UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS MATHEUS RODRIGUES KALLAS A NORMATIVIDADE REGULAMENTAR DA CANNABIS MEDICINAL NO BRASIL E O ACESSO PARA O TRATAMENTO DE ANSIEDADE E DEPRESSÃO FRANCA 2023 Matheus Rodrigues Kallas A NORMATIVIDADE REGULAMENTAR DA CANNABIS MEDICINAL NO BRASIL E O ACESSO PARA O TRATAMENTO DE ANSIEDADE E DEPRESSÃO Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré- requisito para obtenção do Título de Mestre em Direito. Linha de pesquisa: Tutela e Efetividade dos Direitos da Cidadania. Orientadora: Profª Drª Patrícia Borba Marchetto. FRANCA 2023 IMPACTO POTENCIAL DESTA PESQUISA O Brasil finalmente caminha para a regulamentação da Cannabis medicinal como um todo, sendo o maior ponto de partida as recentes Resoluções de Diretoria Colegiada da ANVISA publicadas a partir de 2019, cujo conteúdo abriu diversas possibilidades para a redução da burocracia e lentidão do acesso à Cannabis Medicinal, como a fabricação e comercialização em território nacional. Apesar desse avanço, os elevadíssimos custos limitam o seu acesso, levando pessoas de baixa renda ainda recorrerem ao Judiciário para obter o seu fornecimento gratuito. Paralelo a isso, o Brasil sofre com os crescentes números de transtornos mentais comuns – a ansiedade e a depressão – altamente incapacitantes e carentes de atenção enquanto um direito garantido constitucionalmente (direito à saúde). Nesse sentido, os principais impactos da minha dissertação de mestrado são: a) expansão do conhecimento a respeito da normatividade contemporânea da Cannabis medicinal, facilitando aos estudiosos do tema encontrarem um compilado de informações jurídicas atualizadas para fundamentarem demais pesquisas; b) difusão informações essenciais para desmistificar os tabus contra a Cannabis e transtornos mentais comuns; c) contribuição com o meio acadêmico como fonte de conhecimento para sustentar argumentos para uma possível e futura regulamentação específica da Cannabis medicinal no Brasil; A pesquisa está alinhada com o Objetivo 3 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis da Organização Mundial da Saúde, que versa o seguinte: Objetivo 3. Assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todas e todos, em todas as idades; [...]; 3.4 Até 2030, reduzir em um terço a mortalidade prematura por doenças não transmissíveis via prevenção e tratamento, e promover a saúde mental e o bem-estar. Finalmente, após encerrada minha pesquisa, houve a aprovação da Lei nº 17.618/2023 que garante o fornecimento de medicamentos à base de Cannabis através do SUS do Estado de São Paulo; tal fato representa um reflexo de todas as considerações levantadas na pesquisa, principalmente no quesito da caminhada do Brasil para a regulamentação definitiva da Cannabis medicinal, reformulando seu conceito visando a para a efetivação do direito à saúde e do direito à saúde mental. POTENTIAL IMPACT OF THIS RESEARCH Brazil is finally moving towards the regulation of medicinal Cannabis as a whole, the main starting point being the recent Resolutions of the Collegiate Board of ANVISA published from 2019, whose content opened up several possibilities for reducing bureaucracy and slow access to Cannabis Medicinal, such as manufacturing and marketing in the national territory. Despite this advance, the very high costs limit its access, leading low-income people to resort to the Judiciary to obtain its free supply. Parallel to this, Brazil suffers from the growing number of common mental disorders – anxiety and depression – which are highly disabling and in need of attention as a constitutionally guaranteed right (right to health). In this sense, the main impacts of my master's thesis are: a) expansion of knowledge regarding the contemporary normativity of medicinal Cannabis, making it easier for scholars to find a compilation of up-to-date legal information to support further research; b) dissemination of essential information to demystify taboos against Cannabis and common mental disorders; c) contribution to the academic environment as a source of knowledge to support arguments for a possible and future specific regulation of medicinal Cannabis in Brazil; The research is in line with Goal 3 of the Sustainable Development Goals of the World Health Organization, which reads as follows: Objective 3. Ensure a healthy life and promote well-being for everyone, at all ages; [...]; 3.4 By 2030, reduce premature mortality from noncommunicable diseases by one-third through prevention and treatment, and promote mental health and well-being. Finally, after completing my research, Law nº 17.618/2023 was approved, which guarantees the supply of Cannabis-based medicines through the SUS in the State of São Paulo; this fact represents a reflection of all the considerations raised in the research, mainly in terms of Brazil's journey towards the definitive regulation of medicinal Cannabis, reformulating its concept aiming at the realization of the right to health and the right to mental health. Dedico este trabalho às pessoas que sofrem transtornos de ansiedade e depressão, como forma de auxílio na luta contra esses demônios que, com ajuda profissional, informação, conhecimento e amor, serão derrotados. AGRADECIMENTOS Agradeço, primeiramente, às forças regentes do Universo, por permitirem e guiarem a minha breve experiência humana. Agradeço à minha Orientadora, Professora Patrícia Borba Marchetto, por todo o conhecimento compartilhado, por toda disponibilidade imediata, por ter exercido uma orientação brilhante e justa, indo além de suas funções profissionais, sendo por vezes uma acolhedora amiga, de forma a se tornar uma de minhas maiores inspirações. Agradeço também por ela ter me inserido na “Família Científica”, que me permitiu conhecer incríveis colegas de orientação que várias vezes me ajudaram. Agradeço à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Estatual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, por toda sua estrutura e excelência em geral que me proporcionaram atingir um novo patamar acadêmico. Agradeço à minha mãe, Vânia, por seu enorme coração que sempre acalmou meus dias turbulentos; ao meu pai, Edson, minha principal fonte de inspiração profissional, por ser um exemplo de educador; à minha avó, Jovelina, por sua lucidez e inteligência que acompanham a modernidade, e por sua inabalável fé que me protege espiritualmente; às minhas tias Sheila e Dani, minhas segundas mães, e ao meu tio Ricardo, meu segundo pai, que me ensinaram o valor de fazer parte de uma família amorosa. Agradeço aos meus amigos de banda e irmãos de coração Diego, Kirchner, Xavier e Felipe, por compartilharem sempre as conquistas e as dores, além da paixão pela música, que faz parte da minha essência; aos amigos de infância Rafael, Marcus e Lucas e aos amigos de graduação Melina, Laísa, João Quindim, João Branco, Camila, Flávia, Letícia, Luan, Day, Carol e Ana, por provarem a longevidade de uma amizade verdadeira; ao meu amigo Moacyr (Salsa), por ter acompanhado e apoiado os primeiros momentos do meu mestrado; aos meus melhores amigos Rafael Pustrelo e Rafael Ribeiro, por tudo que já compartilhamos nessa vida e nas anteriores. Finalmente, por último e mais importante, agradeço ao meu irmão Luiz, por ser meu fiel baixista nos palcos, por ser o Dean do meu Sam (mesmo eu sendo o mais velho) e o Sasuke do meu Itachi, e por simplesmente ser a pessoa que eu mais amo nesse mundo. “Tudo o que temos a decidir é o que fazer com o tempo que nos é concedido” Gandalf, O Cinzento KALLAS, Matheus Rodrigues. A normatividade regulamentar da Cannabis medicinal no Brasil e o acesso para o tratamento de ansiedade e depressão. 2023. 109 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2023. RESUMO A presente pesquisa aborda o acesso à Cannabis medicinal no Brasil, em específico para o tratamento da depressão e do transtorno de ansiedade generalizada, tendo por base os novos caminhos abertos pelas Resoluções de Diretoria Colegiada (RDCs) nº 327/2019 e 660/2022 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), cujo conteúdo, respectivamente, regulamenta a fabricação e comercialização de medicamentos produzidos a partir da planta e facilita o processo de importação desses medicamentos. O quadro atual de acesso aos medicamentos de Cannabis é caracterizado por grandes entraves burocráticos, morosidade e alto custo financeiro, de maneira a lesionar o direito fundamental à saúde da população, principalmente em relação à saúde mental, pois o número de pessoas que sofrem de transtornos depressivos e de ansiedade no Brasil cresce a cada ano. Classificados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como “transtornos mentais comuns”, a depressão e a ansiedade são altamente incapacitantes e apresentam uma progressão alarmante na população do Brasil. Dada a atualidade das resoluções da ANVISA, o cenário atual da qualidade da saúde mental brasileira e o fato de que ao redor do mundo os medicamentos de Cannabis foram provados como uma alternativa promissora no combate à depressão e ansiedade, é de interesse coletivo o avanço de estudos nessa área para buscar resultados sociais, medicinais, jurídicos, políticos e bioéticos, alcançando e efetivando o direito constitucionalmente previsto à saúde; partindo dessa premissa, a presente pesquisa formula-se em uma abordagem qualitativa através da metodologia dedutivo-indutiva para apontar a importância e os caminhos futuros da normatividade regulamentar da Cannabis medicinal no Brasil e o acesso para o tratamento de ansiedade e depressão. Palavras-chave: Direito à saúde mental; transtornos mentais; medicamentos à base de Cannabis; regulamentação. KALLAS, Matheus Rodrigues. The regulatory normativity of medical cannabis in Brazil and access to the treatment of anxiety and depression. 2023. 109 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2023. ABSTRACT The present research addresses the access to medicinal Cannabis in Brazil, specifically for the treatment of depression and generalized anxiety disorder, based on the new paths opened by the Collegiate Board Resolutions (RDCs) nº 327/2019 and 660/2020 of the National Health Surveillance Agency (ANVISA), whose content, respectively, regulates the manufacture and sale of medicines produced from the plant and facilitates the process of importing these medicines. The current situation of access to Cannabis medicines is characterized by major bureaucratic obstacles, delays and high financial cost, in order to harm the population's fundamental right to health, especially in relation to mental health, since the number of people suffering from disorders depression and anxiety in Brazil grows every year. Classified by the World Health Organization (WHO) as “common mental disorders”, depression and anxiety are highly disabling and present an alarming progression in the population of Brazil. Given the current status of ANVISA resolutions, the current scenario of the quality of Brazilian mental health and the fact that Cannabis medicines have been proven around the world as a promising alternative in the fight against depression and anxiety, it is of collective interest to advance research in this area to seek social, medicinal, legal, political and bioethical results, achieving and implementing the constitutionally provided right to health; starting from this premise, the present research is formulated in a qualitative approach through the deductive-inductive methodology to point out the importance and the future paths of the regulatory normativity of medicinal Cannabis in Brazil and the access for the treatment of anxiety and depression. Keywords: Right to mental health; mental disorders; Cannabis-based medicines; regulation. LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Mapa da invalidez por transtornos depressivos..............................................45 Figura 2 – Mapa da invalidez por transtornos de ansiedade.............................................45 LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS ANVISA Agência Nacional de Vigilância Sanitária CBD Canabidiol CFM Conselho Federal de Medicina EUA Estados Unidos da América IRCCA Instituto de Regulação e Controle de Cannabis OMS Organização Mundial da Saúde OPAS Organização Pan-Americana de Saúde PL Projeto de Lei RDC Resolução de Diretoria Colegiada SEC Sistema Endocanabinoide SNC Sistema Nervoso Central STF Supremo Tribunal Federal STJ Superior Tribunal de Justiça TAG Transtorno de Ansiedade Generalizada THC Tetrahidrocanabidiol TJES Tribunal de Justiça do Espírito Santo TJMG Tribunal de Justiça de Minas Gerais TJRJ Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro TJSP Tribunal de Justiça de São Paulo UNESP Universidade Estadual Paulista USP Universidade de São Paulo ANEXOS ANEXO A Autorização Sanitária da Pratti-Donazuti...................................101 ANEXO B Formulário para o pedido de Autorização Sanitária de produtos de Cannabis........................................................................................................................103 ANEXO B Declaração..................................................................................107 ANEXO B Termo de Consentimento Livre e Esclarecido...........................108 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 14 1 A CANNABIS SATIVA NO MUNDO E NO BRASIL ................................. 17 1.1 CANNABIS: A PLANTA ANCESTRAL .......................................................... 17 1.2 A CHEGADA E USO NO BRASIL ................................................................. 19 1.2.1 Origem do uso religioso da Cannabis no Brasil................................................ 20 1.3 A CANNABIS E O PÓS-ABOLIÇÃO NO BRASIL ......................................... 24 1.4 EVOLUÇÃO DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA SOBRE A CANNABIS ...... 28 1.4.1 A Ditadura Militar e a política das drogas ........................................................ 31 1.4.2 A redemocratização e a política de drogas atual ............................................... 34 1.4.3 Resoluções do Conselho Federal de Medicina sobre Cannabis medicinal ....... 38 2 SAÚDE MENTAL COMO DIREITO E SEU TRATAMENTO ATRAVÉS DA CANNABIS .............................................................................................................. 43 2.1 TRANSTORNOS MENTAIS COMUNS: DEPRESSÃO E ANSIEDADE ..... 46 2.2 O DIREITO À SAÚDE COMO OBRIGAÇÃO ESTATAL ............................ 50 2.2.1 A saúde mental como direito ............................................................................. 53 2.3 O USO DA CANNABIS NO TRATAMENTO DA DEPRESSÃO E ANSIEDADE .................................................................................................................. 56 2.4 USO DA CANNABIS MEDICINAL NO MUNDO .......................................... 60 2.4.1 Cannabis medicinal no Canadá ......................................................................... 61 2.4.2 Cannabis medicinal no Uruguai ........................................................................ 62 2.5 PROPOSTAS DE REGULAMENTAÇÃO NO BRASIL ................................ 66 3 A NOVA REALIDADE DA CANNABIS MEDICINAL NO BRASIL ....... 69 3.1 A RDC nº 327/2019 .......................................................................................... 70 3.2 A RDC nº 660/2022 .......................................................................................... 75 3.3 A CANNABIS MEDICINAL NOS TRIBUNAIS SUPERIORES ..................... 76 3.3.1 Recurso Extraordinário nº 1.165.959/SP ........................................................... 77 3.3.2 Recurso em Habeas Corpus nº 147.169/SP ....................................................... 84 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................ 89 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 92 ANEXOS ...................................................................................................................... 101 14 INTRODUÇÃO A popularmente conhecida como “maconha” (Cannabis Sativa L.) é uma planta do gênero Cannabis que cresce naturalmente em regiões de clima tropical, usada de variadas maneiras pela humanidade desde 8.000 anos antes de Cristo. A ciência atual já demonstrou que essa planta é constituída por aproximadamente 400 substâncias, das quais 144 são consideradas capazes de agir no Sistema Nervoso Central (SNC), recebendo o nome de “canabinoides”. Os canabinoides mais conhecidos e estudados em suas propriedades são o tetrahidrocanabidiol (THC) e o canabidiol (CBD), cuja eficácia e potência terapêutica já foram comprovadas, sendo uma solução natural e célere para o tratamento de diversas enfermidades. Dentre as doenças que encontram um tratamento eficiente a longo prazo, estão a depressão e o transtorno de ansiedade generalizado, classificados pela Organização Mundial da Saúde como “transtornos mentais comuns”. Nesse sentido, o desenvolvimento científico da Cannabis medicinal com o devido acompanhamento biojurídico é uma necessidade e um interesse da sociedade brasileira, afinal, o Brasil é considerado o país mais ansioso e estressado da América Latina. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), nos últimos dez anos o número de pessoas com depressão aumentou 18,4%, isso corresponde a 322 milhões de indivíduos, ou 4,4% da população da Terra. No Brasil, 5,8% dos habitantes – a maior taxa do continente latinoamericano – sofrem com o problema. Em relação à ansiedade, o Brasil também lidera, com 9,3% da população. Esse problema engloba efeitos como fobia, transtorno obsessivo compulsivo, estresse pós-traumático e ataques de pânico. As mulheres sofrem mais com a ansiedade: cerca de 7,7% das mulheres são ansiosas e 5,1%, deprimidas. Já entre os homens, o número cai para 3,6% nos dois casos. Apesar de cientificamente comprovados os benefícios médicos naturais da maconha, o acesso a esse tipo de tratamento é um estigma em ruptura no mundo todo, desde a distorção de sua imagem a partir dos processos internacionais de criminalização das drogas, por volta de 1909, que resultou em normatividades que condenam o seu consumo, comercialização e cultivo. No contexto brasileiro, o consumo, plantio e cultura da maconha é vedado pela Lei nº 11.343/2006, a Lei de Drogas, a qual remete competência a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) determinar quais substâncias devem ser consideradas como drogas, sendo também responsável pela aprovação dos medicamentos que entram em circulação no país. Em dezembro de 2019, 15 a Diretoria Colegiada da ANVISA publicou a Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) nº 327/19, cujo conteúdo define as condições para a fabricação e comercialização de medicamentos à base de Cannabis no Brasil. Essa RDC introduz um novo paradigma para o acesso à Cannabis medicinal pela população brasileira, que testemunhará uma redução na burocracia e morosidade que assolavam essa temática. Apesar desse avanço, é importante destacar que ainda não é uma medida suficiente para resolver as questões de demandas, altos custos e produção caseira de medicamentos de Cannabis, evidenciando novamente a necessidade e urgência de uma específica regulamentação. Assim, a presente pesquisa aborda o ponto de encontro das duas temáticas expostas: a nova realidade dos medicamentos de Cannabis no Brasil e o seu uso para o tratamento dos transtornos mentais comuns, tendo como objetivo esclarecer a problemática da efetividade e concretização do direito à saúde no contexto da dificuldade normativa e falta de regulamentação sobre o acesso à Cannabis medicinal – voltada para o cuidado da depressão e ansiedade. O primeiro momento da pesquisa dedica-se a um estudo histórico da maconha, explicando sua origem, sua versatilidade de uso ao longo da história da humanidade, sua chegada ao Brasil e como foi, aos poucos, demonizada pela elite racista e classista. Em seguida, ainda de forma cronológica, analisa-se o tratamento da maconha pela legislação nacional, amplamente influenciada pelas convenções internacionais que instauravam a “guerra às drogas”, enraizada até mesmo nas leis mais recentes sobre o tema. O segundo capítulo da pesquisa volta-se à explicação da saúde mental englobada no direito fundamental à saúde previsto na Constituição Federal de 1988 como uma obrigação estatal; o conceito, causas e consequências dos transtornos mentais comuns de depressão e ansiedade e como funciona o seu tratamento através dos medicamentos produzidos com os canabinoides da maconha; a relação atual de governos estrangeiros com a maconha, que demonstram posicionamentos favoráveis à regulamentação de seu uso para fins terapêuticos, aprofundando o recorte espacial, para efeitos comparativos, às legislações do Canadá e Uruguai e o Projeto de Lei nº 10.549 de 2018, o mais atual em trâmite no Brasil a respeito da regulamentação do tema. O capítulo final reúne o conteúdo dos capítulos anteriores para argumentar sobre a nova realidade da Cannabis medicinal no Brasil, que possui um caminho de possibilidades aberto pela RDC 327/19 da ANVISA, além da análise de decisões judiciais – delimitadas aos acórdãos do Supremo Tribunal Federal (STF) e Superior Tribunal de Justiça (STJ) que discutem especificamente de 16 pedidos de medicamentos de Cannabis para o tratamento de ansiedade e depressão e também o posicionamento dos tribunais superiores. A pesquisa foi construída através de uma abordagem qualitativa pelo método dedutivo-indutivo, dedicada a expandir o campo teórico das relações entre o direito, saúde mental e o uso terapêutico da Cannabis, propondo um debate sobre as limitações éticas e responsabilidades jurídicas a que a questão está sujeita. Considerando as múltiplas áreas de conhecimento que mantém relação com o tema, a pesquisa teve embasamento em livros, artigos científicos e teses - utilizando plataformas de pesquisa online como Scielo, Google acadêmico e repositório de dados de universidades – cujo conteúdo interdisciplinar abordava: História, para a investigação das origens do uso medicinal da Cannabis e como ela se tornou um tabu no Brasil; Medicina, para esclarecer o que de fato são os transtornos mentais de ansiedade e depressão, quais são os seus sintomas e como afetam gravemente a qualidade de vida das pessoas; Biologia, para o aprofundamento da compreensão dos efeitos dos canabinoides no ser humano os benefícios de seu uso para o cuidado das enfermidades abordadas; Direito, para compreender a eficácia do direito fundamental à saúde em relação ao acesso de uma saúde mental digna. Sítios eletrônicos de organizações como a ONU e a OMS foram utilizados para o levantamento dos dados sobre a ansiedade e a depressão no contexto internacional e nacional. Sítio eletrônicos governamentais foram consultados para busca das diversas legislações que envolvem a temática, como a Lei de Drogas, a Constituição Federal de 1988 e o Código Penal, além das Resoluções publicadas pela ANVISA. Legislações estrangeiras são estudadas de maneira comparativa à legislação nacional como forma de oferecer base para, por meio do método indutivo, levantar hipóteses e soluções para a problemática, como os rumos que uma eventual regulamentação legal deveria seguir, sem deixar de considerar a complexidade e diferença entre cada macrossistema. 17 CAPÍTULO 1 - A CANNABIS SATIVA NO MUNDO E NO BRASIL Quando estudamos a história da maconha, é fácil ver que na proibição de seu uso médico não há nada de científico, e sim, de ideológico. – Elisaldo Carlini, 2010. 1.1 CANNABIS: A PLANTA ANCESTRAL O estudo deste capítulo trata do uso e da importância da Cannabis ao longo do desenvolvimento da humanidade considerando os objetivos propostos pela pesquisa, que não possui caráter histórico. Devido à realidade que chega ao Brasil da Cannabis fazendo parte do dia-a-dia, é importante esclarecer que a planta era utilizada desde a Antiguidade e possui outras finalidades que não sejam recreativas ou medicinais. Inclusive, é preciso difundir mais ainda a informação das propriedades gerais da Cannabis. A erva chamada de Cannabis Sativa é uma dentre as plantas mais antigas a serem cultivadas pela humanidade. A primeira evidência do uso da Cannabis foi encontrada na China, onde achados arqueológicos descobriram que já se utilizava a fibra da planta desde 4000 a.C (SANTOS, 2017). A maconha, conhecida popularmente no Brasil como diamba, pango, liamba, fininha, fumo de Angola e outros nomes, consiste nos produtos extraídos da espécie vegetal Cannabis Sativa L, que conta ainda com outras subespécies como a Cannabis indica ou a Cannabis ruderalis, que diferem entre si, principalmente, pelo tamanho e pela concentração de determinadas substâncias. Sobre o nome “Cannabis”, a tese mais interessante sobre sua origem foi formulada em 1936 pela antropóloga e linguista polonesa Sula Benet, para quem o nome deriva de “kaneh-bosm”, usado para descrever uma planta descrita em várias passagens do Tanakh, livro sagrado hebraico que corresponde ao Antigo Testamento da Bíblia cristã. O “kaneh- bosm” seria, por exemplo, um dos ingredientes de unguento que Moisés foi instruído a produzir por diretrizes divinas. A tese, bastante criticada por grupos religiosos, foi revisitada décadas depois, em 1993, quando arqueólogos israelenses encontraram uma tumba de 400 d.C. que continha o corpo de um adolescente com vestígios carbonizados de maconha (MALCHER-LOPES apud PRATA, 2020, p. 101). Da Cannabis Sativa podem ser extraídas várias substâncias, variando com a subespécie vegetal, com as condições climáticas ou conforme a parte da planta que foi utilizada. Um exemplo de extração é o cânhamo – nome que nada mais é do que um 18 anagrama de “maconha” – do qual existem vestígios de cultivo e utilização desde a pré- História, quando servia de medicamento, tempero e, principalmente, componente de fabricação de tecidos de fibras de alta resistência (BOITEUX apud PRATA, 2020). Há relatos de contato do ser humano com esse espécime que retomam 4.000 anos na China, presente nas pesquisas do imperador Shen Nieng, célebre por seus trabalhos farmacêuticos. A prescrição para seu uso incluía tratamentos de: dores reumáticas, constipação intestinal, problemas no sistema reprodutivo feminino e malária. Também no primeiro século depois de Cristo, a farmacopeia Pen-ts’ao ching enumerava, entre seus medicamentos, a maconha. Na China, o uso medicinal era feito principalmente através das sementes. Assume-se que era desta parte da planta a que se fazia referência quando descreviam as propriedades medicinais (SANTOS, 2017). Quase tão antigo quanto os registros da China, no Egito, o Papiro de Ebers – documento de Medicina que data 1.550 a.C., sendo considerado, dessa categoria, o segundo mais antigo do mundo – faz referência a uma planta que serviria como medicamento e como fonte de fibras, o que leva especialistas a acreditarem que se trate da maconha (PRATA, 2020). Na Índia, o uso da Cannabis, por volta de 1.000 a.C., foi espalhado tanto para os fins medicinais quanto recreativos, porém, predominava o uso em rituais sacros, dando assim um sentido sagrado à planta. A Atharvaveda – um dos textos sagrados do hinduísmo - descreve a Cannabis como uma das cinco ervas divinas, sendo uma fonte de felicidade e liberdade. A planta era utilizada para inúmeras funções como: analgésico, anticonvulsivo, hipnótico, tranquilizante, anestésico, anti-inflamatório, antiparasitário, antiespasmódico, estimulante de apetite, diurético, afrodisíaco e problemas respiratórios (SANTOS, 2017). Na Europa, registros históricos e vestígios arqueológicos apontam a presença da Cannabis antes da ascensão do Cristianismo. A planta teria sido trazida pelos invasores “Citas”, originários da Ásia central. No ano de 450 a.C., Heródoto descreve um funeral cita no qual os presentes inalavam vapores das sementes da Cannabis com propósitos ritualísticos. No início da Era Cristã, a Cannabis utilizada como medicamento alcançou, a partir da Índia, demais regiões do Oriente Médio e da África. Textos muçulmanos do ano de 1.000 d.C. mencionam seu uso como diurético, digestivo e para tirar dor de ouvido (SANTOS, 2017). Na África a Cannabis é conhecida desde o século XV e seu uso foi possivelmente introduzido por mercadores das arábias. Seu uso era diverso: antídoto de venenos, alívio de dores de partos, malária, febre e asma (SANTOS, 2017). No continente americano, seu 19 uso começou provavelmente na América do Sul. No século XVI, escravos africanos trouxeram sementes para o Brasil e seu uso era comum entre negros que habitavam o nordeste brasileiro. A categorização do uso da Cannabis no ritualístico, recreativo e médico nada mais é do que uma construção da contemporaneidade e fruto da criminalização do que um fenômeno espontâneo. 1.2 A CHEGADA E USO NO BRASIL De uma certa maneira, a história do Brasil está intimamente ligada à planta Cannabis Sativa L., desde a chegada à nova terra das primeiras caravelas portuguesas em 1500. Não só as velas, mas também o cordame daquelas frágeis embarcações, eram feitas de fibra de cânhamo, como também é chamada a planta. O consumo da planta como substância entorpecente foi introduzido pelos negros, trazidos como escravos. Posteriormente, em 1785, o Vice-Rei recomendou o plantio de Cannabis ao Governador da Capitania de São Paulo, em razão do interesse lucrativo da metrópole. A remessa somava “16 sacas com 39 alqueires de sementes de Cannabis ao porto de Santos” (CARLINI, 2006, p. 316 apud PRATA, 2020). De forma inevitável, o uso não comercial disseminou e ganhou força por boa parte do território brasileiro através dos negros escravizados. Malcher Lopes e Ribeiro definem esse fato como “uma verdadeira forma de resistência da cultura africana” (MALCHER LOPES; RIBEIRO, 2007, p. 36 apud PRATA, 2020). O uso disseminou-se para tribos indígenas, que adotaram o plantio da Cannabis para consumo pessoal. Não foi demorado até a elite perceber a popularidade da planta entre as camadas pobres e marginais da sociedade, bem como sua habilidade em explorar bem suas propriedades. Usando as palavras de José Renato Prata: Como era de se esperar, a utilização mais intensa da Cannabis por parte de grupos socialmente vulneráveis, como negros e indígenas, levou à associação ainda frequente entre a maconha, a pobreza e, mais tarde, a criminalidade. Por isso, a partir do século XIX, seu consumo começou a ser combatido pela elite branca, a qual tinha o receio de que a erva pudesse fomentar a indolência e a brutalidade das classes mais pobres fornecedoras de mão de obra, em especial, dos afro-brasileiros (PRATA, 2020, p. 106). 20 Dessa forma, também não foram tardias as medidas, através de restrições da planta - ainda que indiretamente – como forma de repressão da camada mais baixa da sociedade brasileira. 1.2.1 Origem do uso religioso da Cannabis no Brasil Um dos elementos essenciais da prática religiosa afro-brasileira é a noção de cura, procurada através da utilização de plantas e ervas medicinais que, nesse contexto, adquirem força religiosa. O emprego dos vegetais, seja para fins ligados à saúde ou objetivos mágicos, é muito antigo no contexto brasileiro (SAAD, 2019). Conhecer a cultura religiosa africana na época da escravidão é fundamental para entender parte da história da Cannabis no Brasil, bem como sua criminalização, já que a planta era tradicionalmente utilizada em muitas cerimônias e rituais. Luísa Saad, em sua obra “Fumo de Negro” (2019) apresenta estudos de Richard Schultes, professor de botânica da Universidade de Harvard, que demonstram o hábito do ser humano de conhecer as propriedades das plantas ao mastigá-las. Por esse método descobriu-se toda a potência da Cannabis: seu óleo, efeitos de euforia, relaxamento e alucinações que levariam à associação ao plano espiritual. [...] persas, hebreus, hinduístas, budistas, muçulmanos e diversos outros povos faziam – e alguns ainda fazem – o uso sacramental da maconha. Para além das “grandes” e mais conhecidas religiões, a planta também tem seu uso associado às mais variadas práticas místicas que visam maior conhecimento do lado espiritual e conexão com o que se chama de outro mundo, ou “dimensão oculta” (SAAD, 2019, p. 112). Ao pesquisar o processo de proibição da maconha, depara-se com fontes indicando o uso da planta em candomblés e em outros ritos de origem africana. É apontado o consumo coletivo da erva em cerimônias religiosas desse gênero. Infelizmente, os estudos são cheios de conceitos deterministas e racistas da República que se formava, ignorando o uso ancestral da planta, em relação até mesmo aos ritos em questão. Os estudiosos dedicaram-se a estigmatizar a maconha e seu uso no candomblé como forma de criminalizar, ao mesmo tempo, a “raça prêta, selvagem e ignorante”, a “planta da felicidade” e as “festas religiosas dos africanos.” (SAAD, 2019). Nos estados nordestinos, onde havia maior influência africana, era mais comum a existência dos “clubes de diambistas”, nos quais predominavam “magia e misticismo” 21 nos rituais. O “ambiente do vício era preenchido pelo “côrro dos companheiros”, que entoava os “cânticos negros” com religiosidade. Em Alagoas, a maconha era utilizada nos “sambas e batuques, que são danças aprendidas dos pretos africanos” (DÓRIA, 1915). O uso coletivo da maconha ganha destaque no estudo de Francisco Iglesias. Reunindo na casa do mais velho, os fumantes reuniam-se geralmente aos sábados para celebrar suas sessões. Segundo Nina Rodrigues, a associação de ritos católicos e africanos era prática “trivial e frequente”, como a interpolação de missas e práticas do candomblé. Os negros reuniam-se para fazerem uso da maconha depois da missa, tratando-se de um ritual religioso vinculado a tradições africanas ou inventadas no Brasil pelos africanos (SAAD, 2019, p. 116). As substâncias psicotrópicas que os negros utilizavam em rituais em tempos anteriores à escravidão foram substituídos no Brasil pelo uso somente da maconha, pelo receio de repreensão pelos escravocratas. Em sua análise sobre os escravos nos anúncios dos jornais brasileiros do século XIX, Gilberto Freyre diz que não encontrou “referências diretas à diamba ou à maconha”, mas era provável que os viciados fumavam ou mascavam tabaco, misturassem-no com “uma folhinha ou duas de maconha ou diamba para aumentar o gosto do pecado”. Segundo Freyre, “os negros trouxeram a maconha para o Brasil e aqui cultivaram como planta meio mística, para ser fumada em candomblés e xangôs, pelos babalorixás e pelos seus filhos” (SAAD, 2019, p. 126). Além disso, era comum a associação do uso da maconha a perversões sexuais, prostituição e/ou homossexualidade. De forma conveniente à elite que ditava a moral, as práticas do candomblé foram relacionadas igualmente a “orgias”, através da perseguição midiática. Os obstáculos que as tradições religiosas africanas enfrentavam eram tanto da ciência quanto da religião cristã: feiticeiros, curandeiros, charlatões e exploradores da fé pública impediam a sociedade de ser saudável e disciplinada. Assim, a constitucionalidade jurídica buscou formas de separar o que era “religião” – que deveria ser protegida legalmente – do que configurava como “magia” – prática a ser combatida. Termos como “macumba”, “magia negra” e “feitiço” diziam diretamente às práticas negras e à ameaça de desordem pública (SAAD, 2019, p. 134). A figura de Exu, uma das principais entidades do panteão das religiões de origem africana, foi amplamente distorcida de uma forma que perdura até os dias de hoje, por exemplo. Ressalta-se que a presente pesquisa não pretende se aprofundar na diversidade 22 e profundidade das lendas e crenças sobre Exu nem detalhes das religiões de origem africana, sendo mencionados aqui apenas como um dos pontos onde a cultura negra no Brasil também foi atacada, ferida e transfigurada para algo maligno e digno de repulsa, carecendo de maiores estudos e transmissão de suas reais origens e significados para a sociedade como forma de reparação cultural e histórica. A pesquisadora Lisandra Cortes Pingo, através de seus estudos sobre Exu, leciona que: Na África, Exu (...) tem múltiplas definições, tendo sido cultuado em diversas nações não como orixá, mas sim como mensageiro dos deuses e responsável pela fertilidade (...). Também nas religiões afro- brasileiras Exu tem diferentes significados. (...) Dentro do entendimento judaico cristão, a partir do contato que a Europa estabeleceu com a África na época de sua invasão e colonização, Exu ganhou status de demônio, o que ajudou a lhe conferir grande poder e importância (PINGO, 2018, p. 51-52). A ideia deturpada criada em volta da figura de Exu não foi pequena. Nos primeiros contatos dos missionários europeus cristãos com o culto a Exu na África, embutiram-no duas faces. Fora identificado como: o deus greco-romano Príapo, divindade da fertilidade e; como os demônios e diabos da mitologia católica, o que levou os missionários a associarem-no a tudo que fosse maldoso, malévolo e perverso. Nos escritos de viajantes dos séculos XVIII e XIX, Exu era sempre destacado como uma entidade demoníaca e sexualizada (SAAD, 2019). Com o desenvolver das pesquisas sobre o candomblé e as demais práticas afrobrasileiras, aos poucos Exu foi deixando de ser associado ao diabo e passou a ser visto como um intermediário entre os planos do visível e do invisível, um mensageiro das orações e das oferendas dos humanos para os deuses. Exu é a criação primária da qual se transmite o sopro da vida, funcionando como canal de promoção para as condições necessárias da existência individual de cada ser vivo. São outros traços do Exu africano: divindade de orientação, abrindo e fechando caminhos; divindade trapaceira, que se diverte instaurando a confusão em assembleias – embora proteja os que lhe dão o de comer e respeitam-no; e patrono dos feiticeiros. O uso da maconha restrito a Exu deu-se em função das proibições legais e da repressão, apesar de ser uma folha que no passado foi muito utilizada (SAAD, 2019). Segundo Lisandra Pingo, a melhor compreensão de Exu poderá ser ainda uma ferramenta de combate ao racismo. Em um trecho de uma entrevista dada ao jornal da Universidade de São Paulo, em 2019, a pesquisadora considera da seguinte forma: 31 1.4.1 A Ditadura Militar e a política das drogas Para entender o contexto mais atual do tema da presente pesquisa, é necessário abordar as mudanças na legislação ocorridas no período da Ditadura Militar – entre 1964 até 1985 – uma vez que seu reflexo direto é a Constituição Federal de 1988, da qual se extrai o direito à saúde e a dignidade humana que aqui serão apresentados como pilares para a legitimação do uso medicinal da Cannabis. O Golpe Militar foi dado na madrugada do dia 1º de abril de 1964, quando o até então Presidente da República, João Belchior Marques Goulart, fora declarado foragido. Ranieri Mazilli, Presidente da Câmara dos Deputados, assumiu o governo até as eleições indiretas colocarem no poder o General Castelo Branco, em 15 de abril do mesmo ano (PRATA, 2020). Assim, com os militares oficialmente no poder, iniciava-se o período da história brasileira conhecido como Ditadura Militar, caracterizada pela repressão de direitos civis, perseguição à oposição política e ideológica, controle de mídia, assassinatos e torturas. A lembrança das atrocidades desse período é essencial para que não se repita tal rompimento do Estado Democrático de Direito e, segundo o cientista político João Roberto Martins Filho: A denúncia da tortura aparece como pedra angular sobre a qual se constrói a memória dos militantes sobre o período mais agudo da ditadura. Nesse sentido, o emprego sistemático das sevícias como método de interrogatório e intimidação, no interior de um sistema sofisticado de repressão, associava indelevelmente as Forças Armadas com esse capítulo triste da história brasileira (MARTINS FILHO, 2003, p. 06). A ideologia militar atingiu também a política de drogas e toda a legislação brasileira que tratava do assunto. Houve uma desarmonia dos três Poderes – favorecendo o Executivo – e dos mecanismos de limitação do Estado, de modo favorável às instituições militares e relativizando o princípio da legalidade, do devido processo legal e outras garantias, criando uma rigorosa “guerra às drogas”, perceptível pelas leis editadas nesse período. Sustentava-se a rigorosidade contra as substâncias que alteravam o funcionamento da mente pela associação a manifestações políticas democráticas e aos movimentos de contracultura, pois o golpe foi apoiado pelos mais diversos setores da elite brasileira da época (PRATA, 2020). Nesse contexto, fora promulgada a Convenção Única de Entorpecentes de 1961, através do Decreto 54.216/1964, que trouxe inéditas e drásticas 23 “Em minha pesquisa procurei desconstruir a imagem negativa que foi associada a este orixá”, justifica. Com base em bibliografias e num acervo de 72 canções que citam Exu, das quais sete foram selecionadas para o estudo, a pesquisadora identificou diversas situações que fizeram de Exu um ser malvisto em quase todas as camadas da sociedade brasileira. “As canções são todas de autores brasileiros que trazem diferentes representações do Exu”, descreve. Para a pesquisadora, o uso das canções que citam a “entidade” facilita a compreensão e reflexão sobre o papel do orixá e suas significações. “Creio ainda que seja uma boa ferramenta a professores no sentido de desmistificar aspectos negativos de Exu e incentivar a disseminação do conhecimento da cultura de origem africana nas escolas, o que estaria de acordo com as Leis 10.639/03 e 11.645/08”, avalia Lisandra (QUINTO, 2019). Ainda nas palavras de Lisandra: Exu é personagem controversa, talvez a mais controversa de todas as divindades do panteão iorubá. Alguns o consideram exclusivamente mau, outros o consideram capaz de atos benéficos e maléficos e outros, ainda, enfatizam seus traços de benevolência. […] As muitas faces da natureza de Exu acham-se apresentadas nos odus e em outras formas de narrativa oral iorubá: sua competência como estrategista, sua inclinação para o lúdico, sua fidelidade à palavra e à verdade, seu bom senso e ponderação, que propiciam sensatez e discernimento para julgar com justiça e sabedoria. Essas qualidades o tornam interessante e atraente para alguns e indesejável para outros (PINGO, 2018 apud QUINTO, 2019). A crescente caça à maconha e a opressão às religiões de raiz africana misturam- se e explicam-se simultaneamente. As ciências médicas perseguiam os curandeiros – por não possuírem formação e diplomas e por curarem através de plantas – e condenava o uso da maconha tanto como remédio quanto como elemento de tradição negra, e, consequentemente, incivilizada. O contexto deixava claro: os negros, suas práticas culturais, suas tradições e qualquer elemento trazido pelos africanos representavam um obstáculo para o rumo que a nação precisava seguir. As religiões africanas, assim como a “planta africana”, por suas origens degeneradas, causavam a loucura, a ignorância, a vadiagem e todos os males que seriam decisivos na formação da imagem nacional almejada pela elite dominante. 24 1.3 A CANNABIS E O PÓS-ABOLIÇÃO NO BRASIL Os fatos que levaram a Cannabis a ser criminalizada após a abolição da escravidão foram principalmente racistas e elitistas. O fim da escravatura – no papel – e a recente Proclamação da República anunciavam os rumos que a classe dominante queria dar ao país, inspirados num modelo norte-americano/europeu, no qual o imenso contingente de população negra e seus descendentes poderiam representar sintomas de um atraso indesejado. Sob influência europeia, os médicos anunciavam os cuidados e medidas a serem tomados com o objetivo de tornar o território higienizado e fértil para o surgimento de uma “nova raça” que garantiria o sucesso do país. Assim, a “degeneração” da população era combatida pela condenação de determinadas práticas (SAAD, 2019). As teorias do racismo científico (racialismo)1 e determinismo biológico2, já consolidadas na Europa, passaram a ganhar espaço no Brasil. Com o crescimento da zona urbana surgia a preocupação do crescimento proporcional das populações pobres, alcunhadas como “classes perigosas”, levando a elite a importar as teorias raciais e biodeterministas para justificar a ausência de um governo popular. O uso da maconha pela população negra – que também se confundia com a população pobre – inflamou a batalha da elite contra a popularização da planta, que ameaçava o modelo de progresso buscado. Luiza Saad, em sua obra “Fumo de Negro – A Criminalização da Maconha no Pós-Abolição” explicita e sintetiza o contexto geral da época da seguinte forma: Foi nesse ambiente que muitos elementos da cultura brasileira de raiz africana passaram a ser identificados como perigosos e criminalizados. O costume de se consumir a maconha, inclusive. [...]. A repetição exaustiva dos termos “progresso”, “civilização” e “desenvolvimento” explicavam os anseios não só dos profissionais de medicina, mas da maioria da população ‘pensante’ brasileira. Para que tais objetivos fossem alcançados, era fundamental que o terreno fosse limpo de tudo que representasse o atraso, a desmoralização, o regresso e a barbárie (SAAD, 2019, p. 70). 1 Concepção de atribuir à humanidade diferentes espécies com respectivas características distintas. As raças, assim, já não seriam simples variedades da espécie humana. (KERN, 2016, p, 36). 2 Pensamento derivado das ideias de Charles Darwin sobre a seleção natural e evolução das espécies, utilizado para sustentar argumentos da existência de uma hierarquia natural entre os seres humanos. Assim, superioridade e avanço das “nações desenvolvidas” (Europa, Estados Unidos da América) justificaria sua imposição sobre as demais “raças inferiores” do planeta. (KERN, 2016, p. 42-43). 25 A pobreza afligia principalmente a população negra, a qual também sofria a marginalização, o racismo e a exploração do trabalho pela elite que não assumia sua responsabilidade em gerar e manter essa situação. Naturalmente, nesse contexto de pós- abolição, a grande maioria de indivíduos das classes trabalhadoras era composta de negros, ex-escravos ou descendentes. Entretanto, a degradação social era vista somente de cima para baixo, já que a elite abusava dos “vícios elegantes”. A cocaína, o éter e derivados do ópio eram trazidos por “moços ricos, vindos de países estrangeiros” e introduzida nos meios elegantes, onde era consumida por “imitação, curiosidade e por ser chic”. O uso de substâncias como álcool e tabaco pela parcela pobre da sociedade era enxergado pela elite como uma prática por imitação de hábitos: Usado a princípio pelas classes altas na Europa, o tabaco havia adentrado em outras parcelas da população, uma vez que “a curiosidade existe em alto grau no povo”, que “não tinha uma posição social capaz de dar ao hábito de fumar uma certa elegância”. Era comum a visão médica de que os “inferiores” adquiram certas práticas por imitação de seus “superiores raciais”. Seria o caso dos negros. Naquele contexto, o negro foi visto como indivíduo irresponsável, infantil e imoral, propenso à imitação e incapaz de discernimento (...). Assim como o álcool, o tabaco teria desastrosa influência sobre a mentalidade, entorpecendo a inteligência, prejudicando a memória e pervertendo o senso moral. (SAAD, 2019, p. 73). Não se pode esquecer que as camadas marginalizadas da sociedade também possuem bens jurídicos passíveis de lesão e apropriação delitiva (GIOLO JÚNIOR; SILVA, 2011), fato refletido nas medidas políticas e sociais do período pós-abolição. Dentre as formas de combater os vícios das classes baixas, a elite tomou atitudes como aumento de preço dos produtos com o fim de segregação e modificação da legislação penal vigente. Através da elite médica, foi restringido o uso medicinal de certas substâncias, dentre as quais, a Cannabis (SAAD, 2019). O pioneiro dos estudos da Cannabis no Brasil foi o professor, médico e político José Rodrigues da Costa Dória. Em dezembro de 1915, Dória apresentou no 2º Congresso Científico Pan-Americano, realizado em Washington (EUA) sua obra denominada “Fumadores de maconha: efeitos e males do vício”, conhecida como a primeira análise brasileira sobre a maconha. Dória participou do evento como representante de cinco instituições brasileiras: o Governo do Estado da Bahia, as Faculdades de Direito e Medicina da Bahia, o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e a Sociedade de Medicina Legal e Psiquiátrica da Bahia (SOUZA, 2015). Apesar de sua contribuição para os estudos 26 da Cannabis no futuro, ele foi um dos responsáveis pela criminalização da planta. Suas críticas ao Código Penal de 1890 atingiam o crime de envenenamento, ao qual Dória fazia a distinção de remédios e venenos através da proporção e dosagem. Em outras palavras, uma substância poderia agir das duas formas, dependendo apenas da quantidade utilizada. Dentre as substâncias elencadas estavam o álcool, o éter e a maconha. Também inserido na esfera de lei, Dória questionou o grau de imputabilidade e responsabilidade dos crimes cometidos sob o uso da erva. Ao citar o artigo 27 do Código penal, concluiu que “aos crimes praticados durante a embriaguez pela diamba se devem aplicar as disposições penais relativas à embriaguez alcoólica em um estado de loucura ou insônia, que o privam da consciência e da liberdade necessárias à responsabilidade.” (SAAD, 2019, p. 97). Dória mostrava-se contraditório em alguns pontos, “de modo a estabelecer várias relações de causa e efeito que só serviram para evidenciar o caráter racista e pouco científico do seu trabalho” (SAAD, 2019). Primeiramente, em seus estudos de campo, não trouxe dados precisos e fontes para embasar informações, o que leva à conclusão de que o autor anotava suas suposições e observações, apenas. Por exemplo, o caso por ele apresentado da mulher que teria utilizado a planta: “(...) uma mulher embriagada pela maconha de tal forma excitada que, no meio da rua, não mostrando o menor respeito ao pudor e fazendo exibições, solicitava os transeuntes ao comércio intersexual.” (DÓRIA, 1915, p.127-128). O documento de Dória carecia de fontes e metodologias sólidas, fato que tornou seu texto pouco científico, contraditório por vezes e demasiado subjetivo. Em um trecho do livro, Dória detalhou os efeitos causados nos fumadores após o consumo da maconha: As ideias tornam-se mais claras e passam com rapidez diante do espírito; os embriagados falam demasiadamente, dão estrepitosas gargalhadas; agitam-se, pulam, caminham; mostram-se mais amáveis, com expressões fraternais; veem objetos fantásticos, ou de acordo com as ideias predominantes no indivíduo. A esse estado, seguia-se às vezes sono calmo, visitado por sonhos deliciosos.” (DÓRIA, 1915, p.05). Os efeitos descritos não parecem apresentar qualquer ameaça à ordem social ou integridade física de outrem, sendo apenas uma sequência de risadas, fome e sono. Apesar disso, Dória insistiu em explicitar os fumadores como eufóricos ou preguiçosos, ofuscando informações como a consciência e controle do que eles faziam e o que consumiam, além de suas formas de minimizar os danos provocados pela substância, 27 como adotar o uso de um aparelho para resfriar a fumaça que os incomodava. Em outro trecho de sua obra, o autor afirmava que os usuários morrem após pouco tempo de consumo constante, mostrando-se favorável à proibição da planta. A questão da proibição é ponto contraditório na obra de Dória. Em 1907, o autor criticou a proibição de álcool nos Estados Unidos, apontando suas falhas: É problemático o resultado de se querer suprimir a embriaguez pela prohibição. Esse methodo faz apenas com que o bebedor oculte seu vício (...) não se pode prohibi o commercio de alcool ou de bebidas fermentadas, mas póde-se impedir de ser ébrio nas ruas.” (DÓRIA, 1907, p. 12). Poucos anos depois, em 1915, na sua já citada obra “Fumadores de maconha”, Dória opinava que a proibição da Cannabis iria reprimir sua disseminação: “A proibição do comércio da planta, preparada para ser fumada, poderá restringir a sua disseminação progressiva.” (DÓRIA, 1915, p.12). Questiona-se sobre o que faria a proibição da maconha possuir eficácia e a do álcool não, sabendo, indiretamente, que a proibição visava incidir nas pessoas que consumiam maconha, e não na planta em si. Corrobora o argumento acima um trecho do livro de Dória: A raça preta, selvagem e ignorante, resistente, mas intemperante, se em determinadas circunstâncias prestou grandes serviços aos brancos, seus irmãos mais adiantados em civilização, dando-lhes, pelo seu trabalho corporal, fortuna e comodidades, estragando o robusto organismo no vício de fumar a erva maravilhosa, que, nos êxtases fantásticos, lhes faria rever talvez as areias ardentes e os desertos sem fim da sua adorada e saudosa pátria, inoculou também o mal nos que o afastaram da terra querida, lhe roubaram a liberdade preciosa e lhe sugaram a seiva reconstrutiva (DÓRIA, 1915, p. 13). Além do reconhecimento do roubo da liberdade, o ato da escravidão foi justificado pelas afirmações de os brancos terem agido “com a boa intenção de civilizar a raça negra”, descrita como selvagem e ignorante. Não havia dúvidas de que “o mal” da maconha foi trazido e implantado pelos escravos – “a raça subjugada" – como uma vingança por terem sua liberdade roubada. A influência negativa dos estudos de Dória podia ser notada desde o início do século XX, identificada através de fortes reações contra as tentativas do negro se afirmar enquanto sujeito ativo na sociedade e na fruição de seus valores, como descrito por Saad: 28 A sugestão era que proibisse “esses batuques e candomblés que, em grande quantidade, alastram as ruas nesses dias, produzindo essa enorme barulhada (...) incompatível com o nosso estado de civilização. Os grupos africanizados (...) longe de contribuírem para o brilhantismo das festas carnavalescas, deprimem o nome da Bahia”. Eram necessárias medidas preventivas da polícia para que “nossas ruas não apresentem o aspecto desses terreiros onde o fetichismo impera, com o seu cortejo ogans e sua orquestra de canzás e pandeiros.” (SAAD, 2019, p. 134). As ideias da obra “Fumadores de cachimbo” de Dória foram uma base para a criminalização da Cannabis e seu estigma que prevalece até os dias de hoje, além de terem impulsionado e enraizado mais ideais racistas na sociedade brasileira. Nesse contexto, a elite preocupou-se em tomar medidas para suprimir mais ainda a cultura dos negros, inclusive por meio de restrições da Cannabis. 1.4 EVOLUÇÃO DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA SOBRE A CANNABIS As penalidades contra a posse de uma droga não devem ser mais prejudiciais a um indivíduo do que o uso da droga em si. – Jimmy Carter A adesão brasileira ao contexto institucionalizado do uso das drogas iniciou-se com a Primeira Convenção Internacional do Ópio, realizada em Haia em 1912, cuja declaração limitou a produção de ópio, morfina e cocaína, substâncias de maior mercado. Fixou-se a necessidade da cooperação internacional no controle dos narcóticos, autorizando, tão somente, seu uso para fins medicinais. Sob este contexto, no Brasil o consumo já se dava à sombra da sociedade, proliferando-se entre todas as classes, raças e imigrantes, o que incomodava o governo. Posteriormente, em 1925 sob o âmbito da Liga das Nações, é aprovada a Segunda Convenção Internacional do Ópio, em Genebra. Considerado o primeiro texto internacional a ter como cerne o controle penal das drogas, criou-se o Permanent Central Opium Board, a partir do qual os Estados membros deveriam remeter, anualmente, estatísticas sobre a produção, o consumo e a fabricação de drogas. Analisando as três primeiras décadas do século XX, percebe-se que o uso de drogas passou de uma problemática sanitária a uma epidemia, com desdobramentos criminais, uma vez que a utilização de tais substâncias tornou-se hábito generalizado (GUSMÃO, 2015, p. 49-50). 29 A maconha foi encaixada no rol das drogas criminalizadas no Brasil através do Decreto 20.930 de janeiro de 1932, responsável por coibir “o emprego e o comércio das substâncias tóxicas entorpecentes”, detalhando a proibição para “fabricar, importar, exportar, reexportar, vender, tocar, ceder, expor ou ter” maconha, e para seu eventual uso médico seria “indispensável licença da autoridade sanitária competente” (BRASIL, 1932). A venda estaria restrita a farmácias devidamente autorizadas e as receitas aos médicos formalmente diplomados, restando uma brecha ainda para o consumo da planta, pela ausência de algum verbo tipificando seu uso, como “consumir”, “usar” ou “fumar”, por exemplo. Em 1936, foi assinada, também no âmbito da Liga das Nações, a 2ª Convenção de Genebra. Promulgada no Brasil pelo Decreto nº 2.994, de 17 de agosto de 1938. O artigo II desta Convenção determinava que seus signatários deveriam se comprometer a editar legislações para “punir severamente, e, sobretudo com pena de prisão ou outras penas privativas de liberdade” a produção, o comércio e distribuição de substâncias proibidas, bem como a associação para prática de tais atos (BRASIL, 1938). Os Estados Unidos propuseram também a criminalização do uso pessoal de drogas com objetivos não medicinais, o que foi rejeitado ao longo das negociações (LIPPI, 2013). A 2ª Convenção de Genebra foi assinada por 13 (treze) países e entrou em vigor apenas em 1939, durante a Segunda Guerra Mundial, momento em que o controle das drogas não era uma prioridade para a maioria dos países, principalmente os europeus. De todo modo, esse foi o primeiro tratado de controle de drogas a estabelecer aos seus signatários um mandato criminalizante. Também previu “mecanismos de cooperação jurídica internacional em matéria penal, regulamentando a extradição de pessoas que cometam qualquer dos atos previstos em seu art. II” e “também de cartas rogatórias em processos que tenham como objeto qualquer dessas condutas” (LIPPI, 2013). O pesquisador de Cannabis medicinal Elisaldo Carlini relaciona as duas Convenções mencionadas como o momento de estigmatização da planta: Até o início do século XX a maconha era considerada um excelente medicamento. Ela era importada da França na forma de cigarros que se chamavam Grimaldi. Depois, dos anos 1930 em diante, a maconha virou uma droga maldita (CARLINI, 2010, p. 10). O Código Penal de 1942, em seu artigo 281, apresentou a seguinte redação acerca das substâncias entorpecentes: “importar ou exportar, vender ou expor à venda, fornecer, 30 ainda que a título gratuito, transportar, trazer consigo, ter em depósito, guardar, ministrar ou de qualquer maneira entregar ao consumo substância entorpecente” (BRASIL, 1942). O cultivo, que não constava no texto do artigo 281 do Código Penal de 1942, foi tipificado pelo Decreto-lei 4.720/1942, que fixou normas gerais para o plantio, extração, transformação e purificação de plantas com princípios ativo-terapêuticos (BRASIL, 1942). Em 1988, a Convenção das Nações Unidas sobre o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e de Substâncias Psicotrópicas é aprovada. Por meio da mesma, mecanismos de repressão contra o tráfico de drogas e contra a posse para uso pessoal são institucionalizados via punição, confisco, extradição, assistência jurídica recíproca e de cooperação internacional. Tal Convenção também fixa a erradicação da cultura de qualquer planta da qual possam ser extraídos entorpecentes (GARBACCIO, BIZAWU, 2015, p. 11). A mudança mais brusca na legislação do Brasil ocorreu em 2002. A Lei nº 10.409 faria uma diferença entre “usuário” e “traficante”, além de possibilitar ao Estado o uso de novas tecnologias para apuração dos fatos. Tal texto sofreu inúmeros vetos do então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, permanecendo em vigor a Lei nº 6.368, de 1976, e a Lei nº 10.409, de 2002 (GARBACCIO, BIZAWU, 2015). Por fim, a lei que vigora até o presente é a Lei nº 11. 343 de 23 de agosto de 2006, publicada no Diário Oficial da União em 28 de agosto de 2006. O artigo 75 revoga completamente a legislação antidrogas anterior. Tal lei implantou o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD), dando as medidas preventivas do uso indevido, atenção e ressocialização de usuários e dependentes, estabelecendo normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico, bem como definindo os respectivos crimes (GARBACCIO, BIZAWU, 2015). A Nova Lei de Drogas, como ficou conhecida, foi e ainda é alvo de críticas e elogios, seja pela definição de tipos penais mais severos para o crime de tráfico, seja pela inovação no tratamento jurídico do porte de entorpecentes para consumo próprio, isentando o usuário da pena privativa de liberdade; ou ainda, por lacunas legislativas, como a ausência de critérios objetivos para a diferenciação entre a figura do usuário e do traficante. 32 medidas antidrogas à época, além de iniciar a substituição do modelo sanitário pelo modelo bélico de política criminal para substâncias entorpecentes. No mesmo ano, foi editada ainda a Lei nº 4.451/1964, que incluía no texto do artigo 281 do Código Penal a tipificação do plantio de alucinógenos (PRATA, 2020). Seguindo um rumo contrário à inquisição instaurada pelo governo brasileiro contra os tóxicos, em 1965 foi publicado pela ONU o Bulletin on Narcotics3, apresentando um relatório elaborado pelo professor Décio Parreiras (membro do Conselho Central Permanente do Ópio e professor da Faculdade Fluminense de Medicina), o qual demonstrava a incidência e a natureza da dependência de drogas no Brasil, a partir de um censo pela Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes em 1962. O resultado foi a constatação de que a população brasileira somava em grande número os dependentes de álcool em relação aos dependentes da maconha, conforme trecho do relatório: Com uma amostragem de 22.198 brasileiros, o relatório aponta que a maior incidência de dependência de drogas no Brasil não se referia a nenhuma substância ilícita, mas ao álcool, uma vez que, dos 9.992 dependentes identificados, 9.385 eram alcoólatras, o que representa 94% do total e leva o próprio autor a afirmar que “o problema realmente sério no Brasil é o alcoolismo”. Por outro lado, apenas 1,1% foi considerado dependente de maconha, 0,04% de cocaína e 0,01% de ópio, o que reforça a tese de que o vício nessas substâncias foi muito mais um problema “importado” do que um real estorvo na sociedade brasileira (ONU, 1965 apud PRATA, 2020, p. 79). Mesmo com as informações importantes trazidas pelo relatório, suas conclusões são baseadas em ideias já superadas de determinismo geográfico, positivismo científico ou mesmo sem nenhum fundamento. Para o professor Décio Parreiras, a utilização das drogas relacionava-se com o trabalho braçal da população pobre, que consomem álcool e maconha para suportar o calor e o peso do labor, ignorando o fato do consumo por qualquer outra razão por qualquer outro tipo de pessoa, independente da classe social. Há equívoco também no relatório pelo autor atribuir à maconha efeito estimulante semelhante ao do álcool, uma vez que apenas este afeta o SNC com efeito de caráter depressivo (PRATA, 2020). Elisaldo Carlini explica o caráter psicotrópico do álcool: O álcool é uma droga psicotrópica. Produz efeito no sistema nervoso central e gera dependência. Uma droga psicoativa é aquela que age no 3 Boletim sobre Narcotráfico. 33 sistema nervoso, mas não gera dependência porque não tem propriedades reforçadoras. Já a droga psicotrópica age no cérebro, produz seu efeito – analgesia, sono, euforia, alegria, relaxamento – e ao mesmo tempo reforça essas sensações no indivíduo (CARLINI, 2010, p. 12). Os dados apresentados pelo Bulletin on Narcotics não impediram, entretanto, o governo militar de editar o Decreto-lei 159/1967, equiparando as drogas já proibidas com qualquer substância capaz de causar dependência física ou psíquica: A alteração mais significativa, contudo, ocorreu com o Decreto-lei 385/1968, editado apenas treze dias após o AI-5 que inclui, entre os verbos incriminadores, o ato de trazer consigo para uso próprio, substância entorpecente ou que gere dependência bem como matéria prima ou plantas destinadas à fabricação destas substâncias, de forma a estabelecer a mesma sanção para o traficante e o usuário, o que rompia definitivamente com o discurso oficial baseado na ideologia de diferenciação (CARVALHO, 2017, p. 56 apud PRATA, 2020, p. 81). Dessa maneira, o uso de drogas, além de criminalizado, foi equiparado ao tráfico, evidenciando mais uma vez a mudança da visão médico-sanitária dessa mazela social. Em 1971, fora promulgada a Lei nº 5.726/71, para “adequar o sistema repressivo brasileiro de drogas às orientações internacionais”. A lei tinha um caráter rígido e intolerante, determinando logo no primeiro artigo que era dever de toda pessoa – física e jurídica – colaborar no combate ao tráfico e uso de entorpecentes. Também estabelecia que os diretores de estabelecimentos de ensino deveriam adotar todas as medidas necessárias à prevenção do tráfico e uso de drogas, inclusive ficando obrigados a comunicar às autoridades os casos de uso e tráfico em âmbito escolar (BRASIL, 1971). Após cinco anos, os militares legislaram novamente sobre as drogas, promulgando a Lei nº 6.368/1976, por meio da qual o discurso jurídico-político belicista toma a dimensão de modelo oficial repressivo brasileiro. O novo texto legal manteve a distinção entre consumidor e traficante, mas colocou no último a figura de inimigo interno, justificando assim a rigidez da dosagem e da execução da pena a ele cominada. Houve também maiores distinções entre a punição do traficante e do usuário, cominando, ao primeiro, pena de 3 a 15 anos de reclusão mais multa e, ao segundo, detenção de 6 meses a 2 anos acrescida de multa. Passou-se a exigir a elaboração de laudo de exame toxicológico e, em alguns aspectos, de dependência, que deveriam ser juntados ao processo até a realização da audiência de instrução e julgamento (BRASIL, 1976). Carvalho, citado por Prata, afirma que: 34 A Lei 6.368/76 instaura, no Brasil, modelo inédito de controle, acompanhando as orientações político-criminais dos países centrais nos tratados e convenções internacionais. A escassez do discurso médico- jurídico no que concernia à densificação do processo de repressão permite a elaboração de sistema preponderantemente jurídico, baseado na severa punição que, não obstante, manter resquício do antigo sistema, cria condições para o nascimento do discurso jurídico-político (CARVALHO, 2017, p. 59 apud PRATA, 2020, p. 84). A Lei nº 6.368/1976 foi o texto legal sobre drogas com maior tempo de vigência no país, enraizando assim conceitos e comportamentos que seriam revistos apenas com sua revogação em 2006, com a edição da Lei 11.343/2006. 1.4.2 A redemocratização e a política de drogas atual O General João Baptista Figueiredo (1979-1985) foi o quinto e último presidente do período da ditadura militar. Figueiredo assumiu o governo em 15 de março de 1979 e já em seu discurso de posse disse ser seu propósito fazer do país uma democracia. Durante seu governo duas coisas foram importantes para a chamada “abertura política”: a Lei da Anistia e o fim do bipartidarismo. As críticas eram em decorrência do teor do que se falava a lei, a anistia seria concedida para os presos e perseguidos políticos, mas também aos responsáveis por manter o regime militar em vigor, ou seja, aos militares que torturaram e mataram em nome do regime nos porões da ditadura (GUIARO, 2019). Em 1985, ocorreu a eleição da chapa encabeçada pelo civil Tancredo Neves e José Sarney como vice. Sarney assumiu devido à morte de Neves antes da posse, dando início ao processo de redemocratização. A Constituição Federal promulgada em 1988 e ainda em vigência no Brasil, é conhecida, dentre diversos nomes, por “Constituição Cidadã”, devido ao extenso rol de direitos e garantias fundamentais nela codificada. Nessa mesma lista, o tráfico de drogas está definido como crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia, equiparado ao terrorismo e tortura. Ainda que a Constituição Federal de 1988 seja avançada em termos de tutela dos direitos fundamentais e na questão de humanizar o cárcere, o caráter de rotulação de “delinquência” do réu penal é visto até os dias de hoje, sendo o cárcere um estigma jurídico e social para o preso (HENRIQUE JÚNIOR; MENDES, 2015). Em 1999, foi aprovado no Congresso Nacional a Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, norteando medidas rígidas contra o 35 narcotráfico. Daí derivou-se a criação da Secretaria Nacional Antidrogas – atualmente conhecida por Secretaria Nacional de Política de Drogas, vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública. Em 2002 surge o Decreto 4.345/2002, instituindo a Política Nacional Antidrogas (PNAD), considerada a primeira política oficial sobre drogas no Brasil ao reconhecer “a estratégia de Redução de Danos sociais e à saúde como intervenção preventiva, que deveria ser incluída entre as medidas a serem adotadas” (BRASIL, 2002). Apesar da PNAD inovar muito pelo reconhecimento da Redução de Danos como medida válida, ainda apresentava características enraizadas nas políticas de drogas conservadoras, como o texto do decreto que traz como pressuposto “a busca incessante pela construção de uma sociedade livre do uso de drogas ilícitas” (BRASIL, 2002). Esse idealismo beira ao utópico, já que o uso das drogas é contemporâneo ao surgimento da humanidade e carrega inúmeras justificativas. O fracasso da Lei nº 10.409/2002 resultou na apresentação do projeto de Lei nº 7.134/2002, aprovado quatro anos depois, transformando-se na Lei nº 11.343/06. A Lei nº 11.343/06 mantém a exceção quanto ao plantio, cultivo e à colheita de vegetais a partir dos quais se produzem drogas ilícitas, mas inova ao trazer a possibilidade de uso para fins ritualísticos e religiosos. Outra inovação observada é a despenalização do porte de drogas para o uso pessoal, medida que se distancia do proibicionismo rígido e constante até então observado. Nesse sentido: O fato da Lei 11.343/06 ter despenalizado a conduta do porte para uso pessoal de drogas por si só é um fato a ser comemorado, tendo em vista a política legislativa penal adotada no país. Entretanto é frustrante notar que o legislador poderia ter ido muito além, onde apenas deu um passo, criando soluções para o viciado que pratica pequenos delitos para suprir o vício (GIOLO JÚNIOR; SILVA, 2011, p. 11). Sobre as penalidades, o usuário passou a receber tratamento diferenciado em relação ao traficante, pois a ele são cominadas as penas de advertência, prestação de serviços comunitários e medida socioeducativa, não mais sendo objeto de prisão. Ao produtor e ao traficante, prevê-se pena de reclusão de até 15 (quinze) anos e pagamento de multa (BRASIL, 2006). O texto integral da Lei 11.343/06 apresenta 18 (dezoito) verbos incriminadores e também há punição prevista com detenção para quem induz, instiga ou auxilia alguém a usar droga (de um a três anos mais multa) e quem oferece droga sem intenção de lucro (seis meses a um ano mais multa) (BRASIL, 2006). As novas 36 medidas estabelecidas por esse diploma legal refletiram claramente na população carcerária: Aponta-se que, quando de sua promulgação, acreditava-se que a Lei 11.343/06 trazia consigo um grande potencial para a diminuição da população carcerária que cumpria pena por crimes relacionados às drogas, sobretudo devido ao fato de a nova norma haver deixado de impor a prisão para meros usuários. Todavia, como explica Oliveira [2016, p. 57], a lei antidrogas de 2006 aumenta a pena mínima para o crime de tráfico de três para cinco anos [...]. Essa diferenciação, a propósito, passa a ser determinada pelo juiz, de acordo com a natureza e a quantidade de substância apreendida, com o local e as condições da apreensão, e segundo as circunstâncias sociais, pessoais e a conduta e antecedentes do agente, o que, é claro, dá margem a toda sorte de arbitrariedade (PRATA, 2020, p. 90). Toda a remodelagem na política de drogas do Brasil causou uma verdadeira revolução no sistema prisional de forma negativa, agravando mais ainda as taxas de encarceramento. Nota-se também que a arbitrariedade instituída reflete o racismo e desigualdade social do Brasil, pois, não se observa as mesmas represálias entre um negro pobre da periferia flagrado com um cigarro de maconha e um branco de classe média flagrado da mesma forma em um bairro mais nobre (PRATA, 2020). Mesmo com a atribuição pela lei ao juiz à competência para determinar se a droga apreendida era destinada ao uso pessoal, o primeiro exame de dolo é realizado pela polícia que surpreende o agente na posse da substância ilícita. Um caso simbólico para ilustrar o acima explanado é o de Geraldo Antônio Baptista, fundador da primeira igreja rastafári no Brasil, o qual foi condenado por tráfico de drogas e associação para o tráfico de drogas, nos termos dos artigos 33, 35 e 40 da atual lei de tóxicos, tendo expropriada a chácara onde realizava seus cultos. Geraldo cultivava Cannabis na chácara onde realizava seus ritos, distribuindo-a aos seus seguidores, e alegou em sua defesa seu direito fundamental à liberdade de religião e crença, previsto no artigo 5º VI, da Constituição Federal de 1988. O Superior Tribunal de Justiça (STJ), em análise de agravo em recurso especial, decidiu pelo confisco da propriedade, alegando que que a finalidade daquele local era o uso de drogas, sem apresentar os objetivos e metas da igreja. Com isso, decidiram que o local era destinado à prática de fornecimento de drogas e operou-se a perda do imóvel para o fim determinado (BRASIL, 2016). O rigor dos magistrados evidencia uma construção sociojurídica sobre 37 a temática das drogas, ao decidirem que as ações de Geraldo eram única e exclusivamente o uso e distribuição de maconha. A legislação de drogas evidencia o enraizamento e concepções moldados desde a Convenção do Ópio de 1912 e o caminho por ela trilhado, cujas inovações legais destacam somente a punição dos agentes, com penas de prisão em regime fechado cada vez maiores, confisco de bens, aumento dos verbos de tipificação e previsão de agravantes. Dessa forma, dois usuários, sem pretensão de lucro e nenhum potencial ofensivo sentem todo o peso da “guerra às drogas” de séculos construída pela sociedade. Nas palavras de Pedrinha: [...] a atual legislação antidrogas [...] é acusada de manter vivo o espírito inquisitorial da Idade Média, em que as cruzadas genocidas se transformaram na própria “guerra às drogas”, o traficante é demonizado, as substâncias são apreendidas e incineradas como nas fogueiras que queimavam livros e os bens são expropriados, o que remete aos confiscos realizados pela Inquisição (2008, p.5499). Dessa forma, o sistema penal brasileiro está superlotando as cadeias de pessoas por posse de drogas em quantidades ínfimas, agravando a exclusão racial e econômica pelo perfil predominante dos encarcerados ser jovem, classe baixa, desempregado, morador de periferia, negro ou pardo (PEDRINHA, 2008). A política de drogas no Brasil mostra-se como instrumento atenuador da desigualdade racial e entrave do sistema penitenciário, distante de ser uma ferramenta que trata esse problema como uma questão sanitária. No ano de 2019, o Poder Executivo demonstrou seu posicionamento sobre o tema com a promulgação do Decreto 9.761, com objetivo de fixação da Política Nacional sobre Drogas. Sob a argumentação de suposta vontade “popular”, o conteúdo do Decreto mostra a insistência em utilizar a repressão penal no tratamento da questão das drogas, estabelecendo que o plantio, o cultivo, a importação e a exportação, não autorizados pela União, de plantas de drogas ilícitas, tais como a Cannabis, não serão admitidos no território nacional, além de coibir o plantio e cultivo não autorizado pela União de plantas de drogas ilícitas, como a Cannabis e suas variações, por exemplo (BRASIL, 2019). Trata-se de evidente retrocesso social, uma vez que suas características proibicionistas servem como ferramenta de criminalização social de certas camadas da população brasileira. Nesse cenário é que se coleciona histórias e formas de uma política criminal 38 repressora, distante dos pressupostos de prevenção idealística presente na atual Constituição Federal (HENRIQUE JÚNIOR; MENDES, 2015). O Decreto 9.761/2019 não trata de forma específica ao uso da Cananbis para fins medicinais, servindo como termômetro para a necessária revisão de todo o estigma sobre a planta – tanto pela sociedade quanto pelo Estado e governo – assim como recentemente fizeram nações vizinhas e em todo o globo, abrindo margem para exploração de toda sua potencialidade para o desentrave das questões abordadas no sistema penal, impulso econômico e, principalmente, sua ampla e efetiva utilização medicinal. A discussão sobre o uso medicinal da Cannabis possui ligação direta com a efetividade dos direitos humanos e sua implementação pela saúde enquanto direito fundamental. A utilização de forma recreativa, apesar de também mesclar-se com o tema, não faz parte do objeto da presente pesquisa. 1.4.3 Resoluções do Conselho Federal de Medicina sobre Cannabis medicinal No Brasil, normas infralegais4 determinam exceções ao uso, baseadas no entendimento de que componentes extraídos da Cannabis sativa (como o canabidiol – CBD – e o tetrahidrocanabidiol – THC) podem ser utilizados para terapias de pacientes com dores crônicas, câncer, epilepsia, fibromialgia e outras enfermidades. Segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM), é aprovado o uso do canabidiol como forma de tratamento de epilepsias em criança e do adolescente cujo tratamento convencional não demonstra resultados, nos termos da Resolução CFM nº 2.113/2014: Art. 1º - Regulamentar o uso compassivo do canabidiol como terapêutica médica, exclusiva para o tratamento de epilepsias na infância e adolescência refratárias às terapias convencionais; Art. 2° - Restringir a prescrição compassiva do canabidiol às especialidades de neurologia e suas áreas de atuação, neurocirurgia e psiquiatria; Parágrafo único. Os médicos prescritores do uso compassivo de canabidiol deverão ser previamente cadastrados no CRM/CFM especialmente para este fim (CFM, 2014). 4 “Normas infralegais” são espécies secundárias de norma cuja função é regulamentar leis sobre determinados assuntos, estando sujeitas às normas constitucionais e às normas primárias (leis complementares e ordinárias, medidas provisórias e decretos legislativos) São produzidas por meio de instruções e decretos normativos, portarias, resoluções de caráter administrativo etc. (BARROS, 2010). No contexto de Cannabis medicinal, as normas infralegais aparecem nas resoluções da ANVISA e do CFM. 39 A mesma Resolução, entretanto, veda de forma expressa a prescrição da planta in natura de forma terapêutica e seus derivados além do canabidiol, conforme o artigo 4º: Art. 4º - É vedado ao médico a prescrição da Cannabis, in natura, para uso medicinal, bem como quaisquer outros derivados que não o canabidiol; Parágrafo único. O grau de pureza do canabidiol e sua forma de apresentação devem seguir as determinações da Anvisa (CFM, 2014). A Resolução de 2014 do CFM perdeu sua validade em razão da edição da polêmica Resolução CFM nº 2.324 de 11 de outubro de 2022, que apresenta características restritivas, retrógradas e até mesmo inconstitucionais. A nova Resolução revoga a de 2014, aprovando o uso do canabidiol exclusivamente para o tratamento de epilepsias da criança e do adolescente refratárias às terapias convencionais na Síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut e no Complexo de Esclerose Tuberosa, segundo a redação de seu artigo 1º (CFM, 2022). O parágrafo único do artigo 1º determina ao paciente ou seu representante legal a assinatura do “Termo de Consentimento Livre e Esclarecido” (TCLE), dando ciência sobre os riscos e benefícios potenciais do tratamento (CFM, 2022). Em outras palavras, a Resolução restringiu o uso do canabidiol à apenas duas situações, proibindo expressamente nos artigos seguintes sua prescrição médica em demais situações: Art. 2º É vedado ao médico a prescrição da Cannabis in natura para uso medicinal, bem como quaisquer outros derivados que não o canabidiol. Parágrafo único. O grau de pureza do canabidiol e sua forma de apresentação devem seguir as determinações da Anvisa. Art. 3º É vedado ao médico: I - a prescrição de canabidiol para indicação terapêutica diversa da prevista nesta Resolução, salvo em estudos clínicos autorizados pelo Sistema CEP/CONEP. II - ministrar palestras e cursos sobre uso do canabidiol e/ou produtos derivados de Cannabis fora do ambiente científico, bem como fazer divulgação publicitária (ANVISA, 2022). O inciso II do artigo 3º da Resolução chama atenção por claramente lesionar os direitos constitucionais do acesso à informação, do livre exercício da profissão médica e da liberdade de expressão (artigo 5º, IV, XIII e XIV, CF/88). Além disso, conforme o disposto no Capítulo I do Código de Ética Médica, a autonomia médica é violada quando 40 a Resolução limita a atividade do médico na escolha do melhor tratamento para seu paciente: VII - O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente; VIII – O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho (BRASIL, 2009). Na relação linear entre médico-paciente, cabe ao profissional, após detalhado diagnóstico, apresentar as opções mais adequadas para o tratamento com a avaliação de eventual risco e pretendido benefício e, ao paciente, no âmbito da sua autonomia da vontade, acatar ou não a proposta ofertada (QUINTINO, 2022). Os artigos 4º e 5º da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos tratam do benefício e autonomia na relação entre o médico e o paciente: Artigo 4 – Benefício e Dano Os benefícios diretos e indiretos a pacientes, sujeitos de pesquisa e outros indivíduos afetados devem ser maximizados e qualquer dano possível a tais indivíduos deve ser minimizado, quando se trate da aplicação e do avanço do conhecimento científico, das práticas médicas e tecnologias associadas. Artigo 5 – Autonomia e Responsabilidade Individual Deve ser respeitada a autonomia dos indivíduos para tomar decisões, quando possam ser responsáveis por essas decisões e respeitem a autonomia dos demais. Devem ser tomadas medidas especiais para proteger direitos e interesses dos indivíduos não capazes de exercer autonomia (UNESCO, 2005). Eudes Quintino escreve sobre a relação dessa problemática com o princípio bioético da beneficência: Tem total aplicação na discussão a aplicação do princípio da beneficência da Bioética, que visa envidar o melhor esforço possível para buscar soluções que sejam adequadas, convenientes e proporcionais para o paciente, conferindo a ele um considerável ganho à sua saúde, com o mínimo risco possível. Quer dizer, extremar os possíveis benefícios e minimizar eventuais danos. Desta forma, abrindo-se uma linha de pesquisa envolvendo o canabidiol e que tenha 41 já atingido um patamar de segurança e tolerabilidade, recomenda-se que sejam exploradas todas as possibilidades de se buscar um resultado que seja compatível com os objetivos propostos (QUINTINO, 2022, online). Devido à manifestação da comunidade médico-científica e da sociedade em geral contra seu caráter inconstitucional, a Resolução CFM nº 2.324/22 foi suspensa temporariamente após 13 dias de sua publicação, através da Resolução CFM nº 2.326/22, que abriu o tema para consulta pública: [...] CONSIDERANDO a abertura de nova consulta pública acerca da Resolução CFM nº 2.324, de 14 de outubro de 2022, em atenção às solicitações para revisão da Resolução pelas entidades médicas e pela sociedade civil em geral; CONSIDERANDO, finalmente, o decidido na Sessão Plenária realizada em 24 de outubro de 2022, RESOLVE: Art. 1º Sustar temporariamente os efeitos da Resolução CFM nº 2.324, de 14 de outubro de 2022 [...] (CFM, 2022). A consulta pública é/foi realizada através de um formulário digital disponibilizado no endereço eletrônico do CFM. Na plataforma preparada pelo CFM, o interessado poderá se posicionar sobre cada um dos artigos e parágrafos da Resolução. Para participar, deverá informar alguns dados de identificação, como o seu número de Cadastro Nacional de Pessoa Física (CPF), além de indicar o Estado e município de residência. Após acessar a ferramenta e preencher esses dados, o usuário será automaticamente conectado ao sistema, tornando-se apto a apresentar propostas de alteração ou manutenção de artigos. As informações oferecidas, segundo disposto na Resolução CFM nº 2.326/22, “serão compiladas e após análise técnica e científica para revisão da Resolução, trazendo maior segurança aos médicos e aos pacientes”. A consulta pública teve início em 24 de outubro de 2022 e encerramento previsto para 23 de dezembro de 20225. Observa-se que a decisão do CFM em publicar a Resolução 2.324/22 segue direção oposta em relação aos avanços na pauta do acesso à Cannabis medicinal proporcionados pela ANVISA entre os anos de 2019 e 2022. Em 09 de dezembro de 2019, a ANVISA publicou a RDC nº 327, cujo conteúdo regulamentou, de forma inédita no Brasil, a produção e comercialização de medicamentos à base de extratos da Cannabis 5 Apesar de encerrado o prazo, não houve atualização do CFM em relação ao resultado da consulta pública, considerando que a presente pesquisa foi finalizada em janeiro de 2023. 42 em território nacional. No ano de 2022, em 30 de março, foi publicada a RDC nº 660/20226, com a finalidade de reduzir as burocracias para a importação dos medicamentos de Cannabis. Devido à relevância das RDCs 327/2019 e 660/2022, seu conteúdo será estudado especificamente com maior profundidade em capítulos posteriores. 6 A RDC nº 660/2022 revogou as RDCs nº 335/2020 e nº 570/2021, englobando e atualizando seus respectivos conteúdos. 43 CAPÍTULO 2 - SAÚDE MENTAL COMO DIREITO E SEU TRATAMENTO ATRAVÉS DA CANNABIS O preâmbulo da Constituição da Organização Mundial da Saúde apresenta o conceito de saúde como o completo bem-estar físico, mental e social, não considerando apenas um estado de ausência de doença ou enfermidade (OMS, 1946). Em 1948, a saúde recebe o status de direito humano, protegida pelo artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos7, juntamente com cuidados médicos e serviços sociais indispensáveis. A saúde, pela doutrina, encontra-se no grupo dos chamados “direitos sociais”, os quais emergiram de reivindicações sociais para a aquisição de direitos relacionados ao indivíduo em si, entretanto, é notória a diferença da tutela de tal direito para a pessoa considerada em sua individualidade e o alcance coletivo dele, podendo ser reconhecido como um direito transindividual e coletivizado (SARLET, 2015). Trata-se de bem jurídico de preservação da humanidade e não somente do indivíduo, englobando outros direitos como saneamento básico, moradia, possibilidade do acesso à saúde, tanto física quanto mental. Saúde corresponde a um conjunto de preceitos higiênicos referentes aos cuidados em relação às funções orgânicas e à prevenção das doenças e, por conseguinte, mantença da vida. Dessa forma, o direito social à saúde surge com uma dupla face, uma de preservação e outra de proteção à saúde. Neste diapasão, é revelada a importância do acesso ao direito social à saúde como o direito do ser humano de preservar e proteger a sua própria vida (WALMOTT BORGES; MARINHO, 2012, p. 03). Segundo a Organização Mundial da Saúde, o conceito de saúde mental é o estado de bem-estar no qual o indivíduo atua com as suas próprias capacidades, consegue lidar com as tensões normais da vida, trabalha produtivamente e contribui de forma eficaz para a comunidade. (OMS, 2019). A saúde mental adoecida gera problemas e comportamentos que podem ser associados como causa principal de morbilidade8 e até mesmo 7 Artigo 25 - 1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis e direito à segurança em caso de desemprego, doença invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle. (ONU - Assembleia Geral das Nações Unidas. 1948). 8 Variável característica das comunidades de seres vivos, refere-se ao conjunto dos indivíduos que adquirem doenças (ou determinadas doenças) num dado intervalo de tempo em uma determinada população. A 44 mortalidade9. Entretanto, as peculiaridades dos distúrbios da saúde mental geram uma dificuldade de sua identificação e diagnóstico, o que causa a demora no tratamento e agrava a doença. Dentre as inúmeras enfermidades que comprometem a saúde mental, a presente pesquisa limita-se a estudar especificamente os chamados “transtornos mentais comuns”, os quais englobam a depressão (ou transtornos depressivos) e transtornos de ansiedade, conforme a qualificação da Organização Mundial da Saúde nos relatórios “Depression and other common mental disorders: global health estimates”10 (2017) e “The Burden of Mental Disorders in the Region of the Americas”11 (2018). O relatório de 2017 aponta o crescimento global de pessoas com os transtornos mentais comuns, principalmente em países de baixa renda e alta população. Nas Américas, contabilizou-se a ocorrência de transtornos depressivos e ansiosos em 15% e 21% da população, respectivamente, considerando ainda variáveis de sexo e idade (OMS, 2017). O relatório de 2018 utilizou três critérios para mensurar as dimensões dos transtornos mentais comuns nas Américas, sendo eles: “Disability-adjusted life years”12 (DALYs), para medir a mortalidade e invalidez em razão da doença; “Years of life lost”13 (YLLs) para comparar a expectativa de vida com a taxa de mortalidade; “Years lived with disability”14 (YLDs) para medir e apontar a prevalência incapacitante da doença mental na vida da pessoa (OMS, 2018). O Brasil atingiu números preocupantes de YLDs, somando quase 10% da população incapacitada por transtornos depressivos e 7,5% da população incapacitada por transtornos de ansiedade: morbidade mostra o comportamento das doenças e dos agravos à saúde na população. (PEREIRA, 2007, p. 10). 9 Refere-se ao conjunto dos indivíduos que morreram num dado intervalo do tempo. Representa o risco ou probabilidade que qualquer pessoa na população apresenta de poder vir a morrer ou de morrer em decorrência de uma determinada doença. (PEREIRA, 2007, p.11). 10 Depressão e outros transtornos mentais comuns: estimativas da saúde global. 11 O Fardo dos Transtornos Mentais na região das Américas. 12 Anos de vida ajustados por incapacidade. 13 Anos de vida perdidos. 14 Anos vividos com incapacidade. 45 Figura 1: Mapa da invalidez por transtornos depressivos – YLDs por país como porcentagem de invalidez total (OMS, 2018, p. 12). Figura 2: Mapa da invalidez por transtornos de ansiedade – YLDs por país como porcentagem de invalidez total (OMS, 2018, p. 14). 46 Entender as características, causas e sintomas dos transtornos mentais comuns, como são cuidados atualmente e como a legislação brasileira aborda a questão da saúde mental traça o caminho para estudar o uso de medicamentos à base de Cannabis como uma alternativa eficaz e plausível de acesso pela saúde pública. 2.1 TRANSTORNOS MENTAIS COMUNS: DEPRESSÃO E ANSIEDADE “There's someone in my head, but it's not me”15. Brain Damage - Pink Floyd (Dark Side of the Moon, 1973). Assim como as doenças físicas, as doenças mentais sempre estiveram presentes na humanidade. O conceito, a natureza e causas da depressão possuem divergências e dissensos. O senso comum associa a depressão com o sentimento de tristeza, sem levar em conta a recorrência de seus sintomas e como afetam a vida do depressivo, descredibilizando a gravidade da doença. Para a Organização Pan-Americana de Saúde, uma pessoa em quadro depressivo apresenta sensação de vazio, baixa autoestima, sensações de culpa, alterações no sono e apetite, falta de energia e fadiga (OPAS, 2020). Estados graves de depressão são considerados como o quinto mais incapacitante estado de saúde, após esquizofrenia aguda, lesão medular, esclerose múltipla grave e dependência grave de heroína. Mesmo os distúrbios depressivos mais leves são altamente incapacitantes, sendo equiparados, por exemplo, à anemia grave ou asma não controlada. (OMS, 2018). Os sintomas psíquicos e fisiológicos da depressão anulam a pessoa em sua capacidade social e produtiva, segundo a Revista Brasileira de Psiquiatria: Embora a característica mais típica dos estados depressivos seja a proeminência dos sentimentos de tristeza ou vazio, nem todos os pacientes relatam a sensação subjetiva de tristeza. Muitos referem, sobretudo, a perda da capacidade de experimentar prazer nas atividades em geral e a redução do interesse pelo ambiente. Frequentemente associa-se à sensação de fadiga ou perda de energia, caracterizada pela queixa de cansaço exagerado. (...). Os pacientes costumam aludir ao sentimento de que tudo lhes parece fútil, ou sem real importância. Acreditam que perderam, de forma irreversível, a capacidade de sentir alegria ou prazer na vida. Tudo lhes parece vazio e sem graça, o mundo é visto "sem cores", sem matizes de alegria. (...). O deprimido, com frequência, julga-se um peso para os familiares e amigos, muitas vezes invocando a morte para aliviar os que o assistem na doença. São frequentes e temíveis as ideias de suicídio. (...). A pessoa pode relatar 15 “Há alguém na minha cabeça, mas não sou eu”. (Tradução do autor). 47 fadiga persistente, mesmo sem esforço físico, e as tarefas mais leves parecem exigir esforço substancial. Lentifica-se o tempo para a execução das tarefas (DEL PORTO, 1999, p. 07). A ansiedade, de forma simplória, é entendida como o medo e preocupações excessivas em razão de alguma situação de gravidade, pressão ou desconforto. De forma técnica, conforme a Organização Mundial da Saúde, os transtornos de ansiedade compreendem, além do transtorno de ansiedade generalizado (