unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA ‘JÚLIO DE MESQUITA FILHO’ Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP MARA ROSELAINE PINTO DA FONSECA DESCRIÇÃO E ENSINO FUNCIONAL DA uma proposta dentro da pragmática convencional e conversacional ARARAQUARA – S.P. 2024 MARA ROSELAINE PINTO DA FONSECA DESCRIÇÃO E ENSINO FUNCIONAL DA GRAMÁTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA: uma proposta dentro da pragmática convencional e conversacional Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestra em Linguística e Língua Portuguesa. Exemplar apresentado para defesa. Linha de pesquisa: Análise Fonológica, Morfossintática, Semântica e Pragmática. Orientador: Prof. Dr. Antônio Suárez Abreu ARARAQUARA – S.P. 2024 F676d Fonseca, Mara Roselaine Pinto da Descrição e ensino funcional da gramática da língua portuguesa : uma proposta dentro da pragmática convencional e conversacional / Mara Roselaine Pinto da Fonseca. -- Araraquara, 2024 63 p. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara Orientador: Antônio Suárez Abreu 1. Linguística Cognitiva. 2. Funcionalidade Comunicativa. 3. Pragmática Convencional. 4. Pragmática Conversacional. 5. Gramática do Português. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. MARA ROSELAINE PINTO DA FONSECA DESCRIÇÃO E ENSINO FUNCIONAL DA GRAMÁTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA: uma proposta dentro da pragmática convencional e conversacional Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestra em Linguística e Língua Portuguesa. Exemplar apresentado para defesa. Linha de pesquisa: Análise Fonológica, Morfossintática, Semântica e Pragmática. Orientador: Prof. Dr. Antônio Suárez Abreu Data da defesa: 29/04/2024 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Prof. Dr. Antônio Suárez Abreu Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara Membro Titular: Profa. Dra. Beatriz Quirino Arruda Doná Departamento de Medicina / Faculdade São Leopoldo Mandic Membro Titular: Profa. Dra. Aline Pereira De Souza São Carlos / Secretaria do Estado de São Paulo Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara AGRADECIMENTOS Primeiramente, a Deus, por me abençoar com saúde e força para aproveitar esta vida com alegria e desempenhar os papéis de professora e pesquisadora. Ao meu orientador, Prof. Dr. Antônio Suárez Abreu, por sua orientação e dedicação. Suas contribuições foram fundamentais para o meu desenvolvimento acadêmico e pessoal. Muito obrigado por me ensinar, sempre pelo bom exemplo, que ser um professor de referência em nosso campo de estudos exige não apenas competência, mas também uma boa dose de empatia e humanidade. Desejo poder transformar as vidas dos meus alunos para melhor assim como faz o querido Tom. À Unesp, em especial à Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, seus docentes e servidores, por me receberem sempre com empatia e por todo o suporte acadêmico. “Pensa na doçura das palavras. Pensa na dureza das palavras. Pensa no mundo das palavras. Que febre te comunicam. Que riqueza. Mancha de tinta ou gordura, em todo caso mancha de vida.” Carlos Drummond de Andrade (1945, p. 116) RESUMO Tem esta dissertação o objetivo de descrever alguns tópicos da gramática do português, do ponto de vista da sua funcionalidade comunicativa. Acredito que essa seja a melhor maneira de fazer com que os alunos dominem a gramática: sabendo os motivos que levam os falantes a escolher determinadas construções dentro de um leque possível de opções. O referencial teórico é o da linguística cognitiva, tratando a linguagem humana como um sistema complexo e, também, a proposta de Goldberg (2007), em dividir a pragmática – que é uma teoria da enunciação – em pragmática convencional e não convencional ou conversacional. A pragmática convencional estuda a influência dos atratores clarezas, economia, blending e iconicidade, na produção do ato de fala, e a pragmática conversacional, a influência do atrator sociabilidade, que tem por objetivo o gerenciamento da relação entre quem fala ou escreve e a segunda pessoa que lhe serve de interlocutor. Espero que esse pequeno trabalho possa inspirar meus colegas a ampliar a descrição dos tópicos gramaticais dentro deste modelo. Palavras–chaves: Linguística Cognitiva; Funcionalidade Comunicativa; Pragmática Convencional; Pragmática Conversacional; Gramática do Português. ABSTRACT This dissertation aims to describe some topics in Portuguese grammar, from the point of view of its communicative functionality. I believe that this is the best way to make students master grammar: knowing the reasons that lead speakers to choose certain constructions from a possible range of options. The theoretical framework is cognitive linguistics, treating human language as a complex system and also Goldberg’s (2007) proposal to divide pragmatics – which is a theory of enunciation – into conventional and unconventional or conversational pragmatics. Conventional pragmatics studies the influence of the attractors clarity, economy, blending and iconicity, in the production of the speech act, and conversational pragmatics, the influence of the attractor sociability, which aims to manage the relationship between the speaker or writer and the second person who serves as an interlocutor. I hope this small work can inspire my colleagues to expand the description of grammatical topics within this model Keywords: Cognitive Linguistics; Communicative Functionality; Conventional Pragmatics; Conversational Pragmatics; Portuguese Grammar. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 11 2 A ESCOLA RURAL 14 3 A CONSTRUÇÃO DAS NARRATIVAS 16 4 LINGUAGEM HUMANA COMO UM SISTEMA COMPLEXO 18 4.1 Atratores da linguagem 18 4.1.1 Sociabilidade 18 4.1.2 Iconicidade 19 4.1.3 Economia 22 4.1.4 Blending 24 4.1.5 Clareza 26 5 PRAGMÁTICA CONVENCIONAL E PRAGMÁTICA CONVERSACIONAL 28 5.1 Pragmática convencional e conversacional na descrição e no ensino do uso da vírgula 29 5.2 Aplicação didática 32 6 FUNCIONALIDADE ARGUMENTATIVA DAS ORAÇÕES, EM UM PERÍODO COMPOSTO 35 7 ARTICULAÇÃO SINTÁTICA DE OPOSIÇÃO, EM TERMOS DE PRAGMÁTICA CONVENCIONAL E CONVERSACIONAL 37 7.1 Objetividade e subjetividade no uso da articulação sintática de oposição 37 7.2 Aplicação didática 41 7.3 Primeiro período 42 7.4 Análise 42 7.5 Segundo período 42 7.6 Análise 42 8 PRAGMÁTICA CONVENCIONAL E CONVERSACIONAL NO ESTUDO DA NEGAÇÃO 44 8.1 Aplicação didática 46 9 PRAGMÁTICA CONVERSACIONAL NO EMPREGO DOS TEMPOS VERBAIS 48 9.1 Aplicação didática 49 10 SINTAXE, SEQUÊNCIA NATURAL DE EVENTOS E A PRAGMÁTICA CONVENCIONAL 51 10.1 Aplicação didática 53 11 USO DO IMPERATIVO: UM CASO CLÁSSICO DE OPOSIÇÃO ENTRE A PRAGMÁTICA CONVENCIONAL E CONVERSACIONAL 55 11.1 Aplicação didática 58 12 PASSAGEM DA PRAGMÁTICA CONVERSACIONAL PARA A PRAGMÁTICA CONVENCIONAL, POR GRAMATICALIZAÇÃO: UMA HIPÓTESE 59 13 CONCLUSÃO 61 REFERÊNCIAS 62 11 1 INTRODUÇÃO Para que o leitor compreenda melhor o percurso que me trouxe a esta pesquisa, optei por fazer um breve histórico do meu percurso como professora, inserida em diversos contextos escolares. Tudo teve início a partir das memórias da minha prática docente, desenvolvida ao longo do tempo ao meu redor, pensando em alternativas para compreender a concepção da “aprendizagem” em suas diversas escalas e campos de aplicação, buscando boas práticas para procurar melhorá-la. Nesse sentido, compreendendo que o passado interfere na constituição das ideias, enquanto processo de transformação às melhorias, não poderia deixá-lo de lado, nem esquecido, em meio a esse processo intenso de reflexão. O desejo pela profissão docente era quase uma declaração de que eu não conseguiria fazer outra coisa. Mesmo diante de todas as informações que eu tinha sobre o que de fato era ser professor: mal pago, desconsiderado, violentado, processado por pais, agredido por alunos. A grande maioria das escolas públicas que conheci era muito maltratada, principalmente pelos governos, com salários péssimos, sem a infraestrutura básica para o desenvolvimento da aprendizagem e a ausência de um efetivo plano de carreira. Faltava tudo, menos amor e muita disposição de seguir adiante com o objetivo de tirar o país da ignorância e colaborar para o seu crescimento com soberania. Ainda adolescente, desejava uma profissão que fizesse a diferença. Venho de uma família em que principalmente minha mãe fez um esforço gigantesco para que os filhos estudassem. E essa atitude dela me fez perceber que eu teria de me esforçar para que as pessoas ao meu redor pudessem estudar também. Comecei nos anos 80 do século passado. O contexto político e social em que vivia o Brasil nesse período era de total desestabilidade econômica e falta de perspectiva de uma melhora na qualidade de vida. Os esforços de conter a inflação galopante resultaram no plano Cruzado Novo, que atingiu a marca inflacionária histórica de quatro dígitos, pesado legado que o próximo presidente, eleito democraticamente, receberia. Nesse período, eu não tinha condução própria e, por esse fator, dependia de outras pessoas para chegar até as escolas rurais nas quais lecionava. Tempo difícil, mas o desejo de exercer a prática docente, principalmente naqueles locais, contribuía para uma perspectiva que romperia qualquer dificuldade. 12 O carácter pedagógico do ensino rural no interior do Estado de São Paulo, nesse período, buscava ensinar o homem do campo a contextualizar, diante da educação escolar, as ferramentas capazes de mantê-lo alinhado ao modelo educacional tradicional As escolas estavam inseridas dentro das fazendas, a grande maioria produtiva. Cultivavam um pouco de tudo, mas a maior parte da agricultura era voltada para o plantio do café, devido à particularidade da região em que vivia, o município de Serra Negra. Serra Negra, localizada no interior do Estado de São Paulo, Cidade das Águas, recebeu esse epíteto como reconhecimento da qualidade das suas águas minerais. Foi fundada em 23 de setembro de 1828 por Lourenço Franco de Oliveira. No ano de 1873, teve início o plantio de café em larga escala. A partir de 1880, chegaram as primeiras famílias de imigrantes italianos, para trabalhar nessas lavouras, mudando totalmente as características portuguesas da colonização e tornando a tradição italiana fator predominante na contribuição da cultura local. Em 1892 foi inaugurado o ramal férreo da Companhia Mogiana fazendo o trajeto de Serra Negra até Campinas. Na década de 1920, a economia brasileira já começava a sofrer os efeitos ocasionados pelo excesso de produção de café e, nessa época, Serra Negra já recebia os primeiros benefícios da descoberta da qualidade terapêutica de suas águas minerais, a partir da fonte Santo Antônio, de Luís Rielli. A descoberta das propriedades radioativas das águas, em 1928, levou à criação de um pavilhão hidroterápico construído ao lado da grandiosa fonte. Sua composição mineral, combinada a pequenas doses de radioatividade, revelou serem as águas minerais de Serra Negra indicadas para os mais diversos tratamentos de saúde. Paralelamente, Serra Negra abarcou o plantio de café como categoria principal da sua agricultura. A existência de muitas fazendas fazia com que fosse necessária a presença de um ambiente educacional no qual os filhos dos ruralistas pudessem desenvolver sua aprendizagem. Diante dessa necessidade, muitas escolas emergenciais foram instituídas nesses locais. O professor, nesses territórios, era um militante ruralista. O que havia de mais valoroso era a boa vontade que procurava compensar a ausência dos recursos necessários. Passei por diversas administrações paulistas. Embora todas elas se tenham esmerado em dar ao Estado de São Paulo um aparelhamento escolar capaz de, junto com a capacidade de seus mestres, produzir cidadão aptos com eficiência na sociedade, nem sempre foi levada em conta a diversidade de meios em que viviam aqueles alunos. 13 Minha formação foi o curso de Pedagogia e, na minha visão do magistério, sinceramente, sempre procurei uma formação com a base filosófica e científica sólida. Sempre considerei que o programa oferecido oficialmente entrava em conflito com o método. Que variava de professor a professor, evidenciando a dependência de sua maior ou menor capacidade. As crianças, ano a ano, recebiam aquilo que a escola tradicional achava o ideal: ensinar a ler, escrever e contar, e umas tintas de história pátria e de corografia do Brasil. Ideal tão estreito que, para a sua consecução, não exigia mestres muito bem-preparados. Qualquer indivíduo fracassado em outros misteres ia ser mestre, desconhecendo por completo o material com que ia trabalhar, sem noção da responsabilidade que lhe cabia como formador de mentalidade. 14 2 A ESCOLA RURAL Estava ali. Era o começo. Ao abrir a porteira, caminhava por uma estradinha estreita, chão de terra, riacho na lateral esquerda, abacateiros por todos os lados, uma vegetação extraordinária. Uma brisa fresca cobria-me de sentimentos diversos. Avistei a escola, paredes cobertas pelas mãos do tempo, descascadas com ar de abandono. Um mato alto abraçava o espaço geral e fui, pouco a pouco, adentrando o lugar. Cheguei bem mais cedo do horário previsto da aula, para poder reconhecer o espaço, respirar a atmosfera e, no meu improviso, tomar as primeiras impressões do local. Entrei em um pequeno pátio que abrangia a escola; observei o forro, quase tomado de morcegos. Tudo respirava abandono total. A visão romantizada da escola tradicional, com alunos asseados e professores bem arrumados não é totalmente falsa, mas retrata apenas uma parte pequena da realidade. Como levar a aprendizagem das aglomerações urbanas para populações rurais? Tinha em mente e no coração que os alunos precisavam conhecer mais o seu meio e dele tirar proventos, não só para sua subsistência, mas também para alegria do espírito. Na verdade, eu queria que esse meio rural que me acolhia agradasse o homem, de modo que ele não se sentisse atraído pela cidade onde iria engrossar as fileiras dos sem trabalho. Eu olhava aquela terra, as grandes plantações de café, famílias inteiras morando ali, gerando e enterrando gerações. Por que essa mesma terra não lhes poderia proporcionar meios de viver em conforto, de não lhes faltar a menos coisa que exigisse a vida? Os filhos não pensavam senão em continuar a vida dos pais. O ideal não era mais poder morar na cidade, mas, sim, o de se fixar no solo. Como conseguir isso, porém? Era o grande desafio. Cheia de entusiasmo, a primeira observação que eu fazia ao entrar nas escolas rurais era estender o meu olhar diante do terreno ao redor. De fato, fazendo isso, saberíamos mais fazer, falar ou escrever, dizia a mim mesma, e o pensamento corria solto pela imaginação, já visualizando uma horta. Minha visão, mais humanística e menos utilitarista, sonhava com uma escola que buscasse formar o aluno como pessoa, em todos os aspectos. Capaz de formá-lo para ler, refletir e pensar, escrever e desenvolver suas habilidades e potenciais por inteiro. 15 Como essas escolas eram vinculadas a uma escola central na cidade, constatei que o modelo de gestão, os conteúdos, os projetos e a formação dos professores das escolas rurais desse município de Serra Negra seguiam a mesma lógica das escolas urbanas, confirmando a tese vigente de que modernização é sinônimo de urbanização da sociedade. Tratava-se, então, da mera adaptação para o campo do serviço educacional oferecido na cidade, subjugando a população camponesa a esse modelo que desconsiderava sua cultura e dissociado de suas vivências. Era preciso oferecer mais. Algo que não reproduzisse os valores hegemônicos da uma sociedade que pouco estava contribuindo para uma formação crítica do sujeito, de si mesmo e do meio sociocultural e educacional que vivia. 16 3 A CONSTRUÇÃO DAS NARRATIVAS A primeira reunião com os pais era um diálogo curioso e insistente visando perceber as necessidades locais. O ponto de partida era apresentar o projeto referente à construção de uma horta onde todos pudessem colaborar e, consequentemente, aprender. Ver a formação dos canteiros produzidos pelos próprios alunos seria um bom exemplo para observar as diferentes qualidades de cada um. O primeiro contato com os pais evidenciava a percepção e o conhecimento da clientela com que eu iria trabalhar. Diante da diversidade, era comum perceber indivíduos cheios de iniciativa, capazes de lutar pela vida com os recursos próprios daquele meio e que, na maioria das vezes, viviam desconectados dos políticos locais, empoleirados em seus bons empregos, destruidores do carácter e inimigos das iniciativas rurais. Positivamente, os horizontes se alargavam e os ideais de todos se expandiam. O fim precípuo da escola é educar. E, diante da minha caminhada, tinha uma preocupação: elencar os meios diante da variedade e complexidade para atingir esse fim. Educar para a vida e pela vida. Percebi, ao longo desses anos, em lugares distintos, que a vida variava de lugar para lugar, exigindo que a “finalidade” da educação também variasse. Dada a época e o lugar. Não podia ser a mesma para um povo diferente, em épocas e terras diversas. Selecionar as sementes do que iriamos plantar também nos conduzia à escolha dos livros que iríamos ler. Perceber a época do plantio, adubação do terreno, plantação, observar o movimento sinalizava a variedade dos temas que iriamos desenvolver. Um plano traçado e confiado por todos nós, envolvidos na dinâmica do aprender e ensinar. Era uma dimensão de vantagens sobre as mais curtas possibilidades. E tudo era feito com pouca despesa, sem alarde e como muito proveito. O que eu tinha nas mãos era um ambiente rural, classes multisseriadas e filhos de agricultores. O ponto poderia transformar-se em muitos e, mesmo que não se transformasse, era alguma coisa. O nada é sempre nada. Todas as palavras que brotavam naturalmente eram por nós analisadas, demonstrando um lugar em que se ancoravam estruturas. Conjuntamente, precisávamos descobrir o que esses lugares revelavam. Sempre era possível um caminhar rumo ao encontro de uma dualidade de conceitos em mente, e as relações que esses conceitos suscitavam. 17 A prática docente era um período prazeroso, tomado por transição entre a linguagem e representações. A criança ali, extremamente protegidapelo meu olhar, via e percebia o mundo diante dos acontecimentos. Quanto a mim, estava ali para ser uma ponte de possibilidades. Foi com toda essa memória e vivências, que decidi fazer essa pesquisa vinculada ao ensino da língua portuguesa. Quem sabe, poderá ser aproveitada por uma nova geração rural, já mergulhada em tecnologias avançadas e com um futuro mais visível à sua frente. 18 4 LINGUAGEM HUMANA COMO UM SISTEMA COMPLEXO Os sistemas complexos começaram a ser estudados pelo matemático e meteorologista Edward Lorenz, em meados do século passado. Segundo ele, os sistemas complexos caracterizam- se por:  possuir agentes;  ser autoadaptativos;  ser abertos (relacionam-se ao ambiente em que estão inseridos). Atuar em sistemas complexos é diferente de atuar em sistemas não complexos. Os seres vivos são sistemas complexos. Os inanimados, não. A linguagem, como produto dos seres humanos, que são seres vivos, é um sistema complexo. Os agentes de um sistema complexo são chamados atratores. 4.1 Atratores da linguagem As gramáticas do português costumam apresentar apenas uma relação taxonômica da gramática, desprezando completamente seu aspecto funcional no ato de fala. Partindo do princípio de que a linguagem humana é um sistema adaptativo complexo (BYBEE, 2010) podemos atribuir a ela os seguintes atratores – que são os agentes internos de um sistema:  Sociabilidade  Iconicidade  Economia  Blending  Clareza Adiante, exploramos cada um desses atratores. 4.1.1 Sociabilidade 19 A sociabilidade está ligada diretamente à pragmática conversacional e se materializa por meio dos atos indiretos de fala e dos marcadores de atenuação. Quando, em vez de fazer uma solicitação direta, dizendo: – Você me leva ao aeroporto hoje à tarde? optamos por dizer, indiretamente algo como: – Você teria condições de me levar ao aeroporto hoje à tarde? essa opção está ligada ao atrator sociabilidade. O mesmo acontece, quando usamos marcadores de atenuação, dizendo: – Você poderia me fazer a gentileza de enviar sua agenda para esta semana? – As medidas do governo para segurar a inflação, a meu ver, serão inócuas. A sociabilidade está ligada a uma das principais características que fizeram os seres humanos ocuparem o alto da cadeia alimentar do planeta (HIPPEL, 2019; TOMASELLO, 2014). Segundo esses autores, a primeira característica é a postura bípede, que nos permite ter as mãos livres para atacar um predador ou uma presa a distância, atirando algo contra eles. Embora alguns dos grandes primatas também tenham postura bípede, não têm coordenação motora para atirar o que quer que seja com velocidade e pontaria, em qualquer direção. Segundo HIPPEL (op.cit, p. 30): Os chimpanzés são mais fortes do que nós, mas não conseguem gerar esse tipo de energia elástica ao arremessar, porque suas articulações não são flexíveis o suficiente e seus músculos não estão na posição certa. Diz ele, mais à frente HIPPEL (op.cit, p. 33): Um Australopithecus afarensis solitário arremessando pedras (talvez enquanto outros membros de seu grupo fugiam correndo) teria terminado na barriga de um predador com feridas leves, mas muitos australopitecos arremessando pedras provavelmente teriam afugentado hienas, tigres-de-dentes-de- sabre e até mesmo leões. Foi essa necessidade de ação coletiva que produziu a mais importante mudança psicológica que nos permitiu prosperar na savana, em vez de apenas sobreviver: a capacidade e o desejo de trabalhar em conjunto. 4.1.2 Iconicidade 20 A iconicidade está relacionada às imagens. As metáforas conceptuais estudadas por Lakoff &s Johnson (1980) são um exemplo de iconicidade. Frases como: Minha casa está de ponta cabeça esta semana. Preciso sair desse sufoco financeiro. Hoje ainda, vou bater o martelo na venda do meu apartamento. São exemplos de iconicidade. Utilizamos também a iconicidade em expressões que usamos diariamente, como: O meu trabalho vai a todo vapor. Ele está interessado nela, mas ainda não caiu a ficha dela. A todo vapor se refere a velocidade maior que os navios movidos a vapor alcançavam, quando as válvulas de vapor ficavam todas abertas. Cair a ficha é uma imagem relacionada aos antigos telefones públicos, como os antigos “orelhões”, em que as pessoas, primeiramente, discavam o número pretendido e, quando era atendida a ligação, deixavam cair a ficha que haviam comprado previamente, em um orifício específico para isso. Se não fizessem isso, a ligação não era completada. Por esses exemplos, vemos que muitas das imagens que usamos atualmente estão vinculadas a momentos histórico-culturais antigos. Outros exemplos disso são frases como: Pode tirar o cavalo da chuva. Ela pegou uma pneumonia galopante. 21 Ambas essas frases se referem a uma época em que éramos movidos exclusivamente a tração animal. O atrator iconicidade tem também um papel importante nas escolhas gramaticais. Isso acontece, por exemplo, nas formas indiretas de tratamento. Excelência, por exemplo, é uma palavra do gênero feminino. Em uma frase como: Sua Excelência, a reitora da universidade, estava atrasada. A concordância é canônica (excelência atrasada). Mas, em uma outra frase como: Sua Excelência, o reitor da universidade, estava atrasado. A concordância é feita por iconicidade (excelência atrasado). As gramáticas tradicionais denominam esse tipo de concordância como silepse de gênero (do grego syllepsis = ação de compreender), sem fazer menção à questão de imagem. Um outro caso de concordância em que o atrator iconicidade atua são as situações em que o sujeito é um coletivo partitivo, como em: A maioria dos brasileiros gosta de futebol. Essa frase poderia ser escrita, também, de acordo com a norma culta, com o verbo concordando com o complemente desse núcleo: A maioria dos brasileiros gostam de futebol. 22 Isso acontece, porque o núcleo do sujeito é uma palavra abstrata (maioria) da qual não se pode fazer uma imagem. Mas, se for possível construir a imagem tanto do núcleo do sujeito quanto do seu complemente, a concordância, obrigatoriamente será feita com o núcleo do sujeito, como: As tortas de chocolate estão deliciosas. Uma frase como 'as tortas de chocolate está delicioso’ será considerada agramatical ou malformada (ABREU, 2022, pp. 517 – 519). 4.1.3 Economia O atrator economia está presente em nosso dia a dia, a toda hora. Fazemos isso, quando usamos acrônimos como UNESP ou siglas, como FGTS. Fazemos isso, quando alguém nos pergunta se vamos dormir mais cedo hoje e repondemos “– É!”. Fazemos isso, quando reduzimos palavras como fotografia a foto, motocicleta a moto; telefone-celular a celular e arremesso-lateral a lateral. Fazemos isso, quando usamos zeugmas como: Minha irmã comprou duas toalhas de banho e eu, duas. Muitas das situações em que podemos ser econômicos se baseiam em inferências. Imaginemos que, em uma entrevista de emprego, o entrevistador pergunte a uma jovem candidata que, preenchendo sua ficha, relatou que tem dois filhos pequenos: – Quem tomará conta das suas crianças, se você precisar fazer alguma hora extra? Em resposta, ela poderá dizer, somente: – Minha mãe mora ao lado da minha casa. 23 economizando dizer que sua mão tomará conta das crianças, o que fica inferido em sua resposta. Outro dia, recebi de amigos uma mensagem de WhatsApp, com o título: “Frases que só brasileiros entendem”. Entre elas havia as seguintes: A porta dormiu aberta. A luz dormiu acesa. Vou só esperar o sol esfriar De fato, essas frases parecem bem estranhas, à primeira vista. Afinal, porta e luz não dormem e o sol não esfria. Acontece que o que está por trás dessas frases aparentemente anômalas é um recurso de economia chamada hipálage. O mesmo que usamos, quando dizemos coisas como: Você precisa vestir uma roupa mais confortável. Essa praia é segura. É claro que somos nós que nos sentimos confortáveis, dentro da roupa, e nós é que nos sentimos seguros na praia. Apenas projetamos a nossa percepção na roupa e na praia. Fica mais econômico. Se fôssemos nos expressar literalmente, teríamos de dizer: Você precisa vestir uma roupa que deixe você confortável. Nós nos podemos sentir seguros nessa praia. Veja que o resultado é menos econômico. Teríamos de usar mais palavras. Nos exemplos anteriores, que repetimos para maior clareza: 24 A porta dormiu aberta. A luz dormiu acesa. Vou só esperar o sol esfriar Projetamos, nas duas primeiras frases, o nosso sono na porta aberta e na luz acesa, respectivamente. Poderíamos dizer, sem economia: Dormimos com a porta aberta. Dormimos com a luz acesa. O mesmo acontece com a última frase. Poderíamos dizer, literalmente, algo como: Vou esperar a temperatura esfriar, com o sol declinando. Como vemos, trata-se de um recurso de economia que, muitas vezes, se alia também ao atrator iconicidade, como acontece no caso dos epônimos (ABREU e FONSECA, 2023) que usam o mesmo expediente da hipálage, nomeando uma enfermidade ou procedimento médico com o nome de seu descobridor. É o caso, por exemplo, de Síndrome de Down, nomeando uma característica genética causada pela presença de 3 cromossomos 21 nas células de um indivíduo, em vez de dois apenas. É o caso do teste Papanicolau, nomeando o procedimento de verificação de câncer no colo do útero com o nome de seu descobridor, o médico grego radicado nos Estados Unidos, Georgios Papanicolau. Nesse capítulo de livro, mostramos que muitos médicos, especialmente os cirurgiões preferem usar os epônimos aos nomes científicos latinos, justamente em função de serem mais curtos e de evocarem imagens. 4.1.4 Blending O atrator blending está presente em nossa percepção diária do mundo. Em seu livro, já clássico, intitulado The Way We Think, Fauconnier e Turner (2002, p. 390) dizem que: 25 Blending não é alguma coisa que fazemos em acréscimo ao nosso viver no mundo. É a nossa maneira de viver no mundo. Viver no universo humano é ‘viver dentro do blend’ ou, antes, viver dentro de muitos blends coordenados1. Nós nunca temos a percepção das coisas ao nosso redor, em uma perspectiva de 360 graus. Completamos a parte que vemos, fazendo um blending entre essa parte e o todo que temos em nossa mente. Quando vemos a foto 3 x 4 de alguém, não dizemos que se trata da foto da cabeça desse alguém, mas desse alguém inteiro. Como vemos, a metonímia é um dos principais processos de blending que utilizamos diariamente, inconscientemente, para conseguir viver no mundo. Um outro exemplo de blending acontece também quando usamos o singular pelo plural (blending por compressão) em frases como: A mulher brasileira tem adiado a gravidez, neste início de século 21. O brasileiro faz uso diário do celular. Muitos topônimos originam-se de processos de blending por metonímia. Em maio de 1501, o navegador português Gaspar de Lemos, acompanhado por Américo Vespúcio, saiu de Portugal, a mando de rei Dom Manuel, para pesquisar o litoral brasileiro. No dia primeiro de novembro desse ano, descobriu uma baía e a batizou de Baía de Todos os Santos. Na virada do ano, no dia primeiro de janeiro de 1502, mais ao sul, descobriu uma outra baía, mas a confundiu com um rio e resolveu batizá-la de Rio de Janeiro. Ao nomear de Baía de Todos os Santos o local onde, em 1549, Tomé de Sousa fundaria a cidade de Salvador, Gaspar de Lemos fez um blending entre o dia primeiro de novembro (dia de todos os santos) e o local descoberto. Fez também um blending entre o dia primeiro de janeiro do ano de 1502 e aquilo que achou que seria um rio, para chamá-lo de Rio de Janeiro. Em 1565, Estácio de Sá fundou, nesse mesmo local, a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, fazendo um blending entre a nova cidade e o nome do então rei de Portugal Dom Sebastião. Utilizamos o blending, também, quando construímos metáforas. Ao dizer algo como Einstein foi um gigante na física, fazemos um blending entre o tamanho físico de um gigante e o tamanho do conhecimento de Einstein. 1 No original: Blending is not something we do in addition to living in the world; it is our means of living in the world. Living in the human world is “living in the blend” or, rather, living in man coordinated blends. 26 Os textos figurativos, como as parábolas, são também obtidos por efeito do blending. Vejamos um poema composto por Henry Van Dyke (1852 – 1933), diplomata e escritor norte- americano: LONGE DA MINHA VISTA Eu estou à beira mar. Um navio, ao meu lado, espalha suas velas brancas na brisa em movimento e avança para o oceano azul. Ele é um objeto de beleza e força. Eu fico olhando para ele até que, ao longe, sua figura parece uma mancha de nuvem branca, exatamente onde o mar e o céu se misturam. Então, alguém ao meu lado diz “Ele se foi.” Se foi para onde? Se foi para longe da minha vista. Apenas isso. Ele continua com seus grandes mastros, casco e estrutura, assim com estava antes de deixar meu lado. Ele é capaz de carregar sua carga viva até o porto destinado. O pequeno tamanho está em mim – não nele. E, no momento que alguém fala “Ele se foi”, existem outros olhos vendo-o chegar, e outras vozes prontas para gritar “Aqui está ele!” E isso é morrer. Quem lê esse poema, apenas percebe que ele é figurativo, quando, ao ler o último verso (E isso é morrer) faz um blending entre o figurativo – a narrativa da viagem do barco – e o temático. 4.1.5 Clareza Finalmente, o atrator clareza está ligado a principal função da linguagem, que é transmitir informações a uma segunda pessoa. O uso do aposto e das orações adjetivas tem essa função. Seu eu digo a alguém algo como: Tom Jobim disse que preferia morar no Brasil. É possível que esse alguém não saiba quem foi Tom Jobim. Eu posso, então, acrescentar um aposto, dizendo: 27 Tom Jobim, um dos principais compositores da Bossa Nova, disse que preferia morar no Brasil. Mas, posso acrescentar também uma oração adjetiva, aumentando a quantidade de informações sobre ele, dizendo: Tom Jobim, um dos principais compositores da Bossa Nova, que compôs a famosa música Garota de Ipanema, disse que preferia morar no Brasil. 28 5 PRAGMÁTICA CONVENCIONAL E PRAGMÁTICA CONVERSACIONAL Em um capítulo de livro intitulado Pragmatics and Argument Structure (2007), Adele Godberg propõe a existência de dois tipos de pragmática: a pragmática convencional e a pragmática não convencional ou conversacional. Segundo ela, a pragmática convencional está ligada à maneira como organizamos as informações que queremos passar a uma segunda pessoa, levando em conta a previsão que fazemos sobre o seu background. A pragmática não convencional ou conversacional está ligada à sociabilidade, à maneira como protegemos a nossa face (nossa autoimagem) e a face (a autoimagem) do nosso interlocutor, durante o ato de fala. A pragmática convencional está ligada, também, à função argumentativa do ato de fala, à maneira como queremos “abastecer” a mente do nosso interlocutor, para que ele tome decisões segundo nossas intenções (ABREU, 2021, 2023). A escolha do vocabulário, da ordem das palavras na frase, o uso de figuras de imagem e de construção fazem parte da pragmática convencional. Entre as manifestações da pragmática convencional, no gerenciamento das informações, estão os processos de clivagem, por meio do verbo ser que aparecem em frases como: Os trabalhadores de baixa remuneração é que são os mais vulneráveis a perder empregos para a inteligência artificial. É em 2030 que teremos um mapa mais visível dos efeitos da inteligência artificial na perda de empregos. E aparece, também, como reforço nas palavras interrogativas: Quem é que chegou? Onde é que você pôr as chaves? Como é que você achou a minha casa? Por que é que você não me esperou? Resumindo, os atratores clareza, economia, iconicidade e blending estão dentro da pragmática convencional; o atrator sociabilidade, dentro da pragmática conversacional. 29 O objetivo desta dissertação é explicitar a atuação dessas duas pragmáticas, em alguns itens, úteis, a meu ver, no estudo e no ensino da gramática do português, especialmente no ensino médio. 5.1 Pragmática convencional e conversacional na descrição e no ensino do uso da vírgula As gramáticas do português ensinam o uso da vírgula quase que exclusivamente em termos da pragmática convencional. Partindo de um ponto de vista mais moderno, podemos começar essa tarefa usando a gramática de construções (GOLDBERB,1995). São os verbos que determinam o arcabouço básico das orações. Se eu vou usar o verbo comprar para construir uma frase, eu sei, previamente, que esse verbo existe um agente e um objeto afetado, conforme o esquema: COMPRAR [agente, objeto afetado] Sei, também, que esses elementos – chamados argumentos – assumem, na oração finalizada, funções sintáticas. Dependendo da pragmática convencional – intenção do enunciador – essa oração tanto pode estar na voz ativa, o que é mais comum, quanto estar na voz passiva, como em: Maria comprou o roteador de WI-FI. O roteador de WI-FI foi comprado pela Maria. Na primeira oração, Maria é o sujeito, o roteador de WI-FI é o objeto direto. Na segunda, o roteador de WI-FI é sujeito e Maria o complemento agente da passiva. Os elementos de construção requeridos pelo verbo não podem ser separados por vírgulas, na escrita, pois, na fala, são pronunciados em um único bloco prosódico. 30 Mas, o enunciador pode querer acrescentar alguma coisa a mais, além dos argumentos requeridos pelo verbo, a finalidade dessa compra. Pode, então, escrever: Maria comprou o roteador de WI-FI, para maior alcance dentro da sua casa. Trata-se de um adjunto adverbial de fim e, como não é requerido pela construção do verbo, deve ser separado por vírgulas, pois, na fala, é pronunciado em um bloco prosódico separado. Os adjuntos adverbiais são resultado da pragmática convencional, e, também por esse motivo, o enunciador pode escolher posicioná-los em diferentes posições dentro da oração: Para maior alcance dentro da sua casa, Maria comprou o roteador de WI-FI. Maria comprou, para maior alcance dentro da sua casa, Maria comprou o roteador de WI- FI. Mas, o enunciador pode acrescentar, também, um marcador de opinião, como em: Provavelmente, Maria comprou o roteador de WI-FI, para maior alcance dentro da sua casa. Esse marcador de opinião (provavelmente), também separado por vírgulas, tem origem na pragmática conversacional, pois materializa a intenção do enunciador de não se comprometer categoricamente, com o interlocutor, em relação àquilo que afirma. Esse marcador poderia ser também expresso por meio de uma oração, como em: É provável que Maria tenha comprado o roteador de WI- FI, para maior alcance, dentro da sua casa. Para obter maior simetria, o enunciador poderia, ainda, expressar o adjunto adverbial de fim por meio de uma oração subordinada adverbial final: 31 É provável que Maria tenha comprado o roteador de WI- FI, para conseguir maior alcance, dentro da sua casa. Como se vê, estamos estudando a sintaxe de um ponto de vista funcional, ou seja, da enunciação, das intenções do falante e, para isso, nos parece importante levar em conta, também, as duas pragmáticas. Ah! O uso do artigo definido (o roteador e não um roteador) é uma decisão da pragmática convencional, em termos de enunciação. Infere-se que o interlocutor já sabia que esse aparelho já tinha sido comprado por Maria. Complementando, no processo da enunciação, o enunciador poderia acrescentar qualquer outro marcador de opinião, em termos de pragmática conversacional, produzindo sequências como: Maria comprou o roteador de WI-FI, eu penso, para conseguir maior alcance, dentro da sua casa. Desculpe, mas acho provável que Maria tenha comprado o roteador de WI-FI, para conseguir maior alcance, dentro da sua casa. Na primeira versão, o enunciador inseriu a oração eu penso e, na segunda, optou por um pedido de desculpas seguido de uma construção adversativa que, para ser compreendida, tem de ser contextualizada em uma situação conversacional em que seu interlocutor tenha criticado o fato de Maria ter comprado o roteador. Imaginemos uma cena de teatro como: PERSONAGEM A – Acho um absurdo a Maria ter comprado um roteador! PERSONAGEM B – Desculpe, mas acho que ela comprou o roteador, para conseguir maior alcance, dentro de casa. 32 Como se vê, um estudo consistente da sintaxe vai muito além da chamada análise sintática clássica. 5.2 Aplicação didática O professor poderá, depois dessa primeira aula de sintaxe, sugerir verbos aos alunos, para que eles relacionem os atores exigidos por eles, para construir uma cena. Exemplo: Construa as redes argumentais possíveis para os seguintes verbos: exibir, esperar, entender, ganhar, enfrentar. Exemplifique, construindo orações. Ele terá como respostas algo como: EXIBIR = [agente, objetivo] Maria exibiu o novo vestido. Maria exibiu confiança. ESPERAR = [agente, objeto afetado / paciente] Ela esperou o presente. Ela esperou a mãe. ENTENDER = [agente, objetivo] Mário entendeu a história. GANHAR = [beneficiário, objeto afetado) Ela ganhou um carro. ENFRENTAR = [agente, paciente/objeto afetado] Ela enfrentou o assaltante. Ela enfrentou a pobrezaDurante a correção, o professor poderá mostrar que, como os verbos são palavras polissêmicas, a natureza dos argumentos pode mudar para coisas abstratas, como enfrentar a pobreza, ou exibir confiança. 33 Em seguida, o professor poderá pedir ao aluno que escolha três das frases construídas e acrescente cenários de tempo e lugar. Exemplos: Maria exibiu o novo vestido, ontem, na festa. Maria esperava uma nova posição, em sua empresa, no ano passado. Ela enfrentou muita solidão, nas últimas férias, em São Paulo. O professor poderá verificar o uso das vírgulas, para separar os elementos do cenário. A seguir, o professor poderá pedir aos alunos que expandam alguns argumentos sob a forma de oração em duas das orações. Exemplos: Ela enfrentou muita solidão, quando esteve em São Paulo, nas férias. Ela esperava que o calor diminuísse, durante a noite. Em seguida, o professor poderá pedir aos alunos que incluam em uma das orações, um marcador de opinião e um marcador de reforço. Exemplos: Felizmente, ela, definitivamente, enfrentou o assaltante, com sucesso. Felizmente = marcador de opinião Definitivamente = marcador de reforço. Depois, o professor poderá pedir aos alunos que analisem, sintaticamente, algumas das orações construídas, pondo foco nas funções sintáticas. Exemplo: Felizmente, ela, definitivamente, enfrentou o assaltante, com sucesso. Sujeito = ela 34 Predicado = felizmente enfrentou o assaltante, com sucesso. Verbo = enfrentar, transitivo direto Objeto direto = o assaltante Adjunto adverbial de modo = com sucesso Marcador de opinião = felizmente Marcador de reforço = definitivamente 35 6 FUNCIONALIDADE ARGUMENTATIVA DAS ORAÇÕES, EM UM PERÍODO COMPOSTO Embora a gramática tradicional não especifique a funcionalidade das orações coordenadas e subordinadas em um período composto, elas têm diversas e diferentes funções e são escolhidas durante o ato de fala, exatamente por essas funções. As orações coordenadas adversativas e conclusivas e também as orações subordinadas causais, condicionais e concessivas têm uma função argumentativa bastante relevante, quando o falante pretende defender uma determinada posição. Um exemplo clássico é o das orações conclusivas, que representa o fecho de um silogismo clássico como: Todo homem é mortal. Sócrates é homem. Logo, Sócrates é mortal. Quando se estudam as técnicas argumentativas, vemos que elas se dividem em dois tipos: os argumentos quase-lógicos e os argumentos baseados na estrutura do real (ABREU, 2022). Dentre os argumentos quase- lógicos, o primeiro a ser estudado é a argumentação por compatibilidade / incompatibilidade. O Silogismo acima se baseia nesse argumento. Ser homem é compatível com ser mortal. É importante dizer que todas outras técnicas argumentativas, do ponto de vista da categorização vertical, têm seu fundamento na compatibilidade / incompatibilidade. Vejamos a chamada regra de justiça. Se dizemos que alguém que cometeu um furto foi condenado a 2 anos de prisão, podemos dizer que seria injusto condenar uma outra pessoa por um crime idêntico a 8 anos de prisão. Usando o princípio da categorização vertical, podemos dizer, também, que é incompatível condenar um réu a 2 anos de prisão e outro, por crime idêntico, a 8 anos de prisão. Vejamos, agora, o chamado argumento pragmático, que se baseia em um antes e um depois. Se, depois de utilizar um determinado medicamento, o paciente ficou curado de uma enfermidade, podemos transferir o valor da cura para o valor do medicamento. Aqui, também, podemos dizer que o argumento de compatibilidade / incompatibilidade engloba o argumento pragmático, uma vez que ficar curado de uma enfermidade após o uso de um medicamento, é compatível com o uso desse medicamento. 36 Tanto a regra de justiça quanto o argumento pragmático podem ser materializados por meio de uma coordenação conclusiva: João da Silva cometeu um crime de furto; logo será condenado a 2 anos de prisão, de acordo com o Código Penal vigente. João da Silva ficou curado de sua enfermidade, após usar o medicamento x; logo, o medicamento x serve para curar essa enfermidade. 37 7 ARTICULAÇÃO SINTÁTICA DE OPOSIÇÃO, EM TERMOS DE PRAGMÁTICA CONVENCIONAL E CONVERSACIONAL A articulação sintática de oposição pode ser utilizada para materializar um argumento de incompatibilidade, dentro da pragmática convencional. Exemplos: João da Silva foi condenado à prisão, mas não cometeu crime algum. João da Silva tomou o medicamento x, mas não ficou curado da sua doença. Essa incompatibilidade pode ser verbalizada, também, pela articulação sintática de subordinação concessiva, como em: Embora João da Silva tenha sido condenado à prisão, ele não cometeu nenhum crime. Embora João da Silva tenha tomado o medicamento x, ele não ficou curado da doença. A diferença, entre a escolha da coordenação adversativa e a subordinação concessiva está relacionada à pragmática conversacional. A subordinação concessiva funciona como uma espécie de marcador de atenuação. 7.1 Objetividade e subjetividade no uso da articulação sintática de oposição Em todos os exemplos anteriores, a compatibilidade e a incompatibilidade foram expostas dentro de critérios objetivos. Alguém que cometeu furto foi condenado, objetivamente, de acordo com uma lei do código penal. Alguém que usou um determinado medicamento, ficou curado e o valor da cura pode ser atribuído, objetivamente, ao medicamento. Ou, alguém que usou esse medicamento não foi curado; então, a ineficácia da cura pode ser, objetivamente, atribuída a esse medicamento. É claro que, desde a metade do século 20, para evitar o efeito placebo, as pesquisas na área médica usam o chamado critério ECR (estudo clínico randômico), também chamado de estudo de nível A, duplo cego. Muitas vezes, a articulação sintática de oposição, especialmente por meio da conjunção mas, cria uma incompatibilidade subjetiva, materializando uma falácia. 38 O filósofo e jornalista Leandro Karnal, há alguns anos, em uma de suas crônicas2, pôs foco justamente em situações como essas: Há poucas semanas, eu conversava com um amigo. Ele constatou que havia uma crítica, em tribunais superiores, à tese de “legítima defesa da honra”, utilizada por maridos que matam esposas que foram adúlteras ou que os maridos consideraram traidoras. Ao desferir tiros na sua esposa, o homem alegava, com seus advogados, que tinha tomado uma medida drástica porque seu bom nome, sua estima por si e sua posição no mundo (genericamente camadas de honra) tinham sido lançados à lama pelo ato real ou imaginado daquela esposa. Meu amigo leu a notícia e eu fiz um gesto de “até que enfim”! “Legítima defesa da honra é machismo com outro nome”, soltei com veemência na nossa conversa. Ele ficou em silêncio. Começou a argumentação com o mundo perigoso do “eu sou contra homicídio, mas...”. A partícula adversativa “mas” já me assustou. Quase sempre que alguém a emprega é para emitir uma barbaridade: “Eu não sou racista, mas...”; “Eu lamento o holocausto de seis milhões de judeus, mas”. Eu gelo quando ouço o “mas” empregado nessa construção retórica. O Jornalista Augusto Nunes também comentou o fato na Revista Oeste3, dizendo: Confrontados com o crescimento de 0,4%, jornalista sérios se renderiam aos fatos. Os adivinhos de picadeiro não ficaram sequer ruborizados com o naufrágio das previsões. Trataram de imediatamente erguer com manchetes malandras um monumento à tapeação. INVESTIMENTO EMPURRA PIB, MAS RECUPERAÇÃO SEGUE LENTA, desconversou a Folha. PIB CRESCE 0,4% E SURPREENDE, MAS RETOMADA É LENTA, concordou o Estadão. No blog que mantinha no site da Veja, registrei no dia seguinte a aparição de uma nova aberração jornalística: o vigarista da adversativa. Não que seja sempre condenável, em termos de ética, ver a incompatibilidade entre dois fatos ou entre um fato e uma opinião, como mostra o exemplo a seguir: Para o consumidor, é importante que os aparelhos (celulares) tragam telas grandes, mas a portabilidade continua a ser um fator importante para as pessoas4. 2 Leandro KARNAL, O Choro e´ livre, e a honra. O Estado de S. Paulo, 16. 06.2011. 3 Augusto NUNES, O vigarista da adversativa, Revista Oeste. Ed. 63, 4.06.2021 4 O Estado de S. Paulo, 31.07.2023. 39 Nesse texto, o fato de a portabilidade ser um fator importante para as pessoas se opor ao fato de os consumidores preferirem telas grandes, é apenas a constatação de uma realidade pelo autor da matéria. Mas, no seguinte texto: A Bolívia é um excelente país da América Latina, mas não tem acesso ao mar. Percebe-se que a incompatibilidade é, nitidamente, apenas a opinião do falante. Exemplos mais discutíveis, que envolvem também aspectos éticos, podem ser observados nas seguintes frases: Maria é uma bela garota, mas é pobre. João é negro, mas é muito inteligente. Yves Saint Laurent foi um maravilhoso designer de moda, mas era gay. Na primeira frase, o fato de uma garota ser pobre, apenas na mente do falante, é incompatível ao fato de ser bonita. Na segunda frase, a incompatibilidade está ancorada no pressuposto preconceituoso do falante de que os negros são pouco inteligentes. E, na terceira, é nítido o preconceito do falante contra os homossexuais. Um outro aspecto interessante da articulação sintática de oposição com a palavra mas, é que é bastante comum o uso da oração introduzida por ela como uma estrutura desgarrada: No atual governo são 17 os ministérios que se ocupam de uma maneira ou outra de questões ambientais. Produzem para a diplomacia ambiental muita fragmentação e falatório. Mas falta estratégia5. Embora Decat (2011) tenha estudado esse fenômeno, em seu livro Estruturas Desgarradas em Língua Portuguesa, ela não chega a estudar as construções adversativas. Estuda apenas as orações adjetivas e apositivas e, também, algumas orações subordinadas. Mas, a hipótese que levanta é interessante. Segundo ela, trata-se de um recurso de focalização por meio de unidades de entonação. De fato, nós falamos por meio de blocos prosódicas, procurando criar um ritmo para 5 William Waak, em O Estado de S. Paulo, 10.08.2023 40 o que falamos e, na escrita, procuramos, por meio da pontuação, recriar esse ritmo. No caso das estruturas desgarradas, a separação de uma oração que deveria estar ligada à oração anterior tem um propósito de usar o ritmo a favor do gerenciamento da informação. Uma hipótese é que todo início de frase, assinalado com letra maiúscula na língua escrita, funciona analogamente ao tempo inicial de um compasso na música, que é sempre um tempo forte. Por exemplo, em um compasso binário, o primeiro tempo é forte e o segundo, fraco; em um ternário, o primeiro tempo é forte e o segundo e o terceiro são fracos. Em um compasso quaternário, o primeiro tempo é forte, o segundo, fraco, o terceiro meio forte e o quarto, fraco. Seguem, abaixo, exemplos6: Portanto, a escolha ou não de uma estrutura desgarrada está ligada, de um ponto de vista estilístico, à pragmática convencional, vinculada a uma figura de construção fundamentada no emprego simétrico dos blocos prosódicos. 6 https://www.cursodeteoriamusical.com.br/modulo-3-mts-ccb. http://www.cursodeteoriamusical.com.br/modulo-3-mts-ccb 41 7.2 Aplicação didática O professor poderá partir de um texto, em que o aluno terá de localizar funções argumentativas em períodos compostos. Vejamos o seguinte texto publicado no jornal O Estado de S. Paulo, discutindo o uso de inteligência artificial, nas Olimpíadas da França. Como a IA promete revolucionar segurança, estatísticas e transmissão da Olimpíada 2024 (Marcos Antomil para O Estado de S. Paulo, 3/01/2024) Apesar de a inteligência artificial já estar sendo adotada pela cobertura televisiva desde os Jogos de Inverno de PyeongChang, em 2018, a sua aplicação será mais abrangente neste ano. A geração de replays em 360º é um dos recursos possibilitados pela inteligência artificial. Com a chance de usar novos meios para reproduzir imagens em ângulos jamais vistos, o COI aposta na ferramenta para melhorar ainda mais a experiência dos telespectadores. Uma parceria do COI, por meio do Serviço Olímpico de Transmissão (OBS, sigla em inglês) com a Intel vai possibilitar pela primeira vez a transmissão dos Jogos Olímpicos ao vivo em 8K, que representa uma imagem de altíssima resolução presente nos televisores e computadores mais modernos do mercado. Além disso, a IA desenvolvida pela empresa possibilitará cortes personalizados e distribuição de conteúdos para as emissoras com mais eficácia, substituindo o trabalho de edição tradicional. Nos últimos meses, a União Europeia aprovou uma lei que regula o uso da IA e atinge o tema segurança. O texto, que ainda precisa da aprovação local dos países-membro do bloco, prevê a proibição de classificação de cidadãos por meio dessa tecnologia e o veto a sistemas de monitoramento em massa. Uma das grandes preocupações francesas se concentra em ameaças terroristas. Por isso, a tecnologia das câmeras permitirá a vigilância dos atletas e do público, além da identificação de potenciais riscos, como bolsas, pacotes abandonados e até pessoas deitadas no chão. “A tecnologia de inteligência artificial oferece uma camada adicional de proteção, ajudando a identificar possíveis ameaças e agir rapidamente para mitigar riscos. Vale reforçar que a 42 eficiência deve ser equilibrada com privacidade e ética”, afirma Cristiano Maschio, CEO da fintech Qesh. A seguir, analisamos dois períodos compostos desse texto. 7.3 Primeiro período Apesar de a inteligência artificial já estar sendo adotada pela cobertura televisiva desde os Jogos de Inverno de PyeongChang, em 2018, a sua aplicação será mais abrangente neste ano. 7.4 Análise Esse período se inicia com uma oração subordinada adverbial concessiva, como oposição. A oração principal mostra um cenário mais abrangente para aplicar a IA nas Olimpíadas de 2024. A articulação sintática mostra uma oposição entre uma aplicação menos abrangente em 2018 e uma aplicação mais abrangente em 2024. O uso da IA é compatível com uma melhora na cobertura televisiva. 7.5 Segundo período Uma das grandes preocupações francesas se concentra em ameaças terroristas. Por isso, a tecnologia das câmeras permitirá a vigilância dos atletas e do público, além da identificação de potenciais riscos, como bolsas, pacotes abandonados e até pessoas deitadas no chão. 7.6 Análise Temos, aqui uma relação sintática de explicação. A oração coordenada explicativa aparece em uma estrutura desgarrada, em função do ritmo que o autor quis imprimir ao seu 43 texto. Do ponto de vista argumentativo, há compatibilidade entre usar câmeras de segurança e a segurança dos atletas e do público presente aos jogos olímpicos. 44 8 PRAGMÁTICA CONVENCIONAL E CONVERSACIONAL NO ESTUDO DA NEGAÇÃO As gramáticas do português põem a palavra não na classe dos advérbios de negação, acrescentando outros como nunca, jamais e nada. A palavra não tem a função, dentro da pragmática convencional, de negar um predicador, como em: Maria não mora no Paraná. Maria não comprou as entradas. Nessas frases, o advérbio não nega, respectivamente, que Maria more no Paraná e que tenha comprado as entradas. Mas, como entender a negação em uma frase como: Machado de Assis não nasceu em São Paulo. É óbvio que Machado de Assis nasceu! Portanto, o não não está negando o predicador, que é o verbo nascer. O que a frase acima nega é que o local do nascimento tenha sido São Paulo. Se você for ao Google, verá que Machado de Assis nasceu no Rio de Janeiro. A explicação para isso é que, quando ouvimos ou lemos uma frase negativa, nossa mente simula, primeiramente a sua contraparte afirmativa (ABREU, 2022, p. 368). Se alguém diz a você algo como: seu lanche não está em cima da geladeira; está na mesa da copa.; a primeira coisa que você faz é criar uma imagem do lanche sobre a geladeira, para, milésimos de segundos depois, reprocessar a imagem do lanche sobre a mesa da copa. Conclusão, o escopo da negação é dado pelo contexto e, também, pelo nosso conhecimento prévio do mundo. Diante de uma frase como: O Brasil não ganhou a última Copa do Mundo por acaso. Fazemos um pareamento entre a nossa memória de longo prazo e a frase e, como sabemos que o Brasil não ganhou, de fato, a Copa do Mundo, concluímos que o não afeta o predicador ganhar. Mas, diante de uma frase como: A Argentina não ganhou a última Copa do Mundo por acaso. 45 Fazendo um pareamento entre a nossa memória de longo prazo e a frase, sabemos que a Argentina ganhou, de fato, a última Copa do Mundo e concluímos, portanto, que o não afeta não o predicador ganhar, mas a locução adverbial por acaso. É como se disséssemos: A Argentina ganhou a último copa do mundo, mas não por acaso. Diante de uma frase em que um pai diz a um filho algo como: Eu não comprei esse computador para você ficar jogando videogame o dia inteiro nele! Sabemos que o pai comprou, de fato, o computador. Concluímos, então, que o não afeta não o predicador comprar, mas o conteúdo semântico da oração final seguinte. É como se esse pai tivesse dito ao filho algo como: Eu comprei esse computador, mas não para você ficar jogando videogame o dia inteiro nele. No dia 26 de janeiro de 2024, na rede social X, antigo Twetter, uma blogueira de nome @Damadeferro publicou o seguinte texto: Algumas declarações de pessoas que declararam apoio ao candidato republicano Donald Trump: “Não vou votar em Donald Trump porque sou um caipira inculto que odeia qualquer um que não seja um cristão hétero – como a mídia quer que você acredite. Estou votando nele porque amo esse país e quero ver todos nele tendo sucesso.” “Estou votando nele porque quero que meus filhos tenham um futuro onde (sic) este país ainda seja o melhor do mundo.” Estou votando nele porque vi o que ele pode realizar em tão pouco tempo, então imagine o que le pode fazer com 4 anos inteiros...” Veja que, nesse caso, o escopo da negação está na oração subordinada adverbial causal seguinte. É como se o autor do texto citado tivesse dito: 46 Vou votar em Donal Trump não porque sou um caipira inculto que odeia.... Tudo isso está ligado à pragmática convencional. Mas, a negação pode, também, estar ligada à pragmática conversacional, como um marcador de atenuação. É o que acontece na figura de pensamento chamada lítotes, que significa afirmar pela negação. Vejamos as seguintes frases: Sua mãe não está bem de saúde. Ela já não é tão jovem. Seu pai não lhe deu maus conselhos. Nessas frases, o que o enunciador quer dizer é que sua mãe está mal de saúde, que ela já está envelhecida e que seu pai lhe deu bons conselhos. Mas o enunciador usa a negação, dentro da pragmática conversacional, para amenizar aquilo diz. Um fato curioso é que, por motivo de educação, antigamente em Portugal, quando alguém pedia alguma coisa, o interlocutor costumava, por educação, responder, usando a lítotes. Exemplo: O senhor doutor poderia me fazer um favor? Pois não lhe haveria de fazer? Com o passar do tempo, essa lítotes foi reduzida, por economia, e deu origem à expressão formulaica (em inglês seria uma collocation), pois não. É por esse motivo que, quando você pede alguma coisa a alguém e recebe como resposta pois não, sabe que será atendido. E, quando entra em uma loja e a atendente o recebe, dizendo pois não!, você sabe que será bem atendido! 8.1 Aplicação didática 47 O professor poderá oferecer aos alunos, primeiramente, frases simples e pedir a eles que mostrem se a negação afeta o verbo da oração à sua direita ou outra função sintática qualquer. Exemplo: Eu não falei isso. Eu não falei isso por mal. O aluno deverá dizer que, na primeira oração, o não está ao lado do verbo e afeta o verbo. O falante, de fato, não falou. Deverá perceber que, na segunda oração, embora o não esteja ao lado do verbo, afeta o adjunto adverbial por mal. O professor poderá, ainda, oferecer textos maiores ou pedir aos alunos que pesquisem, na mídia, trechos em que a negação, embora esteja ao lado do verbo, afeta outra palavra ou expressão, na mesma oração ou em outra oração. Exemplo: Para o presidente da Associação Nacional das Empresas Financeiras das Montadoras (Anef), Paulo Noman, as campanhas das montadoras não baixaram os juros por meio dos seus bancos apenas para aumentar as vendas, mas para concorrer com a vinda dos carros elétricos importados. Nesse texto, a leitura mostra que as montadoras baixaram os juros. O não afeta a oração seguinte “para aumentar as vendas”. 48 9 PRAGMÁTICA CONVERSACIONAL NO EMPREGO DOS TEMPOS VERBAIS Nos anos setenta do século passado, fez bastante sucesso o livro Le temps: le récit e le commentaire, tradução do alemão Tempus – Besprochene und erzählte Welt, escrito por Harald Weinrich (WEINRICH [1964] 1973). Em português: O tempo: a narração e o comentário. Nesse livro, o autor fez uma análise funcionalista do emprego dos tempos verbais e criou a expressão metáfora temporal. Segundo ele, podemos usar os tempos do presente (presente, futuro do presente) – mundo comentado – como metáfora, para falar do passado, como em: Freud diz que nossas frustrações são importantes, pois são gatilhos para imaginação. O objetivo desse uso é criar um efeito de realidade para o leitor. As gramáticas tradicionais chamam esse emprego de presente histórico. A meu ver, essa metáfora temporal se situa dentro da pragmática convencional. Já, o uso dos tempos do passado (mundo narrado) no presente (mundo comentado) está ligado à pragmática conversacional. Exemplos: Eu gostaria de experimentar aquela blusa da vitrine. Eu poderia chegar amanhã, uma hora mais tarde? O emprego não metafórico desse tempo (futuro do pretérito) é narrar um fato passado, mas futuro em relação a um outro fato passado, como em: O presidente francês chegou a Londres às 8h. Ao meio-dia almoçaria com o Rei Charles III. Veja que tanto a chegada do presidente francês, quando o almoço com o rei são fatos passados reais, acontecidos. Mas, esse tempo pode também ser usado em construções hipotéticas como: 49 Se eu ganhasse na megasena, eu compraria uma Mercedes. Tanto ganhar na megasena quanto comprar uma Mercedes são hipóteses. Mas, comprar a Mercedes vem depois de ganhar na loteria, que é a condição. A partir daí, esse tempo foi adaptado como um marcador de atenuação. Quando eu digo: Eu gostaria de experimentar aquela blusa da vitrine, fica no ar a condição: Se você me permitir. O mesmo acontece com a frase: Eu poderia chegar amanhã, uma hora mais tarde? Fica no ar a condição: Se você permitir ou concordar. Por uma questão de economia, a condição não é verbalizada. Fica apenas implícita. Bem, a partir daí, houve uma segunda adaptação, que é usar essa metáfora temporal mesmo sem condição implícita, em frases como: COPOM aumentaria este mês a taxa de juros. Ladrão teria jogado no rio a arma do crime. Veja que, nesses casos, não é possível “repor” uma oração condicional. O futuro do pretérito tem, nessas frases, apenas a funcionalidade de servir como um hedge. Uma maneira, dentro da pragmática conversacional, de o autor da frase não se comprometer com o que diz. 9.1 Aplicação didática Na parte prática, o professor poderá oferecer textos da mídia aos alunos, pedindo a eles que identifiquem o uso metafórico dos tempos verbais, como o chamado presente histórico, quando o falante usa o tempo verbal presente, para falar do passado. Exemplo: Nos anos que se seguiram, os líderes chineses, em sua maioria, negaram qualquer ambição de exportar um modelo de desenvolvimento liderado pelo Estado. Mas, às vezes, eles são mais descarados. No ano passado, por exemplo, Xi Jinping argumentou em um discurso para autoridades do Partido Comunista que o modelo econômico do país “quebra o mito de que modernização é igual à ocidentalização” e que seu crescimento estava expandindo as “opções para os países em desenvolvimento”. (O Estado de S. Paulo, 10/06/2024) 50 Nesse texto, o autor, inicia o texto, falando do passado. Mas, no segundo período, usa o presente para um comentário: “Mas, às vezes, eles são mais descarados. E, na da voz introduzida do presidente chinês Xi Jinping – que deu uma declaração no passado – essa voz também é introduzida no tempo presente: “quebra o mito de que modernização é igual a ocidentalização”. 51 10 SINTAXE, SEQUÊNCIA NATURAL DE EVENTOS E A PRAGMÁTICA CONVENCIONAL A ordem das palavras em uma oração apresenta uma parte mais ou menos fixa e uma outra variável, resultado das escolhas de enunciador. A ordem entre os argumentos de um verbo costuma ser mais rígida. O sujeito prototípico, por exemplo, antecede o verbo. Ninguém costuma construir frases como: Compraram as crianças pipoca. Pipoca compraram as crianças. O mais comum é dizer ou escrever: As crianças compraram pipoca. Quando o sujeito não é prototípico, ele costuma vir depois do verbo. Ninguém costuma construir orações como: Uma mensagem chegou. O mais comum é dizer ou escrever: Chegou uma mensagem. Em um período composto, a ordem é fixa entre as orações coordenadas. Exemplo: As meninas compraram pipoca e entraram no cinema. As meninas compraram pipoca, mas não comeram nem metade delas. Essa ordenação obrigatória recebe o nome de iconicidade temporal. Isso quer dizer que devemos observar a ordem natural dos eventos. É quase impossível dizer coisas como: Mas não comeram nem metade da pipoca, as meninas a compraram. 52 Com relação aos cenários, expressos pelos adjuntos adverbiais, há uma liberdade maior. Um adjunto adverbial pode ocupar qualquer posição em uma oração. Exemplos: Ontem, as meninas compraram pipoca. As meninas, ontem, compraram pipoca. As meninas compraram pipoca ontem. A escolha da posição depende da situação de enunciação. Diante de uma pergunta como: Quando as meninas compraram pipoca? A ordem natural será aquela em que o adjunto adverbial inicia a oração ‘Ontem, as meninas compraram pipoca’. Ou, ainda, por economia, reduzir a resposta apenas ao adjunto, dizendo: Ontem. De maneira geral, é importante respeitar a sequência natural de eventos7 em função do atrator clareza. Diante de duas opções como: Maria dormiu, após ter chegado em casa e ter tomado banho antes. Maria chegou, tomou banho e dormiu. A segunda frase é muito mais acessível. Respeitar a sequência natural de eventos ajuda, também a evitar ambiguidades. Na edição de 22 de novembro de 2023, o colunista Roberto DaMatta publicou, no jornal O Estado de S. Paulo, uma crônica intitulada A Síndrome da Bengala, que começa assim: 7 Miriam PETRUCK, Frame semantics, p. 5 “More specific, Lakoff proposes a notion of a ‘nat- ural course of events’ characterized in terms of a semantics of understanding. Lakoff’s ‘natural courses of events’ or ‘scenarios’ are ‘humanly constructed holistic organizations of states and events’”. 53 Devido a um problema na perna, fui a um cerimonial cujo propósito era premiar um extraordinário homem de letras usando uma bengala. Prestando atenção ao contexto da frase, é possível entender que quem usava a bengala era o autor do texto, Roberto DaMatta, mas, na posição em que foi colocada a oração subordinada adverbial usando uma bengala, podemos pensar que quem usava a bengala era o tal extraordinário homem de letras. Convenhamos que esse início de texto ficaria bem mais claro se fosse redigido da seguinte maneira: Devido a um problema na perna, usando uma bengala, fui a um cerimonial cujo propósito era premiar um extraordinário homem de letras. Como vemos, a ordem dos adjuntos adverbiais na frase, e das orações adverbiais no período composto está vinculada à pragmática convencional, mais especificamente ao atrator clareza. 10.1 Aplicação didática O professor poderá oferecer aos alunos textos da mídia em que a não observação da sequência natural de eventos pode causar ambiguidades, como acontece no texto a seguir: Terens, um veterano americano, será homenageado em 6 de junho, no 80º aniversário do Desembarque na Normandia, uma operação que mudou o conflito. Dois dias depois, Jeanne e ele se casarão em Carantan-les-Marais, perto das praias onde milhares de soldados desembarcaram naquele dia de 1994, em uma cerimônia presidida pelo prefeito essa localidade. (Appnews, citando O Estado de Minas, 5/06/2024) Nesse texto, além do erro de ter posto 1994, em vez de 1944, o autor, desrespeitando a ordem natural dos eventos, cria uma situação curiosa, em que o prefeito de Carantan-les-Marais teria presidido a cerimônia de desembarque das tropas aliadas na Normandia, do dia D. 54 Além de identificar a ambiguidade, os alunos poderão refazer o texto, obedecendo a ordem natural dos eventos, evitando o problema, como na versão a seguir: Terens, um veterano americano, será homenageado em 6 de junho, no 80º aniversário do Desembarque na Normandia, uma operação que mudou o conflito. Dois dias depois, Jeanne e ele se casarão em Carantan-les-Marais, em uma cerimônia Presidida pelo prefeito essa localidade, perto das praias onde milhares de soldados desembarcaram naquele dia de 1944. 55 11 USO DO IMPERATIVO: UM CASO CLÁSSICO DE OPOSIÇÃO ENTRE A PRAGMÁTICA CONVENCIONAL E CONVERSACIONAL Todas as gramáticas descrevem o modo imperativo. Por tradição, a segunda pessoa do singular e do plural provêm do presente do indicativo, com a retirada do s. Exemplo: Eu compro Tu compras compra tu Ele compra Nós compramos Vós comprais Eles compram comprai vós As outras pessoas (segundas pessoas indiretas) provêm do presente do subjuntivo. Exemplo: Que eu compre Que tu compres Que ele compre compre você Que nós compremos Que vós compreis compremos nós Que eles comprem comprem vocês O resultado final seria: 56 Compra tu Compre você Compremos nós Comprai vós Comprem vocês Na primeira pessoa do plural, o nós equivale a eu + você, como sabemos. Como descrição gramatical está tudo perfeito. Mas, em termos de uso, em uma situação normal de enunciação, é pura ficção, uma vez que praticamente não existe mais no português do Brasil a segunda pessoa dos verbos. Se formos levar em conta a língua padrão, teremos apenas: Compre você Compremos nós Comprem vocês. Na prática da língua falada, porém, usamos apenas a segunda pessoa indireta do singular, construída a partir do presente do indicativo. Exemplos: Você vai na farmácia? Então compra aspirina pra mim! Pega uma Coca-Cola pra mim na geladeira! Na prática, contudo, a pragmática conversacional se impõe e, por isso, é muito mais frequente o uso dos atos indiretos da fala. Dessa maneira, os pedidos acima seriam substituídos por versões como: Já que você vai na farmácia, você poderia (podia) comprar aspirina pra mim? Dá pra você pegar uma Coca-Cola para mim, na geladeira? 57 Desse modo, o modo imperativo, dentro da pragmática convencional, acaba sendo usado apenas na linguagem escrita, em textos injuntivos, como manuais e receitas. Vejamos uma receita de bolo de laranja8: Ingredientes 4 ovos 2 xícaras (chá) de açúcar 1 xícara (chá) de óleo suco de 2 laranjas casca de 1 laranja 2 xícaras (chá) de farinha de trigo 1 colher (sopa) de fermento Modo de fazer 1. Bata no liquidificador os ovos, o açúcar, o óleo, o suco e a casca da laranja. 2. Passe para uma tigela e acrescente a farinha de trigo e o fermento. 3. Leve para assar em uma forma com furo central, untada e enfarinhada, por mais ou menos 30 minutos. 4. Desenforme o bolo e molhe com suco de laranja. 8 https://www.tudogostoso.com.br/receita/13953-bolo-de-laranja.html https://www.tudogostoso.com.br/noticias/como-untar-a-forma-do-bolo-a3732.htm https://www.tudogostoso.com.br/noticias/como-untar-a-forma-do-bolo-a3732.htm http://www.tudogostoso.com.br/receita/13953-bolo-de-laranja.html 58 Na língua falada, o imperativo tende a ser empregado apenas em situações de injunção, em que é necessário agir com rapidez, como no diálogo entre operadores da torre de controle de aeroportos e aeronaves que vão aterrissar ou decolar, ou em centros cirúrgicos, em que o cirurgião pede ações do(a) instrumentador(a) ou do(a) anestesista. 11.1 Aplicação didática O professor poderá oferecer aos alunos textos de receitas culinárias, solicitando aos alunos que identifiquem as formas do imperativo nelas utilizadas. Poderá, também, pedir a eles que redijam textos injuntivos, em geral (receitas culinárias, manual e uso de algum aparelho, avisos públicos) usando o modo imperativo. 59 12 PASSAGEM DA PRAGMÁTICA CONVERSACIONAL PARA A PRAGMÁTICA CONVENCIONAL, POR GRAMATICALIZAÇÃO: UMA HIPÓTESE Gramaticalização é um processo linguístico em que palavras ou construções que originalmente têm significado lexical adquirem funções gramaticais, como marcação de tempo, conjunções, marcadores de atenuação ou realce. Um exemplo clássico é o do verbo ter que foi gramaticalizado, em português, como verbo auxiliar para a formação de tempos compostos. A gramaticalização ocorre por meio do uso repetido, que leva a uma mudança gradual na estrutura da língua. Vamos trabalhar, inicialmente, com as palavras sequer e qualquer, que aparecem em frases como: Maria não trouxe um documento sequer. Maria vai passar no concurso, qualquer que seja a dificuldade das questões da prova. Inicialmente, essas palavras funcionavam, como marcadores de atenuação, dentro da pragmática conversacional, como hoje funcionam expressões como não é ou né, em frases como: As eleições vão acontecer no mês de outubro, como sempre, não é? A expressão não é ou né, sobretudo na língua oral, funciona como um marcador de atenuação. É como se o falante, em vez de ser taxativo, oferecesse ao interlocutor o benefício da dúvida. Não é/né tem o sentido de “É isso mesmo? Você concorda comigo?” No caso de sequer, é como se o falante acrescentasse uma oração condicional, imaginando que o interlocutor pudesse ter interesse em ver o documento: 60 Maria não trouxe um documento; se quer você um documento! No caso de qualquer, é como se o falante passasse a palavra ao interlocutor, também imaginando que ele possa ter interesse no tema da conversa: Maria vai passar no concurso, qual quer você que seja a dificuldade das questões da prova. Em ambos os casos, como vemos, a intenção é procurar integrar a opinião do interlocutor na opinião do falante. Interessante que, em espanhol, o verbo querer fica no subjuntivo: siquiera, qualquiera. (si quiera usted; qual quiera usted) Havendo a gramaticalização, em função do uso repetido, ambas essas palavras passam do léxico para a gramática, deixando de ter uma função de pragmática conversacional, passando a funcionar como um marcador de realce, dentro da pragmática convencional. Nos dias de hoje, quando dizemos: Maria não trouxe um documento sequer. Maria vai passar no concurso, qualquer que seja a dificuldade das questões da prova. Sequer e qualquer, funcionam como marcadores de realce ou, se quisermos usar uma nomenclatura convencional, funcionam como adjuntos adverbiais de intensidade. 61 13 CONCLUSÃO O objetivo desta dissertação foi mostrar que é muito mais viável descrever e ensinar a língua portuguesa, do ponto de vista da sua gramática, entendendo a linguagem, em geral, como um sistema complexo, e pondo foco na enunciação, ou seja, levando em conta as estratégias do sujeito falante, quando pretende construir um texto, tendo em vista o conhecimento de quem é seu interlocutor e da relação social que tem com ele. Como a pragmática é o estudo da enunciação, partimos do ponto de vista de Goldberg (2007), dividindo a pragmática em pragmática convencional – que leva em conta atratores como clareza, iconicidade, economia e blending – e pragmática conversacional – que leva em conta o atrator sociabilidade. Trata-se de algo presente diariamente em nosso cotidiano. Quando assistimos a um noticiário na TV, por exemplo, vemos que, antes de tratar as notícias (pragmática convencional), o apresentador cumprimenta o público com um bom dia, boa tarde ou boa noite e agradece, às vezes, sua audiência (pragmática conversacional). Quando escrevemos um e-mail, a primeira coisa que fazemos é usar um vocativo como prezado senhor ou senhora, caro amigo etc. (pragmática conversacional) para depois entrar no assunto (pragmática convencional) e, no final, usar uma fórmula de despedida como atenciosamente, cordialmente etc. (pragmática conversacional). E também, quase sempre, intercalamos, no texto que escrevemos, marcadores de atenuação, por meio de expressões como por gentileza, provavelmente e orações intercaladas, como sinais de sociabilidade. Por esse motivo, achamos importante tratar a gramática a partir desses pontos de vista. A pragmática convencional, como vimos, usa a ordem das palavras e recursos como a clivagem, por exemplo, para trabalhar com escolhas gestálticas assumindo partes do texto com figura e partes como fundo. A pragmática conversacional, por sua vez, inclui, no texto, marcadores de atenuação, emprega elementos gramaticais com dupla função, como a negação em lítotes, e usa atos indiretos de fala no lugar do emprego gramatical do modo imperativo. Acreditamos que esta pequena dissertação de mestrado possa ser o início de um trabalho mais amplo que atinja outros temas do estudo e ensino da gramática do português nas escolas, principalmente no ensino médio, levando os alunos a entender a gramática não de maneira taxonômica, mas de maneira sistêmica e funcional. 62 REFERÊNCIAS ABREU, Antônio Suárez. Pequeno Manual de Estilística do Português: o poder de encantar, seduzir e persuadir. 2 ed., São Paulo: Chan Lab., 2023. ABREU, Antônio Suárez. Lições de Letramento, São Paulo: Giostri, 2021. ABREU, Antônio Suárez. A Arte de Argumentar gerenciando razão e emoção, 14ª ed., São Paulo: Ateliê, 2022. ABREU, Antônio Suárez. Gramática Integral da Língua Portuguesa: uma visão prática e funcional, 2ª ed. São Paulo: Ateliê & Chan Ed, 2022. ABREU, Antônio Suárez e FONSECA, Mara Roselaine Pinto da. Considerações sobre a variação terminológica na área médica. Em Linguagem e Práticas Discursivas, São Luís: EDUFMA, 2023. BYBEE, Joan. Language, Usage and Cognition, Cambridge: Cambridge University Press, 2010. DECAT, Maria Beatriz Nascimento. Estruturas Desgarradas em Língua Portuguesa, Campinas: Pontes, 2011. FAUCONNIER, Gilles e TURNER, Mark. The Way we Think: conceptual blending and the mind’s hidden complexities, New York: Basic Books, 2022. GOLDBERG, Adele E. Pragmatics and Argument Structure. Em The Hand- book of Pragmatics, UK: Blackwell Publishing, 2007. GOLDBERG, Adele E. Constructions: A Construction Grammar Approach to Argument Structure, Chicago: The University of Chicago Press, 1995. HIPPEL, William Von. A Evolução Improvável: a nova ciência evolutiva sobre quem somos, o que nos faz felizes e porque isso é importante, trad. Alexandre Martins, Rio: Harper Collins, 2019. 63 HIPPEL, William Von. The social leap: the new evolutionary science of who we are, where we come from, and what makes us happy, New York: Harper Wave, 2018. LAKOFF, George & JOHNSON, Mark. Metaphors We Live By, Chicago: The University of Chicago Press, 1980. PETRUCK, Miriam R. L. Frame Semantics. In J-O. Ö stman, J. Verschueren, and J. Blommaert (eds.) Handbook of Pragmatics. Amsterdam & Philadelphia: John Benjamins, 1996. TOMASELLO, Michael. A natural history of human thinking, London: Harvard University Press, 2014. WEINRICH, Harald. Le temps: le récit e le commentaire, Paris: Seuil, 1973. 1 INTRODUÇÃO 2 A ESCOLA RURAL 3 A CONSTRUÇÃO DAS NARRATIVAS 4 LINGUAGEM HUMANA COMO UM SISTEMA COMPLEXO 4.1 Atratores da linguagem 4.1.1 Sociabilidade 4.1.2 Iconicidade 4.1.3 Economia 4.1.4 Blending 4.1.5 Clareza 5 PRAGMÁTICA CONVENCIONAL E PRAGMÁTICA CONVERSACIONAL 5.1 Pragmática convencional e conversacional na descrição e no ensino do uso da vírgula 5.2 Aplicação didática 6 FUNCIONALIDADE ARGUMENTATIVA DAS ORAÇÕES, EM UM PERÍODO COMPOSTO 7 ARTICULAÇÃO SINTÁTICA DE OPOSIÇÃO, EM TERMOS DE PRAGMÁTICA CONVENCIONAL E CONVERSACIONAL 7.1 Objetividade e subjetividade no uso da articulação sintática de oposição 7.2 Aplicação didática 7.3 Primeiro período 7.4 Análise 7.5 Segundo período 7.6 Análise 8 PRAGMÁTICA CONVENCIONAL E CONVERSACIONAL NO ESTUDO DA NEGAÇÃO 8.1 Aplicação didática 9 PRAGMÁTICA CONVERSACIONAL NO EMPREGO DOS TEMPOS VERBAIS 9.1 Aplicação didática 10 SINTAXE, SEQUÊNCIA NATURAL DE EVENTOS E A PRAGMÁTICA CONVENCIONAL 10.1 Aplicação didática 11 USO DO IMPERATIVO: UM CASO CLÁSSICO DE OPOSIÇÃO ENTRE A PRAGMÁTICA CONVENCIONAL E CONVERSACIONAL 11.1 Aplicação didática 12 PASSAGEM DA PRAGMÁTICA CONVERSACIONAL PARA A PRAGMÁTICA CONVENCIONAL, POR GRAMATICALIZAÇÃO: UMA HIPÓTESE 13 CONCLUSÃO 14 REFERÊNCIAS