VANESSA PIRONATO MILANI SAMBA EM FASCÍCULOS – VERTENTES DO GÊNERO NA COLEÇÃO HISTÓRIA DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA EM TEMPOS DE CONSOLIDAÇÃO DA INDÚSTRIA CULTURAL BRASILEIRA ASSIS 2015 VANESSA PIRONATO MILANI SAMBA EM FASCÍCULOS – VERTENTES DO GÊNERO NA COLEÇÃO HISTÓRIA DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA EM TEMPOS DE CONSOLIDAÇÃO DA INDÚSTRIA CULTURAL BRASILEIRA Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Mestre em História. (Área de Conhecimento: História e Sociedade) Orientador: Dr. Áureo Busetto ASSIS 2015 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – Unesp M637s Milani, Vanessa Pironato Samba em fascículos – vertentes do gênero na coleção His- tória da Música Popular Brasileira em tempos de consolida- ção da indústria cultural brasileira / Vanessa Pironato Milani. Assis, 2015. 240 f. : il. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista. Orientador: Dr. Áureo Busetto 1. Samba. 2. Abril cultural. 3. Indústria cultural. I. Título. CDD 301.16 780.981 À minha mãe e à minha avó, pelo apoio incondicional em todos os momentos, e ao meu avô (in memoriam), que durante esta trajetória sei que esteve sempre olhando e torcendo por mim. AGRADECIMENTOS Primeiramente, agradeço à minha mãe, Angela, pelo apoio e compreensão em todos esses anos longe de casa. Foram momentos de convívio familiar usurpados pelas obrigações para com a pesquisa, mas mesmo assim pude contar com seu amor, carinho e compreensão. E a todos meus familiares: avó, avô (in memoriam), irmãos, sobrinha, cunhada. Ao meu orientador, Áureo Busetto, pelas infinitas horas de orientação, pautadas por ensinamentos tanto acadêmicos quanto de vida, em sua forma sempre profissional, rígida e exigente, mas também fraternal de lidar com seus orientandos. Agradeço por ter me aceitado como sua orientanda e por ter encorajado a ideia deste Mestrado, que se iniciou com divagações musicais, concretizando-se no projeto de iniciação científica e resultando neste trabalho que ora se apresenta. Foram anos de convívio, amizade e aprendizado que levarei para toda a vida, no coração e em minha trajetória acadêmica. Aos professores integrantes da banca examinadora, José Adriano Fenerick e Wilton Carlos Lima da Silva, registro minha enorme gratidão por aceitarem participar de meu exame de qualificação e da banca de defesa de Mestrado, bem como pelas leituras atentas, contribuindo com valiosas considerações, apontamentos e sugestões para pensar os caminhos trilhados ao longo desta dissertação. E também aos professores que fizeram parte do curso de Graduação, contribuindo com minha formação intelectual e acadêmica, e que, portanto, estiveram de algum modo presentes neste trabalho. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que financiou esta pesquisa e possibilitou sua realização. Aos meus amigos de todas as horas, muitos dos quais o tempo afastou geográfica e fisicamente, mas não emocionalmente, pois estiveram sempre comigo. E a todos aqueles com quem tive o prazer de conviver durante esses anos de UNESP/Assis. A todos os funcionários da biblioteca e do Centro de Documentação e Apoio a Pesquisa (CEDAP) de Assis, sempre atenciosos e solícitos com as dúvidas e pedidos, contribuindo de forma generosa para a realização desta dissertação. MILANI, Vanessa P. Samba em fascículos – vertentes do gênero na coleção História da Música Popular Brasileira em tempos de consolidação da indústria cultural brasileira. 2015. 250 f. Dissertação (Mestrado em História). – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2015. RESUMO O presente trabalho tem como objetivo central conhecer e compreender, à luz do processo de consolidação da indústria cultural brasileira, o amplo espaço dedicado ao samba em duas versões – a primeira (1970/72) e a terceira (1982/84) – da coleção História da Música Popular Brasileira, produzida e lançada pela Abril Cultural, bem como os expedientes e o tratamento que ela dispensou às múltiplas vertentes e compositores que o gênero abarcara ao longo da sua história. Nessa direção, vale ressaltar que esta pesquisa de mestrado não pretende realizar uma análise musicológica das diferentes vertentes do samba, mas, antes, proceder a uma análise histórica das representações que a Coleção dispensou a elementos, durante o trabalho de difusão da história e sonoridades do gênero. Para tanto, serão consideradas as implicações das alterações experimentadas pela indústria cultural brasileira, notadamente no que concerne à interseção entre a indústria editorial e fonográfica, às inflexões do debate sobre o nacional/popular e às relações então vigentes entre o samba e a indústria fonográfica. Assim, o intento central consiste em trazer a lume dados e análises a respeito do papel da Abril Cultural no mercado de coleções, estabelecendo relações com o lançamento da Coleção, bem como com o período em que esteve no mercado; destacar a contribuição dos diferentes profissionais da mídia envolvidos na produção deste bem cultural; pontuar e ressaltar a consolidação da indústria cultural brasileira e sua relação com o conteúdo dos fascículos; e, finalmente, abordar historicamente a trajetória do samba na Coleção, tendo em vista os aspectos editorias e fonográficos empregados nos fascículos deste lançamento da Abril Cultural. PALAVRAS-CHAVE: Samba. Coleção. Fascículos. Abril Cultural. Indústria fonográfica e editorial. MILANI, Vanessa P. Samba in fascicles - the genre strands in the collection “História da Música Popular Brasileira” (History of Brazilian Popular Music) in times of cultural industry consolidation. 2015. 250 f. Dissertation (History Master´s degree). – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2015. ABSTRACT This present dissertation has as a central objective to get to know and understand, in the light of the Brazilian cultural industry consolidation process, the ample space dedicated to samba in two versions - the first (1970/72) and the third (1982/84) - of the collection “História da Música Popular Brasileira” (History of Brazilian Popular Music), produced and released by Abril Cultural, as well as the records and treatment given to the multiple strands and composers the musical genre included throughout its history. In this sense, it is worth mentioning that this master research does not intend to do a musicological analysis of the different aspects of samba, but rather a historical analysis of representations that the Collection presented in the diffusion of this musical genre history and sonorities in relation to changes in the Brazilian cultural industry, notably with regard to the intersection between the phonographic and editorial industries, the inflections of the debate on the national /popular and the existing relations between samba and the phonographic industry at that moment. Thus, the central purpose of the work is to bring to light and analyze the role of Abril Cultural in the music collection market, establishing relations with the Collection launch, as well as with the period of time it was in the market; highlight the contribution of different media professionals involved in the production of this cultural asset; punctuate and highlight the consolidation of the Brazilian cultural industry and its relations with the fascicles contents and approach samba historically in the Collection, taking into consideration the phonographic and editorial aspects in the fascicles of this Abril Cultural release. KEY-WORDS: Samba. Collection. Fascicles. Abril Cultural. Industry phonographic and editorial. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 9 CAPÍTULO I – Uma editora, uma coleção e a música popular brasileira em debate 1.1. Abril Cultural e sua inserção no mercado de coleções ................................................. 16 1.2. A Coleção, seus agentes, sua produção e divulgação....................................................27 1.3. Textos, sonoridades e o debate político-cultural...........................................................65 CAPÍTULO II – Afinal, qual samba colecionar? O genêro na Coleção 2.1. Os sambistas focalizados.................................................................................................89 2.2. O samba na voz de seus intérpretes ............................................................................. 124 2.3. A história do samba assinada ....................................................................................... 149 Capítulo III – “A voz do morro sou eu mesmo sim senhor”: o samba representado nas linhas textuais e musicais 3.1 A questão da tradição nos fascículos dos sambistas .................................................... 159 3.2 O que os sambas dizem do gênero musical .................................................................. 179 3.3. Os problemas sociais no ritmo do samba .................................................................... 198 3.4. A figura da mulher nas composições ........................................................................... 207 Considerações Finais ............................................................................................................ 222 Fontes.....................................................................................................................................226 Referências Bibliográficas....................................................................................................232 Anexos....................................................................................................................................239 INTRODUÇÃO 9 INTRODUÇÃO Esta pesquisa de mestrado pautou-se pelo objetivo principal de analisar a representação do samba em fascículos da Coleção História da Música Popular Brasileira. A fim de verificar quais estratégias foram empregadas para representar esse gênero musical, duas versões da Coleção foram enfocadas, a saber, a primeira de 1970/72 e a terceira de 1982/841. Para tanto, buscou-se compreender historicamente o seu lançamento bem como as estratégias de mercado e as ideologias norteadoras de sua produção, condições determinadas por seus assessores e colaboradores, os quais consistiam, em sua maioria, em críticos musicais, pesquisadores da nossa música popular e músicos. Assim, esta dissertação tem como intento central trazer a lume dados e análises que permitam comprovar a hipótese de que o amplo espaço concedido ao samba pela Coleção foi possível, assim como toda a obra, devido a práticas e expedientes próprios da interseção entre a indústria editorial e a fonográfica, propiciados pelo processo de consolidação da indústria cultural brasileira. Esse espaço garantira que elementos de duas pontas do debate sobre o nacional/popular fossem contemplados: de um lado, cumpria, em certa medida, o papel de difundir a memória/história e sonoridades das consideradas vertentes mais autênticas e “tradicionais” do samba, quase todas alheadas da indústria fonográfica, ao mesmo tempo em que, de outro, prendia-se à lógica do mercado, posto trazer nos discos dos fascículos dedicados ao samba grande número de gravações com músicos/intérpretes em evidência na mídia, sobretudo os ligados à chamada MPB – porém, de modo seletivo com expressões sambistas tidas como mais comerciais, dado não focalizar, por exemplo, em nenhuma de suas versões o chamado “sambão-jóia”.2 Tal abordagem apresentou também, além da questão ligada ao nacional/popular, ideias que estavam em confluência com o Tropicalismo, proposto por Caetano Veloso no ano de 1966. Por meio dos focalizados, bem como dos intérpretes, buscamos demonstrar como essa tendência perpassou os lançamentos da Coleção. Assim, ao objetivo central deste trabalho se aliam os objetivos secundários, tais como: analisar dados e informações sobre a ação cultural dos agentes envolvidos com a produção da Coleção, bem 1 A segunda versão da Coleção não será objeto de análise da dissertação que ora se apresenta. Tal orientação se deve ao fato de que o recorte analítico da pesquisa centra-se no espaço que a Coleção concedeu ao samba frente a alterações apresentadas no universo sambista e na indústria fonográfica. Assim, compreende-se que a análise do espaço dedicado ao samba na primeira e segunda versão da Coleção oferece melhor efeito comparativo, posto que lançadas em momentos distintos da produção e consumo do samba, bem como das relações da indústria fonográfica com o gênero. 2 O chamado “sambão-jóia” é uma vertente do samba que se tornou sucesso comercial da década de 1970, recolocando o gênero nas paradas de sucesso. Recebeu pejorativamente este nome de diversos críticos que colocavam em dúvida a sua qualidade musical. Os principais compositores/músicos representantes desta vertente eram Luiz Ayrão, Benito Di Paula, Antônio Carlos e Jocafi. 10 como dados biográficos e profissionais destes e suas práticas junto à produção da obra focalizada, sempre à luz do momento cultural, midiático e político da produção de ambas as versões focalizadas; conhecer e compreender historicamente a estrutura e a dinâmica da Abril Cultural dentro do conglomerado editorial a que ela se integrava, determinando o papel que as coleções desenvolveram na sua criação e no seu desenvolvimento; mapear os posicionamentos políticos e culturais da Editora Abril durante os anos 1970 e 1980; buscar elementos de conhecimento e análise sobre o universo do samba, quer em termos de produção, quer de consumo, o que impõe atenção às relações do universo sambista com a mídia, notadamente com a fonográfica; elencar e sistematizar analiticamente, de maneira geral, os elementos editorias, textuais e fonográficos empregados nos fascículos das versões focalizadas, e, de maneira pormenorizada, os fascículos dedicados aos sambistas. Esses objetivos se fazem necessários para termos uma visão geral do bem cultural que analisamos como fonte e objeto de pesquisa. A consecução desses objetivos foi possibilitada pela consulta e análise dos fascículos da Coleção e também pelas leituras e análise sistemática da produção bibliográfica especializada e obras de referência ocupadas com temas sobre a cultura, a mídia e, especialmente sobre o samba, percurso que nos possibilitou uma visão mais ampla do gênero em questão, compreendendo as modificações por que passou ao longo do tempo e as disputas por sua memória, as quais buscaram estabelecer suas ‘verdadeiras’ raízes e sua “tradicionalidade”. Os dados obtidos foram utilizados na elaboração de um quadro referencial, composto por informações textuais e fonográficas acerca dos artistas focalizados e das canções presentes nos fascículos, marcando, quando possível, as diferenças e proximidades, continuidades e mudanças entre as duas versões da Coleção, e também destacando os intérpretes das canções, bem como os responsáveis pela produção dos fascículos. Desse modo, buscou-se relacionar a função que essas informações desempenharam no mundo da música com o texto presente nos fascículos, considerando sempre o contexto histórico, editorial e discográfico em que as duas versões da Coleção foram produzidas, lançadas e vendidas, e o momento cultural do país. Em termos teóricos, o desenvolvimento desta dissertação baseou-se nos conceitos de “representação” e “apropriação”, ambos elaborados por Roger Chartier (1990) para o desenvolvimento de sua história social da cultura. Para Chartier, uma representação é variável, uma vez que decorre da disposição do grupo e/ou classe social que a engendra. Contudo, ela aspira à universalidade, ainda que encetada por interesses grupais, os quais são 11 atravessados por relações de poder e dominação, quer no interior do grupo e/ou classe social, quer no contato com os demais grupos sociais que compõem a sociedade. Logo, uma representação não é um discurso neutro, já que aspira impor uma visão social particular de mundo como geral, sempre dentro de um campo de luta e de concorrência. Daí tal luta ser considerada pelo historiador tão válida e crucial como a luta econômica, sendo seus conflitos tão mais decisivos quanto menos imediatamente materiais (CHARTIER, 1990, p. 17). Assim, o conceito de representação colaborou para observarmos quais as classificações que a Coleção engendrou ou reproduziu ao classificar o samba. Nesse sentido, também se discutem quais subsídios foram criados ou reproduzidos para que os leitores/ouvintes pudessem compartilhar categorias de percepção da história da música popular brasileira, especificamente do samba, mantendo em perspectiva os expedientes editoriais e discográficos utilizados para tanto, além do posicionamento sociocultural dos agentes envolvidos com a produção da Coleção. Já o conceito de apropriação deve ser compreendido como uma prática de produção de sentidos, dependente das relações entre texto, impressão de texto e modalidades de leitura, as quais são, segundo Chartier, diferenciadas por relações sociais distintas. Nesta direção, o historiador ressalta que o pesquisador deve ter atenção especial aos sentidos das formas materiais organizadoras da leitura, uma vez que as formas, os dispositivos técnicos – visuais e físicos – podem comandar, se não a imposição do sentido do texto, os usos que podem ser investidos e as apropriações das quais podem suscitar (CHARTIER, 1990, p.8). Chartier afirma também que conhecer o processo pelo qual é construído um sentido e seu significado passa pelo processo de compreender como um texto é apropriado pelos leitores, ou seja, como estes são afetados pelos textos, mudando a maneira de compreenderem a si próprios e o mundo (CHARTIER, 1990, p. 24). Dessa maneira, a orientação de Roger Chartier de como trabalhar o conceito de apropriação impõe a necessidade de se levar em conta também as maneiras organizadoras da audição prevista e investida na Coleção, bem como a possível interseção entre formas de organização de leitura e de audição. Com isso, torna-se possível pensar como a construção de sentidos dos textos dos fascículos poderia levar os leitores/ouvintes a uma nova compreensão da história da música popular brasileira, especificamente do samba. Em relação ao samba, pode-se afirmar que, ao longo do tempo, desde seu primeiro registro oficial, em 1917, com “Pelo Telefone”, de Donga e Mauro de Almeida, o gênero sofreu alterações estilísticas e recebeu influências de outros gêneros musicais, além de ter sido incorporado às produções de diversos compositores/cantores. As primeiras gravações, da 12 década de 1920, são caracterizadas como samba-amaxixado ou samba-maxixe, devido a sua aproximação rítmica com este estilo musical. Ao lado deste, havia as marchinhas carnavalescas, que se consolidaram no gosto popular com as composições de Lamartine Babo, Haroldo Lobo, João de Barro, entre outros. Na década seguinte, com a Turma do Estácio, o samba firma-se como gênero musical e passa a ser denominado apenas como “samba”, assumido posteriormente como símbolo nacional. No entanto, do estilo criado no Estácio vimos surgir escolas de samba com os sambas-enredos, com Bide, Marçal, Paulo da Portela, Cartola, Silas de Oliveira, Mano Décio, D. Ivone Lara; o samba-canção, representado por Herivelto Martins, Dolores Duran, Tito Madi, Lupicínio Rodrigues; a pré e a Bossa Nova, difundida por Johnny Alf, Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Edu Lobo, Carlos Lyra, Baden Powell; o samba-rock, com Jorge Bem e o pagode, surgido na década de 1990. Assim, pode-se afirmar que quase todos os artistas focalizados na Coleção excursionaram pelo gênero, como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Geraldo Vandré, Sérgio Ricardo, fosse compondo e/ou tocando, como Pixinguinha, Orestes Barbosa e Custódio Mesquita ou dotando-o de outras roupagens musicais, como Baden Powell com os afro-sambas e Jorge Ben com o chamado samba-rock, além dos pré-bossa nova e dos bossanovistas mencionados acima. No entanto, diante desta celeuma de ritmos e compositores/intérpretes, muitos dos quais estiveram presentes na Coleção, e sem negar a importância e a participação dos artistas supracitados em composições que se caracterizariam como sendo do gênero samba, adotamos a estratégia analítica de considerar como sambista apenas os artistas que compuseram, cantaram e/ou tocaram majoritariamente samba e que foram, ao longo de suas carreiras, identificados como sambistas, não sendo, portanto, considerados aqueles que vez ou outra excursionaram pelo gênero ou que se dedicaram sobretudo a gêneros próximos, como marchinha carnavalesca e a Bossa Nova, considerada como renovadora do samba. Dessa maneira, destacamos e analisamos pormenorizadamente apenas os fascículos de sambistas que foram focalizados na primeira e na terceira versão da Coleção. Apesar de na década de 1920 o samba não estar ainda definido em um ritmo próprio e característico, pois recebia influências de outros ritmos da época, sendo então um “estilo anfíbio”, como afirma Tárik de Souza (2003, p. 13), os pioneiros, Donga e Sinhô foram considerados sambistas para efeito de análise das representações de samba que foram estabelecidas pela Coleção, visto o pioneirismo de ambos no desenvolvimento deste gênero musical. 13 Valendo-se dos objetivos que nortearam esta pesquisa e do material analisado, o presente trabalho divide-se em três capítulos compostos por três e quatro tópicos. No primeiro, intitulado “Uma editora, uma coleção e a música popular brasileira em debate”, discutimos inicialmente as questões acerca do conceito de ‘coleção’, inserindo a Abril Cultural – responsável pela produção e divulgação da Coleção História da Música Popular Brasileira – no mercado de fascículos que se formava com a consolidação da indústria cultural, na década de 1970. Análise balizada nas seguintes questões: O que é coleção? Qual a trajetória histórica que o termo apresenta? Quais as diversas formas de coleção que se deram ao longo do tempo? A partir desse percurso, pontuamos dados e informações históricas sobre os lançamentos de coleções no Brasil, especialmente os da Abril Cultural, apresentando, de maneira sucinta, a diversidade das publicações lançadas pela editora, bem como os das demais concorrentes dela. Com isso, delineia-se um quadro que corrobora para dotar de historicidade a Coleção História da Música Popular Brasileira, sobretudo por ser enfocada e analisada com base na expansão e consolidação da indústria cultural brasileira, notadamente o seu setor editorial e fonográfico. No tópico seguinte analisamos os elementos gráficos e discográficos das três versões, especificamente os da primeira e da terceira, estabelecendo proximidades e distanciamentos entre elas. Destacamos os agentes envolvidos em sua produção, as estratégias e expedientes de organização e técnicas empregadas para sua produção, lançamento e propaganda visando os possíveis públicos leitores/ouvintes da Coleção. E o terceiro e último item do capítulo é composto por uma análise do momento cultural, com destaque para o debate acerca do nacional/popular, quando dos lançamentos das duas versões da Coleção focalizadas pela pesquisa. Posteriormente, o texto dedica-se às apreciações referentes ao conteúdo textual e discográfico presente nas duas versões da Coleção, apresentando os diferentes compositores e intérpretes que compuseram os fascículos lançados, buscando, quando possível, destacar semelhanças e distanciamentos entre as versões de 1970 e de 1980, enfatizando as questões políticas e mercadológicas presentes nos textos dos fascículos. No segundo capítulo, denominado “Afinal, qual samba colecionar? O gênero na Coleção”, buscamos apresentar e analisar as diversas formas de representação do samba nos fascículos. No primeiro, os destaques são os sambistas focalizados pela Coleção em ambas as versões, refletindo sobre as possíveis razões que levaram certos sambistas a serem focalizados em detrimentos de outros. Para tanto, os nomes apresentados, bem como o lançamento da Abril Cultural, são relacionados e pensados histórica e socialmente como integrantes de um 14 momento cultural, político e econômico, que esteve presente nas bancas de jornal de todo o país, juntamente com a trajetória do samba ao longo do tempo, o que levou à valorização de uns frente a outros. No tópico seguinte, a ênfase da análise se volta aos intérpretes selecionados para comporem as gravações presentes nos discos dos fascículos dos sambistas, pensando seus nomes e as décadas das gravações de acordo com a ideia de “linha evolutiva”. Discute-se, desse modo, as práticas de representação estabelecidas pela Coleção, de forma direta ou indireta, para apresentar ao leitor/ouvinte uma ideia de samba pautada em seus ideais e a de seus colaboradores. Finalmente, o último tópico dedica-se à análise dos profissionais que contribuíram com textos para os fascículos da terceira versão. Levando-se em consideração a trajetória midiática e a linha de pensamento de cada agente envolvido na produção textual da Coleção, procuramos demonstrar como as disputas em torno da memória do samba presentes na mídia e que buscavam estabelecer o “verdadeiro” e “autêntico” samba, perpassaram os textos dos fascículos. Apresenta-se, assim, a visão de samba defendida nas páginas do lançamento da Abril Cultural, que não estava descolada das questões e debates do período em que foi lançada no mercado, daí a presença de nomes de profissionais, de artistas e determinados assuntos nos fascículos. O terceiro e último capítulo, intitulado “‘A voz do morro sou eu mesmo sim senhor’”: o samba representado nas linhas textuais”, foi dedicado a explicitar mais detidamente os aspectos textuais e fonográficos dos fascículos. O primeiro item apresenta análise de um ponto presente no conteúdo dos textos dos fascículos, assinados, em sua maioria, por profissionais da mídia, tendo como eixo analítico a questão da “tradição” do samba. Com isso, buscamos demonstrar o discurso que prevaleceu ao longo dos lançamentos da Coleção e a visão de samba que ela buscou representar aos seus leitores/ouvintes. O segundo item foi dedicado à análise das letras dos sambas presentes nas duas versões da Coleção e que apresentaram como temática o próprio samba. Esses lançamentos expuseram, ao longo do tempo, diferentes visões a respeito deste gênero musical. Os modos díspares de interpretar o samba, em sua maioria, estavam em confluência com as questões em voga na sociedade à época em que foram lançados e com o momento cultural, político e social das décadas em que a Coleção esteve no mercado. O terceiro tópico apresenta, por sua vez, uma análise das letras dos sambas que trataram de problemas sociais. Dessa maneira, buscamos estabelecer um paralelo entre os problemas que eram cantados em sambas das décadas iniciais do século XX, com aqueles que a sociedade dos anos 1970 e 1980 enfrentavam, diante do regime militar, do período de “milagre econômico” e da posterior crise financeira. Essa aproximação favorecia 15 possivelmente a identificação do leitor/ouvinte com o samba que ele ouvia nos discos da Coleção, além de apresentar-se como estratégia de um bem cultural para a divulgação de determinada imagem desse gênero musical. Para finalizar, o último tópico se vale das letras dos sambas, em sua maioria compostos por homens, e que tiveram como mote a imagem das mulheres, para analisar como a figura feminina foi tratada na Coleção, vistos os parcos fascículos em que foram focalizadas em ambas as versões. Ademais, discute-se, nesse tópico, o status social da mulher ao longo do tempo e quais os diferentes projetos impostos pela sociedade à figura feminina. Conforme se verá a seguir, as mudanças nas representações das mulheres nas composições refletem as conquistas feministas, as quais reverberaram no universo do samba. CAPÍTULO I UMA EDITORA, UMA COLEÇÃO E A MÚSICA POPULAR BRASILEIRA EM DEBATE 16 1.1. Abril Cultural e sua inserção no mercado de coleções No ano de 1970, a Editora Abril já estava consolidada no meio editorial, oferecendo ao seu público consumidor a possibilidade de acesso a uma diversificada produção de revistas e, mesmo, de histórias em quadrinhos. Ramo comercial dedicado à produção de coleções e vinculado ao conglomerado editorial da família Civita, a Abril Cultural também se mostrava em situação favorável naquele ano. Ela já contava com significativo número de coleções em fascículos lançadas no mercado, ainda que fosse criada bem mais recentemente do que aquela Editora. O nome Abril Cultural ia se posicionando como referência no setor de coleções, inaugurado no Brasil bem anteriormente. Posição que aquela empresa manteria nas décadas seguintes, quer pelo sucesso na produção de variadas coleções quer pelo consumo delas. Fundada por Victor Civita, em 1950, a Editora Abril instalou sua sede na cidade de São Paulo. Após verificar a boa experiência que seu irmão estava tendo na Argentina, ao conseguir a licença da Disney para publicar a revista El Pato Donald, Civita decidiu, então, seguir os passos de seu irmão e fazer o mesmo no Brasil. Com o lançamento da revista traduzida do Pato Donald, a Abril inicia sua empreitada no mercado editorial, conquistando posteriormente o posto de maior editora de revistas da América Latina.3 Para alcançar tal feito a editora diversificou suas publicações, buscando lançar revistas cujos conteúdos estivessem em confluência com as demandas culturais e políticas da sociedade. Portanto, a visão empresarial de Victor Civita e o momento econômico propício fizeram com que ele se lançasse no mercado editorial de uma forma mais definitiva, com vista a tornar sua empresa uma grande referência no setor. Os lançamentos iniciais da empresa de Victor Civita buscaram abarcar o mercado infantil e feminino. À sua pioneira Pato Donald seguiram-se as revistas Mickey (1952), Diversões Escolares (1960), Zé Carioca (1961) e Almanaque Tio Patinhas (1963). No que diz respeito ao universo feminino, as publicações foram pautadas pelas fotonovelas, o mundo da moda, cozinha, decoração e comportamento da mulher, como Capricho (1952), Você (1956), Ilusão (1958), Noturno (1959), Manequim (1959) e Claudia (1961).4 O público masculino também foi lembrado, posteriormente, com as revistas que versavam sobre futebol, mulher e automóveis, como Placar (1970), Playboy (1975) e Moto (1982). Atuando juntamente com as demandas da sociedade, a Abril lançou a revista Quatro Rodas (1960), especializada em automóveis e turismo, no momento em que o Brasil vivia a euforia da implantação das 3http://www.abril.com.br/institucional/50anos/ocomeco.html. 4http://www.abril.com.br/institucional/50anos/linha01.html;http://www.abril.com.br/institucional/50anos/linha02 .html. 17 indústrias automobilísticas, impulsionadas pelas políticas desenvolvimentistas do presidente Juscelino Kubitschek. Posteriormente, quando da vigência do regime militar, viriam revistas de variedades, como Realidade (1966) e Veja (1968), atuando no plano político-ideológico (MIRA, s/d, p. 4-5). A Editora Abril valeu-se do momento propício para o lançamento de novos produtos editoriais, visto que, amparado em incentivos governamentais do período militar, como o estímulo à produção de papel, o setor aumentou suas produções. O Grupo Executivo das Indústrias do Papel e das Artes Gráficas (GEIPAG), órgão criado pelo governo em 1966, auxiliou no desenvolvimento da indústria gráfica e incentivou a importação de máquinas para a dinamização da produção no setor. No ano seguinte, a porcentagem de papel produzido no Brasil chegava a 91%, fato que barateava os produtos finais. Com isso, entre os anos de 1966 e 1980 a produção de livros aumentara de 43,6 milhões de exemplares para 245,4 milhões (ORTIZ, 2006, p. 122). E em confluência com o crescimento do mercado editorial verificado entre as décadas de 1960 e 1980, a Abril aumentara significativamente o número de títulos e suas tiragens. Se o setor editorial produzia 104 milhões de exemplares em 1960, passando a 193 milhões em 1970 e chegando a 500 milhões em 1985, a editora de Victor Civita já fecharia a década de 1960 com 27 títulos, contra sete na anterior, e na seguinte já dispunha de 121 títulos comercializados (ORTIZ, 2006, p. 122-123). Apesar do crescimento das publicações, a Abril não era a única no ramo editorial. A empresa de Victor Civita entrou neste mercado tendo como um dos concorrentes os Diários Associados (D.A.) – conglomerado de empresas midiáticas do Brasil – de Assis Chateaubriand. Os D.A. atuavam na imprensa brasileira desde o ano de 1924, quando Chateaubriand adquiriu O Jornal5, do Rio de Janeiro. No ano seguinte expandiu seus negócios para São Paulo, com a aquisição do Diário da Noite. Em 1928 lançou a revista O Cruzeiro, a qual se tornou sucesso de vendagem nos anos iniciais em que esteve em circulação, vindo a se constituir em exemplo de inovação editorial para revistas posteriores e tendo sua publicação encerrada em 1975. A novidade estava no fato de apresentar fotografias, características gráficas modernas e conteúdo abrangente. Ademais, trazia informações a respeito de cultura ou entretenimento, além de abarcar o público masculino, feminino e de diferentes idades (MIRA, s/d, p. 1). Outra revista que esteve no mercado no momento em que a Abril entrou no ramo editorial foi a Manchete. Lançada em 1952, por Adolfo Bloch e publicada pela Bloch Editores, conquistou logo de início um rápido sucesso e, em pouco 5 http://www.diariosassociados.com.br/linhadotempo/decada20.html. 18 tempo, alcançou o status de segunda revista semanal mais vendida no país, perdendo apenas para O Cruzeiro (MOURA, 2011 p.11). Apesar de suas concorrentes, a Editora Abril conseguiu se fortalecer no mercado. Um de seus diferenciais foi a segmentação de suas produções, com revistas que abarcavam diferentes públicos e interesses. Ademais, a empresa de Victor Civita não se especializou apenas em publicações e edições de revistas. Outro de seu ponto forte, o qual nos interessa mais diretamente, foi o desempenho na produção e venda de coleções, organizadas em fascículos, lançados em sua maioria quinzenalmente e com preços acessíveis. Para tanto, o conglomerado editorial da família Civita criou a Abril Cultural, braço comercial do grupo editorial voltado inteiramente para a comercialização de um antigo comportamento humano: o ato de colecionar. O termo ‘coleção’ originou-se do Latim legere, expressão relacionada com a agricultura, significando ‘colher’, ‘escolher’. O seu correlato atual originou-se da semelhança de função, visto que formar uma coleção também requer capacidade de escolha, daí o termo coligere, resultando no que conhecemos hoje como coleção. Esse termo está relacionado com a ideia de reunir, sejam objetos, documentos, livros, animais, plantas, pedras, entre outros. Deve-se distingui-lo, porém, da ideia de acumulação, a qual não há um objetivo, um propósito definido em acumular determinados objetos e afins, tal como há no ato de colecionar. Não se inicia uma coleção sem algum propósito, assim como não se lançam coleções no mercado sem que hajam diversos interesses investidos, incluso o da ordem comercial. No entanto, o termo ‘coleção’ foi sofrendo modificações ao longo do tempo, concatenado com o interesse e propósito de cada período histórico. Leila Beatriz Ribeiro (2006, p. 3) destaca importantes questões para a busca do entendimento do sentido das coleções, refletindo sobre os motivos que levam os indivíduos a colecionarem e quais as perguntas que os homens têm feito ao longo dos séculos que os impulsionaram a buscar respostas nos objetos colecionados. Em síntese, responde a autora que a praticidade de alguns objetos fazia com que os homens primitivos os portassem, mas, com o passar dos séculos, são os objetos ligados ao culto e evocação que tomarão espaço na sociedade, inclusive estendendo os sentidos simbólicos daqueles aos demais objetos. O sentido de se colecionar esteve sempre ligado aos anseios e questionamentos da sociedade. Por isso é que uma determinada coleção deve ser entendida dentro de seu contexto histórico, levando-se em conta as questões sociais, políticas, econômicas e culturais envolvidas. Durante a Idade Média, por exemplo, as coleções eram praticamente compostas por objetos sacros. Tal fato se dava pelo motivo de que a Igreja, ao deter o poder, tinha a seu 19 cargo selecionar o que deveria e o que não deveria ser guardado e preservado sobre a finalidade de colecionar (WEITZEL, 2002, p. 61). Na Idade Moderna, com as grandes expedições e descobertas de ‘novas terras’, o ato de colecionar volta-se para os objetos naturais. A coleção destes, obtidos em novos lugares, tinham como um dos objetivos dar a conhecer o que até então se encontrava desconhecido para os povos dos países expedicionários. Nos séculos XVI e XVII, prevaleceram os gabinetes de curiosidades, locais responsáveis por guardar tudo o que se achava de raro e/ou estranho durante as expedições. Segundo Ana Janeira (2006, p. 66), a história da arte e a história natural, duas áreas ligadas ao colecionismo, foram unidas por aqueles gabinetes. Ademais, foram os precursores dos modernos museus, surgidos nos séculos posteriores. Como afirma Philipp Blom (2003, p. 143), as coleções de museus não eram mais de exploração e sim de conservação. A preocupação era preservar tudo aquilo que havia sido achado, porém, não a esmo, mas de maneira seletiva, com vistas a auxiliar na instrução daqueles que tivessem acesso aos objetos preservados. Ao final do século XIX, as coleções constituídas nos museus serviram muito bem aos interesses dos recém-formados Estados-nações, os quais desenvolviam, de acordo com suas ortodoxias, ideias de história e mitos nacionais (BLOM, 2003, p. 134). Os objetos não eram mais aleatoriamente preservados, havia uma lógica pautando o ato de colecionar. Essa lógica seguia os interesses de conhecimento e também os ideológicos, por conta das nações recém- formadas. Que tipo de identificação nacional se queria construir? Qual característica do passado deveria ser preservada? Qual objeto tem maior capacidade de atingir (intelectual e ideologicamente) a população? Com qual objeto essa população se identifica mais? Possivelmente estas eram as questões que perpassavam a ideia de formar e manter uma coleção, bem como expedientes para expô-la ao grande público. Blom (2003, p. 145) afirma que o ato de colecionar já havia percorrido um longo caminho desde os gabinetes de curiosidades, os quais preservavam o raro e desconhecido, e chegava ao final do século XIX com os museus, caracterizados por conservar as coisas comuns da vida humana, aquilo que já havia sido submetido à compreensão dos homens. Ao chegar o século XX, o termo ‘coleção’ havia sofrido inflexões, decorrentes, em parte, das mudanças estruturais ocorridas na sociedade. Se antes se buscava preservar/colecionar o novo, o inusitado, com o desenvolvimento tecnológico e a velocidade com que as informações foram produzidas e disseminadas, ficou impossível absorver/ler/conhecer tudo que se produzia, até por conta da intensificação da variedade de produtos e bens, de autores e lugares de produção e criação. Tal limitação humana tornam as 20 coisas reconhecidas e identificadas por partes da sociedade como peças de coleções a figurarem em museus. Sobre tal fenômeno Weitzel (2002, p. 63) afirma que “o desenvolvimento de coleções tornou-se recurso fundamental para administrar as coleções de acordo com os interesses e o perfil daqueles que necessitam de informações específicas”. Apesar de a autora tratar especificamente de coleções bibliográficas, pode-se pensar tal objetivo para coleções de demais objetos, produtos e bens. Uma sociedade que fora constituída tendo como regras fundamentais produzir e consumir, tudo foi se tornando muito volátil, com tempo de uso extremamente reduzido. Daí a importância das coleções que pudessem, como afirma Blom, “prometer a vida eterna”, ou seja, rememorizar as coisas sem deixar que se perdessem no tempo (2003, p. 130). Ademais, o ato de colecionar se colocou como fato importante na sociedade contemporânea, na medida em que as produções materiais cresciam e tudo que se relacionasse aos séculos anteriores necessitava ser ordenado. Passa-se, então, à fase das coleções racionais, ordenadas, suprimindo a necessidade de compilar tudo que se produzia. Como salienta Flávia Toni (2008, p. 56), “o colecionar como projeto, surge da tentativa de dar sentido à multiplicidade e ao caos do mundo e também como tentativa de capturar a maravilha e a magnitude de tudo, para incluí-las no reino dos bens pessoais”. Dissociadas das formas e objetivos anteriores, as coleções no século XX passam a representar tentativas de respostas aos novos anseios e angústias da sociedade para com o seu futuro. Ou como analisa Ribeiro (2006, p. 3): Do uso demarcado pela funcionalidade, passando pela sede de poder traduzida por objetos cobiçados por indivíduos, grupos e mesmo nações poderosas com o intuito de perpetuar-se, chegamos à contemporaneidade. Hoje, o desejo de acúmulo representado por grandes instituições aponta para um sentido de perda e de deslocamento frente a um presente destituído de origens e de um futuro incerto, distanciando substancialmente o homem cada vez mais de projeções idealizáveis. É dentro dessa visão moderna sobre coleções que paulatinamente elas começam a invadir o mercado, apresentando diversos conteúdos e temas, como educação, música, biologia, religião, pintura, entre outros. Essa atividade de venda de coleções perdura até os dias de hoje, o que demonstra a eficiência desse tipo de comércio e que a sociedade ainda guarda raízes do ato de colecionar. No entanto, assim como as maneiras de se pensar o termo ‘coleção’ mudou ao longo do tempo, o modo de comercializá-las também sofreu inflexões, como o caso brasileiro pode ilustrar. No Brasil, a Editora Vecchi foi uma das pioneiras no ramo da produção e venda de coleções em fascículos, tendo iniciado suas atividades no começo do século XX, encerrou-as 21 no ano de 1983, após entrar em falência.6 Dedicava-se à produção e venda de fascículos semanais de romances, inicialmente oferecidos de porta em porta por Arturo Vecchi, fundador da editora. O primeiro romance lançado foi Maria, a fada do bosque, de Lourenço Baltiere. Depois, seguiram-se mais sete volumes dedicados a outros títulos de romance. A atividade perduraria até 1933, quando a editora se especializou no lançamento de outros produtos editoriais, como livros, revistas e álbuns de figurinhas (NASCIMENTO, 1989, p. 103-105). Entre as décadas de 1990 e 2000, a comercialização das coleções seria também realizada por meio do fornecimento gratuito ou mediante o pagamento de preços bastante módicos para a promoção de vendas de jornais e revistas. Expediente adotado pela Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, Caras, Recreio, entre outras publicações. Nestes moldes, as coleções eram formadas por atlas, obras de literatura, CDs com gêneros musicais variados, livros de história da arte, filmes em DVDs, livros de culinária e, mesmo, objetos domésticos. Mais recentemente, no caso de coleções musicais, a possibilidade de os internautas criarem suas playlists também auxilia na promoção das coleções, bem como os produtos a elas atrelados. Quando chegaram às bancas de jornal no Brasil, as coleções eram quase que exclusivamente produzidas pela Abril. Posteriormente, vieram-se somar a tal nicho de vendas outras empresas, como a espanhola Planeta DeAgostini, com atuação limitada no território brasileiro. Esta, inicialmente, era especializada no lançamento de fascículos de enciclopédias e cursos, depois expandiu suas atividades com coleções de temas variados. Além daquela concorrente, a Abril contava com outra, igualmente de origem espanhola, porém, com certo destaque no mercado editorial brasileiro em parte do último terço do século XX. Tratava-se da Editora Salvat, a qual lançou coleções de temas variados como cursos, de temática infantil, modelismo, além daquelas voltadas para o colecionismo, compostas por objetos em miniaturas, como Guitar collection, Instrumentos Musicais, Mistérios dos deuses egípcios e Betty Boop show collection.7 Outras editoras também tiveram atuação no mercado de coleções vendidas em bancas de jornal, disputando mercado, porém, limitadamente, com a Abril. Eram os casos da Editora Visor, Editora ABZ, Editora Três. No entanto, foi a Abril Cultural, que ganhou maior destaque na produção e venda de coleções em fascículos vendidos em bancas de revistas e jornais. Ao final da década de 1980, a Abril ostentava a média de um bilhão de 6A Editora Vecchi foi fundada em 1913 pelo italiano Arturo Vecchi. Dedicada primeiramente à venda de fascículos, se especializou posteriormente na edição de livros e também entrou no ramo de revistas e livros infantis. Ver NASCIMENTO, Angela José do. A Trajetória da Editora Vecchi. Intercom - Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, v. 12, n. 60, 1989, p. 102-106. 7 http://www.salvat.com/br/categoria?categoria=3 22 fascículos vendidos, 30 milhões de exemplares de romances e 11 milhões de enciclopédias (MARKUN, 1987, p. 43). No que se refere à inserção da Abril Cultural no mercado de produção e venda de coleções, deve-se destacar que seu primeiro lançamento ocorreu em 1965, com A Bíblia Mais Bela do Mundo, versão brasileira da congênere italiana, produzida pela Fratelli Fabbri Editori (GUERRINI Jr. 2007). Após o sucesso deste primeiro lançamento de sua coleção, Victor Civita decide montar um departamento especialmente para gerenciar as futuras produções. Trata-se da Abril Cultural, a qual inicia suas atividades no ano de 1966 com o lançamento do primeiro fascículo de Conhecer, produzido e distribuído nas bancas de jornal de todo o Brasil. Tal coleção era composta por 180 fascículos, em um total de 13 volumes que dariam origem a uma enciclopédia ilustrada, destinada a estudantes do ginásio.8 Segundo Civita, o objetivo no lançamento de coleções era possibilitar o acesso rápido e eficiente ao conhecimento (CIVITA apud PEREIRA, 2005, p. 250). Desta maneira, a estes lançamentos iniciais seguiram-se outras coleções tratando de assuntos variados. No ano de 1967, a Abril Cultural apresenta coleções de temas mais específicos, capazes de abarcar diferentes públicos, como por exemplo, Gênios da Pintura, destinada aos amantes dessa arte; Medicina & Saúde, voltada para aqueles que almejavam conhecer mais a respeito do funcionamento do corpo humano e terapêuticas; Mãos de Ouro, para quem desejasse fazer crochê, bordado, rendas, artesanato, etc.; Bom Apetite, apresentando passo a passo de diversificadas receitas ilustradas; Enciclopédia da Agricultura, voltada para um público ligado mais ao mundo rural, entre outras. Também foram comercializados grandes clássicos da literatura, com a coleção Os Imortais da Literatura Universal, de 1970. Seu primeiro volume foi Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski9, seguida de As Aventuras do Sr. Pickwick, de Charles Dickens, Madame Bovary, de Gustave Flaubert, Novelas Exemplares, de Miguel de Cervantes, entre outros, em um total de 50 volumes. Obras filosóficas também ganharam espaço nas bancas de jornal. Em 1972 a coleção Os Pensadores foi lançada, sendo formada por 68 volumes. Projeto que faria com que a Abril Cultural alçasse o posto de maior editora de livros de filosofia do mundo (GUERRINI, 2007, p. 1); a coleção contaria com diversas versões posteriores nas duas décadas seguintes. Ademais, conjuntamente, outras coleções de assuntos variados figuraram no mercado no mesmo ano, como a Enciclopédia Disney, Cozinha de A a Z, Os Cientistas, Curso Abril Vestibular, Hard Boys, Mãos Maravilhosas, Curso de Auxiliar de Administração, Policiais 8 http://www.abril.com.br/institucional/50anos/fasciculos.html. 9 http://www.abril.com.br/institucional/50anos/fasciculos.html. 23 Abril – Série Aço e Série Bronze, Dicionário de la Lengua Espanola (PEREIRA, 2005, p. 255). E nos demais anos daquela década de 1970 e na de 1980, a Abril Cultural lançou coleções das mais variadas temáticas, inclusive a notória coleção Os Economistas, composta por obras de clássicos e renomados pensadores da economia. Com tais frentes de trabalho, a Abril conseguia manter-se no mercado com nichos variados de consumidores, visto que suas publicações e coleções abarcavam amplamente diversas áreas de interesse de públicos específicos. Essa diversidade de assuntos das coleções da Abril Cultural possivelmente foi uma estratégia de mercado, visto que não estava só neste ramo editorial e enfrentava a concorrência de outras editoras. A Abril Cultural valeu-se também da expansão do mercado fonográfico brasileiro para lançar fascículos acompanhados de discos, formando as coleções discográficas das expressões musicais brasileira. Vale destacar que no momento em que lança as primeiras coleções em fascículos acompanhadas de um disco contendo uma seleção de canções do focalizado, a indústria fonográfica apresentava elevados índices de crescimento. Entre 1966-1976, essa indústria apresentou crescimento acumulado de 444,6%, diante de um PIB elevado em 152% (PAIANO, 1994, p.195). Durante toda a década de 1970, cresceria numa taxa média de 15% ao ano, mesmo com a falta de vinil decorrente da crise do petróleo entre 1974/1975 (MORELI, 1991, p.61). Em 1976, com abastecimento regularizado de vinil, volta a crescer. Nos anos 1978/1979, o Brasil era posicionado como o quinto maior mercado de discos no mundo, ainda que vivenciasse o início de uma recessão econômica (DIAS, 2000, p.77). Estes índices expressam o alinhamento da indústria fonográfica brasileira à crescente demanda do consumo de bens culturais. O que levou a indústria do disco, durante as décadas de 1960 e 1970, a se alinhar ao desenvolvimento e consolidação da indústria de bens culturais (VICENTE, 2002, p. 52). No entanto, a música enfrentava uma maior racionalização e consequente mercantilização por conta da consolidação da indústria cultural, com um aumento nas vendas/consumo de LPs de artistas internacionais. Segundo Rita Morelli (1991, p. 47-8), o crescimento no número de músicos estrangeiros que encontravam mercado no Brasil se deu por conta da forte repressão do governo militar aos artistas brasileiros, especialmente com o AI-5, em 1968. Fato que possibilitou que multinacionais do disco e suas representantes abastecessem o mercado com os lançamentos estrangeiros, em detrimento da expansão da música popular brasileira. Ademais, a programação das emissoras de rádio também apresentava certo predomínio de música estrangeira no final da década de 1970. Para além do motivo político – censura e repressão às artes –, Morelli também salienta o fator econômico, 24 visto que, para as gravadoras brasileiras, era mais fácil e lucrativo lançar um disco já gravado no exterior, pois não era necessário arcar com as despesas de gravação, além de descontos e isenções nas importações, então vigentes à época. Para Eduardo Vicente (2012, p. 58) a questão era outra, em suas palavras: [...] o que os lançamentos internacionais estão na verdade cumprindo é a função de aproximar o mercado brasileiro do padrão de consumo desejado pela indústria, ou seja, atender às demandas de um mercado em expansão, jovem e efetivamente massificado, ao qual a música brasileira dos anos 50 e 60 – constituída sobre as bases mais políticas e ou para um outro perfil de mercado – não podia mais responder plenamente. Com o tempo, a indústria fonográfica era cada vez mais organizada em função dos lucros e da minimização dos gastos, sendo que o mercado de discos cada vez mais era dominado pelos grandes conglomerados de comunicação, como lembrado por Midani (2008, p. 215). Os dados de vendagem demonstram a contínua queda nas vendas de músicas nacionais: no início do primeiro semestre de 1971, ela apresentava uma porcentagem de 57,5% das vendagens, caindo para 37% no segundo semestre, e no começo do ano seguinte cairia mais ainda, chegando a 16% (MORELLI, 1991, p. 48). Alguns fatores mais propriamente de organização da indústria fonográfica e do universo musical, permitem compreender a expansão do setor: adoção do formato Long Play (LP), a promoção de festivais da canção, crescimento da produção de canções românticas de apelo comercial e de discos compostos por canções estrangeiras (DIAS, 2000, p. 55). Quanto aos festivais, os produtores musicais Marcos Mazzola e André Midani afirmam a importância dessa manifestação cultural para o lançamento de novos artistas e, consequentemente, para as gravadoras que viam nos festivais da canção a grande oportunidade de divulgarem seus artistas, testar a popularidade dos mesmos ou de uma canção. Por isso, as gravadoras tinham muito comprometimento e interesse com os festivais. (MAZZOLA, 2007, p. 47; MIDANI, 2008, p. 109). Pouco antes da expansão da indústria fonográfica e editorial no Brasil, a Abril Cultural lança sua primeira coleção composta por fascículo e disco: Clássicos de Todos os Tempos, em 1966. Dois anos depois, lançou Grandes Compositores da Música Universal, versão brasileira da original italiana. Composta por 48 fascículos, cada um deles contava com um encarte contendo biografia ilustrada do compositor focalizado e análise da obra dele, além de ser acompanhada por LP de dez polegadas. Seu primeiro volume continha um encarte explicativo, intitulado A arte da música: a linguagem musical - sua história – uma orquestra 25 sinfônica – os instrumentos. A estes dois lançamentos seguiram-se outros, como As Grandes Óperas (1971); Mestres da Música (1979), esta composta por fascículos integrados por três partes: encarte ilustrado enfocando vida e obra do focalizado, disco com as composições mais significativas do autor em destaque com intérpretes de renome e um Guia do Ouvinte para facilitar a compreensão das peças abordadas na coleção10; Gigantes do Jazz (1980), do original italiano I Grandi del Jazz; Mestres pelos Mestres (1984), cujos fascículos eram apresentados em quatro partes: a cronologia do autor, análise de sua produção, guia do ouvinte com textos de especialistas e informações sobre os intérpretes das gravações do disco, as quais eram reputadas como as mais apuradas e reconhecidas pela crítica.11 No entanto, um dos problemas enfrentados pela Abril Cultural para o lançamento daquelas coleções dizia respeito aos direitos autorais. Embora a empresa adquirisse os originais da editora italiana, as gravações deveriam ser negociadas com seus responsáveis separadamente, tornando mais trabalhoso o processo de lançamento (GUERRINI Jr., 2007, p. 2). Talvez tivesse sido esse um dos motivos pelo qual a Abril Cultural resolveu investir na elaboração de coleções próprias, sendo a Coleção História da Música Popular Brasileira (1970) a primeira a ser produzida totalmente no Brasil. Ao analisar a trajetória de lançamentos da Abril Cultural pode-se perceber que grande parte de suas coleções figurara nas bancas lado a lado, estabelecendo um amplo leque de opções para o consumidor. A variedade e diversidade no conteúdo das coleções alcançavam diferentes faixas etárias, além disso, seu baixo custo e amplo sistema de distribuição, por meio da Distribuidora Nacional de Publicações (Dinap) – controlada por Richard Civita, filho de Victor -, fortaleceram e possibilitaram que a Abril se estabelecesse como pioneira nas inovações e a grande referencial naquele setor editorial. As intersecções com outras mídias também contribuíram para o sucesso comercial da Abril Cultural, notadamente no que tange suas coleções musicais, como tratado no próximo tópico do capítulo. Ademais, há fatores da política econômica nacional e da consolidação da indústria cultural brasileira que corroborariam para o desenvolvimento da Abril Cultural, bem como do conglomerado empresarial ao qual estava vinculada. No final da década de 1960, quando os lançamentos das coleções da Abril Cultural já eram constantes, a economia brasileira experimentava o chamado “milagre econômico”. Este gerava, sobretudo nos primeiros anos da década seguinte, índices consideráveis de crescimento econômico, com base em investimentos oficiais em infraestrutura e os dirigidos à 10 Informações presentes no Plano da Obra dos fascículos da coleção Mestres da Música. 11 Informações presentes no Plano da Obra dos fascículos da coleção Mestres Pelos Mestres. 26 indústria pela iniciativa privada, embora o processo fosse amplamente calcado em conjuntura internacional temporariamente favorável que resultassem em empréstimos externos e avolumada participação do capital internacional, porém, tendo como lado nocivo o arrocho salarial dos trabalhadores (PRADO; EARP, 2007). De qualquer forma, aquela onda de crescimento traria, pelo menos inicialmente, melhorias no padrão de vida da chamada classe média, segmento social em que se encontra grande parte dos consumidores do mercado editorial. Durante os anos de 1970 e parte da década seguinte, o Brasil vivera a consolidação da indústria cultural que, em consórcio ao capital multinacional, promoveria o avanço tecnológico e organizacional, dentre outros setores, o da indústria editorial e o fonográfico. Ambos os setores imbricados à produção das coleções musicais da editora, as quais se constituíam, assim, em produtos híbridos, ou seja, contemplando parte editorial e parte fonográfica. Isto num momento em que os índices de alfabetização seguiam em queda, ainda que o analfabetismo fosse considerável, e crescia o número nas vendas de aparelhos de som, assim como os demais aparelhos de utilidade doméstica, quer, em parte, por certo barateamento deles devido às novas tecnologias quer pela ampliação e facilidades de sua aquisição via crediário, fórmula incentivada e, por vezes, subsidiadas pela política econômica do regime militar.12 Seguindo com os lançamentos constantes de coleções, a Abril Cultural, amparada por amplo esquema empresarial do conglomerado editorial da família Civita, se posicionava, enfim, como a líder inconteste no setor de produção e venda de coleções. Posição alcançada, além do favorecimento dos fatores acima mencionados, devido também ao fato de possibilitar que parcela significativa da sociedade brasileira tivesse contato com uma gama de primorosas coleções em fascículos. Estas abrangendo os mais variados temas e assuntos, indo do universal, com Grandes Compositores da Música Universal (1968), Grandes Personagens da História Universal (1970), Os Imortais da Literatura Universal (1970), Conhecer Universal (1981), ao nacional, com O Livro da Cozinha Brasileira (1974), Brasil por Estados – Mapas (1976), Arte Brasileira (1976), Arte no Brasil (1979), A Pintura no Brasil (1981), História da Música Popular Brasileira (1970/72, 1977/79 e 1982/84), quase sempre com sucesso de vendas e contanto com relançamentos em períodos posteriores. Qualificativos que a Editora 12Ver: MELLO, João Cardoso de; NOVAIS, Fernando. Capitalismo tardio e sociabilidade moderna. In.: SCHWARCZ, Lilia Moritz (org.). História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. Vol. 4. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 562-7. 27 Abril sempre utilizou para divulgar sua existência e objetivos junto ao seu público e a população em geral. 1.2. A Coleção, seus agentes, sua produção e divulgação A Abril Cultural lançou nas bancas de todo o país, no ano de 1970, uma coleção com características até então inéditas, até mesmo para uma empresa que era especializada no setor de coleções em fascículos. Trata-se da Coleção História da Música Popular Brasileira. Esta receberia, no entanto, três versões. A primeira produzida e vendida entre os anos de 1970 a 1972, a segunda de 1977 a 1979 e a terceira entre os anos de 1982 a 1984. Seu ineditismo, à época da primeira versão, residia no fato de seu conteúdo e sua produção ser totalmente brasileira, diferente das coleções anteriores cujo conteúdo enfocado era de músicas clássicas ou gêneros musicais estrangeiros, além de tratar-se de versões de congêneres de outros países. A primogênita versão da Coleção era composta por 48 fascículos, todos lançados quinzenalmente, cada um deles enfocando um destacado nome do nosso cancioneiro popular. Suas capas eram pretas, ostentando o número de lançamento a que correspondia o fascículo e destacando os nomes de algumas das canções presentes no disco, bem como de seus intérpretes. Com certo destaque na parte de cima da capa vinha estampada informação da periodicidade dos lançamentos dos fascículos e, mais visivelmente, a de que a publicação era acompanhado por um disco, expedientes utilizados em todos os fascículos que compuseram a primeira versão da Coleção. O emprego de tais expedientes indica que ainda certos aspectos das vendas das coleções vendidas em bancas de jornal não se encontravam amplamente arraigadas no cotidiano do potencial consumidor e que as coleções musicais dispusessem da parte fonográfica. Ademais, no canto direito superior da capa tinha-se a impressão bem destacada do número do fascículo, bem como no interior deste era disposta, a partir do segundo fascículo, uma lista composta de nomes dos compositores já focalizados anteriormente, ordenada pela numeração dos fascículos. Tais recursos gráficos denotam a intenção óbvia dos produtores desepertarem no leitor/ouivnte a disposição de acompanhar a Coleção, mas, também, conotam a intenção de levar o consumidor a adotar o sentido de que somente com a aquisição de todos os fascículos poderia se ter por completo a história da música popular brasileira ao alcance de seus olhos e ouvidos. Logo, o sentido de coleção adotado pela Abril Cultural e intentado junto ao seu consumidor era a sobrevalorização da completute da coleção, esta sendo tão mais valiosa quanto mais completa fosse. Sentido que, ao lado da raridade da coleção, tem pautado os colecionadores ao longo dos tempos, mas, antes e acima de tudo, bastante favorável e 28 convergente aos interesses comerciais da indústria cultural. E tal sentido fica ainda comprovado na estratégia de a Abril Cultural facilitar ao leitor/ouvinte a aquisição de fascículos que não tivessem sido comprados no período de disposição nas bancas. Para tanto, a publicação ostentava a informação: “Você pode comprar qualquer número desta coleção ao preço do último fascículo que estiver nas bancas. Peça-o ao jornaleiro ou ao Agente de Distribuidor da Abril de sua cidade. Ou então diretamente à Abril...”. Este expediente foi mantido nas duas outras versões, porém, era praxe aplicá-lo a todas as coleções da Abril e demais empresas do setor. A imagem presente na capa poderia ser da foto do compositor focalizado, como bem ilustra a Figura 1, abaixo localizada. A imagem também poderia remeter a algo relacionado ao enfocado, trabalho ou personalidade do enfocado, como, por exemplo, explicita a capa do fascículo Ary Barroso, na Figura 2, mais abaixo. Nela a torcida do Flamengo fora representada em razão de Ary Barroso também ter sido locutor esportivo no rádio e notório torcedor fanático daquele time, tanto que torcia desbragadamente para o rubro-negro carioca quando das transmissões de suas partidas. Por vezes, a capa apresentava imagens artisticamente trabalhadas, todas por Elifas Andreato, como exemplifica a Figura 3, destacada em página mais abaixo. Os títulos das canções destacadas na capa dos fascículos eram, geralmente, as mais populares e conhecidas do focalizado, assim como salientava nomes de intérpretes que se destacaram e/ou haviam imortalizado certa interpretação de uma canção registrada no disco. Em alguns casos, as capas não continham este útlimo recurso de destaque, dado que as interpretações mais representativas das canções destacadas dos focalizados eram deles próprios, com era o caso de Sérgio Ricardo, como se pode observar na Figura 3, e também o de Milton Nascimento e o de Juca Chaves. 29 Figura 1 – Capa do fascículo de Geraldo Vandré da primeira versão da Coleção História da Música Popular Brasileira, em 1971. Fonte (internet): Discoteca Pública13 13 Disponível em: . Acesso em 19 set 2014. 30 Figura 2 – Capa do fascículo de Ary Barroso da primeira versão da Coleção História da Música Popular Brasileira, em 1970. Fonte (internet): Discoteca Pública14 14Disponível em: . Acesso em 19 set 2014. 31 Figura 3 – Capa do fascículo de Sérgio Ricardo da primeira versão da Coleção História da Música Popular Brasileira, em 1971. Fonte (internet): Discoteca Pública15 A contracapa era composta por pequeno relato/comentário sobre o artista em foco e sua obra musical, elaborada, geralmente, por algum crítico musical, jornalista ou alguém próximo ao focalizado. Era uma espécie de resumo da apresentação do artista para o leitor/ouvinte. Expediente editorial utilizado pelo fato de o interessado em adquirir o fascículo 15Disponível em: . Acesso em 19 set 2014. 32 não poder folhea-lo antes da compra, dado o produto ser lacrado por plastico transparante. No exemplo do fascículo Dorival Caymmi, o resumo de apresentação, reproduzido na Figura 4, tratava-se de trecho de um depoimento de Vinicius de Moraes, então, amigo e parceiro de composições. Recurso bastante valorizado quanto mais conhecido e reconhecido fosse o apresentador, sobremaneira no campo musical e com carreira em evidência, como era o caso de Vinicius de Moraes, aliás, outro enfocado da Coleção. Figura 4 - Contracapa do fascículo de Dorival Caymmi da primeira versão da Coleção História da Música Popular Brasileira, em 1970. Fonte (internet): Instituto Antonio Carlos Jobim16 16Disponível em: . Acesso em 23 out 2014. 33 Os discos que integravam os fascículos da Coleção eram de 10 polegadas, com oito registros fonográficos, trazendo, como dito acima, as canções e os intérpretes mais representativos da obra do focalizado. Por vezes, foi preciso realizar a recuperação das matrizes das canções já desgastadas pelo uso e pelo tempo para comporem diversos discos da Coleção, possibilitando que seus leitores/ouvintes tivessem contato com gravações antológicas do cancioneiro brasileiro. Composto por doze páginas, os textos internos dos fascículos não eram assinados e apresentavam divisões textuais por meio de intertítulos. Porém, alguns apresentavam uma entrevista, comentário ou pequeno texto assinado por crítico musical, pesquisador da música popular brasileira, jornalista ou apenas de alguém que fosse próximo ao focalizado, dando assim, mais informações e dados a respeito do artista em questão. Ademais, alguns fascículos traziam determinados boxes explicativos, os quais apresentavam elementos sobre o gênero musical ao qual correspondia o compositor focalizado. Os escritos eram permeados por imagens e fotos que remetiam à infância, à família e, por vezes, à vida profissional do compositor, geralmente fazendo coro aos textos. Os fascículos apresentavam também, em sua parte interna, as fichas técnicas das canções, especificando seus compositores, os intérpretes que as gravaram e uma breve análise sobre a canção focalizada, a qual poderia ser uma análise técnica, destacando a condução melódica, seus versos, a estrutura musical da canção ou então observações de ordem histórica, com a trajetória da canção – quando e onde surgiu pela primeira vez, na voz de qual intérprete se destacou e sua importância na carreira do compositor focalizado. Muitas vezes, as informações destacam que se trata de um grande sucesso do artista ou que determinada canção não havia sido grande sucesso quando de seu lançamento, porém, por conta de uma regravação, havia ganhado notoriedade diante do público consumidor. Dados e informações que buscavam familiarizar o leitor/ouvinte com o artista enfocado e sua obra, além de reforçar a ideia de obra histórica que a Coleção se autoproclamava. Outra parte interna dos fascículos se ocupava com a reprodução das letras das canções contidas nos discos, embora, vez ou outra, é possível notar alterações de palavras e expressões entre a versão impressa da letra e a cantata e registrada. Ocorrência que se dava, quanto ainda não se repete, comumente entre encartes de letras e os registros fonográficos em uma sorte variada de discos. No ano de 1976, a Abril Cultural lança a segunda versão da Coleção, a qual iria ser comercializada até 1979, devido ao aumento do número de fascículos, aumentado para 75. A segunda versão era uma edição revista e ampliada da primeira. Assim, ela apresentou mudanças nas capas, as quais passaram a serem coloridas, onde antes era apenas preto e os 34 números referentes ao lançamento foram suprimidos. Em semelhança, apresentava o nome das canções destacadas, assim como seus intérpretes e a foto do compositor focalizado, a qual poderia ser diferente da estampada na primeira versão, porém, com a mesma estrutura gráfica, como mostra a Figura 5, em página à frente. Chama a atenção de uma versão para a outra o acréscimo do termo ‘Nova’ ao título História da Música Popular Brasileira. Apesar de poucas mudanças imagéticas e editoriais dos fascículos, aquele adjetivo podia ser ostentado tanto pelo fato de novos compositores serem enfocados quanto por apresentar novas canções ou interpretações dos fascículos da primeira versão que eram relançados. Contudo, muitos dos novos enfocados tinham surgido ou obtido sucesso no cenário musical no início dos anos de 1970.17 A Coleção, assim procedendo, conseguia, de um lado, aludir à noção de que eles tinham ou estavam contribuindo com a inovação da história do cancioneiro popular, e, de outro, agregavam um atrativo a mais para as vendas, uma vez que muitos daqueles novos enfocados pela Coleção se encontravam com carreiras em alta e bem sucedidas, o que poderia levar os fãs deles apenas a adquirirem os seus fascículos. Não por acaso, a numeração dos fascículos da Coleção não foi empregada na segunda versão. Algumas alterações pequenas também foram investidas na contracapa dos fascículos da segunda versão. Naquela parte não era mais apresentado os pequenos textos em forma de relato/comentário sobre o artista focalizado. Na maioria delas apresentava-se a foto do compositor, por vezes uma imagem artisticamente trabalhada. Estratégia que seria possível, visto que, os artistas já seriam conhecidos da primeira versão, não sendo mais preciso um texto de quarta página. E para os fascículos dos enfocados que tivessem desfrutando de sucesso e reconhecimento então recentes, a supressão do texto da contracapa é entendida pelo fato de suas carreiras e obras contarem com ampla visibilidade na mídia em geral, o que permitia mais rápida e facilmente a idetificação deles pelo leitor/ouvinte. E os textos internos, assim como os da primeira versão, não eram assinados, apresentando uma narrativa contínua, entremeada apenas por intertítulos e imagens/fotos. Na parte editorial interna tinha-se a repetição dos mesmos textos dos fascículos de compositores enfocados quando da primeira versão ou os de igual natureza dedicados aos recém-incorporados nomes à Coleção, além de informações técnicas ou históricas das canções destacadas nos discos e as letras delas. A informação de que os fascículos eram compostos por discos migraram para a contracapa, com 17 Embora a segunda versão da Coleção não seja foco de nossa pesquisa, como dito na Introdução, os novos nomes dos focalizados por ela serão destacados no terceiro tópico deste capítulo. 35 bem menor destaque do que a expressada na primeira versão, então, exposta na capa, como dito antes. Figura 5 – Capa do fascículo de Dorival Caymmi da segunda versão da Coleção Nova História da Música Popular Brasileira, em 1976. Fonte (internet): Discoteca Pública18 O disco dos fascículos da segunda versão apresentava característica fonográfica idêntica ao da primeira: 10 polegadas; composto por oito registros fonográficos de canções do focalizado, interpretadas por ele próprio ou por intérpretes, embora estes pudessem sofrer alterações de uma versão pra outra, assim como as canções focalizadas, mas sempre buscando cercar-se das mais consagradas interpretações dadas às canções. 18Disponível em: . Acesso em 19 set 2014. 36 Composta por 52 fascículos19, a terceira versão da Coleção figurou no mercado entre 1982 a 1984. Além da redução do número de fascículos em comparação com a versão anterior, o novo lançamento retirou o termo ‘nova’ do título e acrescentou o subtítulo “Grandes Compositores”. O atrativo extra para vendagem agora se calcava na grandeza musical dos enfocados, fossem eles contemporâneos fossem de passado mais ou menos remoto, porém, tendo eles em comum denotada grandeza qualitativa de suas obras. Foco que podia justificar a redução do número de fascículos da terceira versão, embora talvez se devesse considerar também o efeito da séria crise econômica que o Brasil vivenciou exatamente durante aqueles anos. Há que se destacar que o subtítulo registrava de forma clara a diretriz mantida em todas as versões da Coleção: o enfoque aos compositores. Intérpretes somente eram destacados, na parte textual ou na fonográfica, inclusive na contracapa, dadas suas vinculações com a obra ou, por vezes, a vida do compositor em destaque. Quando analisados do ponto imagético e textual, os fascículos da terceira edição da Coleção rompiam amplamente com o modelo básico reproduzido na primeira versão e na segunda, a começar pelo layout das capas. Estas eram dispostas em fundo branco, com fotos em preto e branco dos focalizados, destacando os seus nomes em enormes letras garrafais coloridas, geralmente em tons de vermelho, azul, verde ou laranja. Muitas vezes, usava-se o recurso de encobrir parcialmente o nome impresso do focalizado com sua imagem, o que seria possível devido ao fato de ele ser amplamente conhecido, como é o exemplo da capa do fascículo de Chico Buarque, reproduzido na Figura 6, na página seguinte. Os fascículos da terceira versão não receberam, tal como os da segunda, nenhuma numeração com o fito de ordená-los em Coleção, mesmo internamente não era informada a ordem de lançamento dos fascículos. Na década de 1980, tanto o disco em formato LP quanto a Coleção não eram mais uma novidade entre os consumidores, portanto, destacava-se na capa aquilo que era novidade e o que a diferenciava das demais versões, já as informações julgadas mais conhecidas do grande público eram retratadas na contracapa, como se observa na Figura 7, localizada mais à frente neste capítulo. 19A quantidade de fascículos da terceira versão não foi possível precisar, visto não encontrar uma listagem completa de todos os lançamentos. A quantidade apresentada foi levantada via pesquisa em diferentes meios e refere-se à quantidade que tivemos acesso ao longo da pesquisa. 37 Figura 6 – Capa do fascículo de Chico Buarque da terceira versão da Coleção História da Música Popular Brasileira – Grandes Compositores, em 1982. Fonte (internet): Discoteca Pública20 Uma das novidades apresentadas na capa foi o destaque dado aos textos internos dos fascículos, os quais passaram a ser assinados. O título dos textos, uma pequena chamada deles e suas autorias eram elementos de evidência nas capas, como se pode observar na capa do fascículo Chico Buarque, reproduzida na Figura 6, localizada nesta página. Neste caso, a capa destacava: chamada do texto de autoria do jornalista e crítico musical Tárik de Souza, intitulado “O que não tem censura nem nunca terá”, o que indicava que ele abordaria a vida e 20Disponível em: . Acesso em 19 set 2014. 38 obra de Chico Buarque, há anos, notório pela sua oposição à ditadura militar e embaraços com a censura, o que possibilitava o título do texto, aliás, uma aliteração de trecho de conhecida canção do focalizado; em idêntica disposição, vinha informações sobre o outro texto, intitulado “No anti-herói, a denúncia da realidade”, da autoria do jornalista e poeta Affonso Romano de Sant’Anna, indicando a análise dos temas que ganharam maior destaque na obra de Chico Buarque. Dadas as alterações amplas na capa, a contracapa necessariamente passara por idêntico processo. Nela destacava-se que o fascículo era composto por um disco que trazia uma “seleção de músicas, em consagradas interpretações”. Logo abaixo se abria uma lista, dividida em duas partes, uma para o lado A e outra para o lado B do disco. Nestas eram anunciado primeiramente os nomes dos intérpretes, depois, o título da canção, acompanhada, entre parênteses, pelos minutos da gravação, seguidas das autorias das composições musicais e, por fim e em letras bem menores, os portadores dos direitos autorais dos registros fonográficos reproduzidos. Mais abaixo deste quadro, vinha um texto sobre o objetivo da Coleção – Série Grandes Compositores. Em tom de autopromoção, eram apresentadas as breves características do produto: a de apresentar a evolução da música, essa que seria uma “importante manifestação cultural de nosso país”, por meio dos textos críticos e biográficos dos fascículos, assim como das músicas do disco presentes em cada lançamento. Terminando a contracapa, eram reproduzidas fotos, em preto e branco e no estilo colagem, de alguns dos intérpretes que figuravam no disco, sempre num misto de imagens dos mais conhecidos do público em geral e os em situação contrária, mas, neste caso, servindo ao propósito da Coleção de resgatar a história/memória do cancioneiro popular brasileiro. Elementos gráficos e visuais que podem ser conferidos na Figura 7, reprodução da contracapa do fascículo dedicado a Dorival Caymmi, localizado na página seguinte. No caso da contracapa deste fascículo, os intérpretes eram tanto os que haviam se destacado em décadas anteriores à de 1970, quer já falecidos, como Carmem Miranda, quer em atividade – Tom Jobim, João Gilberto - ou no ocaso de suas carreiras - Lúcio Alves e Dick Farney, ainda que o registro fonográfico deste constante no fascículo fosse contemporâneo à Coleção -, bem como os de carreiras iniciadas nos anos 1960, mais conhecidos do público em geral – como Elis Regina, embora tivesse morrido em março de 1982, Maria Bethânia, Gal Costa – ou pouco notadas pelo grande público – Nana Caymmi e Quarteto em Cy. Quanto mais longa fosse a carreira e amplamente divulgada a obra do focalizado, como era o caso de Caymmi, repetia-se os recursos de seleção dos intérpretes e da confecção da contracapa. 39 Figura 7- Contracapa do fascículo de Dorival Caymmi da terceira versão da Coleção História da Música Popular Brasileira – Grandes Compositores, em 1982. Fonte (internet): Instituto Antonio Carlos Jobim21 A nova estrutura gráfica empreendida às capas e contracapas dos fascículos da terceira versão da Coleção fornecia mais elementos de informação e os organizava mais clara e objetivamente, quando comparado às versões anteriores. Expediente útil, dado que o produto continuava chegando às bancas de forma lacrada, envolto em plástico transparente. E o mais importante, o layout adotado era bem distinto dos empregados nas publicações geralmente expostas em bancas de jornal, cujas capas, ao contrário dos fascículos da terceira edição da Coleção, eram elaboradas com muitas cores. Assim, o novo visual das capas dos fascículos 21Disponível em: . Acesso em 24 out 2014. 40 possibilitava uma identificação fácil e rápida do produto pelo consumidor dentre tantos outros expostos nas bancas, favorecendo ao leitor/ouvinte interessado em acompanhar os lançamentos dos fascículos. Se os primeiros discos foram de 10 polegadas para não rivalizar com os de 12 que estavam sendo lançados pela indústria fonográfica22, os que encartavam a terceira versão passavam para 12 polegadas, trazendo, em média, doze registros fonográficos. A mudança nas polegadas dos discos foi possibilitada pela consolidação da indústria fonográfica no mercado nacional, bem como a parceria entre empresas com a Abril, visto que a Coleção representava um meio de divulgação de artistas que estavam no catálogo das gravadoras. A Coleção tornava-se uma ferramenta de divulgação e não mais de concorrência para os produtos das gravadoras. Internamente, o fascículo trazia as fichas técnicas das canções, trabalhadas igualmente à primeira e à segunda versão, com informações a respeito de seus compositores, intérpretes que as gravaram e sobre a própria canção, a qual tinha sua letra apresentada ao final do fascículo. Como dito antes, um dos destaques da nova versão da Coleção eram os textos assinados, entretanto, da lavra de renomados profissionais ligados ao universo musical. Elemento editorial que corroborava com autoproclamada qualidade artístico-cultural da Coleção. Assim, a intenção da Coleção em apresentar o que havia de melhor e mais significativo na história da música popular brasileira recebia a chancela de notáveis especialistas/pesquisadores/músicos da trajetória do cancioneiro popular. Compostos por oito páginas, os textos eram divididos em três partes. Iniciava-se com um texto assinado por um dos profissionais envolvidos na produção da Coleção. Em sua maioria, destaca-se alguma(s) característica(s) do artista e/ou de sua obra, apresentando uma análise mais pormenorizada e, por vezes, musicológica, com linguagem técnica a respeito dos trabalhos do compositor. Em seguida, o encarte traz seção denominada “MPB Pesquisa”, elaborada pelo pessoal da Abril Cultural, portanto, não assinado. Nela destaca-se a biografia pessoal e profissional do focalizado, com informações a respeito de suas produções e parcerias musicais, enfatizando a qualidade e importância do compositor para a história da música popular brasileira. O fascículo finalizava-se com outro texto assinado, no qual é apresentada mais uma característica em destaque do focalizado, expondo, igualmente ao primeiro texto, uma análise mais particularizada, aprofundada e, algumas vezes, técnica, em termos musicais sobre algum detalhe da obra do artista. 22 Gazeta do Povo, 12/04/2014. 41 À elaboração das três versões da Coleção foram integrados, além de técnicos especialistas no ramo editorial, vinculados à Editora Abril, profissionais ligados ao setor jornalístico, notadamente especializados em crítica musical. Alguns destes tendo composto corpo de jurados de festivais da canção e com denotadas pesquisas sobre música brasileira, bem como tinham produzido ou dirigido shows e LPs de músicos/intérpretes. Somavam-se os técnicos especializados ou pessoas com atividades variadas ligadas à produção discográfica, bem como diversos músicos e maestros. Segundo Irineu Guerrini (2007, p. 03), para a elaboração da Coleção, assessores selecionavam consultores, geralmente especialistas na música popular brasileira, os quais, por sua vez, pautavam os assuntos e canções a serem focalizados por cada fascículo. Posteriormente, entrava-se na fase de negociação de direitos autorais. Como lembra Pedro Paulo, à época responsável pela divisão de fascículos da Abril Cultural, os detentores dos direitos das gravações não encaravam inicialmente com bons olhos a liberação dos direitos para a Coleção, entretanto, com a significativa tiragem e vendas dos primeiros fascículos, a situação se alteraria, inclusive passando os detentores a oferecerem gravações para a Abril Cultural.23 Depois de obtida a liberação das gravações, um pesquisador era indicado pelo consultor, passando a desenvolver o trabalho com base em pauta já anteriormente aprovada. Os conteúdos das pesquisas eram enviados ao consultor para aprovação. A forma final era dada por um redator e seu trabalho passava pela aprovação do consultor, e só então ia para o diretor da Divisão de Fascículos. Aprovado, o texto final era encaminhado para o Departamento de Arte. E antes de ir para a gráfica, o fascículo passava novamente pelo diretor. A Coleção era, portanto, cuidadosamente elaborada e produzida pelos diferentes setores pelos quais ela passava (GUERRINI, 2007, p. 03). Pedro Paulo Poppovic, sociólogo, formado pela Universidade de São Paulo (USP), esteve sempre ligado às questões educacionais, sendo Ministro da Educação durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Este seu veio educacional esteve presente enquanto trabalhou para a Editora Abril, sendo um dos responsáveis pelo projeto de lançar fascículos no mercado, tornando-se o diretor desta divisão empresarial do grupo Abril, que veio a ser um dos carros-chefes de venda da empresa de Victor Civita. O setor de arte era comandado pelo artista gráfico Elifas Andreato. Ele chegou à Abril Cultural no ano de 1967, como estagiário, a convite de Atílio Basquera, à época diretor de arte da Editora Abril. Trabalhou nas revistas Cláudia, Manequim, Quatro Rodas, Realidade e 23Entrevista com Pedro Paulo Poppovic concedida a Irineu Guerrini Jr, no dia 8 de fevereiro de 2007. Ver: GUERRINI, 2007, p. 03. 42 Placar, assumindo posteriormente, a direção de arte do setor de fascículos da Abril Cultural. Em sua nova função, no ano de 1970, participou dos projetos gráficos da revista Placar e da coleção História da Música Popular Brasileira, em suas duas primeiras versões, empreitada que possibilitaria maior visibilidade ao seu trabalho. Neste projeto, ele procurava conhecer de antemão o artista a ser retratado, convivendo com ele, criando laços de amizades, para assim, imprimir em seus trabalhos a essência de cada artista. Elifas Andreato é considerado o artista gráfico que revolucionou a maneira de se conceber as capas de LPs ao apresentar desenhos com técnicas consideradas modernas para a época, além de conseguir exprimir em seus trabalhos o cerne de cada obra e seu artista, como bem ilustra a Figura 8, localizada abaixo. Após seu trabalho inicial na Coleção, muitos compositores passaram a procura-lo para idealizar o projeto gráfico de seus LPs. Fato que demonstra o reconhecimento, assim como a qualidade de seus trabalhos24 e, indireta e pontualmente, a intervenção da Coleção no universo fonográfico. Figura 8 - Capa do fascículo de Haroldo Lôbo da primeira versão da Coleção História da Música Popular Brasileira, em 1972. Fonte (internet): Discoteca Pública25 No caso da primeira versão, os assessores eram José Lino Grünewald, José Ramos Tinhorão, Júlio Medaglia e Tárik de Souza. À época do lançamento da Coleção, Tárik de Souza já era redator da coluna sobre música da revista Veja, publicação da Editora Abril, então lançada pouco menos de dois anos. No que se refere a José Ramos Tinhorão, este como jornalistas e pesquisador do cancioneiro popular já se revelara como inflexível defensor da 24< http://www.consciencia.net/2003/12/12/elifas.html>. Acesso em 10 set 2014 25 Disponível em: . Acesso em 29 out 2014. 43 música tradicional, acusando a Bossa Nova por receber influências internacionais e, supostamente, prejudicar a ‘pureza’ da música brasileira. Tinha trabalhado, no final da década de 1960, como redator de revistas publicadas pela Editora Abril. Atuou também em diversos jornais, como Correio da Manhã, Última Hora e emissoras de televisão, como TV Excelsior, TV Rio. Já contava com a publicação dos livros Música popular: um tema em debate (1966) e O samba agora vai: A farsa da música popular no exterior (1969); além de no ano seguinte ter lançado Música popular: cinema e teatro (1972) e Música popular de índios, negros e mestiços (1972).26 A atuação profissional de José Lino Grünewald havia se dado em diversos jornais, além de ter sido conselheiro do Museu da Imagem e do Som (MIS). Tornou-se especialista nos cantores da época do rádio, tais como Orlando Silva, Francisco Alves, Carlos Galhardo, entre outros, além de ter sido um crítico assumido de João Gilberto.27 O maestro Júlio Medaglia ficou conhecido por seus arranjos musicais para o Tropicalismo e por seus trabalhos na televisão. Ao final da década de 1960, ao lado de Solano Ribeiro, organizou os Festivais de MPB, da TV Record e fez um programa semanal na TV Cultura, com sua orquestra Cordas de São Paulo28. A Coleção contou com extenso quadro de consultores. Entre eles estavam críticos musicais e/ou jornalistas ligados ao universo da música popular brasileira, dos quais podemos destacar alguns, como o jornalista Sérgio Cabral, que à época do lançamento da Coleção trabalhava como editor da revista Realidade, da Editora Abril.29 No que se refere a Ary Vasconcelos, destaca-se sua atuação profissional, ao final da década de 1960, como conferencista a respeito da música popular brasileira, além de sua atuação como júri nos festivais de MPB em suas diversas edições e na organização do Festival Internacional da Canção (FIC), veiculado pela TV Globo.30 Os destaques da atuação profissional de Lúcio Rangel foram a criação da Revista da Música Popular (1954-1956), a qual destinava-se à defesa da tradicional música popular brasileira e a produção e lançamento de seu livro Sambistas e chorões: aspectos e figuras da música popular brasileira, no ano de 1962. 31 No que se refere a Jota Efegê, destaca-se sua atuação como cronista nos jornais O Globo, Jornal do Brasil e O Jornal durante as décadas de 1960-1970.32 Na década de 1970, Ezequiel Neves trabalhava como crítico musical no Jornal da Tarde, experiência que o levou a criar, 26 Ibid. < http://www.dicionariompb.com.br/jose-ramos-tinhorao>. 27Ibid. < http://www.dicionariompb.com.br/jose-lino-grunewald/biografia>. 28. 29Ibid.< http://www.dicionariompb.com.br/sergio-cabral/biografia>. 30Ibid. 31Ibid. 32Ibid 44 juntamente com Ana Maria Bahiana e Tárik de Souza, a revista Rock: A história e a glória. Neste mesmo período, passou a atuar como produtor musical da gravadora Som Livre, sendo um dos responsáveis pelo lançamento do Barão Vermelho, banda de rock à época com Cazuza no vocal.33 Tendo se destacado como jurada nos desfiles das escolas de samba do carnaval carioca, Eneida Costa de Morais, lançou, no ano de 1958, seu livro A História do Carnaval Carioca, e no final dos anos 1960, produzira o show “Carnavália”, o qual relançou a cantora Marlene e os cantores e compositores Blecaute e Nuno Roland.34 Participou apenas dos primeiros fascículos da primeira versão da Coleção, pois faleceu no início de 1971. No rol de consultores atuantes como críticos musicais e/ou ligados ao universo musical deve-se igualmente destacar: Walter Silva que durante a década de 1970, trabalhava como diretor artístico da gravadora Continental, onde lançou artistas como Célia, Walter Franco e Secos e Molhados, além de ter atuado como júri do FIC, em 197235; e Capinan, destacado letrista, especialmente para o Tropicalismo, para o qual escreveu duas importantes canções: “Soy Loco por Ti, América” e “Miserere Nobis”, ambas musicadas por Gilberto Gil, em 1968. No ano seguinte, se aproximou de Jards Macalé, com quem, juntamente com Gal Costa, daria continuidade aos seus experimentos musicais.36 Integravam o quadro de assessores da Coleção músicos e maestros, quando não com desempenho em programas musicais no rádio e/ou na TV. Merecem destaque alguns deles. O radialista Almirante ficou conhecido por sua participação no grupo Bando de Tangarás, na década de 1930, e por apresentar o programa radiofônico “No Tempo de Noel Rosa", nos anos 1950, cujo nome seria título de seu livro, considerado a primeira biografia de Noel Rosa, publicado na década seguinte.37 No que se refere à Aracy de Almeida, à época do lançamento da primeira versão da Coleção, ela encontrava-se ao ocaso de sua carreira, atuando como jurada do quadro “Show de Calouros” do programa dominical de Silvio Santos.38 O sambista Paulinho da Viola havia se destacado, ao lado de Zé Kéti, com o grupo A Voz do Morro, ao final dos anos de 1960. Na década seguinte, produzira o primeiro disco da Velha-Guarda da Portela.39 A atuação profissional de Rogério Duprat ficou marcada por sua participação em diversos arranjos para o Tropicalismo e, no ano de 1968, da gravação do LP histórico 33Ibid. 34Ibid. 35ALBIN, Cravo, op. cit., 36Ibid. ; . Acesso em: 08 nov 2014. 37Ibid. < http://www.dicionariompb.com.br/almirante/dados-artisticos>. 38 Ibid. 39 Ibid . 45 "Tropicália ou Panis et Circenses”.40 Francisco Petrônio ficou conhecido por apresentar, em fins dos anos 1960, o programa televisivo “Baile da Saudade”, inicialmente veiculado pela TV Globo, e posteriormente pelas emissoras de televisão, Gazeta e Cultura, de São Paulo.41 Moraes Sarmento à época do lançamento da Coleção atuava como apresentador do “Programa Moraes Sarmento", dedicado à música popular brasileira, veiculado pela Rádio Bandeirantes.42 No que se refere a Randal Juliano, sua atuação de destaque foi como apresentador dos Festivais de MPB, da TV Record, entre os anos de 1966 e 1967.43 O maestro Walter Lourenção, na década de 1970, dirigia o Departamento de Música do Museu de Arte de São Paulo (MASP). Nomes ligados ao mundo das letras e das artes comporiam igualmente o quadro de assessores da Coleção, como: o poeta Augusto de Campos que, por sua atuação no movimento de Poesia Concreta, aproximou-se do Tropicalismo, o qual tinha bases neste tipo de poesia44; e o desenhista e caricaturista Miécio Caffé, conhecido por ser um dos maiores colecionadores de discos de cancionista da música popular brasileira. Ademais, manteve contato com inúmeros músicos, realizando em seu apartamento diversas reuniões com João Gilberto, Maysa, Lúcio Alves, Aracy de Almeida, Ciro Monteiro, Isaura Garcia, Adoniran Barbosa, Sylvio Caldas, Emilinha Borba, Francisco Alves, Orlando Silva, Lupicínio Rodrigues, Carmen Miranda e Elis Regina.45. No que diz respeito à coordenação da terceira versão da Coleção, a assessoria contou com Tárik de Souza, Zuza Homem de Mello, J. L. Ferrete (responsável pelas fichas técnicas das gravações) e Ana Lúcia Côrrea da Silva (responsável pela pesquisa).46 Quando do lançamento dela, Tárik de Souza continuava com sua coluna musical na revista Veja e a no Jornal do Brasil, iniciada em 1974 e intitulada “Supersônicas”, bem como começava a excursionar pela telinha, com programa musical na TVE, do Rio de Janeiro. Zuza Homem de Mello já havia atuado na TV Record, nos 1960, como produtor e engenheiro de som de programas musicais e dos festivais de MPB. No ano de 1977, trabalhando na Rádio Jovem Pan, dirigiu os shows O Fino da Música, que contou com nomes como Elis Regina, Elizeth Cardoso, João Bosco, Ivan Lins, Emilio Santiago, Alcione, entre outros. Ambos assessores 40Ibid. 41Ibid 42Ibid. 43Disponível em : . Acesso em 25 out 2014. 44 Ibid <