UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Geociências e Ciências Exatas Campus de Rio Claro RAQUEL FULINO DE SOUZA A “GEOGRAFIA DO PODER” DE CLAUDE RAFFESTIN Uma contribuição à teoria materialista do território Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de Geociências e Ciências Exatas do Campus de Rio Claro, da Universidade Estadual “Júlio de Mesquita Filho”, como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutora em Geografia. Orientador: Prof. Dr. José Gilberto de Souza RIO CLARO – SP 2020 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JULIO DE MESQUITA FILHO” Campus de Rio Claro Instituto de Geociências e Ciências Exatas RAQUEL FULINO DE SOUZA A “GEOGRAFIA DO PODER” DE CLAUDE RAFFESTIN Uma contribuição à teoria materialista do território Comissão Examinadora Presidente e orientador: Prof. Dr. José Gilberto de Souza Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) Membro Titular: Prof. Dr. Eguimar F. Chaveiro (IESA - UFG) Membro Titular: Prof. Dr. Ruy Moreira (UFF) Membro Titular: Profa. Dra. Marta Inez Medeiros Marques (USP) Membro Titular: Prof. Dr. Ariovaldo Umbelino de Oliveira (USP) Conceito: APROVADA Rio Claro, 07 de julho de 2020. RESUMO Diante do pragmatismo que assistimos em torno de citações apressadas sobre as concepções geográficas de Claude Raffestin, particularmente àquelas relacionadas às relações sociais de poder e à produção dos territórios, esta tese busca desenvolver reflexões sistemáticas acerca da construção do projeto epistemológico do autor suíço e a correspondência material de sua “geografia do poder” na interpretação dos fenômenos territoriais contemporâneos. Tratando-se, indubitavelmente, de um geógrafo comprometido com a desnaturalização das relações de poder entre os homens e com a interpretação dos processos desiguais e contraditórios imanentes à constituição dos territórios, o objetivo deste texto consiste em analisar os elementos teóricos e metodológicos que estruturaram sua problemática relacional do poder. Como sabemos, o sistema relacional, em Raffestin, repousa sobre as estratégias e os “programas de ação” realizados pelos “atores sociais” no espaço geográfico, que, mediante o trabalho e as formas de projeção e apropriação dissimétricas da praxis humana, engendram ontologicamente seus territórios e territorialidades. Todavia, como demonstraremos, o geógrafo suíço não se compromete apenas com o alcance explicativo de uma “teoria social do poder”, mas também com a formalização do estatuto científico da geografia humana, de caráter universalizante, objetivo e sistemático de suas categorias e conceitos. A partir deste “programa de reflexão geográfica”, Raffestin oscila, teoricamente, entre o logicismo representativo do sistema territorial e a preocupação concretas dos conflitos e disputas relacionais, que estão na base imanente da gênese territorial. Neste sentido, à luz da categoria marxiana de trabalho, como uma resposta metodológica e analítica ao conceito foucaultiano de poder, interpretamos a práxis relacional dos atores sintagmáticos e paradigmáticos, os quais, como veremos, são sujeitos sociais subsumidos, idealmente, na “práxis semiótica” da linguística, ou melhor, “atores da linguagem” posicionados medularmente na construção de uma “teoria do território”. Palavras-chave: Território; Claude Raffestin; Pensamento geográfico; Trabalho; Materialismo histórico e dialético. ABSTRACT In view of the pragmatism witnessed by us around the hasty quotes about Claude Raffestin’s geographical conceptions, particularly those related to the social relations of power and the production of territories, this thesis seeks to develop systematic reflections on the construction of the swiss author’s epistemological project and correspondence material from his “geography of power” in the interpretation of contemporary territorial phenomena. Being a geographer committed to the denaturalization of social power relations and to the analysis of unequal and contradictory processes immanent to the constitution of territories, the goal of this text is to analyze the theorical and methodological elements that structured his relational problematic of the power. As we know, the relation system, in Raffestin, rests on the strategies and “action programs” carried out by the “social actors” in the geographical space, which engender ontologically territories and territorialities, through the labour and the dissimetric projection and appropriation of human praxis. However, as we will demonstrate, the swiss geographer is not only commited to the explanatory scope of a “social theory of power”, but also to the formalization of the scientific status of human geography, of a universalizing, objective and systematic nature of its categories and concepts. From this “geographic reflection program”, Raffestin oscillates, theoretically, between the logicism representative of the territorial system and the concrete concern of conflicts and relational disputes, which are at the base of the territorial genesis. In this sense, in the light of the marxian category of labour, as a methodological and analytical response to the foucaultian concept of power, we interpret the relational praxis of syntagmatic and paradigmatic actors, who, as we will see, are social subjects subsumed, ideally, in the “semiotic praxis” of linguistics, or rather, “actors of language” positioned medullarily in the construction of a “theory of territory”. Key-words: Territory; Claude Raffestin; Geographic thought; Labour; Historical and dialectical materialism. Para minha mãe (em memória). Neste trabalho, Muitas de suas irrealizações Cumpriram-se em mim. E também: À todas e todos que ainda fazem da crítica Uma arma operante e necessária na batalha das ideias. AGRADECIMENTOS A José Gilberto de Souza, certamente, o primeiro entre os meus agradecimentos, mas nem por isso o reconhecimento mais fácil de ser traduzido. Os olhos marejados com que escrevo, indicando o final de um trajeto e o início de outras aberturas, revelam o cotidiano de trabalho e de afeto que se amalgamaram profundamente no que sou e em nossa relação de orientação e amizade. Um dia você me disse sobre o “caminhar do manco”; nunca entendi. O que compreendi em toda trajetória sempre veio acompanhado de firmeza. Firmeza em sua disposição em dialogar e refletir minhas questões (inclusive através de longos áudios), firmeza no processo de trabalho mesmo quando estávamos em viagem, ou, como dizia, mesmo quando as condições objetivas nos obrigam a “enfrentar”, a “ter que fazer”. Sua demarcação ética e de método, inabaláveis em qualquer relação, sempre permeou nossos diálogos e, hoje, no final dessa orientação, permanecem em mim como da primeira vez em que conversamos. Agradeço você, Gil, por nunca ter “aberto mão”: segurou-me na iniciação científica quando eu estava sem orientação. Acolheu a “demasia” de minha filosofia, distinguindo comigo minhas lacunas do ponto de vista do método e do escopo político. Acolheu o que eu sou neste mundo repleto de preconceitos. Segurou-me nos momentos mais duros de minha formação e usou de impassibilidade e rigor quando precisei. Seguramente, meu professor e amigo. Seguramente, nosso vínculo intelectual e afetivo de uma vida toda. Ao grupo de estudos constituído pelos orientandos de graduação, mestrado e doutorado do Professor José Gilberto, que construímos em meio a discussões sobre o método e debates acalorados acerca dos textos que produzíamos. Neste percurso, as contribuições à minha tese surgiram em críticas amigáveis e sugestões que fui acatando ou descartando conforme avançava. Em particular, agradeço: Gabriel Bairro, Messias Lira, Vinícius Aversa, Débora Francisco, pelas trocas mais diretas. A Samir Eid Pessanha, meu amigo de olhar doce e coração imenso. Agradeço por ter me acolhido tantas vezes, por ver cada “repetição” minha (psicanaliticamente falando) e, mesmo assim, ter a paciência e a escuta atenta para me “reinventar” comigo. Por ser meu maior confidente. Por ser o homem que eu escolhi para ser o padrinho do filho que nunca terei. Por ser aquele que eu sei que sempre estará lá... A Júlio César Avelino, pelo carinho e pelas conversas infindáveis. Pela sinceridade e pelo olhar preciso sobre as relações não tão boas para mim. Pelos almoços e jantares deliciosos em Rio Claro e em São Paulo. Aos dois, Sam e Ju, por serem morada. À Edna Fulino, minha tia que foi muitas vezes mãe, por insistir nas doses de amor semanal. Pela compreensão nas minhas ausências, sobretudo no final desta tese. Aos meus primos, Paula e Danilo, irmãos mais velhos, que souberam jogar “conversa dentro” quando mais precisei. Ao meu pai, Marcus Aurelius Nery Celino de Souza, e ao meu irmão, José Felipe Conrado Fulino de Souza, por tudo o que pudemos viver e pelo que conseguimos ser em nossas vidas, com nossos referenciais de mundo, nossas individuações e carinhos distantes. À Paula Juliasz, pela escuta amiga de todas as horas, por acompanhar todo o desenvolvimento desta tese, pelo tempo de maturação. Pelas trocas quase diárias sobre a universidade pública, a prática docente, a epistemologia da geografia. Por ser alguém tão presente na minha vida mesmo em meio a uma das rotinas mais agitadas que eu conheço. A Jonathan Ferreira, pelo cinema pernambucano e pela poesia; à Débora Francisco, pelas ingerências maternais, pelas tardes acompanhadas de trabalho na mesa ao lado, pelo carinho das risadas e aflições. À Jéssica Minillo, por ter me segurado nos dias em que eu achava não caber mais. À Maria Clara Belchior, pela cumplicidade que vivemos, pelo olhar latinoamericano sobre a política nacional, pela torcida de sempre nesta trajetória acadêmica. A Antônio Sérgio da Silva, pela vitrola, pelas conversas sobre a ditadura e seu percurso na ciência geográfica. À Ana Carolina Rocha Spitalere (se um dia buscar esta tese), agradeço os anos que tivemos, os projetos distintos que mostraram nossos infinitos. À força de seus olhos claros sobre meus textos e minhas ideias, meu reconhecimento. Por sempre me incentivar em tudo naquele cotidiano. Por ser a segunda montanha mais resiliente que conheci, a única viva, tal como o Mont Salève acompanha de frente, no frio mais rigoroso, as vagarosas incursões do Lèman na Genebra invernal. Seu calor acompanhou de longe meu intercâmbio e muitas colorações de cinza que vi por lá. Reconheço sua entrega, o amor que tivemos e guardo todos os nossos anos com muito carinho. Às paixões seguintes, que desanuviaram minha testa tesa e souberam trazer leveza e calor nos dias mais duros de trabalho. Por compartilharem ideias, sorrisos, música e arte, coisas que suavizam a escrita e mudam ritmo sonoro das reflexões sobre o mundo. Pelos caminhos mais íntimos de nós mesmas, os quais sempre, quando buscamos com afinco e humildade, vem acompanhados pelas melhores mãos. Nisto tudo, devo agradecer minha analista, Disete Devera, pelo processo criativo, pelo alargamento de alma, pela vontade de viver e a calma garantida no “uma coisa por vez”. *** Ao Professor Bernard Debarbieux, que, prontamente, acolheu meu projeto de pesquisa na Universidade de Genebra, acelerando a emissão de meu visto suíço e garantindo todas as condições necessárias à plena realização do estágio de pesquisa. Meus sinceros agradecimentos a todos os colegas do Departamento de Geografia e Meio Ambiente da Universidade de Genebra e do Departamento de Geografia da Universidade de Neuchâtel. Em particular, ao Professor Bertrand Lévy, ao Doutor Mathieu Petite, à Professora Juliet Fall, ao Professor Francisco Klauser, ao Doutor Louca Lerch, pelos diálogos sobre minha pesquisa e entrevistas concedidas, pelas referências, orientações e até mesmo pelas críticas neste percurso todo, as quais me fizeram reavaliar o essencial do inessencial na pesquisa geográfica. Aos amigos de Genebra: Carinne Domingos, por ter me mostrado a neve pela primeira vez, pelas viagens de final de semana a cidades vizinhas, por ter me auxiliado na preparação da primeira entrevista com o Prof. Raffestin, atenuando minha ansiedade e algumas inflexões de meu sotaque. Raphaël Languillon, pelos diálogos sobre a gentrificação na França inflexível e as contradições mais profundas da sociedade brasileira. Por ter, gentilmente, oferecido seu apartamento em Lyon quando, estafada pelo trabalho, precisei viajar. Lorris Germann, pelo primeiro mês (o mais difícil), pela recepção calorosa, pelo verdadeiro fondue suíço, pelas dicas, pelos vinhos e pelo cuidado. Nicolas Dallafiora, por ter me buscado de bicicleta na Gare Cornavin quando cheguei com duas grandes malas. Por ter me buscado (de bicicleta) em um ponto qualquer de Genebra, quando me perdi. Cecilia Raziano Gonzalez, pelo sorriso no rosto em todos os diálogos que tivemos, pelas palestras e almoços conjuntos. Pela cerveja belga que nunca esquecerei. Por contornar comigo as gritantes diferenças entre Suíça e Brasil. Yannick Rousselot, pelos diálogos que aprendi sobre anarquismo, as ideias de Bakunin e a militância de Reclus. Hind Oudrhiri, pelas ajudas técnicas, pelas risadas trocadas e por me falar da beleza e dos problemas de Marrocos. A vocês todos, minha gratidão profunda. Pela despedida de uma semana de bar em bar até o Brasil. E ainda: à Mme. Olga e à Mme. Therèse, pela acolhida de alguns meses no convento na região central de uma Genebra caríssima, viabilizando minha estadia e garantindo um lugar acolhedor e profundamente silencioso para estudar. E, finalmente, meus agradecimentos mais calorosos ao Professor Claude Raffestin, intelectual obstinado, rigoroso e profundamente sensível. Setembrino e entusiasta de Thomas Mann como eu. Meus sinceros reconhecimentos à condução dessa pesquisa sob suas constantes intervenções, equilibrando em mim, comigo, a antiteticidade real que atravessou todos os dias dessa tese: a sensibilidade na apreensão de um pensamento radical, erguendo-se no interior da incomplacente geografia francófona na metade do século XX, e a ousadia – necessária – em questionar essa radicalidade nos dias de hoje, com uma geografia feita dentro dos trópicos que sangram. A síntese: um intelectual fronteiriço de uma geografia concreta incomparável: afinal, um “filósofo”. Uma estudante que nunca perdeu a admiração quando pensava suas críticas – não em relação ao seu “objeto de estudo” – mas ao seu “clássico”. Como disse em nosso último abraço: “Continuez-vous! Ne sommes-nous plus capables de supporter la raillerie?”. Afeto algum me poupará de suas críticas... *** Aos queridos colegas do CEAPLA, por sempre permitirem um cotidiano salutar e aprazível nos dias de trabalho. Em especial, a Carlo Burigo, pelos sorrisos, por ter me ajudado em tudo e até mais um pouco, por nunca negar uma impressão de texto nem uma única explicação sobre IR. Ainda à Dê, Maíca e Giovanna, pela leveza e carinho. Aos colegas de embate, que, provavelmente, nunca buscarão esta tese, mas que permitiram descaminhos explícitos sobre as relações conflituosas que vivemos, especialmente em tempos de assumirmos nossas posições objetivas sobre a ciência, a universidade pública e as articulações cotidianas, sejam à procura de preciosismos e individualismos ou de denúncia e intervenção transformadora. À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP: processo nº. 16/02269-5) e à CAPES (O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil – CAPES – Código de Financiamento 001), pelo suporte financeiro em uma conjuntura de profundo desmonte institucional e desmoralização do conhecimento científico. A vocês todos, singelamente, MUITO OBRIGADA! http://www.bv.fapesp.br/pt/pesquisa/?q=16/02269-5 Um livro de poesia na gaveta não adianta nada Lugar de poesia é na calçada. [...] Aonde vai o pé, arrasta o salto Lugar de samba-enredo é no asfalto. Sérgio Sampaio – Cada lugar na sua coisa SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 16 PRIMEIRA PARTE: TEORIA, MÉTODO E IDEOLOGIA NA PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO EM GEOGRAFIA ..................................................................... 23 CAPÍTULO 1 - DOS EPISTEMOLOGISMOS DA MODERNA TEORIA DO CONHECIMENTO À TEORIA MARXISTA DO SER SOCIAL NA CRÍTICA DE UM PENSAMENTO GEOGRÁFICO ....................................................................................... 33 1.1 – As armadilhas da abstração e o “évanouissement” do pesquisador isolado na realidade objetiva ............................................................................................................... 34 1.2 – A ontologia materialista e a questão da reconstrução categorial de um pensamento geográfico........................................................................................................................... 49 1.3 – A ontologia materialista e a natureza não isolada de um pensamento ........................ 58 SEGUNDA PARTE: A RECONSTRUÇÃO ONTOGNOSIOLÓGICA DA “GEOGRAFIA DO PODER” E SUAS QUESTÕES IDEOLÓGICAS .................. 74 CAPÍTULO 2 - A ESTRUTURA EPISTÊMICA GERAL DA “GEOGRAFIA DO PODER”: O TRABALHO COMO CENTRALIDADE RELACIONAL ......................... 79 2.1 - Sobre revisitar Claude Raffestin e a atualidade de seu pensamento geográfico .......... 80 2.2 – Estatuto científico e relações de poder: as bases gnosio-epistemológicas e ideológicas de Claude Raffestin ............................................................................................................ 98 2.3 – Uma geografia relacional e as formas de invalidação do pensamento de Claude Raffestin ........................................................................................................................... 114 2.4 - A “geografia relacional do poder” e as primeiras reflexões ontológicas e materialistas do pensamento de Claude Raffestin ................................................................................. 126 CAPÍTULO 3 - A ANATOMIA DA GEOGRAFIA RELACIONAL DO PODER: DA CRÍTICA DA GEOGRAFIA DO ESTADO À SEMIOLOGIZAÇÃO DAS RELAÇÕES SOCIAIS ............................................................................................................................. 142 3.1 – Princípios teóricos da destruição da “geografia do Estado” e o caminho ontológico da problemática relacional do poder...................................................................................... 143 3.2 – O abandono da totalidade concreta e o caminho antiontológico da problemática relacional do poder ........................................................................................................... 159 3.3 – A resolução do sistema nomotético e a semiologização das relações sociais: uma destruição formal da “geografia do Estado” ..................................................................... 182 TERCEIRA PARTE: A VIA ANTIONTOLÓGICA DA “GEOGRAFIA DO PODER” E A TEORIA IDEALISTA DO TERRITÓRIO ..................................... 203 CAPÍTULO 4 - AS RELAÇÕES IDEALIZADAS DOS SUJEITOS DA LINGUAGEM NA CONSTRUÇÃO REPRESENTATIVA DO TERRITÓRIO .................................... 211 4.1 – A semiologia estruturalista na sustentação da linguagem geográfica: a crise epistemológica e a via antiontológica da “geografia do poder” ........................................ 212 4.2 – A “relação” dos atores sociais, o sistema territorial e o território como constructo ideal .................................................................................................................................. 230 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 242 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................... 250 ANEXOS...................................................................................................................... 262 16 INTRODUÇÃO O título desta tese demarca seu propósito. Trazemos nela o que consideramos os principais rebatimentos críticos da ontologia materialista sobre o pensamento geográfico de Claude Raffestin, que despontou, mundialmente, com a publicação de “Por Uma Geografia do Poder”, em 1980. Nesta obra central, iremos analisar, não apenas os limites teóricos de um projeto de reformulação epistêmica da geografia política, mas também atestaremos de que modo as mistificações do discurso da representação e do ecletismo disciplinar e de método podem gerar determinações abstratas sobre a questão do território. Ocorre que não são poucas as tergiversações tomadas por diversos intelectuais da atualidade, ao transitarem em diferentes campos das ciências humanas e naturais, apropriando-se irrefletidamente – e isto é o que nos soa verdadeiramente problemático! – de elementos conceituais (ou terminológicos) de matrizes teóricas distintas e, muitas vezes, incompatíveis. São autores que, vez ou outra, acabam encontrando aquilo que já fora denunciado por Georges Gusdorf (1972, p. 37), para o qual toda fuga a um determinado referencial teórico não poupa esforços em evocar uma “filosofia inconfessada, sem crítica, a pior que existe”. Evidentemente, não queremos ser imprudentes com o autor que estabeleceremos nossas interlocuções. Raffestin não é um geógrafo partícipe das tendências teórico- culturais dominantes do capitalismo tardio, tão em voga com o pós-modernismo (JAMESON, 1996), muito embora, sejam, efetivamente, claras certas derivações de seu pensamento na direção das abordagens irracionalistas e imetódicas do conhecimento, que assolam a produção científica, filosófica e artística nas últimas décadas. Em Raffestin, ao afirmarmos tais derivações, estamos nos referindo, exatamente, à relativização que o geógrafo suíço faz a respeito do objeto de estudo da geografia humana, à concepção foucaultiana de poder (sem sujeito social e descentrado nas microrrelações), à semiologização das relações sociais (práxis semiótica) e também à construção representativa do sistema territorial, que são, como veremos, alguns exemplos. Nosso objetivo consiste, portanto, em interpelar os elementos teóricos e as questões de método que estruturaram a abordagem das relações de poder de Claude Raffestin em torno do fenômeno territorial. Compreendemos, primeiramente, que o sistema relacional emerge como um projeto gnosio-epistêmico e ideológico do autor, o 17 qual se opôs, abertamente, à geografia política clássica (ou “geografia do Estado”), cuja natureza monolítica e entificada do poder estatal, conduzira grande parte do discurso geográfico a um esvaziamento do conceito de território. Em outros termos, mostraremos de que modo o “território da nação” se reduzia, de acordo com Raffestin, à uma mera área de domínio e disputa estatal, desprovida de processualidade histórica e objetivação concreta do trabalho humano. Nesta mesma direção, consideramos ainda que este “programa de reflexão” proposto por Raffestin, com base na perspectiva relacional do poder, estabeleceu-se, com a mesma intensidade de enfrentamento teórico, na contramão da tradição hegemônica da geografia francesa, que perpassou, sob diversas nuances, todo o século XX. Uma tradição escorada, fortemente, nos pressupostos vidalinos da “geografia do objeto”, e que, portanto, buscou, na realidade concreta, a tradução espacial do que poderia, de fato, legitimar uma análise ou um estudo geográfico. É isto que denominamos, nesta tese, de perspectivas “espaciológicas” ou aprioristas, ou seja, abordagens essencialistas da ciência geográfica – ainda hegemônicas na comunidade acadêmica e nos foros de militância nos quais os geógrafos têm participado –, que não partiram das próprias relações sociais para, a posteriori, capturar o movimento real que permite a construção ativa de suas categorias explicativas, tal como reivindicaram Marx e Engels a respeito da questão do método. São perspectivas que demarcam, antecipadamente, a dimensão espacial para justificar um “olhar” ou uma intervenção geográfica na interpretação das relações entre os homens, distinguindo-se do que consideram ser o campo ou as finalidades sociológicas e antropológicas. Habilidosamente, Raffestin interpreta as insuficiências teóricas dos debates institucionais da geografia de seu tempo, colocando a posição relacional do poder à frente dos processos de produção do território, o qual, de acordo com o autor suíço, nunca poderia ter sido concebido como um elemento “dado” na geografia, dimensão da qual ele havia atribuído à noção de espaço. Porém, seu exame crítico acerca das questões epistemológicas e conceituais começa, de modo gradual, a desamparar o viés material e histórico da proposta relacional, cujo movimento teórico é, expressamente, identificado na construção prioritariamente representativa do sistema territorial. Um sistema nomotético, de pretensões universalizantes acerca das relações sociais, pautado em estratégias e “programas de ação” de atores da linguagem (sintagmáticos e paradigmáticos). 18 É evidente que a crítica de Raffestin às incoerências teóricas do “epistemologismo” na geografia não haviam brotado, unicamente, de sua análise acurada e de sua mente excepcional. O autor acompanhava os deslocamentos de uma nova esquerda intelectual, que, saindo, sobretudo, das insurreições provocadas pelo “Maio de 1968”, posicionava-se de modo transgressivo às mais diversas formas de poder e aos instrumentos tradicionais de luta e organização revolucionária. É neste contexto que o geógrafo suíço vai se aproximar do anti-humanismo foucaultiano, em clara oposição ao pensamento marxiano, abandonando tanto a dialética quanto a categoria de totalidade concreta. Nesta perspectiva, a nossa hipótese é de que os gérmens do que seria uma possível teoria materialista do território no pensamento geográfico de Claude Raffestin foram dissolvidos nas armadilhas teóricas oriundas da própria construção epistêmica do autor, que abandona os referenciais ontológicos e contraditórios das relações sociais para aquiescer suas reflexões teórico-conceituais naquilo que tanto condenou nas práticas geográficas: a sistematização – sem correspondência concreta – entre as categorias e a realidade material. Assim, no bojo de nossa investigação em torno da problemática relacional do poder, avistamos a categoria trabalho, modelo objetivamente ontológico de toda práxis humana, que aparece, em Raffestin, no interior dos processos de produção e apropriação do homem sobre a natureza e nas relações sociais desiguais. Uma categoria amalgamada, em diversos momentos, ao conceito foucaultiano de poder, e que sustentará, na base do projeto epistemológico do autor suíço, toda arquitetura objetiva e representativa do constructo territorial. Nesta direção, ao mirarmos o trabalho, encontramos os “atores sociais” no sistema relacional do poder, que, em nossa análise, são subsumidos no escopo metodológico linguístico e semiológico, tornando-se “atores ideais” da praxis semiótica. É bem provável – sabemos bem – que a estrutura e o conteúdo analítico da tese, baseado nos cotejamentos que fizemos entre o pensamento geográfico de Raffestin e os nossos referenciais marxianos, sejam motivo de reação de boa parte dos geógrafos que se apropriaram – ao nosso ver, com muita urgência – das concepções de Raffestin, alegando (como alegou um parecerista do projeto de pesquisa) termos “construído” um Raffestin seriamente deturpado. São pesquisadores que, de certo, testemunharão como uma posição arbitrária o fato de termos tentado extrair a densidade material e ontológica do 19 pensamento do autor suíço, tratando-se, nitidamente, de um intelectual alinhado às concepções foucaultianas (mas não só!). Tentaremos apresentar, entretanto, a impaciência teórica desta alegação, principalmente pelas diversas vinculações que Raffestin estabelece com o referencial marxiano, mas que depois é abandonado. E não o foi abandonado a partir do tensionamento teórico direto que o autor poderia, por ventura, travar com o materialismo histórico e dialético, no sentido de demonstrar insuficiências explicativas quanto à questão do território. Trata-se de uma perspectiva que foi deixada de lado, porque, no ápice do projeto relacional do poder, Raffestin deixa de desenvolver uma “teoria social do poder” para dedicar-se, essencialmente, à construção de uma “teoria geográfica”. Ainda assim, terão os críticos mais “brandos” desta tese, que irão nos censurar por termos endurecido a análise diante de um pensamento “progressista” na geografia, especialmente em uma conjuntura política e institucional em que a ciência e, sobretudo, as chamadas humanidades, estão sendo, barbaramente, atacadas e perseguidas no país. Raffestin, de forma manifesta, sempre se posicionou contra os autoritarismos e as forças mais execráveis de poder; portanto, um aliado em tempos tão obscuros. Ora, indubitavelmente, um aliado! Buscamos ser sensíveis a essas preocupações, reconhecendo, inclusive, os percursos intelectuais de alinhar problemas epistêmicos de alcance empírico-explicativo diante de realidades tão distintas quanto um contexto suíço e um contexto periférico, brasileiro. A “geografia do poder”, como revelado em entrevista pelo próprio autor, e reiterado em nossos encontros em Genebra e nos diálogos por e- mail, não está acabada, o que nos sugere que, todos os elementos de reflexão teórica desenvolvidos no projeto científico do autor, possuem “momentos analíticos” bastante significativos para a crítica do capitalismo contemporâneo à luz do horizonte geográfico. São “momentos” do trabalho teórico de Raffestin que explicitam, radicalmente, a imanência conflitual e contraditória presentes na gênese concreta de todos os territórios. Nosso exercício, portanto, não irrompe como retilínea “destruição” de um pensamento, o que estaria, inclusive, muito distante de nossas competências. Um pensamento, que, aliás, tem alimentado a comunidade geográfica mundial há mais de quarenta anos, sabendo, ademais, que boa parte dessas influências atinge a produção geográfica que é feita no Brasil. Em compensação a todos estes aspectos, um princípio basilarmente irrefreável neste texto consiste na escavação ativa de seu objeto a partir do método, que, ao se deparar com a análise de um sistema – ou de pressuspostos –, 20 substancialmente logicistas, submetem o objeto à análise materialista e ontológica, no sentido de desmistificar as categorias que aparecem pertencentes, no campo teórico, à uma hierarquia conceitual-sistemática autônoma. Esta tese visa, finalmente, contribuir para a consolidação de um corpo coeso de reflexões em torno da questão do território na perspectiva do materialismo histórico e dialético. Uma “teoria do território”, portanto, soerguida em suas bases mais amplas, pertencentes às lutas reais que atravessam nossa sociabilidade, sobrelevando, assim, processos históricos que ultrapassam um objeto teórico ocluso dos debates acadêmicos e institucionais. Isto equivale dizer, que, nesta mesma toada de reflexões sobre a questão do território e de exame crítico sobre o pensamento geográfico de um autor, reconhecemos a necessidade de interrogar as preocupações objetuais que saturam, sobretudo, a área de história do pensamento geográfico, a qual não se cansa, muitas vezes, de insistir no historicismo descomprometido e na “omissão de método” que esconde, muitas vezes, abordagens neopositivistas e culturalistas. De todo modo, estas necessárias considerações preliminares da tese permitem com que passemos agora aos aspectos mais específicos que o leitor encontrará ao longo do texto. O primeiro deles, bastante pontual, diz respeito à opção que fizemos em manter as expressões “geógrafo suíço”, “autor suíço”, atribuídas a Claude Raffestin, mesmo sabendo de sua origem francesa. Trata-se, na verdade, de uma tentativa de distinguir categoricamente o campo de reflexões geográficas estabelecidos por ele em relação a Yves Lacoste (que, aliás, é argelino). Os dois geógrafos contemporâneos depararam-se com uma profunda crise epistemológica no interior da geografia francófona, cada um assumindo uma perspectiva teórica e ideológica no enfrentamento dos problemas apresentados. Veremos, inclusive, como grande parte desse tensionamento entre os dois autores está mediado pelas concepções do filósofo francês Michel Foucault a respeito das imbricações entre a geografia e as relações de poder. Além deste primeiro aspecto, soubemos, recentemente, que o autor é naturalizado suíço, apesar de seu constante sentimento de ambivalência manifestado como “habitante da fronteira” na Genebra vizinha: “Eu sempre digo brincando que eu não tenho nacionalidade, porque eu caminhei francês mas eu sou naturalizado suíço1”. 1 Trecho de e-mail recebido em abril de 2020: “Je dis toujours en plaisantant que j’ai pas de nationalité parce que j’ai cheminé français mais je suis naturalisé suisse”. 21 A tese está estruturada em três partes, expondo, na primeira seção intitulada “Teoria, Método e Ideologia na Produção do Conhecimento em Geografia”, os referenciais e pressupostos teóricos de nossa análise. Buscamos demarcar nossas diferenças em relação às abordagens predominantemente gnosio-epistemológicas do conhecimento científico moderno, que, embora partam ou cheguem na dimensão empírica, tendem a construir suas concepções a partir de um sistema abstrato de pensamento (as armadilhas da abstração), ou melhor, promovem categorias e conceitos que, em determinado momento, descolam-se dos fenômenos da realidade objetiva a fim de preservar a logicidade do sistema explicativo. Nesta direção, distinguimos a ruptura ontológica materialista – que se opõe às refrações da ontologia heideggeriana convocada por Raffestin –, num esforço de extrair, para o terreno filosófico e científico, os processos reais que o movimento histórico produz nos territórios. Reiteramos, assim, a condição material da práxis humana, como produto real do trabalho dos homens e a única exigência possível de legitimação e validação das formas de manifestação da consciência humana, dentre elas, o conhecimento geográfico. Pretendemos, com isto, estabelecer diferenças concretas entre posições de método e também as posições ideológicas dos pesquisadores, que não se encontram “isolados” das questões de seu tempo e de seu contexto acadêmico-institucional. Já na segunda parte, “A Questão Ontognosiológica da ‘Geografia do Poder’ e suas Questões Ideológicas”, está composta por dois capítulos que configuram a ossatura geral de nossa análise nesta tese. Identificamos os principais elementos gnosio- epistêmicos que estruturam, para Raffestin, um estatuto científico na geografia humana, analisando, concomitantemente, certas derivações ideológicas de suas concepções. Neste percurso, demos destaque às tentativas de invalidação do pensamento do geógrafo suíço, sobretudo, na França, contextualizando as diferenças institucionais e ideológicas e, ao mesmo tempo, mapeando outros elementos de sua “geografia do poder” que a análise estritamente interna de seu pensamento não poderia proporcionar. Além deste conjunto de problemas, analisamos igualmente os gérmens da problemática relacional do poder à luz da crítica que o autor estabelece com a geografia do Estado. Compreendemos de que modo Raffestin busca inspirações na teoria antropogeográfica de Ratzel e depois a abandona. Sobrelevamos os referenciais marxianos do autor suíço na destruição do Estado entificado e demonstramos o fio 22 condutor que faz com que Raffestin, conceitual e ideologicamente, rompa com a dimensão material e histórica das relações sociais para acolher o projeto sistêmico e semiológico da dimensão relacional. Por fim, a última parte, “A Via Antiontológica da ‘Geografia do Poder’ e a Teoria Idealista do Território”, interpretamos as vinculações epistemológicas do método semiológico e das concepções geográficas de Raffestin, sobretudo em torno dos “atores sociais” que estruturam o sistema territorial. Analisamos de que modo o sistemismo e o descolamento reflexivo do autor em relação à totalidade concreta promovem as interrelações entre signos do pensamento, transformando o território em um constructo ideal de processos da representação que se efetivam espacialmente. Para concluir esta introdução, devemos ratificar que as controvérsias possivelmente suscitadas neste trabalho, não partirão, conforme acreditamos, do significado do pensamento relacional de Raffestin na ciência geográfica, mas, sobretudo, dos pressupostos interpretativos que trouxemos e que buscamos sustentar nossa análise. Partimos da premissa de que as lutas de classes e a categoria trabalho não são produtos históricos obsoletos, tal como gostam os defensores ávidos do momento pós-industrial. Uma posição que nos leva sempre a recorrer ao horizonte prático de toda questão filosófica ou científica, compreendendo que a essencialidade dos antagonismos sociais, geradores dos mais diversos territórios, não serão apreendidos na mente do “pesquisador isolado”, mas no “ronco da cuíca” dos que não tem nada a perder. 23 PRIMEIRA PARTE TEORIA, MÉTODO E IDEOLOGIA NA PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO EM GEOGRAFIA 24 Nada mais procedente que uma reflexão teórica e de método para iniciar uma tese que se realiza no terreno do pensamento geográfico. O estudo proposto procura atingir as principais concepções de Claude Raffestin, aquelas que, ao longo de quase quarenta anos de trabalho na Universidade de Genebra (Suíça), estruturaram sua principal obra, “Por Uma Geografia do Poder”, publicada em 1980 e, introduzida no Brasil, somente treze anos depois, em 1993, pela tradução de Maria Cecília França (1927-2010). Ao anunciarmos um estudo voltado para as concepções mais operantes do pensamento de Raffestin, sendo que, nesta proposta, as questões teóricas e de método vão compor a direção de abertura da tese, queremos demarcar, em primeiro lugar, que o discurso geográfico ocupa – e sempre ocupou – uma constituição importante na produção e na reprodução dos fundamentos que escoram, ao longo dos anos, as correntes e as escolas de inúmeros geógrafos. Estes últimos, decisiva ou episodicamente, deram corpo e coesão à ciência geográfica e a todo seu instrumental produzido para a interpretação da realidade objetiva. Acontece, todavia, que nem sempre as concepções mais referendadas, às vezes as mais “sacralizadas”, na comunidade científica foram tomadas até às suas últimas consequências, tanto no sentido das derivações teórico-metodológicas que tais concepções geraram no interior da geografia, quanto em relação às ressonâncias que seus aspectos ideológicos tomaram, de modo prático, no interior das relações sociais concretas. Nesta perspectiva, trazemos como escopo central desta tese uma análise crítica dos elementos epistemológicos que consolidaram a abordagem relacional do poder de Claude Raffestin em torno do fenômeno territorial, apresentando também, neste processo analítico, uma segunda – e não menos importante – contribuição. Consideramos que “Por Uma Geografia do Poder” vem amparando, no decorrer das décadas, um conjunto significativo de trabalhos teóricos e empíricos na ciência geográfica, que, ao menos no Brasil, envolveu as mais diversas temáticas, desde àquelas voltadas para as questões da geografia política quanto aos problemas e questões relativos aos estudos agrários, por exemplo. No âmbito internacional nos últimos anos, podemos destacar, inicialmente, as intervenções de Claudio Minca, Marina Bertoncin, Andrea Pase, na Itália; de Stuart Elden, Jeremy Crampton, Alexander Murphy, na Inglaterra; Francisco Klauser, Juliet Fall, Mathieu Petite, na Suíça; Javier Vargas, no México. Entretanto, nossas indagações 25 sublinham a produção mais recente desenvolvida no Brasil, tendo em vista as reverberações teóricas e ideológicas da maior parte desses trabalhos. Primeiramente, reconhecemos as produções que se apoiaram, abertamente, em “Por Uma Geografia do Poder”, no entanto, limitaram-se a citações sistemáticas e pouco refletidas das concepções geográficas de Raffestin, de modo que, se retornadas para o conjunto sistemático de suas preocupações epistêmicas e ideológicas, invalidam-se ou enfraquecem-se subitamente. Além deste aspecto, avistamos ainda outras apropriações – desta vez, apropriações agudamente equivocadas – de determinados excertos da principal obra do autor, imputando posições teóricas ao geógrafo suíço as quais ele nunca teve ou nunca refletiu. Finalmente, um terceiro esforço despendido por vários geógrafos brasileiros tem resultado, muitas vezes, na mera compilação das concepções de Raffestin, cujos esforços, embora demonstre uma organização adequada de suas ideias centrais e de suas bases teóricas, não puderam verticalizar as interpretações conceituais e de método a respeito de seu pensamento, resultando em produções textuais demasiadamente expositivas. Devemos manifestar, de modo pontual, alguns exemplos do que estamos colocando, reconhecendo, de maneira respeitosa, que não se trata de uma menção particular, mas de um fenômeno característico e recorrente na produção geográfica brasileira em relação à geografia produzida por Raffestin. Deste modo, deparamo-nos com o texto de Ferreira (2017a), afirmando que: Para Raffestin (1993), o território é o lugar no espaço onde se configura o poder (capacidade de controle e dominação). É necessário estudar o território a partir de relações reais no contexto sócio-histórico e espaço- temporal. O território é associado a um Estado (jurídico – ligado a legislação – e fiscal – ligado a política econômica) e a fronteira é quem define o alcance do poder do Estado. Utiliza-se o conceito de território justamente por se tratar de uma categoria que engloba as mais diversas esferas do poder, onde se desenvolve culturas diferentes, sistemas políticos, crenças, hábitos e tempos diferentes. E ainda como lembra Kahil (2010, p. 477) o conceito de território está ligado a uma “dimensão política do espaço geográfico. (FERREIRAa, 2017, p. 107, grifado pela autora). É evidente que Raffestin, em toda sua trajetória intelectual de reformulação epistêmica da geografia política clássica, articulou suas reflexões sobre o território com base no conceito de poder, alinhando-se, categoricamente, à perspectiva de Foucault. No entanto, e justamente por isto, a equação “território = Estado” sempre foi motivo de 26 contestação e disputa nas intervenções do autor suíço, o qual não deixou de privilegiar outras formas espaciais e outras dimensões escalares acerca da questão política e o problema do território. Assim: [...] Para começar, se considerarmos apenas o Estado, como é o caso na geografia política geral, só se dispõe de um nível de análise espacial, aquele que é limitado pelas fronteiras. Sem dúvida, pode-se também dispor de uma hierarquia de níveis, os mesmos que o Estado criou para organizar, controlar e gerenciar seu território e sua população. Porém, com o caráter cada vez mais integrador e globalizante do Estado, tais níveis aparecem sobretudo como marcos espaciais para difundir o poder estatal em vez de níveis articulados do exercício de poderes inferiores. Isto é, a escala é dada pelo Estado. De certa forma, trata-se de uma geografia unidimensional, o que não é aceitável na medida em que existem múltiplos poderes que se manifestam nas estratégias regionais ou locais. Além disso, o poder estatal é tratado como um fato evidente que não precisa de explicação, uma vez que se encontra nas cristalizações espaciais que manifestam suficientemente sua ação. É, ao que parece, inferir uma coisa não identificada a partir de sinais que deixa aqui e ali. Enfim, há uma ruptura entre a dinâmica que se pode conceder a esse poder estatal e as formas que se pode observar no campo operatório de um território. (RAFFESTIN, 1993, pp. 16-17). Ademais, manifestam-se ainda as interpretações redutoras e generalizantes a respeito das passagens mais veiculadas de Raffestin em sua “geografia do poder”, geralmente aquelas que extraem o modo como o autor reflete a questão do território sob bases relacionais, que, para muitos intérpretes, trata-se de uma posição materialista, quase mesmo inquestionável. São autores que, na verdade, buscaram referendar seus próprios alinhamentos à perspectiva do materialismo histórico e dialético, designando a Raffestin uma demarcação que o próprio autor, como veremos ao final desta tese, abdica. Esta é, por exemplo, a leitura de Eduardo (2006), apontando que: Em uma vertente materialista, Raffestin (1993, p. 7-8), afirma que: O território não poderia ser nada mais que o produto dos atores sociais. São eles que produzem o território, partindo da realidade inicial dada, que é o espaço. Há, portanto um “processo” do território, quando se manifestam todas as espécies de relações de poder [...]. Feito isso, discutiremos a problemática social que engloba a processualidade do(s) poder(es): essência do sistema territorial. O poder, como afirma Raffestin (1993), não é nem uma categoria espacial nem temporal, mas está presente em toda “produção” que se apoia no espaço e no tempo. (EDUARDO, 2006, p. 176). 27 Por sua vez, demostraremos que, ao contrário das irrefletidas interpretações sobre o sistema relacional do poder, a construção do projeto epistêmico de Raffestin não pode ser integralmente associada ao viés materialista, ainda que existam elementos importantes em sua “geografia do poder” que ampararam as teses de que a produção social, correspondente às relações de produção e reprodução do gênero humano, é o que condiciona o desenvolvimento político e intelectual em geral, ou seja, é o ser social que condiciona os produtos da consciência (MARX, 2008). Nestes termos, “os homens ‘vivem’, ao mesmo tempo, o processo e o produto territorial por intermédio de um sistema de relações existenciais e/ou produtivistas” (RAFFESTIN, 1993, p. 158), de maneira que, em tais relações de produção, “há interação entre os atores [sic] que procuram modificar tanto as relações com a natureza como as relações sociais. Os atores, sem se darem conta, se automodificam também” (RAFFESTIN, 1993, pp. 158-159). É, portanto, o trabalho social que medeia esta produção genérica da vida. Todavia, sabemos bem que, no complexo econômico capitalista, atravessado pelas determinações da divisão social do trabalho, distingue-se a atividade socialmente necessária à produção das condições objetivas de vida, mas, além desta, o trabalho expropriado (alienado) e não-pago (gerador de mais-valia) do trabalhador pelas classes capitalistas. Apresentaremos, nesta tese, as saídas e tergiversações desta contradição essencial na problemática das relações de poder em Raffestin e, sobretudo, a fragilidade dessa reflexão nos processos de constituição dos territórios e das territorialidades, mesmo que o autor suíço tenha compreendido o território como “um espaço onde se projetou um trabalho, seja energia e informação, e que, por consequência, releva relações marcadas pelo poder” (RAFFESTIN, 1993, p. 144). Este aspecto será amadurecido ao longo do texto; porém, de antemão, podemos manifestar que a questão das relações de poder em Raffestin, ou melhor, a problemática relacional do poder, propriamente, erigiu-se sob pressupostos teóricos de um contexto francófono profundamente mergulhado na transição paradigmática do debate intelectual estruturalista e pós-estruturalista do início dos anos de 1970. Não obstante, para não inverter as determinações ontológicas dos fatos, o que nos aproximaria, desprevenidamente, de um idealismo objetivo à la Hegel, a base material e o contexto real que deram origem a tal transição na produção intelectual indica, como 28 ponto de inflexão, as insurgências do Maio Francês (1968), a Primavera de Praga (1969) e também o papel dos intelectuais nas questões políticas francesas, especialmente após os embates de uma “nova esquerda universitária” emergente, que disputava espaço contra quaisquer formas centralizadas de poder, inclusive contra o Partido Comunista Francês (PCF). Assim, nossa indicação mais empírica na mudança de curso das ideias progressistas no ambiente francófono, ou, de modo mais direto, as implicações decisivas na textualidade Raffestin, consiste, em primeiro lugar, na incorporação das reflexões de Michel Foucault, integrante desta “nova esquerda francesa”, no projeto de reformulação teórica da geografia política desenvolvido pelo autor suíço. Por sua vez, Raffestin considera que: Se seu método tivesse sido claramente compreendido e assimilado, Foucault provavelmente teria revolucionado a geografia humana, mas, para que ela assim o fosse, seria necessário que os próprios geógrafos colocassem a si mesmos a questão essencial do nascimento do olhar geográfico, como ele próprio tinha colocado aquele do olhar clínico [...]2. (RAFFESTIN, 1997, p. 142, tradução da autora). Para Coutinho (2010), Foucault, ao aprofundar os princípios estruturalistas agnósticos de Lévi-Strauss, formula uma arqueologia do saber (fundadora do “olhar clínico”) radicalmente anti-humanista, no sentido de privilegiar a crítica das metanarrativas e a crítica do caráter objetivo do conhecimento científico. Deste modo, “tanto Lévi-Strauss quanto Foucault afirmam a existência de um nível mental mais profundo, “inconsciente” ou “arqueológico”, ao qual estaria submetida a realidade empírica, ou seja, o pensamento e a vida social dos homens concretos” (COUTINHO, 2010, p. 157). Nesta direção: Ambos são agnósticos diante da história: enquanto Lévi-Strauss considera-a como algo “subjetivo”, um método sem objeto, Foucault considera simples “doxologia” – simples opinião subjetiva – qualquer afirmação relativa à real história dos homens. [...] A similaridade prossegue ainda na definição da natureza daquele nível “profundo” que Foucault chama de “episteme”, “discurso”, “sistema” ou ainda “a priori histórico”. Tanto a “estrutura” de Lévi-Strauss quanto a “episteme” de 2 “Si sa méthode avait été clairement comprise et assimilée, Foucault aurait probablement révolutionné la géographie humaine, mais, pour qu'il en aille ainsi, il aurait fallu que les géographes eux-mêmes se posent la question essentielle de la naissance du regard géographique, comme lui-même s'était posé celle du regard clinique. [...]” (versão original). 29 Foucault são objetivações fetichistas do intelecto formal, ou seja, de esquemas e regras mentais que manipulam conteúdos (inclusive, segundo eles, a vida humana) destituídos de significação imanente. (COUTINHO, 2010, p. 157). Michel Foucault revela-se, portanto, um nome fundamental da “nova esquerda francesa” e vai incorporar, em seu sistema de pensamento, não mais os pressupostos de inteligibilidade hegeliano-marxiano do conhecimento, mas os problemas filosóficos relativos à linguagem e aos discursos do saber científico. Como coloca Lévi-Strauss (1968, p. 45): “a linguagem aparece como condição de cultura, na medida em que essa última possui uma arquitetura similar à da linguagem. Ambas se edificam por meio de oposições e correlações, isto é, de relações lógicas”. Isto vai representar, ao mesmo tempo, um contexto mais geral em que a linguagem é encarada de um modo bastante singular no interior das ciências humanas, mas também uma singularidade que desloca, gradativamente, “a preocupação ontológica pela epistemológica, tomando o real como tessitura de linguagens” (RODRIGUES, Mavi, 2006, p. 83). Conforme demonstraremos posteriormente, Raffestin manifestará esta influência no âmago de sua problemática relacional do poder, justamente ao amalgamar o processo de cognição (representação) do território com o processo de constituição ontológica (produção) do território, engendrado a partir de estratégias e ações de “atores da linguagem”, atores fundamentalmente lógicos (a priori), distinguidos em sintagmáticos e paradigmáticos. Neste sentido: Nós agora “escrevemos” o território como um texto. Território não é mais uma causa, mas é “causado” da mesma maneira que a maioria dos outros objetos. Em toda essa fabricação, há o cruzamento de sintagma e paradigma. Todos os espaços e territórios fictícios, mas produzidos, agora servem como referência positiva ou negativa: a ficção informa o real3”. (RAFFESTIN, 2012, p. 131, tradução da autora). É nesta direção que devemos ter cautela ao assumir Raffestin como partícipe de uma vertente materialista, justamente porque há inflexões relevantes em seu pensamento. 3 “We now ‘write' territory like a text. Territory is no longer a cause, but is `caused' in the same way as most other objects. In all of this fabrication there is the criss crossing of syntagm and paradigm. All fictive but produced spaces and territories now serve as positive or negative reference: fiction informs the real”. (versão original). 30 Estes elementos denotam a importância de uma interpretação crítica das reflexões de Claude Raffestin nos dias de hoje, do mesmo modo em que se torna premente a necessidade de uma ampla revisão das referências teóricas feitas a este autor no Brasil, referências que deram sustentação a muitas pesquisas teóricas e empíricas que envolvem, notadamente, a questão do território e das relações de poder. É evidente, por sua vez, que não é nossa tarefa nesta tese circunscrever o conjunto geral dessas pesquisas, cabendo, somente ao final do texto, um exercício particular relativo a alguns autores brasileiros que julgamos centrais. Não obstante, tal fato manifesta o que levantávamos no início do capítulo, considerando que todo discurso geográfico expressa, do ponto de vista epistêmico e ideológico, uma série de prospecções nem sempre demarcadas criticamente, ainda que se consolidem décadas de apropriações teóricas descompassadas, muitas vezes, com as próprias ideias do geógrafo em questão. Em que se segue, portanto, optamos em apresentar o capítulo subsequente, intitulado “Dos epistemologismos da moderna teoria do conhecimento à teoria marxista do ser social na crítica de um pensamento geográfico”, a partir de determinados pressupostos teóricos e de método que entendemos ser capazes de atingir as questões medulares e os elementos categorialmente radicais para a interpretação crítica da “geografia das relações de poder” de Claude Raffestin. Iremos demarcar, neste primeiro capítulo, que um projeto epistemológico, ou qualquer outro produto da consciência humana (como as experiências estéticas, as manifestações religiosas, os sistemas filosóficos, as concepções que vocalizam práticas reais dos sujeitos no mundo, etc.), não indica uma elaboração isolada da mente do pesquisador em relação à sua historicidade concreta. Este aspecto deve ser ainda mais referendado (ou considerado) pelo fato genuíno de tratarmos de um geógrafo que, explicitamente, alicerça toda a construção de seu projeto epistemológico em torno das relações sociais de poder, relações sociais que, orgânica e dissimetricamente, projetam-se no espaço geográfico, produzindo os territórios (RAFFESTIN, 1993). Neste sentido, esta discussão será desenvolvida, especificamente, na primeira seção do capítulo, intitulada “As armadilhas da abstração e o ‘évanouissement’ do pesquisador isolado na realidade objetiva”, que analisa, inclusive, as distinções fundamentais entre a ontologia heideggeriana de Raffestin e àquela que nos apoiamos (marxiano-lukácsiana). 31 Entretanto, há ainda uma indagação de fundo, aquela que, na verdade, sempre acompanha os axiomas mais indisputáveis de uma trajetória intelectual de décadas como um teórico do porte de Claude Raffestin. No caso, a indagação que trazemos diz respeito à compreensão efetiva do que significaria a “dimensão relacional do poder” para o geógrafo suíço. De que “poder” o autor fala realmente? Qual é a base imanente e ontológica que legitima uma construção categorial das relações do poder no espaço geográfico? Nossas reflexões incidem, neste sentido, sobre o significado do método no processo de apropriação analítica do objeto e a reconstrução de suas categorias centrais, de modo que o “poder” aparece, ainda em reflexão parcial de um capítulo de abertura da tese, como aparência fenomênica do processo relacional, o qual manifesta-esconde o “trabalho social”. Esta discussão foi consolidada na segunda seção, denominada “A ontologia materialista e a questão da reconstrução categorial de um pensamento geográfico”. Finalmente, em um terceiro momento que chamamos de “A ontologia materialista e a natureza não isolada de um pensamento”, desenvolvemos a imanência real das vinculações entre o conhecimento científico e as questões de ordem ideológica, que penetram a materialidade concreta e produzem efeitos e sentidos reais na práxis humana. Nesta direção, refletiremos aspectos preliminares da recepção conturbada de “Por Uma Geografia do Poder”, sobretudo nos círculos acadêmicos franceses, tendo como base analítica dois momentos da revista Heródote. O primeiro momento se deve às respostas de Claude Raffestin e Jean-Bernard Racine às questões elaboradas por Michel Foucault aos geógrafos. O segundo momento consiste na resenha crítica de Yves Lacoste à recém- publicada “Por Uma Geografia do Poder”, distinguindo elementos epistêmicos e ideológicos fundamentais entre os dois autores francófonos que, amplamente, debateram as questões políticas e teórico-conceituais da ciência geográfica no final do século XX. Portanto, esta Primeira Parte dedicada às questões teóricas e de método manifestam suas demarcações centrais. Sob um viés predominantemente gnosio- epistemológico, para seguir certas expressões usadas por Lukács na construção de sua ontologia (teoria do ser) social, compreendemos, de um lado, os produtos da consciência que tem sua origem e seu ponto de chegada na arquitetura racional e abstrata do “pesquisador isolado”. De outro lado, concebemos aqueles produtos que, embora 32 operados ativamente na mente do indivíduo genérico, derivam e validam-se no movimento concreto do desenvolvimento histórico, isto é, são produtos da consciência humana gerados a partir de uma ontologia filosoficamente fundamentada nas categorias mais essenciais que regem a vida do ser social. Estabeleceremos mais detalhadamente, a partir desta ampla divisão de posturas acerca da problemática do conhecimento humano sugerida pela perspectiva lukácsiana: [...] o contraste radical com qualquer teoria do conhecimento idealista, segundo a qual as categorias são produtos de nosso pensar sobre a constituição do ser, especialmente suas determinações concretas. Imediatamente elas são isso na medida em que são reproduções, em pensamento, daquilo que é existente e operante no processo de movimento do ser em si, isto é, como momento do próprio ser. [...] Daqui brota, pois, a questão: se essas determinações são realmente apenas produtos do nosso conhecimento “aplicadas” ao respectivo ser, ou existem no próprio ser, objetivamente por inteiro e o processo de pensamento apenas as reproduz da maneira mais semelhante possível. [...] Tendo como base a mera teoria do conhecimento, e especialmente a metodologia de um domínio específico, é difícil distinguir esses procedimentos técnicos das determinações existentes em si. Só uma crítica ontológica consegue revelar aqui a real constituição do ser (LUKÁCS, 2010, pp. 168-169). Advertimos, como é de praxe, que a crítica ontológica contida nesta tese não tem a pretensão de esgotar todas as nuances e toda a complexidade analítica que o pensamento geográfico de um autor como Claude Raffestin proporciona – inclusive nos dias de hoje –, em termos científicos, filosóficos e até mesmo literários. Entretanto, assumimos um caminho e um conjunto significativo de problemas a serem enfrentados e construímos a estrada, embora estejamos “convictos que o processo do conhecimento é suficientemente dialético para permitir-nos avançar futuramente em posições que possam ser hoje titubeantes” (OLIVEIRA, 2016, p. 32). Por fim, nada mais explicativo para as indagações e advertências que ainda ecoam após esses esboços introdutórios acerca do primeiro capítulo, adentrar, propriamente, nele. 33 CAPÍTULO 1 DOS EPISTEMOLOGISMOS DA MODERNA TEORIA DO CONHECIMENTO À TEORIA MARXISTA DO SER SOCIAL NA CRÍTICA DE UM PENSAMENTO GEOGRÁFICO 34 1.1 – As armadilhas da abstração e o “évanouissement” do pesquisador isolado na realidade objetiva O Si abstraído e fixado para si é o homem enquanto egoísta abstrato, que em sua pura abstração é o egoísmo elevado ao pensar. (Miséria da Filosofia, Karl Marx, 1985, p. 104) A tradução mais próxima para o verbo “évanouir” seria algo em torno de “perder a consciência”, “se dissipar, deixando-se de ser”. Em língua francesa, porém, esse verbo não existe por ele mesmo, não existe somente “évanouir”, sendo, pois, necessária sua inflexão em duas formas verbais, a pronominal (“s’évanouir”) e a passiva (“être évanoui”). Por sua vez, na forma pronominal, o sujeito exerce uma determinada ação de “perder a consciência” sobre si mesmo, ou seja, o sujeito dissipa-se inconscientemente de um dado contexto, de um momento (espaço-temporalmente) determinado. Na forma passiva, ao contrário, um objeto ou elemento externo é agora quem pratica a ação sobre o sujeito, ou melhor, algo externo ao homem coloca-o em xeque do ponto de vista de sua consciência ativa em relação às circunstâncias objetivas. No título deste subcapítulo, propomos a variação para “évanouissement”, a fim de alcançar o real sentido que queremos para a flexão verbal, considerando que “évanouissement” sugere a nós uma ocorrência gradual de tempo, a processualidade que a ação de “desmaio” expressa sobre a atividade do pesquisador diante do momento atual em que a cientificidade burguesa4 atravessa uma grave crise ontológica, variada e multiforme, na produção de conhecimento (LUKÁCS, 2010). Não vem ao caso inventariarmos, historicamente, a constituição dos principais determinantes dessa crise onto-gnosiológica, já que a tarefa nos levaria para outros caminhos pelos quais tergiversaríamos nosso objeto de estudo. Porém, de qualquer modo, podemos apresentar um panorama claro de seu desenvolvimento sobre a prática científica cotidiana: de um lado, as reações pragmáticas na produção científica, de um modo geral, bem como as atividades seccionadas e desorganizadas do pesquisador isolado diante da realidade objetiva; e, do outro, as forças do cotidiano geradas pela divisão social e técnica do trabalho acadêmico, exprimindo as implicações objetivas que a realidade gera sobre o 4 A opção pelo termo “burguês” em detrimento de “moderno” deixa claro, no presente trabalho, o modo pelo qual concebemos as condições concretas em que o conhecimento científico foi gerado, sabendo que, nos dias de hoje, assumimos e operamos um conhecimento cuja gênese vincula-se ao êxito do programa socioeconômico capitalista, a partir do desenvolvimento progressivo das grandes revoluções burguesas (1789-1848). 35 pesquisador isolado. Um “looping” cotidiano referente, ainda que não especifiquemos, à uma forma concreta de alienação do trabalho. Sabemos, assim, que o espectro profundo que ronda a crise ontológica do pensamento filosófico e científico dos últimos tempos, segundo Lukács (1979; 2010; 2013), diz respeito à representação efetiva daquilo que, desde o final do século XIX, se configura como a dissolução, o “évanouissement”, da necessidade real do conhecimento humano em conceber uma autêntica “teoria do ser” (ontologia). Para que os termos não nos confundam ao invés de esclarecer, queremos dizer que o gradiente ontológico na produção do conhecimento significa, na verdade, a exigência e o envolvimento concreto dos produtos do conhecimento na prática transformadora, ou melhor, o compromisso do saber humano na superação efetiva das formas de reificação e de alienação do homem genérico. Trata-se, na verdade, daquilo já foi demonstrado no aforismo de Marx, em suas teses contra Feuerbach, que, embora venha sendo reproduzido na imediaticidade das diversas militâncias frente às circunstâncias de luta exigidas pelo cotidiano, apresenta, na essência, uma máxima capaz de incorporar a factível dimensão ontológica do conhecimento teórico: “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; porém, o que importa é transformá-lo”. Nesta perspectiva, uma ontologia do ser social significa que: [...] objetivamente o ser social é a única esfera da realidade na qual a práxis cumpre o papel sine qua non na conservação e no movimento das objetividades, em sua reprodução e em seu desenvolvimento. E, em virtude dessa função singular na estrutura e na dinâmica do ser social, a práxis é também subjetiva e gnosiologicamente o critério decisivo de todo conhecimento correto (LUKÁCS, 2012, p. 28). Reconhecemos, portanto, o pressuposto decisivo que separa a problemática do conhecimento humano nos moldes de duas grandes abordagens; abordagens basais para estruturar todo o desenvolvimento analítico desta tese. Assumimos tal generalização, assim como o fizera Lukács, a partir de Marx e Engels, na interpretação crítica dos produtos gnosiológicos, isto é, das formações da consciência humana sobre a realidade objetiva, consolidando, portanto, uma demarcação feita entre a moderna teoria do 36 conhecimento (abordagem gnosio-epistemológica) e a teoria marxista do ser social5 (crítica ontológica). Evidenciada na citação de Lukács, a questão da práxis ocupa, portanto, a posição decisiva na produção e no estatuto do conhecimento humano. Sob tensionamento ontológico, a compreensão da materialidade dada, ou seja, a compreensão das relações de produção da vida humana, que constroem, individual e genericamente, a existência dos homens no mundo, significa, na verdade, a própria compreensão do homem sobre si mesmo, um assenhoramento de sua posição consciente e ativa para com a objetividade dada e com as relações estabelecidas com os outros homens. Todavia, o leitor deve estar se perguntando, com justa razão, quais seriam as articulações desses elementos ontológicos para com o problema central de nossa tese e o que justificaria a demarcação do conhecimento em duas amplas abordagens. Discorreremos, por sua vez, sob duas explicações. A primeira delas é a que representa, efetivamente, nossa posição teórica e de método na construção do conhecimento geográfico, opondo-se a todas as tentativas gnosio-epistemológicas de consolidar um “sistema de pensamento”, uma estruturação lógico-racional que produza categorias e conceitos de modo a priori na pesquisa geográfica. Deste modo, ainda que se trate de um sistema teórico, formalmente, arquitetado na mente do geógrafo, é possível questionar a externalidade explicativa do conjunto dessas concepções apriorísticas que apresenta em relação à interpretação essencial do movimento da práxis. Insistiremos mais neste ponto durante o capítulo. Por ora, reiteramos nossa oposição às tentativas de organizar “a produção de um sistema de ideias que seja, ao mesmo tempo, um ponto de partida para a apresentação de um sistema descritivo e de um sistema interpretativo de geografia” (SANTOS, 2006, p. 09, grifado pela autora). Para nós, ao contrário, assumimos as tentativas “do pensamento para se apropriar do concreto, para reproduzi-lo mentalmente como coisa concreta” 5 Trata-se da ontologia extraída pelo filósofo húngaro Georg Lukács da teoria econômico-social de Marx, configurando-se, de acordo com alguns autores (Assunção, 2013; Chasin, 2009; Vaisman, Alves, 2009), como a teoria que apreende a objetividade histórico-imanente da realidade social. Nesta perspectiva, buscamos atingir “a ordem do reconhecimento ou reprodução teórica da identidade, natureza e constituição das relações sociais por seus complexos categoriais mais gerais e decisivos, independentemente, em qualquer plano, de se tornarem objetos da prática ou da reflexão [...] É o momento mais abstrato do reconhecimento da identidade das coisas objetivas, enquanto tal um dos momentos distintos da unidade do saber, do qual participa um segundo, sob forma concreta, que é a ciência” (VAISMAN, ALVES, 2009, p. 09). 37 (MARX, 2008, p. 29), não exprimindo, portanto, uma atividade do conhecimento filosófico e científico na qual “o sujeito cria – teoricamente – o objeto, mas traduz, sob a forma de conceitos, a realidade do próprio objeto” (TONET, 2013, p. 14). Demarcamos, assim, a construção de pressupostos teórico-científicos, que, embora sejam, irrefutavelmente, produtos da abstração, ou seja, as categorias, os conceitos, as teorias são produtos do trabalho mental dos sujeitos sociais, sabemos, todavia, que a natureza de suas bases teóricas e metodológicas permite decantar a perspectiva ontológica ou antiontológica de tais produtos abstratos. Há de se testemunhar, portanto, que: A metodologia científica tradicional – moderna – não começa esclarecendo que a problemática do conhecimento pode ser abordada de dois pontos de vista: gnosiológico ou ontológico. Obviamente, ela não esclarece porque, para ela, não existem dois caminhos, mas apenas um. Ela parte simplesmente do pressuposto de que a abordagem apresentada é a única correta. Do mesmo modo, também não explicita o fato de que essa abordagem tem um caráter gnosiológico. (TONET, 2013, p. 11). Entendemos, em especial, a partir das reflexões marxianas contidas na “Contribuição à Crítica da Economia Política”, que o desenvolvimento metódico de uma crítica teórica não significa, por fim, a conformação de um complexo abstrato de categorias explicativas, ainda que a crítica teórica seja labor mental. A construção de um discurso crítico-analítico não representa, fatalmente, uma pretensão à escolástica, como se a “ascensão do abstrato ao concreto” apontasse um movimento etéreo dos sentidos e da razão em relação à realidade objetiva, sustentado por um edifício conceitual logicista. Ao contrário disto, declaramos, portanto, que “as categorias [...] exprimem formas de vida, determinações de existência” (MARX, 2008, p. 265) da totalidade concreta. Este é um pressuposto central e que baliza, mais uma vez, as distinções entre as análises gnosio-epistemológicas daquelas outras sustentadas pela perspectiva da ontologia marxiana. Reiteramos, nestes termos, a natureza ontológica das categorias, justamente, porque “a questão do saber em Marx está categorialmente subordinada à dilucidação ôntica, ao exercício da escavação pelo ser das coisas” (VAISMAN, Ester; ALVES, 2009, p. 12), cuja “determinação última é uma contradição real e não a automanifestação da razão” (MÜLLER, 1982). 38 Diferentemente das propostas metodológicas orientadas pelo viés disciplinar, tendências que, segundo Lukács (2012), apreendem a práxis em seu real insatisfatório, o problema científico para Marx é, radicalmente, outro. Inexiste em Marx, ou em sua crítica de método em relação aos diversos idealismos e empirismos, qualquer tentativa gnosiológica em encontrar um caminho lógico e resolutivo da unidade entre sujeito e objeto. Esta é uma preocupação eminentemente gnosio-epistemológica. Em outras palavras, não há, em sua construção científica, uma articulação entre a ordem do ser (da materialidade) e a ordem do pensamento (da idealidade) (SANTOS NETO, 2011), já que Marx não busca uma “verdade” epistemológica, a objetividade enquanto tal, o em-si sem dimensão relacional (CHASIN, 2009). Seu propósito de método e de ciência (a história humana) aponta para uma construção racional cientificamente capaz de “desmistificar contradições reais” (MÜLLER, 1982). Este é o sentido intrínseco de sua teoria da sociedade burguesa, o sentido intrínseco de sua teoria social, distinta de quaisquer teorias sociológicas. Portanto, mesmo que saibamos que diversos pensadores brasileiros lukácsianos – como Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder, José Chasin, mais recentemente, Celso Frederico, José Paulo Netto, Sérgio Lessa, Ester Vaisman, Artur Bispo dos Santos Neto, Mavi Rodrigues, Vitor Sartori, entre outros – já tenham demarcado, com o devido rigor, as questões fundamentais que separam as duas amplas abordagens do conhecimento, reiteramos, por um segundo motivo, nosso alinhamento teórico à ontologia materialista marxiana para engendrar as bases interpretativas desta tese. Trata-se, conforme exporemos abaixo, de um segundo aspecto mais diretamente articulado ao nosso problema de pesquisa. Identificamos que Claude Raffestin, no horizonte das questões propriamente geográficas, anunciava, em meados dos anos de 1970, um programa de reformulação das bases teóricas da geografia política, somado à uma intenção genuína e ambiciosa de propor, ao mesmo tempo, a refundação do estatuto científico da geografia humana como um todo (RAFFESTIN, 1993; 2012). Queremos dizer, nesta direção, que, apesar de conhecermos suas reflexões a respeito do fenômeno territorial e das relações de poder, Raffestin tecia algo, efetivamente, mais amplo em termos científicos e também filosóficos em sua “geografia do poder”. Sua proposta de refundação epistemológica buscava consolidar os pilares de 39 um projeto teórico de ruptura radical para com a geografia hegemônica da segunda metade do século XX. Portanto, não se tratava, simplesmente, de uma nova temática no interior da geografia política, ou mesmo a fundação de uma nova corrente gnosiológica na ciência geográfica. O que Raffestin tinha em mente era tão-somente a construção de uma “teoria geográfica da relação6” (RAFFESTIN, 1989; 1993). Neste propósito, o autor suíço reconhecera, com acerto, as tentativas nada desprezíveis de geógrafos do passado, constatando que “Ritter, Ratzel e Reclus tiveram uma ideia muito clara dessa geograficidade que completava suas obras7” (RAFFESTIN, 1989, p. 29). Baseado nas generalizações relacionais desses autores, Raffestin compreendeu que, ao contrário delas, as questões epistemológicas da geografia sempre estiveram, de um modo ou de outro, escoradas em um movimento de exterioridade do pensamento, destinado a vincular, de maneira lógico-racional, o “eu” (sujeito cognoscente, o geógrafo) e o “isto” (o objeto exterior, o mundo objetivo) (RAFFESTIN, 1989). Um movimento predominantemente gnosio-epistemológico do pensamento. Por sua vez, uma “teoria geográfica da relação”, cujo núcleo gerador da dimensão relacional decorre do trabalho humano, seria, para Raffestin, aquela capaz de engendrar tanto a síntese analítica de fenômenos geográficos particulares, mas, principalmente, sua capacidade em gerar: [...] um modelo de ação, logo, de práticas e conhecimentos, que se enraíze em um modelo de conhecimento que é a historicidade. Sartre (1983) tinha muito bem compreendido que ‘é, portanto, no seio da história que a necessidade geográfica aparece. A história é precisamente aquilo que existe da necessidade geográfica8 (RAFFESTIN, 1989, p. 29, tradução da autora). Para o autor suíço, o mais grave, entretanto, dessa dissolvência de reflexões em torno da geograficidade reside no fato de que há um jogo instrumental no processo de formalização da geografia humana, que acabou perdendo seu propósito de encontrar uma 6 Em “Por Uma Geografia do Poder”, são várias as menções indiretas a este propósito teórico. No entanto, ao apresentar as bases da problemática relacional do poder, no segundo capítulo, Raffestin reporta-se a Marx, que, na análise da mercadoria, mostrou não uma dimensão objectual da “coisa em-si”, mas aquilo de que se trata a mercadoria: um produto humano, efetivamente, a relação de trabalho que está incorporada nela (RAFFESTIN, 1993, p. 31). 7 “Ritter, Ratzel e Reclus ont eu une idée très claire de cette géographique qui remplit leurs oeuvres” (versão original). 8 “un modèle d’action, donc de pratiques et de connaissances, qui s’enracine dans un modèle de connaissance qui est l’historicité. Sartre avait très bien compris que “c’est donc au sein de l’histoire que la nécessité géographique apparaît. L’histoire est précisément ce par quoi il y a de la necessité géographique” (versão original). 40 ontologia. Nesta perspectiva, a geografia humana tem se tornado um ramo das teorias econômicas (economia espacial) ou, então, um braço de estudo das teorias sociológicas (formação socioespacial), estabelecendo-se, portanto, enquanto mero instrumental técnico, que aplica ferramentas conceituais em programas teóricos já definidos (RAFFESTIN, 1989). A ciência geográfica, segundo o referido geógrafo, renunciou às grandes questões filosóficas que a nutriram. Neste caso, não estamos diante de uma postura lamentosa do autor, muito menos, de desencadear uma posição persecutória em relação às tendências geográficas de seu contexto. A questão central reside no modo pelo qual Raffestin localiza a natureza do problema epistemológico da geografia, identificando partes desta questão na excessiva formalização do discurso geográfico (“sintática”)9. Neste sentido, o geógrafo suíço admite, todavia: [...] que isto resultou em consideráveis ganhos de coerência, que devem ser reconhecidos, e também de notáveis possibilidades operacionais para medir os fluxos e seus movimentos sobre o espaço e o território, tornados suportes. Mas, além destas realizações, nada ou pouca coisa, e, em todo caso, não uma teoria geográfica sólida o suficiente que permita interpretar, além de fenômenos particulares, nenhuma estrutura geral suscetível de abordar as questões que o barulho do mundo não impede de colocar. O que é mais grave, sem dúvida, reside no fato de que, neste jogo instrumental, a geografia perdeu o desejo de buscar uma ontologia. Ou, mais exatamente, tornou-se uma técnica que aplica as ferramentas de disciplinas mais formais, ela desistiu de reformular as grandes questões que a nutriram, questões tão bem explicitadas em Traces on the Rhodian Shore de Glacken (1967). Minha convocação a Heidegger não é fortuita, já que ele é certamente um dos filósofos que, mais do que muitos, exceto Bachelard, pensou a relação do homem com os lugares e pelos lugares: “A relação do homem e do espaço não é nada além do que a habitação pensada no seu ser”. Entendendo que não é necessário compreender a habitação no seu sentido estreito, mas pensá-la como traço fundamental da condição humana sobre este planeta [...]10 (RAFFESTIN, 1989, p. 28). 9 No decorrer da tese, constataremos, na verdade, que Raffestin não vai refutar, completamente, os princípios lógico-categoriais (gnosio-epistemológicos) da formalização científica, sendo, ao contrário, incorporados no pensamento geográfico do autor. No segundo e terceiro capítulos, ao examinarmos os principais elementos epistêmicos de sua geografia humana, distinguiremos o formalismo de seu ecletismo de método, pautado nos critérios hipotético-dedutivos de Popper, no estruturalismo genético piagetiano e também determinados princípios formais da semiologia estruturalista. A formalização científica, para Raffestin, está relacionada à proposição generalista e universalista do conhecimento científico, que o difere de todos os outros saberes humanos. 10 “[...] qu'il en est résulté d'inappréciables gains de cohérence, ce dont il faut se féliciter, et aussi de remarquables possibilités opératoires pour mesurer les flux et leurs mouvements sur l'espace et le territoire devenus des supports. Mais au-delà de ces acquis, rien ou peu de choses et en tout cas pas une théorie 41 Como declara Raffestin, sua convocação, porém, é feita à ontologia de Heidegger, a qual aponta uma “teoria do ser” situada na consciência do indivíduo isolado e não no trabalho do homem efetivo, ou seja, não em bases materialistas (como a ontologia lukácsiana), sob as quais a práxis histórica nada mais é do que a única esfera da realidade em que o conhecimento humano se torna possível. Em Heidegger, como esclarece Sartori (2019, p. 138), “a própria ênfase na práxis transformadora é vista pelo pensador alemão como inseparável da ‘perda de si’”, ou seja, a dimensão genérica do homem é desencadeadora da dissolvência do ser, do “s’évanouir” que metaforizamos no início, atingindo, portanto, a ação de “estranhamento” do sujeito isolado sobre si mesmo. Logo, na perspectiva heideggeriana: O mundo moderno é visto como essencialmente hostil, sendo preciso questioná-lo para que seja possível tratar daquilo “digno de ser pensado” por meio de um re-pensar. Para o autor da Ontologia do ser social, tal postura levaria o pensamento heideggeriano a refutar a centralidade da práxis social, da transformação social – tratada por Lukács com referência às categorias da objetivação, da alienação e do estranhamento. Ter-se-ia um posicionamento, em verdade, conservador: as “condições exteriores da vida” parecem não ser passíveis de transformação e a “transformação da realidade social objetiva” estaria fora de questão para a filosofia. Deste modo, a questão do estranhamento teria sido colocada pelo autor de Ser e tempo em um plano equivocado: buscaria Heidegger questionar o estranhamento, não no plano da práxis concreta e histórica, mas na procura de questões de fundo que continuariam “impensadas” na modernidade (Cf. Tertulian, 2016). (SARTORI, 2019, p. 138). De acordo com Sartori (2019, p. 139), na fenomenologia existencialista do pensamento de Heidegger, os produtos da consciência isolada do sujeito são aquilo que, hermeneuticamente, geram a condição de existência do ser-estar-no-mundo, de maneira que “a oposição entre materialismo e idealismo parece ser algo questionável (...), a qual géographique tant soit peu solide qui permette d'interpréter des phénomènes particuliers, aucun cadre général susceptible d'aborder les questions que le bruit du monde ne cesse de poser. Ce qui est le plus grave, sans doute, réside dans le fait qu'à ce jeu instrumental, la géographie a perdu le goût de se chercher une ontologie. Ou plus exactement devenue une technique qui applique les outils de disciplines plus formelles, elle a renoncé à reformuler les grandes questions qui l'ont nourrie, questions si bien explicitées dans ‘Traces on the Rhodian Shore’, de Glacken, (1967). Ma convocation d'Heidegger n'est pas fortuite car il est certainement l'un des philosophes qui a, plus que beaucoup, Bachelard excepté, pensé le rapport de l'homme à des lieux et, par des lieux : « La relation de l'homme et de l'espace n'est rien d'autre que l'habitation pensée dans son être »s. Etant entendu qu'il ne faut pas comprendre l'habitation dans son sens étroit mais la penser comme trait fondamental de la condition humaine sur cette terre [...]” (versão original). 42 seria acompanhada pela ‘repulsa da realidade objetiva e a negação de sua cognoscibilidade racional’ (LUKÁCS, 1959, p. 18)”. Ao longo da tese, analisaremos como esses aspectos da ontologia heideggeriana penetram, silenciosamente, o pensamento geográfico de Raffestin. A título de exemplo, podemos identificar que os processos de objetivação humana sobre o espaço, apresentados em “Por Uma Geografia do Poder”, exprimem a produção concreta do território (materialidade) e os constructos da representação ou do sistema territorial (idealidade) como sínteses amalgamadas em um único processo indiferenciável (RAFFESTIN, 1993). Do mesmo modo, a cognoscibilidade da realidade objetiva é questionada em sua totalidade por Raffestin, tendo em vista que, para ele, o objeto da geografia humana não é o espaço, mas as relações capturadas pelos discursos específicos do geógrafo a respeito dessa práxis. Neste sentido, o que importa, para o autor, não é o espaço geográfico, tradicionalmente concebido como representante objetual legítimo da geografia humana, mas o modo pelo qual o homem (indivíduo e grupos sociais) se relaciona – material e imaterialmente – com este espaço dado (RAFFESTIN, 1978; 1993). De qualquer forma, a “verdade” epistêmica do geógrafo, ou a cognoscibilidade racional em relação à objetividade, se espraiaria na condição discursiva, uma condição amplamente subjetiva do pesquisador isolado (o elemento metafísico, como veremos no segundo capítulo), de modo que o real é considerado, para Raffestin, sempre um “ponto de vista” (RAFFESTIN, 1978), uma essencialidade inalcançável. Para sermos mais exatos neste último aspecto, o objeto da geografia humana, na perspectiva do autor suíço, não é o espaço, mas “a geograficidade das práticas e dos conhecimentos das coletividades11” (RAFFESTIN, 1989, p. 30). Por sua vez, o que estamos tentando destacar, neste momento, é que, apesar de Raffestin invocar o gradiente ontológico (a “geograficidade”) na geografia humana, ele não consegue desprender-se de uma questão basal na abordagem gnosio-epistemológica da cientificidade moderna: o fracionamento entre “eu” e “isto”, inicialmente criticado pelo autor. Isto porque, se a geografia humana está amparada pelos “pontos de vista” que os geógrafos manifestam sobre a geograficidade existente, antevemos, em primeiro lugar, a 11 “la géographicité des pratiques et des connaissances des collectivités” (versão original). 43 imetodicidade que conduz tal conhecimento geográfico. Sob outro viés, Raffestin demarca uma posição de nítida externalidade do geógrafo em relação à práxis social, verticalizando o sujeito (razão consciente) em detrimento do objeto (o “espaço dado” ou a natureza). Em suma: mesmo confrontando que, na ciência geográfica, de modo geral, “as coisas se desenrolam como se nós não estivéssemos conscientes que o homem e o mundo são somente um: “Nós falamos do homem e do espaço, isto soa como se o homem se encontrasse de um lado e o espaço de outro12” (RAFFESTIN, 1989, p. 29), Raffestin, conforme perceberemos, não romperá, do ponto de vista do método, com o formalismo da cientificidade moderna, erigida, sob pressuposto medular, com a separação entre sujeito e objeto. A geograficidade, ou melhor, a condição ontológica heideggeriana no pensamento geográfico de Raffestin retoma, na essência, uma proposição gnosio-epistemológica para instituir as bases de seu novo estatuto na ciência geográfica. Todavia, estas novas bases são, na verdade, bases antigas, já que remetem às questões de um velho problema filosófico acerca do conhecimento humano. Referimo-nos, essencialmente, aos problemas relativos à ordem da “teoria do ser” (social), equivalentes às mediações fundamentais entre “o particular e o geral na realidade objetiva e na consciência, assim como a colocação em evidência da origem das essências ideais e da relação destas últimas com as formações materiais, com os fenômenos da realidade objetiva” (CHEPTULIN, 1982, p. 05). Aludimos, assim, às mediações estruturantes da realidade concreta, que, do ponto de vista teórico, estiveram presentes, sob diversas variações e tratamentos, na história do pensamento ocidental. Tais mediações foram categorizadas de acordo com os sistemas filosóficos idealistas que as embasavam, de modo que “espírito” e “matéria”, “essência” e “acidente”, “substância” e “ato”, “ser” e “ente”, foram, por exemplo, algumas dessas variações que consubstanciaram as formas de articulação entre o pensamento humano e o mundo exterior na produção da cognoscibilidade das coisas. 12 “Les choses se déroulent comme si nous n’étions pas conscients que l’homme et la terre ne forment qu’un: ‘Nous parlons de l’homme et de l’espace, ce qui sonne comme si l’homme se trouvait d’um côté et l’espace de l’autre” (versão original). 44 Por sua vez, todas as diversas ontologias pré-marxistas, dos gregos a Hegel, sustentaram o pressuposto de tratarem-se de elementos profundamente dicotomizados, sendo, pois, que a “ideia” não poderia vir ou originar-se da “matéria”. Esta divisão carregava, por sua vez, a hierarquia entre as determinações do real: a abstração (ser) é o que daria inteligibilidade ao que é existente (ente), de modo que a “matéria” não-é sem a “ideia”, ou seja, perpetuava-se, assim, “a ilusão de conceber o real como resultado do pensamento que se absorve em si, procede de si, move-se por si” (MARX, 2008, p. 259). De acordo Lessa (2015), todos os grandes sistemas filosóficos anteriores a Marx reproduziram, na prática, uma factível inversão nas sociedades de classe, posto que, no plano teórico, conservaram duas grandes ilusões. As sociedades de classe, sabemos, apenas podem existir se a classe dominante planejada e cotidianamente, de forma organizada e sistemática, forçar os trabalhadores a produzirem a sua riqueza privada. Forçar, aqui, no sentido literal: pelo uso da força, da violência. As sociedades escravistas apenas podem existir e se reproduzir se os senhores de escravos, cotidianamente, organizarem a aplicação da violência sobre os seus escravos. Algo similar ocorre com o feudalismo: se não for pela ação consciente da classe dominante na organização da opressão dos “de baixo”, não há modo de produção feudal que perdure. No modo de produção capitalista, a situação não é essencialmente diferente. Isto é uma lei universal: as classes dominantes têm que criar o Estado, as leis, o exército, o dinheiro, o mercado; têm que organizar o transporte, a Educação, a ideologia justificadora de seu poder, têm que organizar a produção, o comércio, o transporte, etc., pois, caso contrário, não há reprodução possível das sociedades de classe. Nos nossos dias, sem que a classe dominante crie, organize e mantenha desde os instrumentos de repressão (o Direito, o Estado, a política, a ideologia, os costumes, a tortura, as prisões, a polícia, etc.) até a produção (articular em unidades produtivas matéria-prima, força de trabalho, capital etc.) não há reprodução de capital possível. Percebam o efeito disso na consciência dos seres humanos, no longo prazo: ainda que a riqueza seja produzida pelos trabalhadores, quem organiza e mantém a exploração dos trabalhadores não são os próprios trabalhadores e sim as classes dominantes. Disso decorrem duas ilusões que possuem uma enorme aparência de verdade, bem consideradas as coisas, foram unanimemente consideradas verdadeiras no passado e, mesmo hoje, sua aparência de verdade não se dissipou por completo. A primeira ilusão é a de que os “verdadeiros” produtores seriam as classes dominantes, não os trabalhadores. Aristóteles, o maior pensador grego, não tinha dúvidas nesse sentido. Bem mais tarde, na passagem do século 18 ao 19, os melhores economistas já sabiam que toda a riqueza é produzida pelos trabalhadores. Mas, argumentavam que se a burguesia não organizasse a produção, o trabalhador não teria emprego e a produção não ocorreria. Concluíam, então, que a verdadeira classe responsável pela produção e pela prosperidade social seria a burguesia. Ela seria a “autêntica” classe produtora. 45 Por outro lado, todas as classes trabalhadoras pré-capitalistas (ou seja, excetuando-se a classe operária) não podiam se opor, de fato e na prática, à essa ilusão. Como as classes sociais ainda eram indispensáveis para o rápido desenvolvimento das forças produtivas, aos trabalhadores não restava alternativa senão a de serem explorados. Essa situação histórica fazia com que, mesmo entre os trabalhadores, soasse como verdadeira a ilusão de que eles dependiam da classe dominante – a ilusão de que a classe dominante deveria, sempre, dirigir a sociedade. Daqui nasceu a segunda ilusão: a de que a classe dominante seria a criadora da “civilização”. A primeira ilusão, dizíamos, era a de a classe dominante ser a “autêntica” classe produtora. A segunda ilusão é esta: que a sociedade de classes é obra da classe dominante; ou seja, que é o projeto pensado pela classe dominante que faz da sociedade o que a sociedade é. (LESSA, 2015, n/p). Não foi à toa, neste sentido, as diversas tentativas de desmistificação que Marx deflagrou contra as dicotomias relativas ao trabalho intelectual e o trabalho manual, ainda, ideologicamente, operantes nos tempos atuais. De qualquer modo, o que é preciso ratificar destas breves reflexões acerca dos sistemas filosóficos idealistas até Marx e Engels, é que todos eles ecoaram, entre muitas inflexões e especificidades, o mesmo mantra: a separação equivocada entre o que é “material” e o que é “imaterial”, ao passo que tudo o que existe (ou melhor, “tudo o que é”, ontologicamente falando) deriva da materialidade – toda a realidade é material13 –, sob diferentes formas de organização e reprodução (inorgânica, orgânica e social) (LESSA, 2015; LUKÁCS, 2010). Portanto, ao refletirmos sobre as mediações estruturantes da realidade concreta, geradas no movimento imanente da história dos homens, significa, em primeiro lugar, reconhecer que a objetividade existe independentemente da consciência humana (o fato dos cientistas desconhecerem a cura para o Covid-19 não elimina, em qualquer parcela, o quantum de objetividade do vírus sobre a realidade humana, modificando, inclusive, radicalmente a relação dos homens com a práxis e com todos os setores da vida cotidiana). Todavia, deve-se reconhecer, por outro lado, que a razão humana não tem um papel inativo sobre a objetividade. A supremacia da dimensão objetiva não elimina o modo pelo qual o pensamento teorizado metodicamente torna-se capaz de reconstruir os traços constitutivos da totalidade concreta e tecer alternativas às formas de alienação do ser humano. A função seminal do conhecimento filosófico e científico é, efetivamente, a 13 Como afirma Marx (2013, p. 76): “para mim, ao contrário, o ideal não é mais que o material, transposto e traduzido na cabeça do homem”. 46 reconstrução categorial do pensamento sobre a realidade, dando a ela inteligibilidade e sentido gnosio-epistêmico. Porém, o que a ontologia materialista marxiana (LUKÁCS, 2010) tem salientado em nossas compreensões teóricas e de método são as armadilhas que a “abstração pura” pode gerar na produção do conhecimento humano, engendrando sínteses fraseológicas de um sistema de concepções ao invés de enfrentar a totalidade concreta. Um enfrentamento que não demonstrará a unidade resolutiva entre sujeito e objeto, mas a síntese contraditória, desarmônica e profundamente relacional desta totalidade, de modo que o pensamento abstrato, como diria Marx na crítica ao método hegeliano nos “Manuscritos Econômico-Filosóficos”, não se valida na prova lógica, mas nas formas relacionais de produção e reprodução da existência do homem efetivo. Confirmamos, assim, o pressuposto de que tais mediações estruturantes da realidade foram, progressivamente, alçadas ao discurso do método14 no projeto moderno (e burguês) do conhecimento científico. Nesta direção, o movimento mediativo existente na realidade material entre subjetividade e objetividade foi, aos poucos, operacionalizado no interior do discurso disciplinar antiontológico, configurando, finalmente, a questão crucial que envolve o problema do método científico: a relação entre sujeito e objeto15. Neste sentido, no âmbito do debate estritamente gnosio-epistemológico, a relação sujeito e objeto é estéril de historicidade. É percepção de fenômenos, é faculdade intelectual de ordenamento objectual, comparação, articulação e separação da “matéria bruta” e caótica dos fenômenos empíricos na conformação rigorosa de uma representação, de um discurso metódico. Como concebe Tonet (2013, p. 42), trata-se de uma produção do conhecimento em que, na verdade, “não há uma relação entre um sujeito e um objeto externo a ele, mas entre dois momentos do próprio sujeito”, manifestando a regência de um sujeito criador do real em sua máxima expressão: “o processo do pensamento é o 14 Não é por acaso, como já destacou Tonet (2013, p. 36), que muitos pensadores modernos, como Galileu, Bacon, Descartes, Kant, e mesmo Hobbes e Locke, tenham se dedicado, ou, ao menos, iniciado, importantes obras voltadas à teoria do conhecimento (ou o modo pelo qual o exercício adequado da razão deve proceder na busca do conhecimento “verdadeiro”, um “em-si” dos objetos e fenômenos sempre inalcançável, não- empírico, ininteligível). 15 Uma explanação mais cuidadosa desta trajetória pode ser encontrada em JAPIASSU, H.