Rio Claro 2018 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS - RIO CLARO Licenciatura Plena em Pedagogia TÂNIA DA CRUZ RÖHRIG A PRODUÇÃO ACADÊMICA SOBRE A LEI Nº 10639/03: A BUSCA POR VESTÍGIOS DE UMA LEI IMPERTINENTE E FRACASSADA TÂNIA DA CRUZ RÖHRIG A PRODUÇÃO ACADÊMICA SOBRE A LEI Nº 10639/03: A BUSCA POR VESTÍGIOS DE UMA LEI IMPERTINENTE E FRACASSADA Prof. Dr. José Euzébio de Oliveira Souza de Aragão Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - Campus de Rio Claro, como requisito para a obtenção do grau de Licenciada em Pedagogia. Rio Claro 2018 Röhrig, Tânia da Cruz A produção acadêmica sobre a lei 10639/03: a busca por vestígios de uma lei impertinente e fracassada / Tânia da Cruz Röhrig. - Rio Claro, 2018 90 f. : il., gráfs., tabs. Trabalho de conclusão de curso (Pedagogia) - Universidade Estadual Paulista, Instituto de Biociências de Rio Claro Orientador: José Euzébio de Oliveira Souza Aragão 1. Negros – Condições sociais. 2. Cultura africana. 3. Lei 10639/03. 4. História africana e afro-brasileira. 5. Práticas educativas. 6. Ensino básico. I. Título. 301.45196 R479p Ficha Catalográfica elaborada pela STATI - Biblioteca da UNESP Campus de Rio Claro/SP - Adriana Ap. Puerta Buzzá / CRB 8/7987 RESUMO O presente trabalho, se insere na temática originada a partir da promulgação da lei 10639/03 que trata da alteração da lei 9394/96, e que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade do tema "História e Cultura Africana e Afro-Brasileira", no ensino básico, público e particular. A pesquisa tem como interesse, investigar e analisar em trabalhos científicos realizados a partir da promulgação da lei, as prováveis práticas educativas escolares a ela relacionadas até o momento. O propósito do trabalho é fazer o levantamento de uma amostra, sobre a efetividade no cumprimento da lei, que reconhece a forte influência da cultura africana na formação da sociedade brasileira, e a necessidade de ser apreendida por seus sujeitos sociais. O assunto despertou interesse a partir do estágio de regência no Ensino Fundamental, onde nada sobre o assunto foi identificado no currículo ou nas aulas durante aquele período. Foram observados indícios, de que a prática didática sobre o tema determinado por lei, ainda permanece sem uma diretiva concreta dentro de escolas de ensino básico em geral. Palavras-chave: Lei 10639/03. História e Cultura Africana e Afro-Brasileira. Práticas educativas. Ensino básico. SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO...................................................................................................4 2. O NEGRO NA SOCIEDADE BRASILEIRA............................................................10 2.1 Escravidão, Abolição e RepúblicA..............................................................................10 2.2.O racismo na conceituação pós moderna.....................................................................14 3. AÇÕES AFIRMATIVAS: sua gênese e influências..................................................18 4. LEI 10639/03: seus aspectos e relevância...................................................................23 4.1 A lei 10639/03 e a escola.............................................................................................23 5. LEVANTAMENTO BIBLIOGRÁFICO...................................................................29 6. ANÁLISE DE DADOS................................................................................................36 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................87 REFERÊNCIAS..............................................................................................................91 4 1. INTRODUÇÃO Os debates sobre inclusão, diversidade e equidade mediatizados na sociedade brasileira atual, se destacam com ênfase principalmente na educação. Por essa razão esse trabalho teve por interesse, buscar uma compreensão sobre essas questões dentro do Ensino Básico, a partir da implementação da lei que estabelece o ensino de cultura africana e afro-brasileira nas escolas, uma vez que essa premissa é fundamental para inclusão do aluno afro-descendente. A pesquisa procurou apontar e analisar, aspectos referentes às dificuldades no âmbito das possíveis práticas pedagógicas relacionadas à lei 10.639/03 dentro das escolas de Ensino Básico, e se utilizou de levantamento bibliográfico e documental para buscar discernir as vulnerabilidades mais frequentes relevadas nessa temática, a partir da publicação da lei. O objetivo do estudo, foi identificar características comuns a essas dificuldades, analisar as circunstâncias em que elas se reiteram procurando evidenciar possíveis caminhos, para o exercício de superação das mesmas. O Movimento Negro, que busca uma legalidade para sua atuação social a partir do início do século XX, vai se ampliando com mais força nas últimas décadas, inserido em um contexto de transformações de ordem internacional com a disseminação do capitalismo globalizado, e o surgimento de lutas contra-hegemônicas. A promulgação da lei nº 10639/03, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei 9.394/96, tornando obrigatório o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira em todos os estabelecimentos de ensino da educação básica, tanto da rede pública como particular, foi resultante de um período dessas lutas, organizadas para combater o racismo e suas cruéis consequências, e buscar um caminho para diminuir as injustiças e desigualdades que afetam em larga escala a população negra e parda no Brasil. A lei 10639/03, que a altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996 estabelece a seguir que o Art. 1ºA Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa vigorar acrescida dos seguintes artigos. 26-A, e 79-B: Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História de Cultura Afro-Brasileira. Parág.1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da 5 sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. Parág.2º Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras. "Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como „Dia Nacional da Consciência Negra‟." Art. 2o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Brasília, 9 de janeiro de 2003; 182o da Independência e 115o da República. (BRASIL, 2003). Desse modo, compreende-se que a partir de então os conteúdos sobre a cultura afro-brasileira e suas contribuições para a sociedade, fariam parte essencial dos currículos da educação básica nacional. Ocorre que um dos maiores impasses ao desenvolvimento social brasileiro, encontra-se em identificar mecanismos que garantam a aplicabilidade de muitas das leis já existentes no país. A lei 10639/03, que foi implementada durante o governo do então presidente Luíz Ignácio Lula da Silva, tem sua gênese proveniente de intensos debates sociais ocorridos no auge das chamadas Ações Afirmativas, e no seio do ativismo social daquele período por meio dos diversos grupos do Movimento Negro. As lutas políticas organizadas e travadas pelo povo de origem africana no Brasil, nasce ainda no período Colonial, mas somente no início do século passado com a formação em 1914, da 1º organização Sindical de Negros, é que elas se tornam oficialmente legais. Na segunda metade do século XX, novos sujeitos sociais na cena política representados pelos movimentos populares, sobretudo os ligados ao gênero e à etnia, passaram a reivindicar uma maior participação e reconhecimento de seus direitos de cidadania. Entre esses movimentos sociais, podemos indicar o “movimento indigenista” e os “movimentos da consciência negra”, que empenham-se em lutar em todo o país, contra quaisquer formas de preconceito e discriminação racial, e também pelo direito à diferença, relevado no estudo e valorização de aspectos da cultura afro-brasileira. Essas lutas, que perfazem um século de existência de permanentes batalhas, ainda não foram suficientes para a principal conquista de que necessita o povo afro descendente: dar impulso às ações afirmativas dentro da mais importante instituição educativa da sociedade, para um trabalho que não apenas combata a discriminação, mas sobretudo que possa eliminar a persistente reprodução do racismo. Todavia, a questão do negro na Educação é um dos mais graves e pendentes problemas da nossa sociedade. As desigualdades raciais são 6 evidenciadas de modo extremamente acentuado em nossas escolas, desde a formação básica, perpassando pelo Ensino Fundamental e Médio, e Estudos Superiores de Graduação e Pós-Graduação. É lugar comum que, no Brasil, é reduzido o número de estudantes negros que chegam à Universidade e que são a “exceção que confirma a regra” (SANTOS, MACHADO, 2008, p. 106). Mesmo após quinze anos da aprovação da lei, há evidências, de que as escolas e seus alunos ainda dependem de iniciativas pontuais que acontecem no interior de algumas unidades, através de alguns projetos “extra-curriculares”, o que não demonstra um concreto interesse na realização da prática do ensino que a mesma preconiza. Essa possibilidade permanece na maioria dos casos, relacionada às comemorações do dia vinte de novembro – Dia da Consciência Negra – ou algum projeto temporário que aborda o tema de maneira lúdica e superficial. Então, quais são as experiências e práticas pedagógicas impulsionadas/motivadas pela referida lei? Que tipo de resistências e barreiras elas enfrentam Portanto, o presente trabalho se propõe a realizar uma busca em publicações científicas, para identificação e caracterização referentes ao ensino relacionado à lei 10.639/03 dentro das escolas de Ensino Básico. Como objetivos específicos pretende- se: a) Verificar no debate acadêmico de 2003 a 2017, as vulnerabilidades mais frequentes dentro da ação pedagógica concernente à temática. b) Investigar características comuns a essas dificuldades e analisar as circunstâncias em que elas se reiteram. c) Identificar e reunir as possíveis propostas de superação dessas dificuldades. Nesse sentido, o desenvolvimento dessa investigação de natureza qualitativa, procurou compreender melhor a substância que compõe esse tipo de análise. Goldenberg (2004) faz uma reflexão, sobre as remotas origens da abordagem qualitativa referindo essa distância no tempo, a Heródoto, que ao descrever a guerra entre a Pérsia e a Grécia, devotou-se a registrar costumes, armas, barcos, tabus alimentares e cerimônias religiosas do povo persa e povos adjacentes. Seu discernimento traz a discussão bem mais próxima no tempo, abordando já no final século XIX e início do século XX, uma elucidação sobre o debate entre a Sociologia Positivista e a Sociologia Compreensiva. Os sociólogos pesquisadores que adotaram a abordagem qualitativa, recusaram os processos quantificáveis para sua área de pesquisa, 7 declinando o modelo positivista aplicado ao estudo das Ciências Sociais. A chamada Sociologia Compreensiva, que tem seu maior expoente na pessoa do intelectual alemão Max Weber considerado um dos fundadores da sociologia, comporta coerente visão, Para Weber, o principal interesse da ciência social é o comportamento significativo dos indivíduos engajados na ação social, ou seja, o comportamento ao qual os indivíduos agregam significado considerando o comportamento de outros indivíduos. Os cientistas sociais, que pesquisam os significados das ações sociais de outros indivíduos e deles próprios, são sujeito e objeto de suas pesquisas. (GOLDENBERG, 2004, p. 19). Também a partir desse período, os antropólogos com suas pesquisas de campo e observação, encorparam a abordagem qualitativa com o passar do tempo. Em 1930 na Universidade de Chicago, em seu departamento de sociologia e antropologia nasce a expressão “Escola de Chicago”, para designar um simultâneo de pesquisas realizadas a partir do Interacionismo Simbólico, cuja característica principal é a orientação multidisciplinar, envolvendo a sociologia, a ciência política, a filosofia, a psicologia e a antropologia. Apesar da relevante importância das pesquisas quantitativas da “Escola de Chicago”, a mesma, também deu impulso e representação para a abordagem qualitativa de forma inexorável. Bogdan e Biklen (1994), durante sua análise histórica sobre a pesquisa qualitativa, também ressaltam “essa escola” como tendo contribuído singularmente com o desenvolvimento dessa abordagem investigativa. Para o desenvolvimento dessa pesquisa, artigos e publicações foram selecionados para dar uma direção e introdução à análise. Esse levantamento bibliográfico preliminar pode ser entendido como um estudo exploratório, posto que tem a finalidade de proporcionar a familiaridade do aluno com a área de estudo no qual está interessado, bem como sua delimitação. Essa familiaridade é essencial para que o problema seja formulado de maneira clara e precisa. (GIL, 2002, p.61). Para Gil, (2002, p. 45) “A principal vantagem da pesquisa bibliográfica reside no fato de permitir ao investigador a cobertura de uma gama de fenômenos muito mais ampla do que aquela que poderia pesquisar diretamente.” Nesse espírito, o trabalho de revisão denominado estado da arte, trouxe inspiração1 à ideia de desenvolvimento dessa investigação. Seus princípios de caráter 1 São chamadas pesquisas em “Estado da Arte”, aquelas análises que se propõem a estudar o modus operandi de outras atividades investigativas. 8 inventariante, e sua oferta de adentramento em uma dimensão coletiva de pesquisa, sugere uma aproximação com inquietações outras, distintas das nossas próprias, além de apontar tendências, favorecendo uma organização que indica a integração e a configuração emergentes às diferentes perspectivas investigadas, os estudos recorrentes, as lacunas e as contradições (VOSGERAU; ROMANOWSKI, 2014). Para levantamento dos artigos, foi utilizada a base de dados SciELO (Scientific Electronic Library Online), que conforme Gil (2002, p. 74), trata-se de uma biblioteca virtual piloto que abrange uma coleção selecionada de periódicos científicos brasileiros com base hospedada na Fapesp (Fundação de Amparo à pesquisa do Estado de São Paulo). A busca foi realizada a partir das palavras-chave: Lei 10639/03, Ensino Básico, História e Cultura Africana e Afro-Brasileira e Práticas Educativas. O trabalho também teve a contribuição de alguns livros sobre o tema, em especial aqueles escritos por sociólogos, historiadores e demais especialistas que analisaram a abordagem da história da cultura africana no Brasil, e se utilizou da análise de conteúdo, que para Bardin (2007 apud CAVALCANTI; PINHEIRO, 2014, p. 14) “se constitui de várias técnicas onde se busca descrever o conteúdo emitido no processo de comunicação, seja ele por meio de falas ou de textos.” Esse capítulo introdutório, teve por tarefa abordar o tema do trabalho, sua problemática de pesquisa, objetivos e a metodologia utilizada. A seguir, serão desenvolvidas mais cinco seções que percorrerão os assuntos nessa ordem: 2 – A presença do negro na sociedade brasileira, em seu percurso histórico a partir do processo escravista, e as consequências do pós-abolição e alteração do regime monarquista nas condições de sobrevivência dessa população. Também as transformações do mundo pós-moderno, que traz novas formas de manifestação do preconceito racial; 3– Nesse capítulo, veremos as Ações Afirmativas, suas origens e sua influência recente no processo das reivindicações populares, e da abertura para o reconhecimento pluriétnico e multicultural; 4– Nessa seção, buscaremos evidenciar a importância do estabelecimento da lei para a educação, mas também para a sociedade como um todo; 9 5– Levantamento Bibliográfico 6– Descrição e Análise dos Dados 7– Considerações Finais 10 2. O NEGRO NA SOCIEDADE BRASILEIRA Para uma compreensão, sobre a presença do negro na sociedade brasileira é necessária uma reflexão, que nesse estudo consideramos relevante a partir de algumas perspectivas. O processo escravagista no ocidente ocorrido a partir do século XVI, a abolição da escravidão no Brasil seguida da mudança do regime político, e as novas teorias do racismo moderno. 2.1 Escravidão, Abolição e República Não há como pensar o povo negro no Brasil, sem antes remeter o pensamento ao processo de escravidão nas Américas, que foi o que motivou a presença do negro africano nessas terras. A dispersão desses povos com início no século XVI permanecendo até meados do século XIX, que foi quanto durou o tráfico negreiro, trouxe milhões de africanos, das mais diversas nações e etnias daquele continente. Um processo excessivamente cruel, onde negros, homens mulheres e crianças, eram indistintamente arrancados e separados de suas famílias, de suas terras e de seus costumes e atividades culturais e embarcados nos chamados navios “tumbeiros” (AZEVEDO, 1975). Pela alcunha desses navios que transportavam esses seres humanos, é possível ter uma vaga, mas verdadeira ideia dos elementos que compuseram a escravidão nesse período, desde o processo de captura até às senzalas dos grandes senhores. O negro escravizado foi trazido para as Américas para labutar de sol a sol quase sem descanso, viver em péssimas condições sanitárias, receber precária alimentação submetido à uma dura disciplina de trabalho e sistemáticos castigos corporais, fatos que obrigatoriamente levavam à morte de muitos, adultos e crianças, incitando a renovação da mão-de-obra pela incessante introdução de novos escravos negociados na África. Dessa forma elucida Azevedo (1975), o negro passou gradativamente, a fazer parte expressiva do contingente populacional brasileiro. Aportavam no Rio de Janeiro, na Bahia, no Pernambuco e no Maranhão, de onde eram espalhados pelo comércio, para outras regiões como São Paulo e Minas Gerais. Foram fortemente utilizados nas lavouras principalmente de cana-de-açúcar, mas da mesma forma no plantio do algodão e do tabaco. No século XVIII e meados do século 11 XIX, prosperavam pelo trabalho das mãos africanas, as fazendas de cultivo de café, mas sua mão de obra também era absorvida pela exploração das minas de ouro e diamantes. Naquele momento, a escravidão era peça fundamental do regime monopolista local, que em nada interessava às nações já capitalistas. Inicia-se então um declínio do capitalismo comercial que dava lugar ao início da industrialização na Europa, uma conjuntura que acabou por culminar nas campanhas e medidas abolicionistas. Não obstante, o dia da abolição não pode ser visto como uma data específica de libertação, mas, como parte de um processo histórico de resistência e luta contra a aculturação, e por liberdade e igualdade. Seja através das inúmeras revoltas que ocorreram durante mais de três séculos, da criação dos Quilombos, dos assassinatos de Senhores, Capatazes e Capitães do Mato, das fugas, dos suicídios, seja pelas conquistas, através de formas coletivas e/ou individuais de pagamento de alforrias. Todos esses episódios não mudaram para melhor os destinos do conjunto do povo africano em terras brasileiras, que por meio de várias determinações e leis muitas delas ineficazes, que foram sendo sancionadas de forma gradativa até 1888, se liberta finalmente do açoite de seu senhor, do trabalho escravo, porém sem perspectivas de acesso à uma vida digna, e recebe em troca a negligência, o abandono, a mendicância, porquanto (...) a sociedade brasileira largou o negro ao seu próprio destino, deitando sobre seus ombros a responsabilidade de reeducar- se e de transformar-se para corresponder aos novos padrões e ideais de homem, criados pelo advento do trabalho livre, do regime republicano e capitalista. (FERNANDES, 2004, p.20). Apesar dos permanentes infortúnios, os negros vão sendo absorvidos e incorporados à sociedade brasileira, mas como o contingente preponderante das classes sociais inferiorizadas. É possível que a partir de então, pela condição de abandono pós escravidão, e o ideário de diversos e complexos interesses do homem branco, tenha iniciado a se firmar e a se reproduzir na sociedade, o preconceito de cor ou racismo no Brasil – embora segundo Campos (2017, p. 4) “[...]a expressão começa a ser utilizada a partir da década de 1920 e conceituada em termos acadêmicos na década de 1940” – em substituição ao ódio praticado abertamente durante o período escravista. Concomitante à Lei Áurea, que finalmente “liberta” os escravos de maneira definitiva de seus senhores, acontece o acolhimento pelos intelectuais brasileiros, às 12 Teorias Raciais2, ao Darwinismo Social3 com seus pressupostos de Tipos Perfeitos (não miscigenados), e a consequente Eugenia4, que pode ser considerada uma teoria para purificação da raça humana. Os discursos racistas travestidos de cientificidade foram propagandeados no Brasil, pelos museus, institutos históricos, faculdades de direito e principalmente faculdades de medicina. Dentro deste contexto a Faculdade de Medicina da Bahia se destacava, para eles o grande mal de nossa sociedade era a miscigenação, nossas doenças, casos de loucura e criminalidades eram todos frutos do cruzamento racial, corrigir esse erro era uma meta para fazer o país melhorar. (SILVA; SANTOS, 2012, p.2). Para Azevedo (1975) alguns historiadores teriam descrito a escravidão no Brasil, como relativamente branda e menos violenta do que em outros países das américas, o que em verdade, indica ter sido bastante cruel e dura, conquanto tenham sofrido influência da evangelização pelos jesuítas, e não raro, obtivessem consentimento para reunirem-se em confrarias e irmandades religiosas, desde que separados por suas nações, ou seja, por diferentes etnias misturadas, para o enfraquecimento de seus conteúdos culturais. O mesmo equívoco, parece se dar nas discussões acadêmicas do século XX com a questão do racismo. O grande intelectual brasileiro Gilberto Freyre questiona de certo modo, a real presença de um racismo no Brasil, muito com base na miscigenação disseminada após a libertação dos negros. Também consideram, alguns pensadores dessa época, o fato de que principalmente nas camadas populares, ocorra um convívio descontraído entre negros e brancos (sic), que de alguma maneira justificaria essa premissa. Porém, na observação de outros autores, a realidade se mostra diferente, assim sendo [...] as disparidades entre negros e brancos, de forma geral continuaram depois da escravidão, por toda a Primeira República e possui seus resquícios até os dias atuais. Nosso país, infelizmente é a nação do preconceito velado, cheio de elementos da tão famosa Democracia Racial propagandeada por intelectuais como Gilberto Freyre. (SILVA; SANTOS, 2012, p.6). 2 Conjunto de conceitos deterministas de cunho racial, com objetivo de comprovar a superioridade de uma etnia sobre outra. 3 Conceitos do século XIX, que buscavam comprovar uma hierarquia racial entre povos e etnias. 4 Termo criado por Francis Galton primo de Darwin, para definir os estudos dos agentes sob o controle social que poderiam melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações, seja física ou mentalmente. 13 O fato, é que o negro representa um elemento essencialmente significativo na formação da vida e da cultura brasileiras, sendo o Brasil o segundo país no mundo, com maior contingente de pessoas negras em sua população. Esse é um dado que causa perplexidade, se dirigirmos a atenção para os ambientes públicos e mesmo privados, como escolas, igrejas, universidades, postos de saúde e hospitais – embora nesse setor haja um número levemente mais expressivo – bancos, associações, clubes de serviço e etc. Onde estará esse contingente tão significativo em número, que não se faz visível em nosso cotidiano? É concreto, que temos um relevante percentual de pessoas afrodescendentes, com a cor da pele variando do mais escuro até o mais claro, temática que serviu fortemente de argumento para muitos pensadores brasileiros, como o médico Nina Rodrigues e suas publicações que tratavam a mestiçagem como problema de saúde pública, e os escritores Monteiro Lobato e Euclides da Cunha, que sofreram forte influência do psiquiatra italiano Cesare Lombroso5 e sua teoria do criminoso nato6. Ainda dentro deste discurso, conforme Silva e Santos (2012), os advogados e as faculdades de direito tinham papel fundamental, eram eles os responsáveis por justificar na lei as práticas racistas. Além do preconceito e da discriminação causada pelas Teorias Raciais ou Racismo Científico7, tínha-se ainda nesse período, a quase total exclusão dos negros das atividades econômicas. O pensamento intelectual brasileiro dessa época, fomentou preconceitos que se cristalizaram nas consciências e até os dias de hoje perseguem as camadas populares brasileiras, em todos os setores da sociedade, incluindo a escola. No final do século XIX e meados do século XX, foram responsáveis pela introdução da justificativa científica do preconceito racial e social no Brasil. Toda essa trajetória, parece ter sido pseudo-científica, uma vez que não se comprovou a rigor, a superioridade de uma etnia sobre outra, embora pela força da elite branca brasileira, com o fortalecimento da imigração europeia para branqueamento da sociedade e modernização e desenvolvimento econômico do país, o povo negro tenha peermanecido ocupando os espaços segregados e desprivilegiados da sociedade. 5 Polímata italiano do século XIX, criador da teoria do “criminoso nato”, baseada no conceito de frenologia do alemão Franz J. Gall. 6 Teoria que buscou fundamentar, que a partir de certas características físicas encontradas em alguns indivíduos, sobretudo mestiços, atestaria sua pré-disposição à vida criminosa. 7 Conjunto de teorias do século XIX, que consistem na atribuição de uma relação direta entre características biológicas e qualidades morais, intelectuais ou comportamentais, implicando sempre em uma hierarquização que supõe a existência de raças humanas superiores e inferiores. 14 Em poucas décadas, dentro do próprio desenvolvimento científico-acadêmico, ficou comprovada sim, a superiorização do branco sobre o negro, não biologicamente, mas de um ponto de vista totalmente ideológico e com essenciais motivações de ordem material. Nesse sentido, é importante mencionar o advento do coexistente capitalismo, sua divisão do corpo social em classes, e sua necessidade de exploração de mão de obra. A grande desigualdade brasileira e sua sociedade estratificada, é composta também da grande desigualdade racial ou étnica. Mas o Brasil do fim do século XIX e início do Século XX vivia momentos decisivos para sua afirmação como nação, momentos de efervescência política caracterizado pela Abolição da Escravatura e pela Proclamação da República, embora todas essas mudanças não tenham favorecido de forma significativa as condições de vida da população negra brasileira (SILVA; SANTOS, 2012). A mesma sociedade que os escravizou, também os condenou a um futuro de invisibilidade e muitas dificuldades, marcando-os com o estigma da inferioridade e da prestação de serviços braçais sem qualificação. Conquanto negros e brancos em geral – se é que o Brasil de hoje pode ser dividido dessa forma – pareçam conviver em relativa tranquilidade, estamos muito distantes de constatar uma ausência do racismo, ou mesmo acreditar numa democracia racial, que de fato trata-se, de uma ideologia reproduzida pelo brasileiro burguês e branco. A mídia jornalística atual, embora manipulada e a serviço de seus próprios interesses, se vê obrigada a publicar pelo menos uma parte, de ocorrências que deixam explícitas a segregação socioeconômica dessa população e a mais grave consequência, o alarmante genocídio de jovens negros, presente desde os primórdios da colonização portuguesa. 2.2 O racismo na conceituação pós-moderna Pesquisas internacionais apontam novas formas de representação do racismo no mundo, verificando essas transformações como consequentes de um conjunto de mudanças sociais e políticas, ocorridas no século XX, como as críticas ao nazismo e ao fascismo, a Declaração dos Direitos Humanos (1948), a condenação da UNESCO às classificações raciais (1950), as lutas pelos direitos civis nos EUA e vários movimentos sociais importantes na Europa (LIMA; VALA, 2004). 15 Estas conceitualizações pressupõem que nos últimos 30 ou 40 anos as sociedades modernas vêm desenvolvendo um conjunto de restrições institucionais às práticas discriminatórias baseadas nas diferenças de raça. Pressupõem também que em consequência destas práticas institucionais as pessoas vêm se adaptando a essas pressões. (CAMINO, et al., 2000, p.15). Adaptar-se à essas pressões, significa que o exercício do preconceito de raça se modifica, se remodela para ajustar-se às mudanças no mundo, e permanecer latente. Foram estudos sobre preconceito e racismo pós 2ª Guerra Mundial, que apontaram mudanças nas suas formas de expressão, decorrentes, principalmente, da legislação antirracista e dos princípios da igualdade e liberdade difundidos pelas democracias liberais (FARIAS et al., 2017). Estas novas expressões do preconceito, para Lima; Vala, (2004), recebem diversos nomes e apresentam peculiaridades próprias aos seus contextos de imersão. Nessas pesquisas, nosso país se coloca com suas características específicas de desenvolvimento social e incremento do racismo, cujas análises conceituais, de acordo com Turra e Venturini (1995 apud LIMA: VALA, 2004, p. 402) denominam “racismo cordial”, um racismo considerado simbólico, fazendo uma analogia à violência simbólica de Bourdieu Não obstante as diferenças que existam entre as novas teorias sobre o racismo, comum a todas elas é a afirmação de que as novas expressões são disfarçadas e indiretas, e caracterizam-se pela intenção de não ferir a norma da igualdade e de não ameaçar o autoconceito de pessoa igualitária dos atores sociais. Não se quer significar com isto que as formas mais tradicionais e abertas, típicas das relações racializadas dos séculos XVIII, XIX e início do XX, deixaram de existir ou perderam em importância. (LIMA; VALA, 2004, p. 408). No entendimento de Lima e Vala (2004), no cenário das novas teorias e conceitualizações, destaca-se uma necessidade de enfatizar as investigações sobre as novas expressões de preconceito no contexto da psicologia social brasileira, valendo-se da estrutura teórica e metodológica já estabelecida, a fim de identificar elementos comuns e elementos próprios, que relacionem ou difereciem o racismo e o preconceito no Brasil, desses fatores na Europa e nos EUA. Todavia a força da norma social anti-racista no Brasil, leva as pessoas a evitar assumir atitudes pessoais preconceituosas, mas para Camino (2000), essa norma não 16 lhes impede de perceber que continua-se a discriminar as pessoas negras, sendo que nessa situação contraditória, existe discriminação mas ninguém é responsável por ela, e neste sentido, as formas de categorizar as diferenças raciais devem conter, de alguma maneira, esta ambivalência. O chamado racismo cordial brasileiro, ocorre como exercício da discriminação contra os negros em todos os setores da sociedade, mas há resistência entre os brasileiros em reconhecer a discriminação racial que se pratica, sendo preferência da população, enxergar essa realidade no público norte americano. Uma atenção voltada para a questão das manifestações de preconceito racial, pode observar no comportamento de indivíduos, nas redes sociais por exemplo, onde as pessoas se sentem protegidas de uma possível exposição, e mesmo em outras mídias, flagrantes exteriorizações de racismo contra jovens negros, tratados como uma ameaça à segurança pública e à sociedade de um modo geral . São mencionados abertamente, com referências estereotipadas de criminalidade, apoiando inclusive a possibilidade de extermínio desses jovens. É estarrecedor o que se verifica nas interpretações da grande massa presente na web brasileira. São discursos que estigmatizam e criminalizam jovens negros, trazendo uma ideia de legitimação de sua inferioridade e da possibilidade de seu extermínio Além disso, permite refletir sobre a criação de uma classe de sujeitos que é socialmente considerada como “matável” e que tem a sua morte naturalizada ou legalizada, uma vez que o julgamento social analisado aponta o extermínio dos jovens para que se mantenha a ordem social. (FARIAS et al, 2017, p. 123). Esses processos, variam de um país para outro, de uma região para outra, mas o fato é que eles ocorrem em todo ocidente, guardando características próprias às suas trajetórias históricas e culturais. O preconceito racial sutil, aquele denominado de racismo cordial brasileiro está presente em nosso cotidiano, travestido de brincadeiras e piadas inocentes, e caso não estejamos constantemente atentos, aceitamos essas ocorrências com tranquilidade por estarmos impregnados da banalização das mesmas. A indiferença moral em relação ao destino social dos indivíduos negros é tão generalizada que não ficamos constrangidos com a constatação das desigualdades raciais brasileiras. Elas não nos tocam, não nos incomodam, nem enquanto cidadãos que exigem e esperam o 17 cumprimento integral da Constituição Brasileira. É como se os negros não existissem, não fizessem parte nem participassem ativamente da sociedade brasileira. A “invisibilidade” do processo de discriminação racial reaviva o mito da democracia racial brasileira , impedindo uma discussão séria, franca e profunda sobre as relações raciais brasileiras e, mais do que isso, inibe a implementação de políticas públicas específicas para os negros. (BRASIL, 2007, p.16). São as percepções sociais do preconceito de raça, que se mostram relevantes em sociedades nas quais há um discurso xenófobo, emitido por partidos de perfil nacionalista e ou fundamentalista como é o caso do Brasil, e mais recentemente, também dos EUA – com a eleição de Donald Trump – embora os avanços no discurso e na legislação a partir do final da primeira metade do século passado, tenham trazido para as sociedades ocidentais um aparente direcionamento para o mundo, com ideais mais democráticos e igualitários, com uma gama de legislações que coíbem manifestações explícitas individuais e mesmo institucionais de racismo. A partir desses fatos, constata-se algum avanço na busca por um convívio mais humano e respeitoso, mas apesar de todos estes importantes acontecimentos, o preconceito e o racismo permanecem um perseverante e grave problema na vida contemporânea. No próximo capítulo, faremos uma busca pelo entendimento sobre as ações afirmativas, uma iniciativa pensada e criada com objetivo de tentar reduzir as injustiças e desigualdades provocadas por todo esse processo histórico da presença do povo negro nas Américas, e também para inserção de outras minorias, como a mulher, o deficiente e a população LGBT. 18 3. AÇÕES AFIRMATIVAS: sua gênese e influências No espírito das chamadas ações afirmativas é que se constitui a lei 10639/03, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional para implantar a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nas escolas públicas e privadas de Ensino Fundamental e Médio e estabelecer especificações pertinentes. Essa lei sobrevém como uma primeira iniciativa oficial no sentido de combater o racismo contra a criança negra no interior da escola básica brasileira, através da valorização de sua cultura e descendência étnica. As ações afirmativas, são medidas de políticas públicas e/ou ações privadas, que foram idealizadas com o objetivo de reparação às minorias em desigualdade histórica. O termo Ação Afirmativa refere-se a um conjunto de políticas públicas para proteger minorias e grupos que, em uma determinada sociedade, tenham sido discriminados no passado. A ação afirmativa visa remover barreiras, formais e informais, que impeçam o acesso de certos grupos ao mercado de trabalho, universidades e posições de liderança. Em termos práticos, as ações afirmativas incentivam as organizações a agir positivamente a fim de favorecer pessoas de segmentos sociais discriminados a terem oportunidade de ascender a postos de comando. (OLIVEN, 2007, p.30). A expressão surge nos EUA, durante a década de 1960, no governo do então presidente John F. Kennedy, período de forte ativismo em prol da causa negra naquele país, marcado pela força dos movimentos que foram disseminados em todo seu território. Vivendo em uma sociedade que tinha suas bases fundadas num sistema de segregação formal e informal, um cotidiano de linchamentos, violência policial e sofrendo discriminação no trabalho, na educação e nos serviços públicos, os negros iniciaram um movimento em busca de direitos civis – políticos, sociais e econômicos. Um grande e vigoroso movimento, que abalou os alicerces da sociedade norte- americana através de incontáveis protestos e atos de rebeldia, deixando como legado para a história do país nomes como Rosa Parks, Malcom X, Nina Simone, Martin Luther King e outros. Foram muitos líderes e grupos, que se utilizaram de diferentes estratégias para lutar e protestar contra a segregação e injustiças vividas pelo povo negro naquele país. É importante lembrar, que os movimentos e a força que os impulsionaram, tiveram forte influência do líder sul africano Nelson Mandela, principal responsável e ícone pelo desfecho do apartheid na República da África do Sul. 19 Esses acontecimentos do século XX na América do Norte despertaram parte da sociedade, para a desumana e injusta realidade social dos negros naquele contexto, fato, que aliado à própria efervescência do movimento, intimidou o estado americano a tomar sua primeira iniciativa mais efetiva em relação ao problema Nos Estados Unidos, durante toda a primeira metade do século XX, a rigidez da classificação racial, a segregação e a discriminação contra a população negra acirraram as relações raciais, sendo causa de inúmeros enfrentamentos nos principais centros urbanos. Isso levou a uma polarização da sociedade americana: por um lado, os grupos a favor da integração racial e, por outro, os segregacionistas que a consideravam constitucional, e, portanto, legítima, não vendo razões para mudanças do status quo. Pressionado pela participação da sociedade civil, o Congresso americano aprovou em 1964 o Civil Rights Act (Lei dos Direitos Civis) que além de banir todo o tipo de discriminação, concedeu ao governo federal poderes para implementar a dessegregação. (OLIVEN, 2007, p. 33). Depois do assassinato de John Kennedy assumiu o presidente Lyndon Johnson, que estabeleceu uma série de atos legislativos que proibiam aos poucos a discriminação contra os negros, pressionado pela forte onda de protestos que acontecia por todo o país. Porém, apesar da segregação formal ter ultimado, os negros continuaram vítimas de exclusão, principalmente educacional e econômica, o que fez com que seus protestos perdurassem por, pelo menos mais uma década. O Hip Hop, surgido no fim da década de 1970, é um dos exemplos da resistência negra e da afirmação de sua cultura. Criado por jovens negros para protestar contra a violência, a discriminação e a desigualdade social a que estavam submetidos, este movimento tem vida até hoje em nossa sociedade. Aliado à arte do “Grafitti” marcando os muros das cidades, esse gênero musical e artístico é uma das mais fortes expressões da cultura jovem negra em todo o mundo. Obviamente todo esse contexto ocorrido nos EUA, influenciou os países ocidentais, e o Brasil não ficou ileso à essa influência. Resultado da luta empreendida pelo movimento negro há décadas também no Brasil, assiste-se a uma mudança de postura, em vários segmentos da sociedade, em relação ao tratamento conferido às questões da população negra no país (DOMINGUES, 2005). Na opinião desse autor, o Brasil é o país da segregação racial não declarada, onde todos os indicadores sociais ilustram números carregados com a cor do racismo, contudo a segunda metade dos anos de 1990 foi marcada pela introdução do debate 20 sobre a ação afirmativa. A partir de então surgiram medidas que são atualmente adotadas no país, além das cotas para acesso a emprego ou educação, há também a concessão de bolsas de estudo, formas de financiamento mais favoráveis para certos grupos, prioridades em empréstimos e contratos públicos, distribuição de casas, dentre outras. Mas EUA e Brasil, não são pioneiros na implementação dessas ações, A Ação Afirmativa, como forma de discriminação positiva, é uma política de aplicação prática e tem sido implementada em diversos países, variando o público a que se destina. A Índia, por exemplo, reserva um percentual de vagas em suas universidades públicas a castas consideradas inferiores, os dalits ou “intocáveis”. O debate sobre ações afirmativas tem, pois, um caráter internacional, transcendendo as fronteiras nacionais. (OLIVEN, 2007, p.30) É possível observar no mundo contemporâneo, que a necessidade de encontrar caminhos para superar a sujeição arbitrária do homem, sofrida pelo próprio homem, tornou-se uma máxima das diversas sociedades espalhadas pelo globo. Conforme Moehlecke (2002 apud Domingues 2005, p. 168) ações afirmativas “ocorreram em vários países da Europa Ocidental, na Índia, Malásia, Austrália, Canadá, Nigéria, África do Sul, Argentina, Cuba, dentre outros”. Esse tipo de política está em plena expansão no mundo inteiro, abrangendo gênero, etnia, raça, sexualidade e outras dimensões que provocam disparidades e discriminações nas sociedades. Ela deve ser considerada de caráter emergencial, pois objetiva diminuir desigualdades gigantescas, que deveriam ser corrigidas de forma mais efetiva, ao longo do tempo. Para Oliven (2007), essas medidas devem ser consideradas provisórias, como a criação de estímulos para grupos e minoria social, que possam procurar um equilíbrio entre os percentuais de cada grupo minoritário na população de modo geral, e os percentuais dessas mesmas minorias na composição e estruturamento dos grupos que detêm o poder e a liderança nos diversos segmentos da sociedade. De todo modo, essas políticas de ação afirmativa são de inestimável importância para todos e quaisquer grupos que vivam em condições de disparidade e injustiça social, pois sabemos que o princípio da igualdade e isonomia que se baseia no axioma jurídico liberal de que “todos são iguais perante a lei”, não se faz tão verdadeiro no sistema capitalista que via de regra impede o acesso à justiça, daqueles que não possuem o poder aquisitivo, ou seja, a classe trabalhadora e os setores mais pauperizados. 21 O Brasil assumiu um compromisso moral com essas prerrogativas, conforme Domingues (2005), ao se colocar como signatário na declaração do plano de ação, oficializada na III Conferência Mundial contra o Racismo, a Xenofobia e as Intolerâncias correlatas, em Durban, na África do Sul em 2001. Embora as declarações e documentos elaborados e aprovados nas convenções internacionais não possuam força jurídica (de lei), não vinculando e nem obrigando o Estado a aderir aos tratados, são documentos que servem como parâmetro para a interpretação do direito internacional e do direito interno. Tal evento, foi um marco na história anti-racista do ocidente, e provocou um reflexo em especial nos grupos do Movimento Negro Brasileiro, que naquele mesmo ano, em conjunto com lideranças de várias entidades negras, tinham se organizado e preparado encaminhamentos de propostas de políticas reparatórias, baseados nas chamadas “ações afirmativas”. A partir desse contexto, que veio fortalecer as ações das lideranças ativistas, o governo lançou o Programa Nacional de Direitos Humanos II, em 2002, que foi um conjunto de medidas apresentadas na perspectiva de promover os direitos da população negra, recomendando medidas que deveriam visar o combate à discriminação racial, e o incremento à igualdade de oportunidades ampliando o acesso dos negros e afro- descendentes às universidades, aos cursos técnico-profissionalizantes, aos empregos públicos inclusive aos cargos comissionados, e também às áreas de tecnologia de ponta. Muitos outros programas de governo e documentos oficiais foram elaborados nesse sentido, mas a implementação de medidas que favoreçam especificamente a população negra tem encontrado resistência na sociedade brasileira. Nossa tendência é a de afirmar que, não importa se brancos, pardos ou negros, somos todos brasileiros. É importante deixar claro que somos todos brasileiros, mas de cores diferentes e se essas diferenças têm servido como critério para que profundas desigualdades sociais sejam mantidas em termos estruturais e reproduzidas em nosso cotidiano, são as desigualdades que devem ser combatidas, não as diferenças, essas só nos enriquecem. (OLIVEN, 2007, p. 49) Todavia há uma política de ação afirmativa brasileira amplamente utilizada, que é o sistema de cotas. Essa política tem peculiaridades, devido por exemplo, à dificuldade de se determinar os participantes de cada grupo racial, especialmente em um país amplamente miscigenado, como é o nosso, fato que faz do programa de cotas, o mais polêmico dentre as ações afirmativas educacionais brasileiras. Tal polêmica não se 22 faz especificamente pela miscigenação, embora ela sirva de sustentação para muitos argumentos. Existem grupos que apoiam e grupos que contestam esse programa, e os argumentos contrários a ele são muitos e diversos, mas aprofundando um pouquinho a leitura sobre o assunto, é perceptível, que existe uma gama de interesses outros a combatê-lo. Mas essa polêmica tem seus pontos fortes A questão da implementação de cotas raciais como uma forma de política para a correção das desigualdades no Brasil, mais do que polarizado, tem mobilizado a sociedade nacional. Os inúmeros artigos publicados na mídia e em revistas acadêmicas têm aumentado o conhecimento de nossas raízes históricas e das desigualdades sociais e raciais tão presentes em nosso cotidiano que passam a ser quase naturalizadas. E esse conhecimento é fundamental para construirmos um projeto nacional que vise uma sociedade mais justa. (OLIVEN, 2007, p.49). Ações afirmativas no programa de cotas raciais, objetivam minimizar elementos persistentes das discriminações que se constituíram ao longo do tempo e se reproduzem no presente. Tem também por objetivo, favorecer um ambiente acadêmico mais diverso, com um maior envolvimento de negros e indígenas no campo das Ciências Sociais por exemplo, que contribuirá para novas formas de pensar e teorizar o país. Ainda que algumas pesquisas recentes já apontem para os impactos positivos da adoção das cotas – indicando um desempenho excepcional dos alunos cotistas –, seus resultados mais profundos serão sentidos com o passar dos anos, com a maior inserção desses grupos em categorias profissionais e de liderança política, onde os brancos são maioria absoluta. No próximo capítulo, faremos uma reflexão sobre a lei em discussão, e suas implicações. 23 4. LEI 10639/03: seus aspectos e relevância A promulgação da lei nº 10639/03, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei 9.394/96, tornando obrigatório o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira em todos os estabelecimentos de ensino da educação básica, tanto da rede pública como particular, trouxe uma complexa gama de possibilidades a serem observadas sobre a condução das relações interpessoais no interior das escolas, para além das prescrições curriculares e valorização da cultura e tradição africana. Para que a possibilidade proposta pela lei possa ser efetivamente praticada, torna-se imperiosa, uma análise sobre as estruturas conceituais da nossa sociedade, em especial os segmentos diretamente articulados aos diversos setores da educação brasileira. 4.1 A lei 10639/03 e a escola O convívio do educando afrodescendente na escola ou na sociedade, que também compõe a inquietação desse trabalho, tornou-se uma questão delicada por compreender posicionamentos ideológicos controversos envolvendo direitos que já foram reconhecidos para essa parcela da população, os quais foram conquistados através da grande luta de grupos negros, não negros e multi-étnicos que requerem uma reparação histórica à população negra e a sua inserção de modo igualitário na sociedade, buscando para tanto o fortalecimento e a valorização da identidade afro-brasileira. (SILVA;SANTOS, 2008, FERNANDES, 2008, LIMA;VALA, 2004, MARQUESE, 2006). Após 120 anos de abolição do regime escravista, começam a se intensificar políticas educacionais que procuram favorecer os negros, a quem, como seus antepassados, continuam sendo negados os direitos de cidadania, inclusive os de frequentar um estabelecimento de ensino que valorize, respeite e ensine a cultura e a história de seu povo. A área educacional, é reconhecida pelo seu poder de intervir na condução da realidade, e portanto é palco de disputas políticas e ideológicas, principalmente através da elaboração das leis, as quais para Almeida e Sanches ( 2017), são frutos de trajetórias de enfrentamentos e lutas, de grupos organizados no seio da sociedade em torno de complexos e diversificados interesses. A promulgação da lei 10639/03 significa, o ponto 24 culminante dessas trajetórias e a continuidade do percurso em busca por sua realização, problematização e verificação no cotidiano das instituições e das relações humanas. Nesse sentido, a lei em vigência, pode e deve ser considerada uma vitória, ainda que seja apenas um primeiro passo na longa jornada que se prenuncia, no objetivo utópico de erradicar o racismo na sociedade e nas escolas brasileiras. Em 10 de março de 2008 a Lei 10.639/03 foi ampliada, sendo também aprovada a nova Lei 11.645/08, que acrescenta no currículo escolar obrigatório do ensino, além da Cultura Afro Brasileira e Afro descendente, também a Cultura Indígena, buscando resgatar a omissão histórica em relação à contribuição cultural desses povos originários da Terra Brasilis. Sabemos que a existência de uma lei, não implica seu cumprimento imediato pela sociedade, portanto são necessárias as políticas públicas e, sobretudo, adesão da população, outra possibilidade bastante complexa de se vislumbrar num terreno social de pensamento tão diverso como o nosso. Diante da publicação da lei 10639/03 em foco nessa pesquisa, o Conselho Nacional de Educação aprovou o parecer do CNE/CP 3/2004, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileiras e Africanas. O cumprimento dessas Diretrizes ficaria a cargo das unidades escolares, sob a orientação dos sistemas de ensino, visto que os mesmos terão a oportunidade de corrigir tais distorções a partir do ambiente escolar. O tema refere-se a um processo histórico dialético, em movimento desde a transformação do regime político monarquista para república. A sociedade brasileira, racista em suas estruturas desde sua formação, naturalmente resiste a enfrentar o fato de sua construção ter sido composta por um enorme contingente populacional da raça negra. Edificou-se sua identidade nacional ignorando essa realidade, e por muito tempo, os educadores não tinham uma posição crítica sobre ela, afirma Dias (2017). Se sabemos que a educação brasileira se fundamenta na visão eurocêntrica, e essa é uma realidade histórica, entendemos que muitas gerações se formaram a partir dessa educação que se contrapõe à formação social, que forçosamente se faz também pela presença em massa da população negra no Brasil. Pesquisadores já realizaram uma análise da história das instituições educacionais em nosso país por meio dos currículos, programas de ensino e livros didáticos, demonstrando uma preponderância da cultura dita "superior e civilizada", de matriz 25 europeia. Talvez por essa razão, nossa escola ainda não tenha aprendido a conviver com a diversidade cultural e a lidar com crianças e adolescentes dos setores subalternos da sociedade. [...] estudos de caráter mais antropológico já conseguiram identificar como a criança negra se vê e se avalia (Oliveira: 1993), como os livros didáticos refletem o racismo (Silva: 1987), como a criança e adolescente negro percebe o racismo na escola (Oliveira: 1992), como alunos negros se auto-representam (Silva: 1993), como é a relação pedagógica de professoras negras e seus alunos (Gomes; 1994), como crianças de cinco e seis anos representam as diferenças raciais (Godoy: 1996) como professoras tratam crianças negras e brancas (Cavalleiro: 1998) e como é possível desenvolver metodologias de ensino que abordem esta temática com crianças de cinco e seis anos (Dias: 1998). Evidentemente que os trabalhos citados apenas representam parte da produção acadêmica das décadas de 80 e 90 e apesar de sua importância e diversidade muito ainda falta para dar conta da complexidade das relações raciais brasileiras e a forma pela qual o racismo se expressa na escola (DIAS, 2017, p.1). A despeito do dinâmico incremento dos estudos e pesquisas das últimas décadas referentes à diversidade étnica na escola, o movimento do progresso relacionado às questões do negro na educação brasileira é impiedosamente lento como se pode observar A escolaridade de brancos e negros nos expõe, com nitidez, a inércia do padrão de discriminação racial. (...) apesar da melhoria dos níveis médios de escolaridade de brancos e negros ao longo do século, o padrão de discriminação, isto é, a diferença de escolaridade dos brancos em relação aos negros se mantém estável entre as gerações. No universo dos adultos observamos que filhos, pais e avós de raça negra vivenciaram, em relação aos seus contemporâneos de raça branca, o mesmo diferencial educacional ao longo de todo o século XX (HENRIQUES, 2002, p. 93). Nos últimos vinte anos, a comunidade educacional tem demonstrado gradativamente maior interesse nessa questão tão latente, e inciativas pontuais já podem ser identificadas. O projeto “A comunidade negra vai à escola”, desenvolvido em Rio Claro – SP a partir de 2013, sob o apoio do ProacSP – Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo – incluiu a capacitação de professores dentre outras atividades correlatas que se desdobraram dentro dessa iniciativa, como a confecção de materiais didáticos e as chamadas “Conversas Griô”, que transmitem a oralidade africana. 26 Empreender ações como essa, dão um impulso à divulgação da necessidade de se abordar a temática com maior regularidade, promovendo cursos de especialização, extensão, formação de professores, seminários, congressos e publicações, que vêm tentando contemplar os diversos objetos ligados à abordagem em sala de aula das trajetórias e características históricas africanas. Entretanto, os documentos oficiais em nível federal que se somam a partir da década de 90 para direcionar os planejamentos relacionados ao ensino desse conteúdo, não pontuam exatamente como se deve encaminhar esse trabalho em sala de aula, Segundo determinação da própria LDB, os Parâmetros Curriculares ficariam caracterizados por um perfil mais sugestivo do que indicativo do que deveria materializar o processo de ensino e aprendizagem nas escolas. Sua estrutura principal, dividida em áreas de conhecimento e nos chamados temas transversais, procurava estabelecer um grande conjunto de assuntos a ser trabalhado nos vários níveis e ciclos da educação. O estabelecimento pontual dos conteúdos tratados por cada série ficaria a cargo dos Currículos Estaduais e Municipais. (OLIVA, 2009, p. 147). Essa prescrição da LDB torna fluída, a responsabilidade sobre a forma em que o ensino proposto na lei vai ser colocado em prática, o que também já torna a própria lei um tanto mais tênue e suscetível, uma vez que não se trata de lei estadual, e nem tampouco municipal. Vários pesquisadores têm discutido os possíveis caminhos que podem ser traçados pela escola no tratamento da diversidade étnico-racial, para que os currículos incorporem essa questão de maneira menos descontextualizada das condições sociais e mais ativa, apresentando um rol de propostas baseadas fundamentalmente numa reflexão sobre a práxis educativa de alunos e professores. (SANTOS; MACHADO, 2008, p.109). O advento da lei, vem trazer respaldo para aqueles que dentro das instituições educacionais compreendem a importância de se valorizar e respeitar as diferenças, tratando a infância como uma construção histórica, social, cultural e política. Tem o sentido de transformar e desconstruir ideologias e mentalidades discriminatórias e preconceituosas, com a finalidade de erigir o reconhecimento da participação da população negra na cultura nacional, fugindo da folclorização e dos estereótipos, o que 27 deverá contribuir para que essas gerações se fortaleçam, melhorando e fortalecendo sua auto-estima. Daí a gigantesca importância do componente “atitude” nos integrantes da comunidade escolar como um todo, com especial foco nos gestores e professores A formação de educadores e profissionais da área comprometidos com uma educação antirracista não pode prescindir do conhecimento da produção teórica de diversos autores sobre as relações raciais no Brasil. Por meio dele, esses profissionais terão contato com as contribuições, os acertos e os equívocos decorrentes desses trabalhos. Esse fato lhes permitirá questionar algumas ideias que, embora desacreditadas academicamente, têm grande força no imaginário social e obstaculizam a compreensão mais precisa da realidade racial brasileira. (SILVA; TOBIAS, 2017, p. 178-179). A necessidade de se conscientizar cada um dos atores envolvidos dentro das unidades não comporta menor importância, que toda legislação aprovada, nem que todas as políticas públicas que se tenta implementar. É nas relações interpessoais que se criam e se desenvolvem estereótipos, e se consolidam estigmatizações, tão nefastas ao desenvolvimento da personalidade de meninos e meninas afro-descendentes. Voltando às Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, aprovada em março de 2004, vemos que estabelece a importância na formação da identidade dessas crianças quando orienta para: a) o desencadeamento de processo de afirmação de identidades, de historicidade negada ou distorcida; b) o rompimento com imagens negativas forjadas por diferentes meios de comunicação, contra os negros e os povos indígenas; c) o esclarecimentos a respeito de equívocos quanto a uma identidade humana universal; d) o combate à privação e violação de direitos; e) a ampliação do acesso a informações sobre a diversidade da nação brasileira e sobre a recriação das identidades, provocada por relações étnico-raciais; 28 f) as excelentes condições de formação e de instrução que precisam ser oferecidas, nos diferentes níveis e modalidades de ensino, em todos os estabelecimentos, inclusive os localizados nas chamadas periferias urbanas e nas zonas rurais. (BRASIL, 2004, p.19). Não é possível prescindir da participação e atuação conscientes sobre a importância da lei, no maior número possível de atores da educação nessa difícil e árdua empreitada. Na seção a seguir, faremos um levantamento dos artigos, buscando ações pedagógicas específicas a partir da lei 10639/03. 29 3 2 1 0 I N E X I S T E N T E I N E X I S T E N T E I I N E X I S T E N T E I N E X I S T E N T E I N E X I S T E N T E I N E X I S T E N T E I N E X I S T E N T E 5. LEVANTAMENTO BIBLIOGRÁFICO Nesta seção, traremos um levantamento das publicações que tratam das ações pedagógicas em sala de aula, suas possibilidades e obstáculos. A base de dados utilizada foi a SciELO (Scientific Electronic Library Online), e a procura foi feita a partir da promulgação da lei, ou seja, de 2003 a 2017. Foram utilizadas a palavras-chave, lei 10639/03 e expressões chave (história e cultura africanas, história e cultura afro- brasileiras, práticas educativas, e ensino básico). Nesse primeiro levantamento, apenas cinco artigos foram encontrados, o que demonstrou a necessidade de se utilizar outro recurso para elaboração da busca. Foram então usados os mecanismos do conectivo booleano E (AND), OU (OR), ampliando as possibilidades, e juntando à lei 10639/03 e cultura africana (práticas educativas. OU. práticas pedagógicas). E. (ensino básico. OU. Ensino Fundamental.). Dessa forma os resultados obtidos puderam ser evidenciados, estendendo para mais oito artigos a serem analisados, perfazendo um total de 13 textos, os mais pertinentes à temática buscada. Considerando os quinze anos decorridos da promulgação da lei, consideramos que a produção sobre o problema, ainda é incipiente no banco de dados utilizado, com uma grande lacuna entre 2004 e 2007, entre 2010 e 2011, e também no ano de 2015, conforme é possível visualizar no gráfico. Gráfico: artigos da base Scielo – 2003 a 2017 Fonte: Elaborada pela autora 30 As publicações foram buscadas na SciELO, uma biblioteca eletrônica que abrange uma coleção selecionada de periódicos científicos brasileiros. Essa biblioteca, é o resultado de um projeto de pesquisa da – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, em parceria com a BIREME – Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde. A partir de 2002, o Projeto conta com o apoio do CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, e tem por objetivo o desenvolvimento de uma metodologia comum para a preparação, armazenamento, disseminação e avaliação da produção científica em formato eletrônico. Os periódicos responsáveis pela publicações são: um artigo na Educar em Revista (Universidade Federal do Paraná); um artigo em Educação & Sociedade (Centro de Estudos Educação e Sociedade – Unicamp); um artigo na Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação (Fundação Cesgranrio – RJ); um artigo no Cad. Cedes (Centro de Estudos Educação e Sociedade – Unicamp); um artigo na Educação & Realidade (Universidade Federal do Rio Grande do Sul); dois artigos em Estudos Históricos (Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais (PPHPBC) da Escola de Ciências Sociais (CPDOC) da Fundação Getulio Vargas); dois artigos em Educação e Pesquisa (Faculdade de Educação da USP); um artigo em Revista Quadrimestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE); um artigo na Estudos Afro-Asiáticos (Universidade Candido Mendes); um artigo na pro posições (Faculdade de Educação da Unicamp); e um artigo na Educação em Revista (Universidade Federal de minas Gerais). As revistas Estudos Históricos e Educação e Pesquisa, tiveram duas publicações cada uma. Todos os outros periódicos, tiveram apenas uma publicação sobre o tema durante esses 15 anos de vigência da lei em discussão. RELAÇÃO DE PERIÓDICOS UTILIZADOS NA PESQUISA BASE SCIELO PERIÓDICO TÍTULO FOCO Estudos Afro-Asiáticos A História da África nos bancos escolares: Representações e imprecisões na literatura didática Livro didático com abordagem sobre a África Educação e Pesquisa Racismo em livros didáticos brasileiros e seu combate: uma revisão de literatura Conteúdo de um determinado livro didático http://www.bireme.br/ http://www.cnpq.br/ 31 Estudos Históricos Em torno das Diretrizes Curriculares Nacionais para educação das relações étnico- raciais e para o ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira Alguns subsídios para implementação das políticas públicas e “Diretrizes” como estratégia pedagógica para a discussão sobre relações étnico-raciais Estudos Históricos Reconhecendo ou construindo uma polaridade étnico identitária? Desafios do ensino de História no contexto da Lei Problematizar pressupostos e paradoxos presentes no texto da Lei e Diretrizes correlatas Ensaio: Aval.Pol.Púb.Educacionais Políticas Públicas Educacionais: antigas reivindicações (Lei10639/03) conquistas e novos e desafios Identidade que se constrói no plano simbólico, opções curriculares e metáforas interditas nas ideias pré concebidas História A história africana nas escolas brasileiras. Entre o prescrito e o vivido, da legislação educacional aos olhares dos especialistas (1995-2006) A legislação brasileira acerca do ensino de história da África e opiniões formuladas por africanistas sobre a temática Educação e Sociedade Há algo novo a se dizer sobre as relações raciais no Brasil contemporâneo? Políticas Públicas Educacionais e contribuição da cultura africana na constituição da sociedade brasileira Educar em Revista Implementação da Lei 10639/03: mapeando embates e percalços Embates e sucessos no desenvolvimento das práticas pedagógicas no contexto da Lei 10639/03 Educação e Pesquisa 10 anos da lei 10639/2003 e a formação de professores: uma leitura de pesquisas científicas Multiculturalismo na estruturação da formação de professores e as pesquisas em educação Revista Quadrimestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional Psicologia e ensino das relações étnico-raciais: uma experiência na formação de professores Contribuições da psicologia no processo de formação de professores Educação em Revista ENEM: ferramenta de implantação da lei 10639/03 – competências para a transformação social Relações étnico-raciais nas avaliações do ENEM Pro posições Implementação da lei 10639/03: competências, habilidades e pesquisas para a transformação social Dificuldades na implementação da lei e uma análise das políticas públicas Educação & Realidade Educação étnico-racial e formação de professores: a recepção da lei 1063/03 Os impactos da lei em vista da construção de sentidos em torno de sua efetividade Fonte: elaboração da autora 32 A biblioteca digital SciELO oferece informações sobre a trajetória, objetivos e personalidade de cada um dos periódicos citados, que serão descritos a seguir:  Educar em Revista: A missão da Educar em Revista é a publicação de artigos originais e relatos inéditos de pesquisa na área educacional, bem como resenhas de livros de destaque e, eventualmente, documentos especiais e traduções. Tem como propósito abordar questões que se colocam como atuais e significativas para a compreensão dos fenômenos educativos.  Educação & Sociedade: Publicada desde 1978, a revista tem um número especial temático organizado a cada ano, desde 1995, transformando a revista em uma publicação trimestral. Planejada como instrumento de incentivo à pesquisa acadêmica e ao amplo debate sobre o ensino, nos seus diversos prismas ela atinge, após anos de publicação ininterrupta, um grande acúmulo de análises, informações, debates, fontes teóricas, relatos de experiências pedagógicas, entre outros, de grande interesse a cientistas e educadores que atuam nas ciências humanas e outros campos do saber. Um aspecto a ser salientado, no horizonte abrangido por esse periódico, é seu trabalho de abertura aos países da América Latina e Europa. A revista, indexada internacionalmente, recebe contribuições de autores de diversos países. Nesse intercâmbio cosmopolita, tem-se logrado trazer para o setor da educação e para outras áreas não apenas temas discutidos por especialistas com rigor e novidade, mas também um renovado interesse para as várias linhas de pesquisa acadêmica.  Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação: Essa revista tem por finalidade, publicar artigos relacionados à Educação, tendo como temática questões sobre avaliação e políticas públicas em educação, priorizando os resultados de pesquisas, estudos teóricos e ensaios. Sua peridiocidade é trimestral, e sua principal área de interesse são as Ciências Humanas, tendo como sub-área, a Educação.  Caderno CEDES: são publicações periódicas do Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES), de caráter temático dirigidas a profissionais e pesquisadores da área educacional com o propósito de abordar questões que se colocam como atuais e significativas neste campo de atuação. Os Cadernos são editados desde 1980, mantendo de três a seis novos títulos por ano. O Centro de Estudos Educação e Sociedade surgiu em março de 1979, em Campinas (SP), como resultado da atuação de alguns educadores preocupados com a reflexão e a ação ligadas às relações da educação com a sociedade. A partir de sua criação, o CEDES passou a editar a Revista Educação & Sociedade, e http://www.cedes.unicamp.br/ http://www.cedes.unicamp.br/ http://www.cedes.unicamp.br/ 33 atualmente edita também os Cadernos CEDES. A idéia primeira de criação do Centro, assim como o primeiro número da Revista, surgiram durante o I Seminário de Educação Brasileira, realizado em 1978, na Unicamp.  Educação & Realidade: A Revista Educação & Realidade tem como missão a divulgação da produção científica na área da educação e o incentivo ao debate acadêmico para a produção de novos conhecimentos. Visa, também, a ampliação das ferramentas analíticas de modo a expandir as fronteiras do pensamento e da prática no campo da educação. Periódico que reúne artigos de diferentes aportes teóricos com temas ligados a vários campos do conhecimento, em sintonia com os debates que acontecem no meio acadêmico nacional e internacional. Classificada como revista A1 pelo Qualis-Capes, em 2013, passou a ter quatro números por ano e foi indexada no SciELO. Trata-se de uma revista que é publicada ininterruptamente desde 1976.  Estudos Históricos: é uma revista quadrimestral que, a cada número, trata de uma temática específica e tem como objetivo a publicação de trabalhos inéditos, com perspectiva histórica e perfil interdisciplinar, de pesquisadores da comunidade acadêmica nacional e internacional das áreas de História, Ciências Sociais e outros campos afins. Vinculada ao Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais (PPHPBC) do CPDOC/FGV, a revista é classificada como A1 no Qualis Capes na área de história e interdisciplinar.  Educação e Pesquisa: trata-se de uma revista trimestral, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, que aceita para publicação, artigos inéditos na área educacional resultantes de pesquisa de caráter teórico ou empírico, bem como revisões da literatura de pesquisa educacional. Tem sido editada ininterruptamente desde 1975, originalmente como Revista da Faculdade de Educação e com o título atual desde 1999.  Psicologia Escolar e Educacional: A revista Psicologia Escolar e Educacional é um veículo de divulgação e debate da produção científica na área específica, desde 1996, e está vinculada à Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE). Seu objetivo é constituir um espaço para a apresentação de pesquisas atuais no campo da Psicologia Escolar e Educacional e servir como um veículo de divulgação do conhecimento produzido na área, bem como de informação atualizada a profissionais psicólogos e de áreas correlatas. Trabalhos originais que relatam estudos em áreas relacionadas à Psicologia Escolar e Educacional serão considerados para 34 publicação, incluindo processos básicos, experimentais, aplicados, naturalísticos, etnográficos, históricos, artigos teóricos, análises de políticas e sínteses sistemáticas de pesquisas, entre outros. Também, revisões críticas de livros, instrumentos diagnósticos e softwares. São publicados textos em português, espanhol e inglês.  Estudos Afro-Asiáticos: é uma publicação do Centro de Estudos Afro-Asiáticos que integra a Universidade Candido Mendes. Criado em 1973, o CEAA é uma instituição voltada para a pesquisa, ensino e documentação sobre relações raciais e cultura negra no Brasil, países africanos e asiáticos. Estudos Afro-Asiáticos é publicada desde 1978, e sua missão é ublicar artigos inéditos relacionados ao estudo das relações raciais no Brasil e na diáspora e às realidades nacionais e das relações internacionais dos países da África e da Ásia.  Pro posições: A Revista Pro-Posições, criada em 1990, é uma publicação quadrimestral de editoria da Faculdade de Educação da Unicamp. O periódico ocupa uma posição consolidada como uma das principais publicações na área das Ciências da Educação, atingindo significativa variedade temática e conceitual e oferecendo um amplo escopo internacional, apoiado por seu corpo editorial. São publicados artigos, ensaios e revisões bibliográficas originais. Textos submetidos são apreciados supondo- se que não foram previamente publicados e que não estão sendo examinados para publicação por nenhum outro periódico ou editora. Os artigos são avaliados pelos editores e por pareceristas ad hoc. Tanto os autores quanto os revisores permanecem anônimos durante todo o processo de avaliação.  Educação em Revista: este periódico está vinculado ao Programa de Pós- Graduação em Educação da Faculdade de Educação (FAE) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Objetiva contribuir para a divulgação de conhecimento científico no campo da educação, produzido por pesquisadores(as) de universidades e instituições de pesquisa do Brasil e do exterior. A revista publica em fluxo contínuo artigos originais de diferentes perspectivas teóricas e metodológicas, que contribuam efetivamente para o debate acadêmico sobre as várias dimensões da educação. O levantamento dos artigos, indicou maior preponderância nas questões relacionadas à formação de professores, às politicas públicas com foco nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e racismo em livros didáticos. Entretanto, como os artigos abrangem também questões outras que consideramos importantes, conduziremos no próximo capítulo, uma análise dos dados perfazendo cada artigo em 35 ordem cronológica, também para compreender como se desenvolveu o interesse de pesquisa relacionado à temática. 36 6. ANÁLISE DOS DADOS No interior da sala de aula, na relação direta entre professores e educandos, recai todo o vasto conjunto de dificuldades para o cumprimento da lei através de ações efetivamente pedagógicas. Como essas dificuldades vêm despontando de várias maneiras durante o transcorrer dessa investigação, faremos um percurso mais ou menos descritivo, passando pelos artigos um a um em ordem cronológica, pois os mesmos discutem temas em comum, mas também colocam algumas questões diferenciadas entre si. Ao final da seção, teremos uma tabela analítica das referências mais relevantes. O artigo de Oliva (2003), “A História da África nos bancos escolares. Representações e imprecisões na literatura didática”, publicado no mesmo ano de promulgação da lei em questão, buscou analisar, um dos poucos livros didáticos que naquele momento continha um capítulo específico sobre história da África. O autor inicia fazendo uma análise sobre a equivocada estrutura do modelo positivista dos currículos em história na educação básica brasileira, um modelo que sofre relevante transformação a partir dos anos 1980. Transformação essa, que vem ressignificar o ensino dessa disciplina, e sua abordagem em sala de aula. Oliva (2003) menciona novas perspectivas teóricas, como a História Nova e também o Marxismo, que passam a fazer parte dos livros didáticos, trazendo novas estruturas determinadas pelos currículos. Os currículos que antecederam esse período, faziam da história em sala de aula, uma obrigação difícil a ser cumprida, repleta de datas e listas enormes de nomes, personagens famosos e presidentes a serem memorizadas. “Sem contar a extrema valorização da abordagem política pouco atraente, do eurocentrismo na História Geral e da exaltação da nação e de seus governantes na História do Brasil.” (OLIVA, 2003, p. 424-425). Segundo esse autor, várias foram as inserções reflexivas acerca do novo momento do ensino em História e das inovadoras propostas dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). Entre as discussões emergentes, uma chamou especial atenção: o debate acerca do combate à discriminação racial e do ensino da História da África. O desenvolvimento desse trabalho, foi dividido em três partes. No primeiro segmento de sua análise, o autor chama a atenção, partilhando a opinião de muitos autores, sobre as preocupantes lacunas existentes na formação acadêmica e no ensino sobre a História da África. 37 [...] muitos professores formados ou em formação, com algumas exceções, nunca tiveram, em suas graduações, contato com disciplinas específicas sobre a História da África. Soma-se a esse relevante fator a constatação de que a grande maioria dos livros didáticos de História utilizada nesses níveis de ensino não reserva para a África espaço adequado, pouco atentando para a produção historiográfica sobre o Continente. Os alunos passam assim, a construir apenas estereótipos sobre a África e suas populações. Portanto, seria justo perguntar: como a História da África é ensinada em nossas escolas? (OLIVA, 2003, p. 428-429) Num segundo momento, seus estudos preocupam-se em apresentar a trajetória histórica de como são lidos os africanos, revelando representações construídas ao longo do tempo. Por último, num estudo de caso, analisa um dos poucos livros didáticos (Schmidt, 1999) que abordam a História da África pré-colonial com um capítulo específico. Continuando, Oliva (2003, p. 429) constata: “Silêncio, desconhecimento e representações eurocêntricas.” Assim poderíamos definir o entendimento e a utilização da História da África nas coleções didáticas de História no Brasil. Mas também, quando se quebra o silêncio, “a formação inadequada e a bibliografia limitada criam obstáculos significativos para uma leitura menos imprecisa e distorcida sobre a questão”. Partindo disso, sua compreensão infere, que a tarefa de analisar manuais didáticos exigiria mais do que reunir conhecimento considerável acerca da História e da historiografia africanas. Haveria a necessidade de outro suporte de análise, que permitisse alcançar o entendimento de como esses livros influenciaram a construção das distorções e simplificações elaboradas sobre a África, e que foram apropriadas por milhares de alunos e professores, [...] excluindo um seleto grupo de intelectuais e pesquisadores, uma parcela dos afrodescendentes e pessoas iluminadas pelas noções do relativismo cultural, nós, brasileiros, tratamos a África de forma preconceituosa. Reproduzimos em nossas ideias as notícias que circulam pela mídia, e que revelam um Continente marcado pelas misérias, guerras étnicas, instabilidade política, AIDS, fome e falência econômica. Às imagens e informações que dominam os meios de comunicação, os livros didáticos incorporam a tradição racista e preconceituosa de estudos sobre o Continente e a discriminação à qual são submetidos os afrodescendentes aqui dentro. (OLIVA, 2003, p.431). Desde a Antiguidade, segundo Oliva, (2003) historiadores e geógrafos, como Heródoto e Ptolomeu, se referem à África, demarcando diferenças e trazendo 38 representações criadas através dos filtros estrangeiros, para o Continente e suas gentes. Os escritos trazem trechos onde fica evidente a inferioridade dos etíopes perante os gregos e egípcios, já que os primeiros eram bárbaros, sem civilização, e identificados como trogloditas. Os temores sobre o Mar Oceano e a região abaixo do Equador iriam alimentar as elaborações e representações dos europeus sobre os africanos. Monstros, terras inóspitas, seres humanos deformados, imoralidades, regiões e hábitos demoníacos iriam ser elementos constantes nas descrições de viajantes, aventureiros e missionários. (OLIVA, 2003, p. 436). Ao longo dos contatos estabelecidos nos tempos modernos os preconceitos foram apenas se alternado. No século XIX, a ação das potências imperialistas, e a difusão das teorias raciais, reforçam os estigmas já existentes sobre a região e seus nativos. As perspectivas do pensamento historiográfico desse século, espelham em parte, os silêncios que se fizeram sobre o assunto até bem pouco tempo, no ocidente e no Brasil e explicam a manutenção das representações construídas em relação aos africanos. (OLIVA, 2003, p.437) refere, que para os pensadores do século XIX, os povos africanos subsaarianos encontravam-se imersos em um estado de quase absoluta imobilidade, seriam sociedades sem história. No caso, é preciso que se frise que a História, naquele momento, passara a se confundir com dois elementos: as trajetórias nacionais – entendidas como os inventários cronológicos dos principais fatos políticos dos Estados europeus, quase sempre protagonizados por figuras ilustres ou heróis; e com o movimento retilíneo e natural rumo ao progresso tecnológico e civilizacional. Dessa forma, a ideia da transformação, da busca constante pelo novo, pelo moderno, se tornaria uma obsessão. Além disso, devido aos rigores metodológicos, o passado somente poderia ser acessado com o uso dos documentos escritos oficiais. É possível observar que nessa perspectiva histórica, os povos africanos, jamais possuíram papel de destaque na história da humanidade. “O Continente que deu vida ao próprio homem foi condenado por muitos deles ao esquecimento e à inferioridade.” (OLIVA, 2003, p. 439). Se desejamos transformar a sociedade para melhor, o cerne do trabalho está de fato na educação, ou seja, nas escolas, e nos ideais que lá se constituem. Por essa razão, o livro didático é tão importante dentro desse processo porque ele afeta, influencia, professores e crianças. A partir das palavras e imagens, significantes presentes nos 39 livros, os próprios alunos irão construir suas representações, significados, ou somente absorverão as representações elaboradas pelos autores. Ao analisar a publicação de Mario Furley Schmidt, nesse segundo volume da coleção intitulada Nova História Crítica, ele inicia elogiando a iniciativa incomum, de dedicar um capítulo (África) inteiro para tratar do tema relacionado ao Continente. Todavia em seguida, ele expressa a identificação de algumas imprecisões. O livro para o autor, identifica uma tendência marxista excessiva em sua narrativa, aportando em suas páginas “antagonismos entre dominados e dominadores, capitalistas e proletariados, senhores e escravos” ( o que para ele seria um desvio do aporte teórico proposto, voltado às questões culturais e à influência de pressupostos da Nova História Francesa e/ou da História Social Inglesa. O autor do livro didático, refere no Manual do Professor a importância de suprimir a negligência com a qual a história da África é conduzida nos livros escolares e então Se, de fato, é um tema negligenciado pelo nosso ensino, porque o autor alerta que sua abordagem será restrita, se sua intenção é valorizar ou minimizar o esquecimento da História da África que fizesse uma análise efetivamente abrangente. Como veremos logo a seguir, se sua coleção possui espaço para tratar a Reforma Religiosa europeia em catorze páginas, por que reservar apenas dez para toda a África pré-colonial? Escolha do autor? Da editora? Do mercado consumidor? Dos currículos? Tais questões nos fazem percorrer rapidamente o citado volume realizando um balanço das páginas dedicadas aos assuntos. É revelador o grande espaço reservado às temáticas oriundas de uma abordagem eurocêntrica da História, e as restrições a que são submetidas a História da América e da África. (OLIVA, 2003, p. 444-445). O autor observa também, ao analisar os efeitos da escravidão nas populações africanas, que “o texto revela uma frágil preocupação com o contexto histórico da época, sendo evidentemente carregado de juízos de valor e de um grave anacronismo.” (OLIVA, 2003, p. 449). Oliva segue sua análise, levantando questões diversas, como referir a África apenas a partir do processo escravagista, a desconsideração da existência de milhares de grupos étnicos no Continente, a ausência de informação sobre as diferentes motivações da escravidão europeia daquela que ocorria na África, critérios questionáveis para pontuar argumentações sobre o labiríntico processo social, cultural, étnico e político dos diversos povos africanos. 40 Podemos observar pela análise desse autor, que mesmo para aqueles que se colocam dispostos a levar essa instrução para dentro das escolas, a responsabilidade de preparar um material didático para utilização em sala de aula é gigantesca, pela vasta e extraordinária complexidade que permeia esses conhecimentos. O artigo Racismo em livros didáticos brasileiros e seu combate: uma revisão da literatura, Rosemberg, et al (2003), propõem revisar as expressões de racismo em livros didáticos. Baseando seu trabalho em pesquisas já publicadas em Estado da Arte, buscam analisar a produção brasileira de dois pontos de vista antagônicos: publicações que enunciam o racismo em livros didáticos e publicações que referem-se ao combate ao racismo em livros didáticos. Buscando compilar análises já produzidas, os autores buscaram identificar aspectos comuns ao conjunto dessas análises sobre o tema, as lacunas que vão permanecendo e a diversidade de enfoques teórico-metodológicos sobre os quais elas se desenvolvem. Utilizaram-se de pormenorizado levantamento bibliográfico de artigos acadêmicos ou não sobre o tema, publicados nas últimas cinco décadas. Educação, Psicologia, História, Linguística, Sociologia, estudos sobre relações raciais, estudos sobre livros didáticos, são matérias que se confluem no debate desse interesse. E essa constatação faz estender de maneira considerável, o árduo trabalho de levantamento de todo esse material. No momento dessa pesquisa, 2003 os autores puderam observar que os temas da diversidade cultural e/ou multiculturalismo praticamente ainda não faziam parte das preocupações dos pesquisadores sobre livros didáticos. Mesmo assim, vários pontos puderam ser elencados, Rosemberg et al (2003) como por exemplo a dificuldade de professores do Ensino Fundamental em identificar indícios de discriminação racial nos livros utilizados, e até mesmo o uso contrário à proposta de intervenção – a partir de material didático que visava o combate ao racismo – como a humilhação de crianças negras, colocando-as para representar o papel de escravo. “As pesquisas apontam a multiplicidade de discursos e de estratégias discursivas que contribuem para situar o negro (e o indígena) em determinado(s) espaço(s) social(is)” (ROSEMBERG et al, 2003, p. 129). A produção acadêmica em pesquisa sobre livro didático em seu conjunto, é relativamente frágil, teórica e metodologicamente, fragmentada e inconstante. Isto é, os textos nem sempre explicitam se dialogam com a produção ou a recepção, qual o modelo societário subjacente a suas inferências e qual o alcance das interpretações. São 41 poucos os autores ou grupos de pesquisa que se mantêm trabalhando sobre o tema por um período relativamente longo.(ROSEMBERG et al, 2003, p. 130-131). Para os autores, as pesquisas deveriam ser mais focadas, quando nessa temática, pois “expressões de racismo em livros didáticos são mais que a ponta “do iceberg”, e constituem uma das eficazes formas, de produção e sustentação do racismo cotidiano brasileiro.” (ROSEMBERG et al, 2003, p. 133). Graças ao questionamento sobre o mito da democracia racial, com a ênfase decorrente dos novos estudos sobre relações raciais que demarcaram o surgimento das novas formas de praticar o preconceito étnico, e o levantamento de discriminações na própria constituição desse gênero literário, apreendeu-se que a literatura didática (e paradidática) tem sido criada visando o aluno branco, ou seja, ela não apresentaria apenas uma imagem deteriorada do negro, mas teria como pressuposto a interlocução de um leitor branco. Escutando cinco professores de História, militantes do movimento negro, as análises informam: No entender dos entrevistados o livro didático estaria, em síntese, prejudicando a população negra. Em primeiro lugar, por veicular uma organização de conteúdo que não permite ao negro ter visibilidade enquanto sujeito do processo histórico. Em segundo, o livro didático mantém a população negra confinada a determinadas temáticas que reafirmam o lugar social ao qual ela está limitada. Por último, foi criticado o fato dos livros estarem substituindo o mito da democracia racial, pelo mito da mestiçagem que anularia a construção de uma identidade negra. (OLIVEIRA, 2000 apud ROSEMBERG et al 2003, p. 136). Embora essa seja uma temática de discussões relativamente novas na história do ocidente, e já estejamos fartamente informados da difícil tarefa de analisar para combater, os comportamentos sociais preconceituosos e racistas, é sabido também, que provavelmente essa discussão tenha chegado para ficar. A comunidade Internacional já vem se manifestando em relação à necessidade de mudança dessa realidade, de muitas maneiras, e há algumas décadas. A III Conferência Mundial das Nações Unidas contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada em Durban, em 2001, trouxe um forte encorajamento às sociedades ocidentais, provocando uma espécie de explosão de iniciativas, que se espalham por todos os agrupamentos sociais, desde as grandes capitais, grandes metrópoles, incluindo também as menores 42 cidades do interior dos países e estados. Essas iniciativas são todas de fundamental importância, para pressionar a discussão no setor educativo, com foco especial no interior das escolas, e nesse sentido o livro didático é alvo certo. O que acontece, e que torna qualquer processo de transformação extremamente dialético e moroso, é o fato de instituições importantes como é o caso do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), assim como tantas outras instituições públicas, mudarem de mãos com muita recorrência, e o que determina as ações de seus responsáveis, está sempre mais ligado à interesses com posicionamentos idealistas e também político-partidários, do que à ações especificadamente profissionais. Todavia a legislação brasileira tem estado até aqui, atenta à representação de negros (e indígenas) nos materiais didáticos. A questão vem sendo tratada em concordância com as principais tendências do Movimento Negro. Duas premissas são importantes: a proibição do racismo em livros e outros materiais didáticos, e a exortação à inclusão dos aportes de negros (inclusive da África contemporânea) e indígenas na história e construção do país. Porém, não obstante esse reconhecimento, os autores se preocupam Se esta lei reconhece antiga reivindicação do movimento negro, ela instiga uma certa apreensão no que diz respeito a sua aplicação e suas consequências para a produção do livro didático. A apreensão decorre da inadequação na formação de professores quanto à matéria e na reduzida retaguarda de material didático de qualidade para uso de alunos e professores, como evidenciou, também, o reduzido e incipiente acervo de pesquisas disponíveis no Brasil sobre o negro e a África em livros de História. Se é verdade que alguns municípios (como Vitória e Salvador) vêm atuando no sentido de implementar adequadamente a lei, teme-se que, para suprir esse novo mercado editorial que se abre, possamos ter uma nova enxurrada de livros que se comprazam em representar a África do tempo da colonização do Brasil, que fortaleçam o trio feijoada, futebol e samba, ou que mantenham o debate sobre relações raciais no Brasil focalizado exclusivamente nos negros, retardando, ainda mais, o questionamento da construção da identidade racial branca. (ROSEMBERG et al, 2003, p. 142). 6.3 Em Pereira (2008) o texto “Reconhecendo ou construindo uma polaridade étnico-identitária? Desafios do ensino de história no imediato contexto pós-Lei no 10.639”, fazem sua reflexão sobre a lei – os desafios que se colocam aos docentes problematizando pressupostos e paradoxos presentes no texto da lei e das diretrizes 43 correlatas. Além disso, discute também os desafios e desdobramentos teórico-práticos, advindos da promulgação da lei. Reconhecendo a importância e abrangência das implicações da lei 10639/03, a autora observa que Seu conteúdo e as transformações dela decorrentes produzem uma tensão entre a ampliação dos direitos de cidadania no país e a crescente compreensão da necessidade de enfrentamento do racismo, em suas diversas faces e nas diferentes esferas da vida social, sobretudo no âmbito da escola. A lei atende enfim, também à sua maneira, ao enfrentamento da antiga crítica a um ensino de história centrado em narrativas etnocêntricas, em que a história e a cultura afro-brasileiras via de regra compareciam – quando compareciam – de forma estereotipada. (PEREIRA, 2008, p. 22). A autora observa também, que diversas interpretações são importantes, sobretudo pela promessa de provocar várias disposições, que terão eventualmente que se adaptar às diferentes realidades escolares, mas que em contrapartida, isso pode transformar-se em problema para os professores, que não dispõem de interlocução substantiva e permanente capaz de fundamentar e reorientar suas escolhas. Há um entendimento, de que essa nova regulamentação indica um interesse fundamental em seu conteúdo, mas também nas formas de recepção pelos professores da educação básica. Sabemos que o campo da receptibilidade é muito diverso, e ao trazer essa diversidade para a compreensão dos professores, a autora propõe “uma reflexão sobre dilemas educativos e teórico-conceituais provocados por essa legislação, em diálogo estreito com seu conteúdo e também com algumas tendências que se estabeleceram, há muito, no ensino de história.” (PEREIRA, 2008, p.23). O que se institui, e não poderia ser diferente, é um cenário instigante, heterogêneo e paradoxal, marca do por contradições (presentes já no texto legal), com desdobramentos sentidos na emergência das várias e diversas propostas, ações, inquietações e dilemas no campo do ensino de história e cujos impactos estão ainda pouco avaliados substanti vamente. (PEREIRA, 2008, p. 24). Passados 15 anos de instituída a lei, ainda é necessário observar o grau dos impactos dessas transformações advindas da obrigatoriedade de conteúdos curriculares, tentar perceber os desafios colocados ao cotidiano escolar, à abrangência da lei, à renovação de propostas de formação docente. 44 Entre os professores surgem questionamentos, sobre o que é racismo, o que é racismo brasileiro, o que é cultura, o que é identidade, o que são ações afirmativas, o que é branqueamento histórico? Dificuldades que revelam uma certa fragilidade na formação superior em história, apontando sobretudo, a ausência das interfaces entre a história, a sociologia e a antropologia, indicando que sua formação não se esgota na graduação. A premência de demandas de cunho teórico, expressa a natureza dessa formação profissional, apontando também que a prática de ensino de história é campo de atuação profissional que exige não somente um conhecimento de conteúdos e teorias genéricas, mas fundamentalmente uma compreensão de teorias e conceitos mergulhados na realidade social em que se pratica a docência. É importante também, refletir sobre a lei e suas políticas públicas de apoio, sobre a formação da identidade das crianças em sala de aula. “[...]as diferentes formas de expressão identitária não podem ser vistas como essencialmente contrapostas ou adversas, sob pena de transformarmos a sala de aula de história num palco para um acerto de contas”. (PEREIRA, 2008, p.34). Disso não decorre que não possam emergir formas identitárias negadas – como a negra – através do ensino de história. Isso não implica tampouco que pelo ensino de história não sejam valorizadas as diferentes culturas, também compreendidas pela reflexão a respeito de suas singularidades. Mas isso não implica transformar o ensino de história numa ação pedagógica que tem por finalidade a formação de consciências identitárias. Dessa maneira, é possível que pensemos num ensino de história em que está presente o anti-racismo, mas compreendido de maneira inclusiva, desvestido de qualquer fundamento antipluralista, inclusive das formas de identidade negra que pressupõem investigar e transformar o Brasil pela polarização (PEREIRA, 2008, p. 34). A polarização na questão do anti-racismo, é o que se apresenta como orientação indesejada, pois entendemos que as posições que se colocam no extremo, estão em desacordo com as premissas democráticas. Nesse caso, é preciso compreender e avaliar os problemas advindos de uma idealização da matriz de origem africana. Se, por um lado, são importantes todas as ancestralidades de que se compõem a história brasileira e suas culturas, não h