram, em seus escritos e na militância, as mazelas do racismo – manifesto no genocídio da população negra – a invisibilidade no mercado de trabalho, o sexismo e a desigualdade no acesso a direitos básicos. Lima Barreto foi o mais proeminente, entre os autores brasileiros do século XX, a manifestar o ponto de vista dos negros sobre o preconceito racial. Particularmente, abordou a temática sob a perspectiva da mulher – em sua condição racializada e de classe –, mais 19 especificamente no romance Clara dos Anjos, obra que é objeto de estudo desta tese. No romance, o autor esmiúça a complexidade das dinâmicas sócio-históricas ambientadas pelas camadas populares no período da Primeira República. Ao abordar as tensões sociais do país, em especial os imbróglios ocorridos com a inserção compulsória do país na Belle Époque – que culminaram em novas dinâmicas socioespaciais na capital fluminense, principalmente nos subúrbios –, os romancistas do período narram, em suas obras, os conflitos marcados pela ambivalência entre as relações sociais do Brasil senhorial e burguês. Nisso, incluem-se os antagonismos de classe e suas implicações no mundo do trabalho, as relações assimétricas de gênero e as tensões raciais potencializadas pelos discursos científicos racistas (Sevcenko, 1999). A obra, escrita entre 1904 e 1922 – mas publicada postumamente em 1948 –, discorre sobre aspectos sociais com tom de denúncia ao racismo e ao machismo personificados em Clara dos Anjos, personagem-título. Conforme já abordado em muitos trabalhos sobre Lima Barreto (Barbosa, 2002; Bosi, 1982; Leitão, 2006; Holanda, 1978; Resende, 1993; Sevcenko, 1999, Schwarcz, 2017), em Clara dos Anjos, há evidências de elementos autobiográficos – considerando a personagem-título como um alter ego feminino do autor, pois tanto a protagonista como os demais personagens sofrem com a exclusão e o preconceito racial – problemáticas que atravessam a trajetória pessoal de Barreto. Na trama, a jovem mulata é uma moça ingênua a qual, com a parca educação que recebera – o comum para moças de seu status social – e o excesso de zelo de seus pais, que a inibiram de vivenciar experiências sociais para além do subúrbio em que residia, deixou-se seduzir pelos encantos do violeiro Cassi Jones – “um rapaz de pouco menos de 30 anos, branco, sardento, insignificante, de rosto e de corpo” (Barreto, 2012, p. 28). O que poderia ser mais um típico romance – em que o amor supera todos os desafios de classe e preconceito racial –, sob a escrita de Lima Barreto, transforma-se em uma narrativa de denúncia do racismo, do sexismo e das complexas relações sociais vivenciadas pela população dos subúrbios abandonada à sua própria sorte. Nas palavras do autor, “o subúrbio é o refúgio dos infelizes” (Barreto, 2012, p. 83). Em diversos trabalhos que se empenham em analisar o romance, o racismo e o preconceito de classe sofridos pela personagem são o mote. Decerto, as intenções de Lima Barreto em escancarar as condições de vida – quase deterministas – das mulheres do estrato social de Clara são evidentes. Porém, elas não se encerram por aí. Desde a primeira leitura do romance, o que nos chamou a atenção foi a forma como o autor aborda as questões raciais sob uma perspectiva efetivamente relacional. Em outras palavras, em Clara dos Anjos, há a 20 problematização não apenas do racismo, mas também de como a branquitude é vivenciada como uma condição que confere às personagens brancas uma posição de privilégio em um contexto de disputas materiais e simbólicas (Bento, 2014, 2022; Cardoso, 2008, 2010; Piza, Rosemberg, 2014; Schucman, 2012). Diante das condições de vida experimentadas pelas personagens suburbanas do romance, Lima Barreto não apenas problematiza a realidade dos(as) negros(as) e mulatos(as), mas, também, elabora um processo de racialização das personagens brancas, demonstrando as nuances que os discursos racistas em voga, no contexto em que elaborou a obra, por exemplo, a eugenia, inferem tratamentos diferenciados aos indivíduos sob uma perspectiva racializada. A exemplo, vê-se a personagem Dona Margarida Weber Pestana, estrangeira – mais precisamente de ascendência alemã e russa –, descrita como “uma mulher séria, rigorosa de vontade, visceralmente honesta, corajosa, e não haveria rogos nem choro que a fizessem contribuir para um crime de qualquer natureza” (Barreto, 2011, p. 141). Percebe-se que os atributos conferidos à viúva são inerentes à sua origem estrangeira, “positivamente” determinadas pela sua raça. Já o antagonista Cassi Jones e seus familiares – “A mãe, nas suas crises de vaidade, dizia- se descendente de um fantástico Lord Jones, que fora cônsul da Inglaterra, em Santa Catarina; e o filho julgou de bom gosto britanizar a firma com o nome do seu problemático e fidalgo avô” (Barreto, 2011, p. 28) – representam os brasileiros brancos que, conforme destaca Guerreiro Ramos (1981), experimentam aquilo que o autor categoriza como “patologia do branco brasileiro”, fundamentado na rejeição dos elementos culturais e biológicos negros em detrimento de uma reivindicação de ancestralidade europeia. Nessa perspectiva, a relação entre Clara e Cassi, que reverbera entre as demais personagens do romance, é um exemplo de como o elemento racial, em especial a branquitude, manifesta-se como um mecanismo de poder e distinção social que visa estabelecer a manutenção de hierarquias, sobretudo em um espaço de exclusão como era o subúrbio carioca no início do século XX. De acordo com Brah (2006, p. 344), “Cada racismo tem uma história particular. Surgiu no contexto de um conjunto específico de circunstâncias econômicas, políticas e culturais, foi produzido e reproduzido mediante mecanismos específicos e assumiu diferentes formas em diferentes situações”. A literatura de Lima Barreto exprime as contradições de um país inscrito na ambivalência do Brasil que urge pela elaboração de uma cultura nacional e, 21 concomitantemente, vivencia o amargor de uma brasilidade experimentada na mestiçagem, vista pela intelectualidade – influenciada por interpretações racialmente deterministas7 – como a responsável pelo desequilíbrio moral e intelectual da nação (Ortiz, 2006, p. 21). Empregando a técnica dos autores realistas, o narrador coloca o leitor em contato direto com os dramas vivenciados pelos protagonistas e as demais personagens. Para isso, utiliza o recurso descritivo das condições do subúrbio carioca e o contexto de exclusão socioespacial em contraste com aspirações modernizadoras que caracterizavam a capital nacional no início do século XX. A partir de tais elementos, o narrador constrói o perfil psicológico das personagens, alinhavado ao status social marginalizado conferido à população suburbana. Assim, a compreensão das relações raciais como um ingrediente assimétrico e heterogêneo, disposto sob uma perspectiva relacional, marca a complexidade da obra. Observa-se, desse modo, que a periferia, em sua condição de exclusão, também possui seus centros. Nesse contexto, é preciso considerar que poucos são os registros históricos que nos permitem identificar como a população incorporou as narrativas racistas difundidas pelos intelectuais no início do século XX. Deste modo, a obra de Lima Barreto nos permite compreender, sob os limites de sua linguagem ficcional, como as ideias produzidas pela intelligentsia foram incorporadas e até mesmo rejeitadas, suscitando um profícuo debate acerca da relação dialética entre a produção científica e sua recepção social. Ademais, o preconceito racial – agudizado por relações assimétricas de gênero – sofrido pelas personagens negras e mulatas continua a ser questão fundamental à análise do romance. Eu outras palavras, o racismo é compreendido como um fenômeno que não pode ser visto somente como um “problema de negros”. Pelo contrário, sua abordagem deve ser tratada de forma relacional, ao desenvolver estratégias de diferenciação, hierarquias sociais que se escamoteiam no transcorrer da vida cotidiana. A hipótese levantada consiste em afirmar que Lima Barreto, no início do século XX, desenvolveu, em seu romance, uma análise relacional sobre o racismo, em que o processo de subalternização dos sujeitos racializados se manifesta a partir de um referencial de contraposição identitária. Em outras palavras, o autor apresenta originalidade ao inferir a necessidade de racialização da branquitude como identidade racial normativa, que confere posição de status e privilégios simbólicos e materiais em um espaço de disputas sociais marcado 7 No decorrer do capítulo II, serão abordadas, em suas especificidades, as teorias raciais que fomentaram um projeto de branqueamento racial da população como solução para o suposto “atraso social”. 22 pela exclusão, no caso, o subúrbio. Mais precisamente em Clara dos Anjos, o romancista destaca a complexidade das relações raciais no Brasil após a Abolição, destacando o quanto a branquitude pode ser identificada como um componente que atribuiu distinção social entre indivíduos pertencentes à classe trabalhadora, promovendo, dessa forma, novas dinâmicas de exclusão e o redirecionamento de assimetrias sociais. Nessa perspectiva, ao abordar, em sua vasta produção literária – a qual reúne desde romances a crônicas e textos jornalísticos de cunho político –, a complexidade das dinâmicas sociais gestadas no referido contexto histórico, Lima Barreto pode ser caracterizado como um pensador social brasileiro, uma vez que nos possibilita compreender as dinâmicas sociais e as contradições que remontam ao modo de vida e o cotidiano da população que em muito fora preterida dos estudos acadêmicos e da produção literária em voga. Assim, como destaca Gramsci (1997), Lima Barreto pode ser caracterizado como um intelectual orgânico, ao difundir uma literatura potente, comprometida com as demandas sociais de seu tempo, servindo como um porta-voz dos sujeitos oprimidos e relegados aos subúrbios. A invisibilidade da obra de Lima Barreto em muito se atribui à forma como sua escrita era endereçada à denúncia dos interesses da classe dominante, cujo racismo e a exclusão social são condicionantes fundamentais à manutenção de assimetrias sociais na incipiente República. Diante das discussões apresentadas, o objetivo geral da pesquisa consiste em analisar como as relações étnico-raciais são abordadas por Lima Barreto em Clara dos Anjos, destacando a noção de branquitude como um marcador simbólico de distinção social experimentado entre as camadas sociais periféricas descritas no romance no Rio de Janeiro no período da Primeira República. Desse modo, defende-se a assertiva de considerar Lima Barreto como um “pensador social” que contribuiu com a descrição do cotidiano das camadas populares e subalternizadas. Os objetivos específicos constituem-se em: I) Analisar a trajetória literária de Lima Barreto e a relação entre obra e público, isto é, qual é o propósito de sua literatura, seu destino, sua aceitação e a ação recíproca entre elas; II) Identificar a influência do racismo científico na consolidação do branqueamento como solução frente às tensões sociais que emergiram na Primeira República – período de transição entre a ordem social escravagista à ordem social burguesa – e como essas ideias são abordadas no romance; III) Abordar como as discussões engendradas a partir dos estudos decoloniais e dos estudos críticos de branquitude são narrativas 23 epistêmicas fundamentais para os estudos das relações étnico-raciais na contemporaneidade; IV) Avaliar como Lima Barreto interpreta a articulação entre o racismo e o sexismo na obra Clara dos Anjos como mecanismos de manutenção de assimetrias sociais em um contexto de exclusão socioespacial demarcado pela vivência no subúrbio carioca no início do século XX. A justificativa da pesquisa manifesta-se pela prerrogativa de que, sociologicamente, a produção literária de Lima Barreto é fundamental para compreender o fenômeno do racismo a partir da experiência social autorreferente do ser negro(a). Nesse sentido, faz-se necessário dar voz às reflexões e à produção intelectual daqueles que majoritariamente foram objeto de pesquisa no campo das ciências sociais e que podem ser deslocados ao protagonismo do discurso sobre si. Essa inversão desloca Lima Barreto da condição de negro tema (Ramos, 1957) para negro autor – testemunha lúcida das contradições materiais e simbólicas de seu tempo. Considerando que o fazer científico é, antes de tudo, um saber interessado, ou seja, que fala a partir de uma visão de mundo, destacamos que a escolha do romance, cujo enredo trata de uma mulher negra e invisibilizada, é uma escolha consciente de uma pesquisadora que se identifica enquanto mulher negra e, como tal, presenciou e presencia, em sua formação pessoal e profissional, o racismo – mesmo que velado – que, ademais, se faz presente em minha formação subjetiva, ancorando uma multiplicidade de olhares e interpretações que talvez possa fugir àqueles que não se deparam com tais dinâmicas no curso de suas vidas. Outrossim, o processo de escolha de um objeto de pesquisa não se manifesta de forma alheia aos interesses particulares do(a) pesquisador(a). Ainda que o fazer científico exija objetividade no rigor da análise dos fenômenos investigados, não se pode descartar a importância da subjetividade, que se manifesta na relação de identidade entre sujeito e objeto. Em outras palavras, quando nos propomos a estudar os fenômenos que envolvem a vida social, em última instância, estudamos a nós mesmos ou objetos que, em muito, nos dizem respeito socialmente. Dado este fato, o fazer científico das ciências sociais depara-se com um ingrediente demasiadamente desafiador: a necessidade de apresentarmos a construção científica – desde as motivações que envolvem a escolha do objeto até apresentação dos resultados – com destacado cuidado e clareza na descrição das etapas galgadas no decorrer da pesquisa. Destarte, o propósito de analisar a obra de Lima Barreto, à luz das influências históricas e sociais que se manifestam em seu fazer literário, em muito sinaliza o interesse de esmiuçar os aspectos biográficos de sua trajetória pessoal e profissional, destacando o quanto a sua alcunha 24 de autor marginalizado, contraditoriamente, é o elemento que lhe confere originalidade e especificidade entre os autores pré-modernistas, haja vista seu comprometimento em retratar, em suas obras, a realidade periférica e os estigmas do racismo, elementos tão invisibilizados pela literatura e pela produção científica no período em que vivera. Diante dessa prerrogativa, é fundamental apresentar aos(às) leitores(as) deste trabalho os aspectos particulares que envolveram o desenvolvimento da pesquisa, bem como minha identificação com a literatura barretiana. O ingresso ao doutoramento no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais na Faculdade de Letras e Ciências – UNESP/Araraquara-SP –, de imediato, não se deu com a intenção de analisar a obra de Lima Barreto. Inicialmente, o objetivo era dar continuidade ao estudo do Guidismo – instituição de coeducação fundada em 1909 na Inglaterra por Robert Smith Baden-Powell – que se manifesta em sua origem como a vertente feminina do Escotismo. A instituição aporta no Brasil em 1919 e recebe o nome de Movimento Bandeirante, fazendo alusão, sob influência da Pedagogia Nova, ao movimento expansionista das bandeiras no Sudeste brasileiro. O nome escolhido remete à ideia de desbravamento que era bastante associada à prerrogativa da instituição em propiciar “uma participação mais ativa da mulher na sociedade” (FBB, 2008). Iniciei a pesquisa sobre o Movimento Bandeirante ainda na graduação, durante a iniciação científica, realizando uma investigação sob o viés metodológico da história oral, cujo objetivo consistia em compreender a influência da instituição no processo de formação de mulheres que fizeram parte do Movimento desde a infância, perpassando a vida adulta. A pesquisa resultou em uma monografia de conclusão de curso8, em que os resultados apresentados suscitavam novos questionamentos, o mote para dar continuidade ao estudo sobre o tema durante o mestrado9. A escolha do Bandeirantismo não se deu ao acaso. Fiz parte do Movimento initerruptamente, desde a infância até o período em que ingressei na universidade, na Faculdade de Filosofia e Ciência – UNESP/Marília-SP. Nesta fase da vida acadêmica, dediquei-me a estudar, de forma mais profunda, o processo de organização da instituição desde sua origem na Inglaterra, perpassando sua função 8 CARVALHO, Samara dos Santos. A Federação das Bandeirantes no limiar dos anos sessenta: uma proposta de emancipação da mulher? 2013. 84 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências, UNESP, Marília, 2013. 9 CARVALHO, Samara dos Santos. O Movimento Bandeirante e as relações de gênero no contexto social brasileiro do século XX. 2014. 191 f. Dissertação. (Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais). Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília, 2014. 25 no Brasil, bem como as adaptações às características socioculturais brasileiras até a década de 1970, período em que o Bandeirantismo passou por um Processo de Reformulação Institucional (1969-1974). A pesquisa consistiu em um estudo documental sobre a produção de material institucional como estatutos, periódicos de circulação interna e documentos que apontassem as mudanças ocorridas na instituição no decorrer do século XX até o referido processo de reformulação, por exemplo, a adesão de meninos e a manifestação de novos credos, tendo em vista que um dos pontos centrais que caracterizou o Movimento Bandeirante no país foi sua ação educativa restrita às meninas e moças como também sua estreita aproximação com o Catolicismo. Após um período afastada da área acadêmica em decorrência de compromissos profissionais como professora da Educação Básica, o projeto inicial do doutoramento visava realizar um estudo de caso, com o intuito de investigar, mediante trabalho de campo, quais os impactos as mudanças institucionais ocorridas no Movimento Bandeirante desde a década de 1990 – período em que a Federação de Bandeirantes do Brasil se autodetermina como organização não governamental – suscitaram no processo de formação educacional dos jovens pertencentes ao Movimento. Portanto, o objetivo geral consistia em investigar como tais mudanças influenciaram a formação coeducativa dos jovens filiados à instituição. Todavia, o desenrolar da pesquisa foi comprometido pela pandemia. O ingresso no Programa de Pós-Graduação ocorreu no ano de 2020, concomitantemente ao avanço da pandemia de Covid-19. Fato este que resultou na realização todas as disciplinas cursadas, assim como as orientações, em formato remoto a ponto de nunca ter me encontrado presencialmente com o orientador durante todo o curso. Se o ofício da pesquisa é, em grande parte, um processo solitário, diante das especificidades ocasionadas com a pandemia, esse aspecto se agravou ainda mais. Conforme a pandemia avançava e a possibilidade do retorno do isolamento social se tornava mais longínqua, a execução da pesquisa manifestava-se impraticável. Após o cumprimento das disciplinas no formato remoto, estreitava-se a necessidade de me preparar para o trabalho de campo com os jovens bandeirantes. Os meses foram passando, as exigências do trabalho docente na educação básica – também em formato remoto –, somadas ao cenário de enfrentamento da pandemia no país que se tornava, dia após dia, mais alarmante e desesperador, foram gestando um forte esgotamento emocional que me fizeram desistir do curso, culminando na decisão de cancelar a matrícula. 26 O processo de reativação do vínculo discente junto ao Programa de Pós-Graduação se deu por insistência do orientador, Prof. Dr. Carlos Henrique Gileno, que sugeriu a mudança do tema da pesquisa. Neste momento, havia perpassado metade do prazo de realização do curso e me deparei com o desafio de iniciar um novo estudo. Diante da experiência do orientador, especializado na temática de pensamento social e literatura brasileira, com ênfase na obra de Lima Barreto, optei por desenvolver um estudo neste campo epistemológico. Durante o curso da disciplina “Pensamento Político e Social: debates metodológicos”, ministrada pelo referido orientador, produzi um artigo de conclusão sobre o romance Clara dos Anjos e as problematizações acerca das relações raciais e de gênero incutidas na obra. A leitura primária do texto, logo de início, despertou interesse sobre como o autor descrevia, de forma crítica, o cotidiano do subúrbio e as relações interpessoais no decorrer da narrativa, dando destaque às personagens brancas, em especial às mulheres. Diante desse aspecto, o trabalho em questão realizou, de forma primária, uma análise das relações raciais a partir da bibliografia proposta pela disciplina. A partir do contato com as leituras sobre questões raciais e de gênero desenvolvido no decorrer da pesquisa sobre o Movimento Bandeirante, decidi retomar o trabalho de conclusão da referida disciplina e iniciei a embrionária pesquisa acerca da temática da branquitude. Desde os primeiros contatos com o universo da pesquisa científica, ainda na graduação, intriguei-me com a desproporcionalidade em relação à quantidade de pesquisas que visavam analisar os marcadores sociais subalternizados na dinâmica social, tais quais os(as) negros(as), as mulheres, pessoas homoafetivas, os pobres e os(as) trabalhadores(as), se comparado a grupos sociais hegemônicos como os(as) brancos(as), pessoas heteroafetivas, os homens e a elite. Certamente, esse interesse em muito despertou o interesse em investigar o Movimento Bandeirante, uma vez que, enquanto menina negra e filha de operários, destoava-me dos marcadores comumente experimentados pelas meninas que faziam parte da instituição. Assim como Lima Barreto, cuja trajetória pessoal percorre um “não lugar” de escritor negro que experimentou um acesso acadêmico restrito às pessoas do seu estrato social, em certa medida, foi essa condição que despertou meu interesse em sua obra e trajetória de vida. Obviamente que uma comparação direta com a trajetória do autor é, no mínimo, incabível e anacrônica. No entanto, muitos também são os sentimentos de “não lugar” que percorrem a minha trajetória pessoal. A começar pela condição racializada de mulher “parda”, “mestiça” pelo senso comum, fruto de um casamento inter-racial de um pai filho de imigrantes portugueses e uma mãe negra, ainda que de pele clara – aspecto fenotípico muito destacado na 27 obra barretiana –, que nos traz a dimensão do quanto a racialização estampada na cor da pele é um traço fulcral ao debate acerca das relações raciais no Brasil. Neste aspecto, é interessante pensar o quanto a “clareza” da minha pele “amorenada”, os “traços finos” dos lábios e nariz sempre foram aspectos celebrados em minha família, sobretudo frente aos estigmas experimentados pelo preconceito racial. Nesse caso, entre mulheres negras o casamento inter-racial é compreendido como uma conquista, em que o embranquecimento marital exprime a ideia de ascensão social, mesmo que inconscientemente (Bento, 2014; Fanon, 2022; Memmi, 2007). Esse “não lugar” do “mestiço, “pardo”, sempre esteve presente em minha vida de forma incômoda. A minha experiência socializadora no âmbito familiar destacava recorrentemente a miscigenação e a ascendência europeia como um aspecto simbólico carregado de positividade. Como se a ancestralidade europeia me conferisse certo trânsito branqueado; de alguém que, embora tivesse a negritude estampada nos cabelos e cor da pele, ao mesmo tempo, era suavizada pelos supostos “traços finos”. Contudo, desde muito cedo me fora despertada a consciência de que eu não era efetivamente branca, assim como não era efetivamente negra. Afinal, como lidar com esse incômodo e reivindicar uma negritude que sempre me fora escamoteada? Decerto, em nenhum momento, a exposição desses elementos visa homogeneizar ou até mesmo comparar a minha experiência com a de mulheres de pele retinta. Pelo contrário, o objetivo é destacar a complexidade que envolve o processo de autodeterminação racial em um país que passou por distintas manifestações de legitimação do racismo, sobretudo no campo científico, que se inscreve como um dos aspectos centrais de análise dessa tese. A autoafirmação enquanto mulher negra deu-se efetivamente no decorrer da experiência universitária. O convívio com as discussões típicas das ciências sociais, adicionadas à experiência em uma universidade pública, em concomitância às discussões acaloradas pela implementação recentes das ações afirmativas, sobressaltou-me a consciência desse referido “não lugar”. As diversas leituras, rodas de conversas e experiências no espaço acadêmico – hegemonicamente branco – fizeram-me perceber o quanto a suposta “mestiçagem”, o “ser parda”, em muito se constitui como um mecanismo ideológico de invisibilizar a experiência de sujeitos não brancos. Diante de uma realidade social marcada por um racismo velado, assim como destaca Florestan Fernandes (1972, p. 42): “O brasileiro tem preconceito de ter preconceito”, reivindicar uma negritude enquanto se pode experimentar uma “branquitude miscigenada” requer certos desconfortos. 28 Contudo, as minhas experiências pessoais demarcadas por episódios de violência simbólica – de quem teve acesso ao ensino superior público e fez parte de uma instituição de coeducação elitizada – fizeram-me observar que a mesma negritude que me fora contestada inúmeras vezes no decorrer da vida se fazia presente no status estudante universitária, tanto dentro como fora do espaço acadêmico, o que corrobora a noção de a universidade não ser apenas um espaço insólito àqueles que não a vivenciam, podendo exprimir estranhamento, tanto em relação ao conhecimento produzido e partilhado entre seus pares, como também acerca da realidade daqueles que a frequentam. Nessas ocasiões, percebi que algumas falas tinham objetivo de desqualificar a minha presença nesse espaço. Diversas vezes, perguntas como “Você entrou na universidade pública por contas, né?”, “Já que você é negra, não deveria estudar um movimento de mulheres negras ao invés das bandeirantes?”, “Ué, mas se você se apresenta como oriunda da classe trabalhadora, por que estudar uma instituição de elite?”, “O que um estudo sobre as bandeirantes pode trazer de contribuição para a luta feminista, afinal, estamos falando de uma instituição majoritariamente frequentada por meninas brancas de elite?” eram feitas como forma de demonstrar o incômodo em uma pessoa suscitar questionamentos e problematizações acerca da história e trajetória de uma instituição de mulheres cujas identidade sociais eram indubitavelmente normativas. Questionamentos como esses demarcam a ambivalência da identidade racial e de gênero no contexto acadêmico. A experiência no espaço da universidade é também uma experiência elitizada que, somada à experiência profissional enquanto docente de escolas privadas de classe média e elite, fez-me perceber que o racismo e o sexismo podem coexistir de forma velada, sem causar estranhamento ou embates diretos, desde que mulheres negras ocupem espaços naturalizados de subserviência. No entanto, quando se é uma mulher negra no mundo dos brancos(as), a reivindicação do racismo e do sexismo como componentes depreciativos são evocados de forma feroz, como condicionantes que expressam, a partir do olhar do outro – o branco destituído de racialização –, nosso lugar no mundo. Mesmo que se trate de uma experiência de gênero associada à racialidade não retinta, o racismo e o sexismo se manifestam, como se as experiências de “ser negra” fossem homogêneas frente àqueles que são destituídos de racialização. É a partir dessa experiência, enquanto mulher negra, cujo “não lugar” da negritude em muitas situações ora foi negado e dissimulado, ora foi escancarado, é que me aproximei da literatura de Lima Barreto. Diante disso, a análise de Clara dos Anjos sob o viés da branquitude 29 é uma possibilidade de trazer à superfície dos debates acadêmicos uma discussão fulcral à compreensão das relações raciais no Brasil. Com base nos aspectos abordados, apresentarei brevemente as problemáticas que se condensaram aos processos de execução da pesquisa, que serão retomadas de forma mais aprofundada no capítulo I. A descrição dos elementos externos que impactaram a elaboração da tese tem por objetivo demonstrar que a dedicação aos estudos acontece em paralelo à vida. É comum lermos textos em que o(a) pesquisador(a) apresenta os resultados obtidos sem elucidar os problemas que emergem no processo da investigação. Como cientista social, destaco que deveríamos ter mais clareza em apresentarmos as dificuldades em insucessos que permeiam o ofício da pesquisa. Além de humanizar o fazer científico, é também uma forma de aproximarmos a comunidade do universo acadêmico, principalmente das dificuldades que corroboram para que o Brasil seja um terreno hostil àqueles que visam dar seguimento à profissionalização acadêmica. Destarte, esses aspectos dialogam com a alienação do trabalho, dadas muitas situações em que os intelectuais e aspirantes à função não se reconhecem enquanto trabalhadores. Conforme já fora mencionado, o ingresso no curso de doutoramento se deu simultaneamente à pandemia de Covid-19. Certamente, o aspecto que mais prejudicou a elaboração do trabalho foi a “solidão compulsória”. Para o(a) estudante, estar inserido(a) no espaço de convivência acadêmica, seja nas aulas, grupos de estudos e até mesmo nos locais de convivência no campus, como as lanchonetes, refeitórios e bares faz muita falta, pois, ao trocarmos experiências com os colegas de curso sob uma linguagem mais informal – dividindo as agruras da pesquisa –, o processo de amadurecimento das ideias ocorre de forma oportuna. Contudo, todas essas experiências foram minadas pelo isolamento social. Até mesmo a ida a eventos, que servem como momentos de trocas primorosas, ocorreu em formato remoto. Este aspecto foi, sem dúvida, o mais difícil de me adaptar. Se a execução de uma pesquisa com dedicação exclusiva e subsídio de agências de fomento não a inibe de dificuldades, fazê-la sem o amparo das bolsas de aperfeiçoamento e trabalhando é ainda mais fatigante. Os valores destinados ao subsídio da pesquisa são incompatíveis com o custo de vida nas grandes cidades brasileiras e, em tese, as bolsas de fomento são destinadas às despesas de execução do calendário da pesquisa e não como recursos 30 destinados ao sustento do pesquisador que, salvo certas especificidades, não pode acumular vínculo empregatício com as bolsas de fomento. Sendo assim, não é levada em consideração a possibilidade de que o(a) aluno(a), sem exercer um trabalho remunerado, não tenha recursos próprios para lidar com os gastos indispensáveis às tarefas de manutenção da vida. Aspecto este que é corroborado com o fato de que ser bolsista não é reconhecido como vínculo empregatício e tampouco é contabilizado como modalidade de trabalho e contagem de tempo para a previdência social. Em suma, pleitear uma bolsa era incompatível com a minha realidade material. No decorrer da pesquisa, conciliei três vínculos empregatícios como professora, lecionando as disciplinas de Sociologia e Iniciação Científica em escolas da rede privada. Ao ingressar no doutorado, pedi afastamento sem proventos do cargo de docente da Educação Básica na rede Estadual de Ensino e, posteriormente, diante da sobrecarga de trabalho, optei por me exonerar da função. Sob esta realidade, somada a troca do tema da pesquisa – o que resultou em um trabalho executado praticamente em 30 meses –, os períodos de elaboração do texto foram feitos em intervalos semestrais durante as férias e os recessos escolares. Ao final do trabalho, pude perceber o quanto esse espaçamento temporal prejudicou a fluidez do texto. A mudança do tema da pesquisa exigiu contato com um universo de autores de autores da crítica literária que até então era muito superficial. Essa experiência foi fundamental para o amadurecimento da pesquisa e também da minha formação profissional. Nesse contexto, o estudo da literatura como objeto de analítico vislumbrou um profícuo campo de discussões teórico-metodológica que resultou em uma expansão de consciência sobre novas possibilidades de investigação nas ciências sociais. Ao iniciar as leituras, fui apresentada a autores consagrados da crítica literária – como Gyögy Lukács, Lucien Goldmann e Raymond Willians. Tais autores, complexos em suas proposituras analíticas, possibilitaram um novo olhar sobre o fazer literário, mas que pouco dialogavam com os objetivos preliminares do trabalho. Somente após o exame de qualificação, sob sugestão da banca, “me encontrei” e passei a adotar entre os referenciais teórico- metodológicos autores da crítica literária brasileira, como Alfredo Bosi, Antônio Candido e Nicolau Sevcenko. A escolha tardia desses intelectuais em muito pode ser explicada pela influência eurocêntrica da minha formação acadêmica e até mesmo pela insegurança em elaborar um estudo em nível de doutoramento em que não se realizava um diálogo com os cânones da crítica literária. 31 Lidar com essa contradição é um exercício fundamental àqueles que visam compreender Lima Barreto como um pensador social. À medida que a leitura desses autores avançava, uma lacuna se manifestava. Embora o autor estudado seja um representante das letras nacionais, não faz parte do rol dos escritores consagrados (pelo menos em vida) da literatura brasileira. Sobre esse aspecto, emergiu a necessidade de analisar Lima Barreto e sua obra como expoentes da literatura negra, cujo estilo literário tem um apelo popular e evoca uma linguagem mais próxima daquela comunicada pela gente suburbana, o que é incremento à popularidade e ao resgate de sua obra na contemporaneidade. Ainda sobre essa perspectiva, busquei utilizar, no decorrer do texto, outras expressões artísticas como a poesia negra, o grafite, a arte digital e também o uso de notícias de veículos de comunicação digital para demonstrar o quanto a produção literária barretiana ainda dialoga com o povo e suscita reflexões sobre a condição da cultura negra na contemporaneidade. A partir da contextualização apresentada, a análise da obra foi orientada sob duas perspectivas articuladas: na primeira, caracterizamos Lima Barreto como um representante da literatura negra – um segmento que vem ganhando autonomia e especificidade no conjunto das letras nacionais em que o negro é o tema principal, não apenas no plano individual, mas sob uma condição coletiva, que expressa aspectos da dimensão humana, cultural e artística de uma sociedade (Ianni, 1988; Duarte, 2008). Para tanto, “uma literatura cujos valores fundadores repousam sobre a ruptura com contratos de fala e de escritura ditados pelo mundo branco e sobre a busca de novas formas de expressão dentro do contexto literário brasileiro” (Bernd, 1988, p. 22). Na segunda, tratando-se de um trabalho que visa desenvolver uma análise sociológica da literatura barretiana, adotamos a abordagem – também sociológica – empregada por Antônio Candido (2000), a qual consiste em demonstrar, de forma dialética, as particularidades da obra literária em que os elementos caracterizados como externos – os fatores sociais – tornam-se internos, ou seja, desempenham papel fundamental na estrutura narrativa, convertendo-se em expressão estética. Consoante a esta perspectiva, adota-se também como referencial Sevcenko (1999) e sua visão da literatura como missão e Bosi (1982), que caracteriza a obra de Lima Barreto como romance social, em que as condições subjetivas do autor se entrelaçam com a denúncia social presente em sua obra. A partir do exposto, o trabalho possui quatro capítulos. No primeiro, apresentaremos os aspectos biográficos da vida de Lima Barreto em consonância com os acontecimentos históricos 32 que atravessaram sua vida e sua obra – em especial a Abolição da escravatura, seguida da transição da ordem monárquica à republicana e as transformações socioespaciais que redimensionaram a paisagem urbana sob influência da Belle Époque (Barbosa, 2002; Carvalho, 2012; Resende, 1993; Schwarcz, 2017; Sevcenko, 1999). Em seguida, discutiremos os elementos que fundamentam a obra barretiana como pertencente à literatura negra (Bernd, 1988; Duarte, 2008; Ianni, 1988). Por fim, serão tratados os procedimentos metodológicos que orientaram a análise sociológica do romance Clara dos Anjos (Bosi, 1982; Candido, 2000; Sevcenko, 1999). No segundo capítulo, serão apresentados – na primeira seção – aspectos conceituais sobre o Positivismo, o Evolucionismo e o Darwinismo social, destacando o impacto da perspectiva racial no surgimento das ciências sociais. Na seção seguinte, discutiremos como tais ideias repercutiram entre os intelectuais brasileiros Silvio Romero (1851-1914); Euclides da Cunha (1866-1909) e Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906) – empenhados em analisar a formação social do Brasil no contexto caracterizado como pré-sociológico (Ortiz, 2006; Schwarcz, 1993; Seyferth, 1995; Skidmore, 1976). Por fim, a terceira seção visa abordar a aceitação do paradigma eugenista entre os intelectuais brasileiros e como tais ideias são fundamentais na compreensão das contradições que demarcam a emergência da Primeira República e os resquícios da ordem social escravagista. No terceiro capítulo, localizaremos o surgimento de novas perspectivas epistêmicas no decorrer do século XX, em resposta aos paradigmas hegemônicos das ciências sociais, tendo como elemento principal a crítica ao projeto colonialista. Dessa maneira, apresentaremos quais as principais prerrogativas levantadas pelos estudos Pós-Coloniais (Said, 2007; Miglievich- Ribeiro, 2020), em especial no campo literário, sobre as consequências do pensamento eurocêntrico na formação cultural de países que estiveram sob domínio colonial europeu. Para tanto, é fundamental abordarmos a importância pioneira das obras de W. E. B. Du Bois (2021) e Frantz Fanon (2022) para entendermos as particularidades que envolvem a condição do negro frente a esta condição de subalternização engendrada a partir da perspectiva do branco europeu. Após isso, apresentaremos a emergência do pensamento decolonial (Grosfoguel, 2008; Quijano, 2005, 2007; Maldonado-Torres, 2007; Oliveira, 2018) no contexto latino-americano e suas contribuições epistemológicas na valorização de saberes até então ignorados pela perspectiva colonizadora. Atentamos que, diante da atualidade e da amplitude que repousa sobre essas discussões, pretendemos avaliar como tais ideias são essenciais para desvelarmos a branquitude (Bento, 2014, 2022; Cardoso, 2008, 2010; Piza, Rosemberg, 2014; Schucman, 33 2012) – analisada na última seção do capítulo – como categoria social de análise fundamental para a compreensão da obra Barretiana empreendida neste estudo. As discussões realizadas nos capítulos II e III visam demonstrar, a partir da descrição do percurso do pensamento sociológico acerca da temática racial, o pioneirismo de Lima Barreto em abordar tais temáticas em sua literatura. Por fim, o quarto capítulo tem como proposta a análise do romance em consonância às discussões realizadas nos capítulos anteriores. Desse modo, na primeira seção, faremos uma abordagem do romance tendo como pressuposto que a relação entre as personagens e o subúrbio é fundamental para a construção do enredo. Esses elementos são discutidos em diálogo com as personagens que se manifestam como alter ego do autor e algumas críticas tecidas por Lima Barreto, como o esquecimento dos moradores do subúrbio frente às políticas de modernização urbana, o alcoolismo e a crítica à invisibilidade dos artistas marginalizados. No segundo tópico, abordaremos o trânsito das personagens a partir da perspectiva da branquitude e quais relações de poder são manifestadas no romance. Enfim, de forma relacional, analisaremos – a partir da relação de Clara e Cassi – as críticas proferidas pelo autor sobre as hierarquias raciais e de gênero entre as camadas populares no decorrer das primeiras décadas da formação republicana. 34 1 LIMA BARRETO: O PENSADOR IMPRESCINDÍVEL DO SUBÚRBIO CARIOCA10 Há homens que lutam um dia e são bons Há outros que lutam um ano e são melhores Há aqueles que lutam muitos anos e são muito bons Mas há os que lutam por toda vida Esses são os imprescindíveis (Bertold Brecht) Contemporaneamente, a obra de Lima Barreto vem sendo resgatada como literatura fundamental àqueles que pretendem compreender – sob o olhar do escritor negro, pobre e suburbano – quais reminiscências as tensões sociais, que remontam ao processo de transição da ordem escravocrata à republicana, imprimiram à sociedade brasileira na atualidade. Dentre elas, destacam-se o racismo e a exclusão social, que persistem como elementos que conglobam a manutenção das assimetrias sociais na sociedade brasileira. Em 2017, o consenso celebratório sobre a relevância da obra barretiana nos últimos anos se confirmou em homenagem conferida ao autor no renomado Festival Literário de Paraty – Flip, pelas diversas reedições de suas obras mais importantes e, por fim, pela publicação de sua bibliografia mais recente – Triste visionário – fruto de uma intensa pesquisa realizada durante mais de uma década pela antropóloga e professora Lilia Moritz Schwarcz. Mas, afinal, o que caracteriza o resgate de Lima Barreto quase cem anos após sua morte? Para Josias de Paula Jr. (2017, p. 211), o pressuposto é de que a primeira recepção crítica de Lima Barreto, feita ainda durante sua vida e logo após sua morte, é marcada por uma nódoa infame, a saber: Lima Barreto teria sido injustiçado, esmagado entre uma má-vontade na análise de seus textos e um asfixiante silêncio que o teria impelido a patamar inferior ao merecido no gradiente de honrarias e reconhecimento. O que teria motivado tal recepção a Lima Barreto, ainda segundo a nova percepção crítica, seriam elementos não-literários, isto é, sua condição de negro (mestiço), pobre e suburbano. 10 O termo imprescindível foi tomado por empréstimo do título da obra Lima Barreto: o rebelde imprescindível, de Luiz Ricardo Leitão (2006), parte de uma coletânea da Editora Expressão Popular destinada à veiculação de obras que visam dar visibilidade à trajetória de vida de brasileiros e brasileiras que atuaram em diferentes segmentos no campo da política, artes, educação e ciência e que, de forma comum, não tiveram o devido reconhecimento no curso de suas vidas. Sob influência do pensamento de Bertold Brecht, o autor aborda a vida e a obra de Lima Barreto compreendendo-o como um rebelde, cujo percurso pessoal e literário são fundamentais para compreendermos um Brasil que foi negligenciado pela historiografia oficial. Para mais informações da obra consultar: LEITÃO, Luiz Ricardo. Lima Barreto: o rebelde imprescindível. São Paulo: Expressão popular, 2006. 35 Nesse âmbito, o autor afirma que haveria, em torno de Lima Barreto, a necessidade circunscrita de reparação – de aceitação de sua obra pela academia e pela crítica – em relação ao seu status marginal em detrimento de sua literatura. Para o autor, a avaliação da obra barretiana perpassa dois aspectos que são inter-relacionados: Nosso objetivo é questionar esses dois aspectos, a nosso ver inter- relacionados, que conduzem atualmente a avaliação sobre Lima Barreto, ou seja: 1. Sustentaremos que a recepção primeira de Lima Barreto não se caracteriza como tem sido delineada em nossos dias, visto que Lima Barreto não foi de todo ignorado em vida pela crítica, assim como fez escolhas conscientes dos riscos que trariam para si em seu objetivo de alcançar glória e distinção, e por fim, contudo extremamente relevante, algumas críticas negativas de que foi objeto foram acertadas, ou ao menos, coerentes; 2. Argumentaremos que a atual avaliação do autor em questão é um mero trocar de sinais, um valorizar sem questionamento daquilo que teria ocasionado o flagelo da injustiça: a sua condição racial e econômica está a franqueá-lo, agora, um exaltado aplauso condescendente; em resumo, seus condicionantes sociais étnicos e de classe, que outrora o teriam feito padecer uma iníqua apreciação, são então transformados em a prioris inquestionáveis de seu talento. Em suma, pensamos que é chegado o momento de uma posição de equilíbrio na crítica a Lima Barreto (Paula Jr., 2017, p. 212). Não se trata apenas de um olhar condescendente, fruto de simples modismo, como muitas vezes são categorizados os estudos que visam dar voz aos subalternos (Spivak, 2010). A emergência de novos paradigmas sinaliza, tanto no campo da linguagem como das ciências humanas, a necessidade de resgatar narrativas e saberes que foram silenciados e combatidos diante de sua possibilidade de desestabilização do status quo. Tais paradigmas alinham-se à mobilização dos movimentos sociais (Fraser, 2006)11, em especial do movimento negro, que, em um cenário contemporâneo de exacerbada desigualdade material, questionam saberes até então hegemônicos e possibilitam o surgimento de novos campos de investigação. Nas palavras de Prado (1980, p. 104), “no caso de Lima Barreto, a própria História se encarregou de recuperá- lo, mostrando ao leitor de hoje a extrema coerência de um escritor marginalizado que soube registrar a opressão que o esmagava”. Nesse sentido, este trabalho não tem a pretensão de realizar uma crítica literária sobre a obra barretiana em sua totalidade. Haja vista as limitações concernentes às ciências sociais, a 11 A filósofa Nancy Fraser chama a atenção para a expressiva desigualdade que se manifesta, em especial nos chamados países emergentes. Em face da globalização, os países que compõem os chamados BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) chamam a atenção para as contradições que se manifestam entre os avanços econômicos e a manutenção de exclusão social oriundas de processos históricos discriminatórios e/ou da economia colonial. 36 escolha em analisar a obra de Lima Barreto, no campo da sociologia da literatura, dá-se em concebê-lo com um interlocutor de um Brasil, mais precisamente do subúrbio da capital republicana na transição do século XIX ao XX, que, em muitos aspectos, fora negligenciado nos registros oficiais, bem como nas teses que fundamentaram as ciências sociais no país. Em outras palavras, este estudo empenha-se em caracterizá-lo como um pensador social. Certamente, a obra de Lima Barreto, assim como de outros autores e autoras marginalizados, não está isenta de críticas. Pelo contrário, trata-se de entender, conforme aponta Grada Kilomba, no prefácio da última edição de Peles negras, máscaras brancas, de Frantz Fanon (2022, p. 7): “este princípio [da ausência], no qual algo que existe é tornado ausente, é uma das bases fundamentais do racismo”. Logo, abordar a obra de Lima Barreto de forma complacente é desconsiderar o registro minucioso da realidade periférica do insipiente processo de urbanização carioca que foge aos registros históricos oficiais e desconsiderar o impacto que sua “linguagem simples” comunicou ao povo (Prado, 1980). Como forma de responder a essas indagações e localizar os procedimentos teórico- metodológicos que direcionaram a análise do romance Clara dos Anjos, neste capítulo apresentaremos os seguintes tópicos: primeiramente, convidamos o leitor à breve contextualização histórica do período vivenciado pelo autor, que foi fundamental para o desenvolvimento de sua literatura – paralelamente à apresentação dos principais aspectos biográficos da vida de Lima Barreto – e como tais acontecimentos incidem em sua literatura de caráter confessional. Na seção seguinte, abordamos o procedimento empregado por Otávio Ianni (1998), Zilá Bernd (1988) e Eduardo de Assis Duarte (2009) para categorizar a literatura negra, justificando, por consequência, a importância de compreendermos a obra do autor como pertencente a esse conjunto das letras nacionais. Discutimos as contribuições metodológicas de Antônio Candido (2012), Alfredo Bosi (1982) e Nicolau Sevcenko (1999) como autores profícuos à realização de uma obra literária sob a perspectiva das ciências sociais. Por fim, serão apresentados os procedimentos metodológicos utilizados na análise do romance. 37 1.1 A réplica cidadã: a vida de Lima Barreto e as transformações socioespaciais do Rio de Janeiro na ordem republicana 15 de novembro Escrevo esta no dia seguinte ao do aniversário da proclamação da República. Não fui à cidade e deixei-me ficar pelos arredores da casa em que moro, num subúrbio distante. Não ouvi nem sequer as salvas da pragmática; e, hoje, nem sequer li a notícia das festas comemorativas que se realizam. Entretanto, li com tristeza a morte da princesa Isabel. Embora eu não a julgue com o entusiasmo de panegírino dos jornais, não posso deixar de confessar que simpatizo com essa eminente senhora. Veio, entretanto, vontade de lembrar-me o estado atual do Brasil, depois de trinta e dois anos de República. [...] Em seguida, lembrei-me de que o eminente senhor prefeito quer cinco mil contos para reconstrução da avenida Beira-Mar, recentemente esborrachada pelo mar. Vi em tudo isso a República; e não sei por quê, mas vi. Não será, pensei de mim para mim, que a República é regime da fachada, da ostentação, do falso brilho e luxo de parvenu, tendo como repoussoir a miséria geral? Não posso provar e não seria capaz de fazê-lo. Saí pelas ruas do meu subúrbio longínquo a ler as folhas diárias. Li-as, conforme o gosto antigo e roceiro, numa “venda” de que minha família é freguesa. Quase todas elas estavam cheias de artigos e tópicos, tratando das candidaturas presidenciais. Agora o capítulo descomposturas, o mais importante era o de falsidade. Não se discutia uma questão econômica ou política; mas um título do Código Penal. Pois é possível que, para a escolha do chefe de uma nação, o mais importante objeto de discussão seja esse? Voltei melancolicamente para almoçar, em casa, pensando, cá com os meus botões, como deveria qualificar perfeitamente a República. Entretanto – eu o sei bem – o 15 de novembro é uma data gloriosa, nos fastos da nossa história, marcando um grande passo na evolução política do país. Marginália, 26-11-1921 38 O ano de 1881 é marcado por dois grandes acontecimentos na literatura: o escritor carioca Machado de Assis (1839-1908) publica sua obra-prima, Memórias Póstumas de Brás Cubas, e o romancista maranhense Aluísio Azevedo (1857-1913) publica O mulato. Tais obras demarcam uma nova era na literatura brasileira – o Realismo-Naturalismo, movimento comprometido em desenvolver uma literatura crítica, em diálogo entre a ciência e a realidade – contrapondo-se, em vista disto, ao Romantismo, cujo cerne residia no exercício da individualidade do autor e na exacerbação de manifestações subjetivas como a liberdade e as emoções (Prado, 1980, p. 3). Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu em 13 de maio, sete anos antes da Abolição. Coincidentemente ou não, a data de nascimento do autor, anos mais tarde, torna-se um marco na história brasileira. O Brasil foi o último país do Ocidente a dar fim ao processo escravagista12 da força de trabalho negra. Sobre tal coincidência, Schwarcz (2017, p. 19-20), em biografia mais recente sobre a vida do autor, afirma que: a ideia de liberdade significava um divisor de águas não só para a história do país como para o projeto literário que Lima pretendeu realizar. Segundo ele, o fim do cativeiro e a conquista da liberdade eram troféus difíceis de guardar, sobretudo numa nação que admitiu escravos em todo o seu território durante quatro longos séculos. A data de nascimento no caso dele era, portanto, mero acaso; mas quem sabe premonição. Ao completar 7 anos em 13 de maio de 1888, o pequeno Afonso foi levado por seu pai, o tipógrafo João Henriques, para acompanhar de perto os festejos em celebração da Abolição na capital do país (Barbosa, 2002, p. 6). Anos mais tarde, o autor escreve a crônica maio13, publicada no livro Feiras e mafuás, em 1911, que reúne alguns dos seus principais textos: Agora mesmo estou a lembrar-me que, em 1888, dias antes da data áurea, meu pai chegou em casa e disse-me: a lei da abolição vai passar no dia dos teus anos. E de fato passou; e nós fomos esperar a assinatura no largo do Paço. Na minha lembrança desses acontecimentos, o edifício do antigo paço, hoje 12 Segundo Alencastro (2018), o tráfico transatlântico de escravizados para o Brasil foi maior ocorrido durante o período moderno. Sua pesquisa aponta que, entre o século XVI até 1850 – período correspondente aos processos de colonização e império no país –, estima-se que houve cerca de 14. 910 viagens, o que resultou em um número aproximado de 4,8 milhões de pessoas. O autor ainda destaca que “uma particularidade marcante nas redes sul- atlânticas é seu percurso bilateral: 95% das viagens que desembarcaram africanos nos portos brasileiros foram iniciadas nestes mesmos portos, sobretudo no Rio de Janeiro, na Bahia e em Recife (nesta ordem). Em razão de correntes e ventos favoráveis no Atlântico Sul, a viagem de ida e volta Brasil-África era, em média, 40% mais curta do que as viagens similares dos portos antilhanos e norte-americanos até a África”. Para mais informações consultar: ALENCASTRO, Luiz Felipe. África, números do tráfico atlântico. In Lilia M. Schwarcz e Flávio Gomes, Dicionário da Escravidão e Liberdade, Companhia das Letras, São Paulo, 2018, pp. 57-63. 13 As crônicas utilizadas no texto foram extraídas de uma publicação realizada pelo Jornal Folha de São Paulo que reuniu os principais textos publicados pelo autor. FOLHA DE SÃO PAULO. Lima Barreto: crônicas escolhidas. São Paulo: Ática, 1995. 39 repartição dos Telégrafos, fica muito alto, um sky-scraper; e lá de uma das janelas eu vejo um homem que acena para o povo. Não me recordo se ele falou e não sou capaz de afirmar se era mesmo o grande Patrocínio. Havia uma imensa multidão ansiosa, com o olhar preso às janelas do velho casarão. Afinal, a lei foi assinada e, num segundo, todos aquelas milhares de pessoas o souberam. A princesa veio à janela. Foi uma ovação: palmas, acenos com lenços, vivas...Fazia sol e o dia estava claro. Jamais na minha vida vi tanta alegria. Em geral, era total; e os dias que se seguiram, dias de folganças e satisfação, deram-me uma visão da vida inteiramente festa e harmonia (Barreto, 1995, p. 128). Ainda sobre a alegria e o sentimento de esperança que tomaram a população, o autor transcorre sobre o quanto a data foi significativa ao povo e como mantivera um espírito de esperança que vislumbrava o futuro do país: Eu tinha então sete anos e o cativeiro não me impressionava. Não lhe imaginava o horror; não conhecia a sua injustiça. Eu me recordo, nunca conheci uma pessoa escrava. Criado no Rio de Janeiro, na cidade, onde já os escravos rareavam, faltava-me o conhecimento direto da vexatória instituição, para lhe sentir bem os aspectos hediondos. Era bom saber se alegria que trouxe à cidade a lei da abolição foi geral pelo país. Havia de ser, porque já tinha entrado na consciência de todos a injustiça originária da escravidão. Quando fui para o colégio, um colégio público, à rua do Resende, a alegria entre a criançada era grande. Nós não sabíamos o alcance da lei, mas alegria ambiente nos tinha tomado. A professora, Dona Teresa Pimentel do Amaral, uma senhora muito inteligente, a quem muito devo o meu espírito, creio que nos explicou o significado da coisa; mas com aquele feitio mental de criança, só uma coisa me ficou: livre! livre! Julgávamos que podíamos fazer tudo o que quiséssemos; que dali em diante não havia mais limitações aos propósitos da nossa fantasia (Barreto, 1995, p. 128). Entretanto, a sensação de liberdade, acompanhada de esperança em um futuro mais inclusivo para a população negra liberta, não se consumou como idealizara o pequeno Afonso. A metáfora que caracteriza o dia seguinte à abolição como o dia mais longo da história do Brasil é comumente abordada por integrantes do movimento negro. Em entrevista, o professor e ativista Hélio Santos desabafa: “o dia 14 de maio de 1888 é o dia mais longo da nossa história, porque nos atinge hoje nas ruas, nas esquinas, nas cadeias e nas 6,5 mil favelas que se tem no Brasil”.14 14 Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2022/05/13/helio-santos-o-dia-14-de-maio-de-1888-e-o-dia- mais-longo-da-nossa-historia. Acesso em: nov. 2023. Ainda sobre a mesma perspectiva, consultar texto publicado no portal Geledés acerca da condição da mulher negra após abolição, por Deise Benedito: https://www.geledes.org.br/as-mulheres-negras-no-dia-14-de-maio-de-1888-por-deise-benedito/. Acesso em: nov. 2023. https://www.brasildefato.com.br/2022/05/13/helio-santos-o-dia-14-de-maio-de-1888-e-o-dia-mais-longo-da-nossa-historia https://www.brasildefato.com.br/2022/05/13/helio-santos-o-dia-14-de-maio-de-1888-e-o-dia-mais-longo-da-nossa-historia https://www.geledes.org.br/as-mulheres-negras-no-dia-14-de-maio-de-1888-por-deise-benedito/ 40 Desde cedo, Lima Barreto foi apresentado ao mundo das letras por seus pais, uma condição deveras particular se comparada às pessoas de seu estrato social. Seu pai, João Henriques, “era mulato, quase preto” (Barbosa, 2002, p. 17). Filho de uma mulher escravizada, Carlota Maria dos Anjos, e de um homem português, não teve sua paternidade reconhecida15 como era comum no período em que vivera16. Desde cedo, mostrou-se ambicioso e com facilidade para os estudos. Frequentou o Instituto Comercial da Corte, aprendeu francês e adquiriu substancial preparo para os exames preparatórios para admissão à Faculdade de Medicina. A formação acadêmica era vista por João Henriques como uma oportunidade de ascensão e aceitação social, tão excludentes às pessoas de sua origem racial e de classe. Sob a perspectiva educacional, Schwarcz (2017, p. 25) destaca: A formação educacional era de fato uma maneira eficaz de distinção. De acordo com o Censo de 1872, a taxa de analfabetismo no país era de 82,3% para as pessoas de cinco anos ou mais, situação que se mantém bastante inalterada até o segundo Censo, realizado em 1890 (82, 6%), já no início da República. Como explica Sérgio Buarque de Holanda, ainda que D. Pedro II julgasse que “a educação, especialmente a instrução primária, sempre parecera, efetivamente a necessidade fundamental do povo”, o panorama da área pouco mudou durante o seu reinado. João Henriques conheceu Amália Augusta, que viria a ser sua futura esposa e mãe de Lima Barreto, quando ela era ainda uma menina na casa dos Pereira de Carvalho. Segundo Francisco de Assis Barbosa (2002, p. 39), “impossível determinar com exatidão como, quando e por que João Henriques conheceu os Pereira de Carvalho17”. Em Clara dos Anjos, o autor faz referência à “origem da família ilustre, outrora abastada, descendente de um dos alferes de 15 A temática do abandono parental por um homem branco que não reconhecera a paternidade de seu pai é um dos traços confessionais atribuídos ao romance Clara do Anjos. Atribuindo o mesmo sobrenome de sua avó paterna, o autor aborda a temática no romance, conforme será discutido no decorrer do trabalho. 16 O abandono parental é uma das principais problemáticas que assolam as famílias brasileiras. Segundo os dados divulgados pela Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil) em seu Portal de Transparência, nos quatro primeiros meses do ano de 2022, foram registradas 56.931 crianças apenas em nome materno, correspondendo a 6,6% do total de nascimentos registrados no período. Dados disponíveis em https://basedosdados.org/organization/associacao-nacional-de-registradores-de-pessoas-naturais-arpen. Acesso em: nov. 2022. 17 Manuel Feliciano Pereira de Carvalho (1806-1867) foi um renomado médico, professor e presidente da Faculdade Imperial de Medicina. De acordo com Francisco Assis Barbosa, em nota referente à infância e origem familiar de Lima Barreto, afirma-se que o médico era de ascendência lusitana e apresentava traços visivelmente negros em sua fisionomia. O autor comenta a proximidade em aparência entre o médico e Lima Barreto, o que possibilita supor possível parentesco entre ambos. Tais afirmações foram extraídas do artigo publicado por Gilberto Freyre Português, branquidade e documento. O cruzeiro, Rio de Janeiro, 4-11-1950. https://basedosdados.org/organization/associacao-nacional-de-registradores-de-pessoas-naturais-arpen 41 milícia, senhor de terras no estado do Rio, lá para as bandas de São Gonçalo” (Barbosa, 2002, p. 39). A passagem em questão faz referência à dona Engrácia – mãe da protagonista e personagem-título do romance Clara dos Anjos – ao abordar as dificuldades da mãe da moça em administrar as tarefas domésticas que, embora as fizesse com muito zelo e honestidade, era incapaz de agir com eficiência frente a qualquer empecilho ou imprevisto, tendo em vista seu caráter passivo: Qualquer acontecimento inesperado que lhe surgisse no lar, punha-a tonta e desvairada. Quando ainda tinham a velha preta Babá, que a criara na casa dos seus protetores e antigos senhores de sua avó, talvez um deles, pai dela, ficou Engrácia quase doida, ao ser a velha Babá acometida de um ataque súbito. Não sabia o que fazer. Foi preciso que Dona Margarida interviesse, mandasse chamar o médico, fizesse aviar a receita, tomasse, enfim, as providências que o caso exigia. A velha morreu daí a pouco, de embolia cerebral. Muito Engrácia sofreu com essa morte, pois, não tendo conhecido sua mãe, que lhe morrera aos sete anos, fora Babá que a criara. Os seus protetores tinham sido abastados; eram descendentes de um alferes de milícias, que tinha terras, para as bandas de São Gonçalo, em Cubandê. Pouco depois da Maioridade, com a morte do chefe da casa, filhos e filhas se transportaram para a Corte, procurando aqueles empregaram-se nas repartições do governo. Um dos irmãos já habitava a capital do Império e era cirurgião do Exército, tendo chegado a cirurgião-mor, gozando de grande fama. Para a cidade não trouxeram nenhum escravo. Venderam a maioria e os de estimação libertaram. Com eles, só vieram os libertos que eram como da família. Pelo tempo do nascimento de Engrácia, havia poucos deles e delas em casa. Só a Babá, sua mãe e um preto ainda estavam sob o teto patriarcal dos Teles de Carvalho. Engrácia foi criada com mimo de filha, como os outros rapazes e raparigas, filhos de antigos escravos, nascidos em casa dos Teles. Por isso, corria, de boca em boca, serem filhos dos varões da casa. O cochicho não era destituído de fundamento, naquela família, composta de irmãs e irmãos, ainda abastada, que se comprazia, tanto uns como as outras, em tratar filialmente aquela espécie de ingênuos, que viam a luz do dia, pela primeira vez, em sua casa. As senhoras, então, eram de uma meiguice de verdadeiras mães. Engrácia recebeu boa instrução, para a sua condição e sexo; mas, logo que se casou – como em geral acontece com as nossas moças -, tratou de esquecer o que tinha estudado. O seu consórcio com Joaquim, ela o efetuara na idade de dezoito anos (Barreto, 2011, p. 60-61). Assim como é evidenciado no trecho acima, no decorrer do romance, há diversas menções autobiográficas ramificadas na trajetória de diversas personagens. Entre os escravizados libertos citados no excerto, encontra-se Geraldina Leocádia da Conceição, sua avó materna que tivera os filhos criados como se fossem netos do médico Manuel Pereira de Carvalho. Diante do tratamento afável com que tratara os filhos da agregada, aumentavam os rumores que as 42 crianças eram, na verdade, seus netos. Embora tivessem recebido boa educação, nunca obtiveram, efetivamente, o reconhecimento do vínculo familiar (Barbosa, 2002, p. 41). Amália estava prestes a completar 6 anos quando o médico, e suposto bisavô, faleceu. Em decorrência desse fato, sua mãe Leocádia e seus irmãos foram entregues aos cuidados dos irmãos mais velhos do capitão-mor Manuel Pereira de Carvalho. É interessante destacar que, sob a condição de bastardos e apadrinhados, ainda assim, os filhos de Leocádia foram devidamente instruídos e adotaram o sobrenome Pereira de Carvalho18. Entretanto, destaca-se que a relação entre os filhos de Leocádia e os Pereira de Carvalho exprime o amargor das contradições que permeavam os negros alforriados e seus descendentes. Ainda que a relação de Amália fosse destoante das demais meninas de sua condição de classe e raça, não se pode perder de vista que nesta relação se mantinha a perpetuação das relações senhoriais entre brancos e negros anteriores à Abolição, conforme destaca o excerto a seguir: A imagem mais forte – na vida e na literatura de Lima – é a sua mãe, que tomou parte dessa engenharia de patronagens que enredou as elites brasileiras e seus serviçais, e que condicionaria o modelo oficial de abolição. Libertação era entendida pelos proprietários de escravos e pelo Estado como uma espécie de presente; desses que se “recebem” e que “impõem” a obrigação de demonstrar gratidão e retribuir. Foi assim com Geraldina – uma escravizada doméstica que ganhou a liberdade, mas ficou atada aos Pereira de Carvalho por laços de fidelidade -, e parecia ser também exemplo de Amália, que fazia parte da família, mas de algum modo alcançou posição social distinta: formou- se professora e chegou à diretora de escola. Casos como o de Amália mostram a importância da educação para o acesso à liberdade não só jurídica como social. Amália sabia ler e escrever com perfeição, e por isso diferenciava-se das gerações de sua mãe e avós, mas também nos recém-libertos com quem devia conviver (Schwarcz, 2017, p. 42). João Henriques e Amália Augusta casaram-se em dezembro de 1878, na cidade do Rio de Janeiro. Neste período, João Henriques nunca tinha se imaginado tão feliz. Amália inaugurara um pequeno colégio para moças - o Santa Rosa - na residência da família. Amparado pelo apoio da esposa, João Henriques continuava a se preparar para os exames admissionais em vista de ingressar na Faculdade de Medicina. O progenitor de Lima Barreto via a possibilidade de conquistar a tão desejada ascensão social pela educação, já que não a tivera por nascimento ou fortuna. Somado aos estudos, dedicava-se ao emprego público na Imprensa Nacional, sob a função de operário de primeira classe, e ao trabalho no jornal na função de tipógrafo (Barbosa, 2002, p. 48). 18 A mãe de Lima Barreto, enquanto solteira, chamava-se Amália Augusta Pereira de Carvalho (Barbosa, 2002, p. 42). 43 Todavia, a felicidade do casal não duraria muito tempo. A saúde de Amália Augusta ficou seriamente debilitada após o parto do seu primeiro filho19. Mesmo convalescida, teve, ao todo, quatro filhos: Nicomedes, Afonso, Evangelina e o caçula, Eliéser. Conforme os anos se passavam, a saúde de Amália Augusta piorava e, com isso, o ingresso de João Henriques na Faculdade de Medicina já não era mais uma possibilidade. Trabalhando noite e dia, João Henriques precisava dedicar-se com mais empenho ao sustento da esposa doente e de seus filhos. Com o intuito de cortar gastos e possibilitar maior qualidade de vida, a família muda-se do bairro das Laranjeiras para a região montanhosa de Paula Matos. De nada adiantaria o novo sacrifício. A pobre Amália morreu poucos meses depois (dezembro de 1887), vítima de uma tuberculose galopante. Aos 35 anos de idade, o tipógrafo João Henriques de Lima Barreto estava viúvo, com quatro filhos pequenos. O maiorzinho, Afonso, não havia completado 7 anos. E o menor, Eliézer, nem fizera 2. A morte de Amália há de descer como uma sombra no coração do filho mais velho. Sombra que nunca mais se dissipará (Barbosa, 2002, p. 50). A morte da mãe causou danos irreparáveis às emoções do pequeno Afonso. A ausência do carinho materno transformou-o de criança alegre e brincalhona a uma figura “taciturna, reservada e tímida” (Barbosa, 2002, p. 61). Em passagem no Diário íntimo – texto elaborado no período em que esteve recluso no hospício – o autor confessa que, logo após a morte de sua mãe, aos 7 anos, foi acusado de furto e teve vontade de se matar. Provavelmente, este episódio foi a primeira experiência de violência e injustiça que ele passou em sua vida. Neste percurso, sem a presença de Amália, sentia-se “abandonado e sem defesa” (Barbosa, 2002, p. 61). Ainda sobre a perda da mãe, o autor narra um dos episódios mais dolorosos de sua vida: Só me lembro dela no caixão quando meu pai, chorando, me carregou para aspergir água benta sobre o seu cadáver. Durante toda a minha vida, fez-me muita falta. Talvez fosse menos rebelde, menos sombrio e desconfiado, mais contente com a vida, se ela vivesse. Deixando-me ainda na primeira infância, bem cedo firmou-se o meu caráter; mas, em contrapeso, bem cedo me vieram o desgosto de viver, o retraimento, por desconfiar de todos, a capacidade de ruminar mágoas sem comunicá-las a ninguém – o que é um alívio sempre; enfim, muito antes do que era natural, chegaram-me o tédio, o cansaço da vida e uma certa misantropia (Barreto, 1997). Amália morreu em dezembro de 1887, antes da Abolição e do advento da República. Se ambos os eventos, mesmo sem a iniciativa popular, traziam esperanças de uma sociedade mais justa à família Barreto, na prática, não significaram transformações tão significativas conforme 19 O primeiro filho do casal, Nicomedes, nasceu em setembro de 1879 e morreu apenas oito dias após o nascimento. 44 o esperado. José Murilo de Carvalho (2012, p. 29) destaca que a euforia inicial ocasionada pela abolição não gerou o mesmo contentamento sobre o advento do n