UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA - UNESP Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara - Campus de Araraquara ROBERTA NUNINO RIBEIRO CARTOGRAFIAS DO EFÊMERO: UFTM e o enfrentamento a processos antidemocráticos Araraquara 2024 2 ROBERTA NUNINO RIBEIRO CARTOGRAFIAS DO EFÊMERO: UFTM e o enfrentamento a processos antidemocráticos Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade Esta- dual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, para obtenção do título de Mestra em Ciências Sociais. Área de Concentração: Diversidade, Identidades e Direitos Orientador: Prof. Dr. Edmundo Antonio Peggion Araraquara 2024 3 ROBERTA NUNINO RIBEIRO CARTOGRAFIAS DO EFÊMERO: UFTM e o enfrentamento a processos antidemocráticos Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Facul- dade de Ciências e Letras de Araraquara, para obtenção do título de Mestra em Ciências Sociais. Área de Concentração: Diversidade, Identidades e Direitos Data da defesa: 14/08/2024 Banca Examinadora: ______________________________________ Prof. Dr. Edmundo Antonio Peggion UNESP - FCLAr Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara ______________________________________ Prof. Dr. Wagner da Silva Teixeira UFTM - Universidade Federal do Triângulo Mineiro ______________________________________ Prof. Dr. Renata Medeiros Paoliello UNESP - FCLAr Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara Figura 1 – Orgulho anônimo Fonte: acervo pessoal Dedico esta pesquisa ao Movimento Estudantil da UFTM 2014 6 Agradecimentos Primeiramente, gostaria de expressar meus mais sinceros agradecimentos à minha família, Iracelis, Paulo e Nathália, cujo apoio e incentivos aos estudos, formação profis- sional e construção de carreira foram fundamentais até aqui. A eles, dedico este momento, sabendo que cada palavra escrita carrega o reflexo de seus trabalhos. Agradeço especialmente ao meu companheiro Matheus, por estar ao meu lado em todos os momentos, oferecendo amor e encorajamento. Sua presença constante e seu apoio foram essenciais para a realização deste trabalho. À minha filha Nina, minha maior fonte de inspiração e entrega, cuja existência me impulsiona a transpor todos os dias, as bordas de mim mesma em direção a um horizonte de sonhos e desejos realizáveis. Meus sinceros agradecimentos ao meu orientador Edmundo, cuja orientação, pa- ciência e generosidade foram imprescindíveis para a concretização deste trabalho. Sua disponibilidade para orientar-me e ao mesmo tempo preservar minhas afinidades e esco- lhas acadêmicas em cada etapa do processo foram fundamentais para meu crescimento acadêmico e pessoal. Ao Professor Wagner que pode acompanhar meu processo de for- mação acadêmica, incentivando ao longo dos anos persistir nesta minha pesquisa que teve início ainda na graduação. Por fim, registro minha gratidão a UNESP-FCLAr que me recebeu em seu Pro- grama de Pós-Graduação, proporcionando a possibilidade de me reinserir na carreira aca- dêmica pós maternidade. Também agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pes- soal de Nível Superior (CAPES) pelo financiamento e apoio concedidos, sem os quais esta pesquisa não teria sido possível. A CAPES desempenha um papel crucial no desen- volvimento da ciência e da educação no Brasil, e sou imensamente grata por ter sido uma beneficiária de seus programas. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. 7 No descomeço era o verbo. Só depois é que veio o delírio do verbo. O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos. A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som. Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira. E pois. Em poesia que é voz de poeta, que é voz de fazer nascimentos – O verbo tem que pegar delírio (BARROS, O livro das ignorãças, 1993, p. 67). 8 RESUMO Esta pesquisa investiga um acontecimento ocorrido na Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) considerando os contextos de enfrentamento aos processos antidemo- cráticos que se deram na última década brasileira (2012 – 2022), especialmente no go- verno Bolsonaro. O acontecimento refere-se ao apagamento do que foi considerado a identidade cultural e um patrimônio simbólico da UFTM. Tratava-se de várias pinturas no campus central, o Centro Educacional (CE), que foram apagadas por uma imensa re- pintura branca. Esta investigação não se estrutura de modo a alcançar objetivos, mas sim de produzir perguntas que nos levam a experimentar inteligibilidades a respeito da temá- tica, além de um comprometimento democrático e histórico com as diversas narrativas que insurgem em relação ao episódio em questão. Adota-se como método a cartografia, assim como diferentes aberturas teórico-analíticas que possibilitam produzir compreen- sões articuladas com a política nacional e estabelecer diálogos com os diversos fenôme- nos que se apresentam frente aos dilemas plurais do nosso tempo e outros que se apresen- tarão durante este percurso de pesquisa. Palavras-chave: Movimento estudantil; UFTM; Covid-19; Cartografia. Democracia. 9 ABSTRACT This research investigates an event that occurred at the Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) considering the contexts of confronting anti-democratic processes that took place in the last Brazilian decade (2012 – 2022), especially during the Bolsonaro government. The event refers to the erasure of what was considered the cultural identity and symbolic heritage of UFTM. These were several paintings on the central campus, the Educational Center (CE), which were erased by an immense white repainting. This inves- tigation is not structured to achieve objectives, but rather to produce questions that lead us to experience intelligibility regarding the topic, in addition to a democratic and histo- rical commitment to the different narratives that arise in relation to the episode in ques- tion. Cartography is adopted as a method, as well as different theoretical-analytical ope- nings that make it possible to produce understandings articulated with national politics and establish dialogues with the different phenomena that present themselves in the face of the plural dilemmas of our time and others that will present themselves during this research journey. Keywords: Student movement; UFTM; Covid-19; Cartography; Democracy. 10 Lista de Figuras Figura 1 – Orgulho anônimo .............................................................................................5 Figura 2 – Representação de Rizoma ..............................................................................26 Figura 3 – Representação do Noroeste da Argentina, Luíz Quiroga (1974) ...................27 Figura 4 – Representação de uma intensidade ................................................................29 Figura 5 – Não faz parte da solução ................................................................................43 Figura 6 – O amanhã .......................................................................................................44 Figura 7 – Nada do que foi será.......................................................................................44 Figura 8 – Paredes falam .................................................................................................44 Figura 9 – Eu e você ........................................................................................................45 Figura 10 – Por quê?........................................................................................................45 Figura 11 – Muda ...........................................................................................................46 Figura 12 – Dê pinta ........................................................................................................47 Figura 13 - Banheiros ......................................................................................................47 Figura 14 – Que só os beijos lhe calem a boca................................................................48 Figura 15 – Portas e armários ..........................................................................................48 Figura 16 – Mão que cuida ..............................................................................................49 Figura 17 – Que a Universidade se pinte de povo! .........................................................49 Figura 18 – Panteras Negras ............................................................................................50 Figura 19 – Frida Kahlo ..................................................................................................50 Figura 20 – Mulheres que lutam e sonham .....................................................................51 Figura 21 – Lento mais vem ............................................................................................53 Figura 22 – Lento mais vem II ........................................................................................53 Figura 23 – Lento mais vem III .......................................................................................54 Figura 24 – Lento mais vem IV .......................................................................................54 Figura 25 – Liberdade é pouco ........................................................................................55 Figura 26 – Fernando Pessoa ...........................................................................................56 Figura 27 - Cartola...........................................................................................................56 Figura 28 – Elis Regina ...................................................................................................57 Figura 29 – Antonin Artaud ............................................................................................57 Figura 30 - Onde não puderes amar, não te demores ......................................................58 Figura 31 – Ricardo Reis ................................................................................................58 Figura 32 – Arte é arma ...................................................................................................60 Figura 33 – Não à criminalização do movimento ...........................................................64 11 Figura 34 – Polícia Federal atrás de alunos .....................................................................65 Figura 35 – Com quantos quilos de medo se faz uma tradição? .....................................68 Figura 36 – Na luta de classes .........................................................................................87 Figura 37 – Cidadãos mudam o mundo ...........................................................................88 Figura 38 – Chico Science ...............................................................................................89 Figura 39 – Sala Gilles ....................................................................................................90 Figura 40 – É preciso cultura pra para cuspir na estrutura ..............................................91 Figura 41 – Uma flor nasceu no asfalto ...........................................................................92 Figura 42 – Educação não é mercadoria ..........................................................................93 Figura 43 – Jovem e revolucionário ................................................................................95 Figura 44 – Como é difícil estudar calado .......................................................................96 Figura 45 – O branco .......................................................................................................97 Figura 46 – O branco II .................................................................................................101 Figura 47 - Corredores...................................................................................................102 Figura 48 – O branco III ................................................................................................102 Figura 49 - Portas ..........................................................................................................103 Figura 50 – Nevermore I ...............................................................................................103 Figura 51 – Nevermore II ..............................................................................................104 Figura 52 – Nevermore III .............................................................................................104 Figura 53 – O branco leva a loucura .............................................................................105 Figura 54 – Este é o laboratório ....................................................................................111 Figura 55 – Viva o caos .................................................................................................112 Figura 56 – Che Guevara ...............................................................................................112 Figura 57- Rubrica .........................................................................................................113 Figura 58 – Lula livre ....................................................................................................113 Figura 59- Até logo! ......................................................................................................122 12 Lista de Abreviações e Siglas ADUFTM Associação dos Docentes da Universidade Federal do Triângulo Mineiro AGU Advocacia Geral da União ANCINE Agência Nacional de Cinema ANDES-SN Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições do Ensino Superior CA Centro Acadêmico CE Centro Educacional CONSU Conselho Universitário CPC Centro Popular de Cultura DCE Diretório Central dos Estudantes ENADE Exame Nacional de Desempenho do Estudante FBN Fundação Biblioteca Nacional FIES Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior FMTM Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro FUNARTE Fundação Nacional de Arte ICBN Instituto de Ciências Biológicas e Naturais ICENE Instituto de Ciências Exatas, Naturais e da Educação ICS Instituto de Ciências da Saúde IELACHS Instituto de Educação, Letras, Artes, Ciências Humanas e Sociais IPHAN Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional LGBTQIAPN+ Lésbicas, gays, bissexuais, trans, queer, intersexo, assexuais/arromânticas/agênero, pan/poli, não-binárias e mais ME Movimento Estudantil MEC Ministério da Educação MINC Ministério da Cultura PDE Plano de Desenvolvimento da Educação PNAES Plano Nacional de Assistência Estudantil PROINES Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento das Instituições de Ensino Superior PROUNI Programa Universidade Para Todos PSD Partido Social Democrata PSP Partido Social Progressista 13 PTB Partido Trabalhista Brasileiro REUNI Programas de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Fede- rais SCDC Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural SISU Sistema de Seleção Unificada UDN União Democrática Nacional UFTM Universidade Federal do Triângulo Mineiro UNE União Nacional dos Estudantes 14 Sumário Apresentação ................................................................................................................16 1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................19 2 ROTEIRO DE PRÉ-COISAS PARA UMA EXCURSÃO: CARTOGRAFANDO O MÉTODO ....................................................................................................................24 2.1 Postura metodológica .............................................................................................24 2.2 Sobre a cartografia .................................................................................................26 2.3 A análise dos dados numa lógica das intensidades ................................................29 2.4 Analisadores dos processos ...................................................................................32 2.5 Apresentação de categorias gerais de análise ........................................................32 3 ERA UMA VEZ UM ESPAÇO: CONTEXTOS HISTÓRICOS, SOCIAIS E POLÍTICOS ................................................................................................................ 35 3.1 Uberaba, Minas Gerais ..........................................................................................35 3.2 Surgimento da Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro – 1953 ..................37 3.3 O REUNI e a Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) - 2005 .........39 3.4 Manifestações do Movimento Estudantil - 2014 ...................................................42 3.5 O movimento estudantil no Brasil .........................................................................51 3.5.1 O movimento estudantil e as forças repressoras .................................................52 3.5.2 O novo há de surgir .............................................................................................53 3.5.3 Os instrumentos de luta: arte e cultura................................................................55 3.6 O CPC ....................................................................................................................59 3.8 Protesto, intervenções artísticas ou depredação do espaço público? .....................61 4 EXPERIMENTAÇÕES DA CARTÓGRAFA: DISCUSSÃO E ESBOÇOS DE ANÁLISE ................................................................................................................... 66 4.1 Categoria de análise 1: percursos pelo tempo e espaço .........................................66 4.1.1 Considerações sobre Patrimonio Cultural...........................................................68 4.1.2 Um direito social com base no território ............................................................70 4.1.3 Patrimônio e Memória social ..............................................................................71 15 4.1.4 Público versus privado ........................................................................................72 4.1.5 A democracia e articulações micro e macrossociais ...........................................74 4.2 Categoria de análise 2: As imagens como discursos .............................................83 4.2.1 As Pinturas na UFTM a partir da esquizoanálise ...............................................85 4.2.2 Máquinas Desejantes ..........................................................................................86 4.2.3 Fluxos e Linhas de Fuga .....................................................................................88 4.2.4 Destruição ...........................................................................................................93 4.2.5 O apagamento .....................................................................................................97 4.2.6 O Apagamento como Discurso ...........................................................................97 4.2.7 Noção de Arquivo ...............................................................................................98 4.2.8 Representações de Poder ..................................................................................100 4.3 Categoria de análise 3: Relações de Poder e Relações de Força .........................105 4.3.1 Ciberespaço: uma geografia virtual ..................................................................106 4.3.2 – A formação do dispositivo .............................................................................109 4.3.3 Um desfecho às avessas ....................................................................................116 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................118 REFERÊNCIAS.........................................................................................................123 Bibliografia Consultada .............................................................................................129 16 Apresentação Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou (Barros, 2016, p. 49). Esta apresentação tem como objetivo compartilhar minha trajetória acadêmica, percursos da minha pesquisa e algumas das descobertas que me trouxeram até aqui. Logo de início faz-se pertinente refletir sobre o modo de operar os escritos acadêmicos na ten- tativa de exercitar uma escrita-potência, tendo como ideia central na construção dos tra- balhos também experimentar a nós mesmos, por diferentes modos, no ato em que produ- zimos tais textos. Logo, começo com uma breve apresentação sobre mim, apostando que isto se correlaciona com tomadas de decisões e caminhos elegidos nesse desvelar de ideias e investigações. Sou formada em Psicologia pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), pós-graduada em Arte-Educação, com especialização em Psicologia Clínica Psicanalítica e atualmente mestranda em Ciências Sociais vinculada ao Programa de Pós- Graduação da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara (UNESP/FCLAR) e ex-bol- sista CAPES. Ao longo da minha trajetória profissional realizei trabalhos vinculados es- pecialmente à área de Políticas Públicas, atuei em diversas instituições como o Centro Atenção Psicossocial (CAPS), Centro de Referências de Assistência Social (CRAS), Cen- tro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro - POP), além de passagens por variadas Unidades Básicas de Saúde (UBS), atuando diretamente na defesa do SUS e da Reforma Psiquiátrica. Integrei o Diretório Central dos Estudantes (DCE) da UFTM, o Centro Acadêmico (CA) do curso de Psicologia e fui militante do Movimento Estudantil. Considero essas experiências como pilares de meu desenvolvimento enquanto sujeita político e para mi- nha formação profissional. Compus também projetos de extensão, iniciação científica e propus como pesquisa relacionada ao trabalho de conclusão de curso (TCC) os estudos em Análise do Discurso e a investigação de um marco político específico na história do Movimento Estudantil da UFTM, trabalho esse que abre os caminhos dessa pesquisa que estão prestes a ler. Em seguida, fui mãe. Experiência visceral que escancara, para além de qualquer idealização, a maternidade enquanto trabalho. A escolha em Ciências Sociais, acontece agora, por acreditar no terreno fértil que são as partilhas de referenciais teóricos advindos 17 de outras disciplinas e campos de conhecimento. Uma abordagem interdisciplinar pode ajudar a desafiar a hegemonia disciplinar e abrir espaço para diferentes perspectivas, co- nhecimentos e metodologias, incluindo aqueles que foram historicamente marginalizados pelo cânone acadêmico dominante. Minha intenção aqui não é esmiuçar esta discussão teórica e seus efeitos, mas mencionar por onde fui tateando quando venho da Psicologia me aventurar pelas Ciências Sociais. Assim sendo, tenho minha orientação direcionada pelo Prof. Dr. Edmundo Peg- gion, antropólogo que acreditou nas possibilidades criativas e potentes de trabalharmos juntos. No universo das Ciências Sociais tive minha afinidade especialmente com a An- tropologia, ainda que a Sociologia e a Ciência Política estivessem presentes também em minhas investigações. A imersão foi fértil. Cursei a disciplina obrigatória Teoria e Meto- dologia nas Ciências Sociais que me possibilitou o contato com esse tripé de campos do saber. Em seguida, realizei a disciplina Tópicos em Antropologia Contemporânea: Dis- curso, Poder e Mediações nos Processos Culturais, com a Prof.ª Dra. Renata Paoliello. Fui aluna especial do Prof. Dr. Reinaldo Furlan, filósofo vinculado ao Programa de Pós- Graduação em Psicologia da Universidade de São Paulo (FFCLRP - USP), na disciplina Figuras do Si Mesmo. Participei do Programa de Atividades e Aperfeiçoamento em Do- cência no Ensino Superior (PAADES), na disciplina Escola Francesa de Antropologia, de responsabilidade do Departamento de Ciências Sociais do Câmpus de Araraquara, minis- trada pelo Prof. Dr. Edmundo Peggion. Integrei o grupo de pesquisa Centro de Estudos Indígenas Miguel Angel Menéndez (CEIMAM), coordenado também pelo meu orienta- dor. Acredito que seja de grande importância destacar que meu primeiro ano de mes- trado foi em grande medida dedicado à realização das disciplinas e leituras de uma grande variedade de trabalhos e produções em Ciências Sociais. Ainda que mantivesse diálogo com a área e partilhasse de intersecções que aconteciam com a minha formação em psi- cologia, muitos dos cânones ainda eram desconhecidos para mim. Foi uma empreitada empolgante e desafiadora, me deslocando constantemente de uma leitura micropolítica da subjetividade para os seus imbricamentos nos fenômenos macropolíticos e consequen- temente sociais, a partir de outro lugar de compreensão. Ao final de dezembro de 2022, fui selecionada pelo Programa Escala Montevideo (AUGM), tendo a imensa oportunidade de viver uma experiência de internacionalização para cursar uma disciplina na Universidad de la Republica em Montevideo, Uruguay. Fui financiada pela AUGM para um intercâmbio de curta duração e tutelada pela Prof.ª Dra. 18 Niki Johnson. Fui muitíssimo bem recepcionada pela UDELAR em seu Programa de Ma- estría de Ciencias Sociales e por seu então coordenador Guillermo Fuentes. Elegi como atividade a disciplina Analisís Crítica del Discurso, que se desenvolveu de forma exclu- sivamente presencial, com leituras, discussões e apresentações relacionadas a bibliografia proposta pela professora e minha tutora. A experiência da língua, do deslocamento pelo espaço e experimentação das geografias na composição de subjetividades foi uma expe- riência incrível para mim. Agradeço a UNESP por proporcionar o acesso a estas experi- ências. O que foi discorrido até aqui cumpre a solicitação da normativa para o exame de qualificação, entretanto mantenho esta apresentação no meu texto final, considerando os compromissos ético-metodológicos que assumo como postura na pesquisa acadêmica/ci- entífica e que, tudo que foi compartilhado até aqui, já esboça-se também como parte da minha caminhada metodológica. Todas essas composições, relevos e paisagens anunciam as trocas com campos de saber e experimentações variados. Esta prática científica inter- roga seus limites e busca evidenciar suas articulações para além das fronteiras disciplina- res estabelecidas desejando, de certo modo, afirmar alianças conceituais. 19 1 INTRODUÇÃO O que não sei fazer desmancho em frases (Barros, 2016, p. 46). Esta pesquisa propõe-se a investigar um acontecimento ocorrido na Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) considerando os contextos e insurgências de en- frentamento aos processos antidemocráticos que se deram na última década brasileira (2012 – 2022). O acontecimento refere-se ao apagamento do que foi considerado a iden- tidade cultural1 e um patrimônio simbólico da UFTM. Tratava-se de várias pinturas2 [ex- pressões, frases, imagens e produções artísticas] nas paredes de seu campus central, o chamado Centro Educacional (CE). Foram apagados por uma imensa repintura branca registros e materialidades verbo-visuais que compunham retratos da memória de movi- mentos e lutas sociais-estudantis, além dos diferentes grupos que se constituíram ao longo do tempo, incluindo o protagonismo do Movimento Estudantil (ME)3. É tomado conhe- cimento pela comunidade acadêmica da larga extensão de tinta branca por todas as pare- des do prédio, resultando neste apagamento, na manhã de 16 de março de 2021, período este em que a UFTM se encontrava fechada em suas atividades devido a medida de iso- lamento social decorrente da pandemia de Covid-19, iniciada em março de 2020. O epi- sódio em questão acontece em um momento em que não haveria conhecimento público da ação e consequentemente movimentos de resistência/oposição a suposta necessidade de manutenção do prédio, sendo este o argumento dos gestores da UFTM em nota pública oficial. Considerando este cenário, apreciar e cartografar enunciados a fim de responder a uma contingência de problemas que se constituem em relação ao apagamento de uma memória social num contexto de não-ocupação do espaço4, pareceu pertinente, tendo em 1 A Nota de Repúdio do Diretório Central dos Estudantes da UFTM está disponível em: https://www.face- book.com/DCEdaUFTM/posts/1903071419848875 . Acesso em: 07 out. 2021. 2 Termo atribuído por parte da Comunidade Acadêmica ao referir-se as paredes do CE. 3 Mesquita (2003) destaca que o Movimento Estudantil vai além das organizações formais de estudantes, manifestando-se na própria dinâmica de criação de interesses e pautas, que são diariamente transformadas pela realidade, pelas interações universitárias e pela sociedade. 4 Segundo Hamann, Tedesco, Maracci-Cardoso e Viscardi (2013), o conceito de espaço remete ao plano físico, que pode ou não ser mediado por relações que o constituam como lugar. Quando esses espaços são utilizados apenas para trânsito e circulação, sem que seus atributos sejam interpretados simbolicamente, eles são considerados "não lugares" – espaços que não possuem identidade nem relações significativas. Os movimentos sociais, ao ocuparem esses espaços como forma de protesto, promovem uma nova simboliza- ção, recuperando a concepção de lugar que estava em declínio. Dessa forma, a ocupação fomenta uma https://www.facebook.com/DCEdaUFTM/posts/1903071419848875 https://www.facebook.com/DCEdaUFTM/posts/1903071419848875 20 vista a constante observância das dimensões políticas dos processos macro e microssoci- ais e a tentativa constante de reconhecê-las. É um exercício dimensionar o quanto a reflexão política exige mobilizar a noção de “lugar”. Para o filósofo Vladimir Safatle (2022), os acontecimentos políticos ocorrem em um lugar e, mesmo quando ocorrem simultaneamente em vários lugares, essa varie- dade sempre preserva sua heterogeneidade, sua possibilidade de cada um desses lugares específicos se tornarem pontos de partida de sequências autônomas de novos aconteci- mentos. Esta investigação não se estrutura tradicionalmente de forma a alcançar objetivos, mas sim de perseguir perguntas que nos levam a experimentar e produzir diferentes inte- ligibilidades a respeito da temática, além de um comprometimento democrático e histó- rico com as diversas narrativas que insurgem em relação ao episódio em questão. Busca- se também formas de compreensão e diálogos aos diversos fenômenos que se apresentam frente aos dilemas plurais do nosso tempo. As perguntas se apresentam a partir do seguinte problema: Por que apagar o pa- trimônio simbólico e artístico-cultural da UFTM? Por que durante um período de não- ocupação do espaço? Por que agora?5 A compulsoriedade das paredes brancas, por cima das cores, parece apontar para uma representação simbólica de processos antidemocráti- cos que vivemos nos últimos anos, seguindo na contramão do estabelecimento de diálo- gos e rejeitando formas de organização e reivindicação. Busco, por meio de diferentes aberturas teórico-analíticas, principalmente a partir de conceitos advindos da Esquizoanálise (Deleuze; Guattari. [1972-1973]; [1980] obra antiedipo e mil platôs respectivamente) e a noção de Discurso (Foucault, 1970 ordem do discurso), cartografar e produzir compreensões articuladas com a política nacional sobre esses acontecimentos e outros que se apresentarão dado este percurso. Adota-se como método a cartografia. Não a conhecida na Geografia, “ciências dos mapas” e representação de um todo estático, mas a cartografia como um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de transformação da paisagem (Rolnik, 2016). Cartografia enquanto busca de práticas que dizem respeito às estratégias das formações do desejo no campo social. “Todas as entradas são boas, desde que as apropriação tanto física quanto simbólica, estabelecendo novas relações e afirmando identidades no conví- vio entre o indivíduo, o grupo e as possibilidades de "ser". 5 O momento do apagamento ocorreu no ano de 2021, mesmo período em que esta pesquisa passou a ser realizada. 21 saídas sejam múltiplas” (Rolnik, 2016). Opta-se por conceitos que possam fornecer pistas para as discussões, operando como um plano de abertura em construção, aberto às inten- sidades que irrompem ao invés de apenas focar nos sistemas totalizados e os índices de frequência de aparição de determinado elemento. Uma imagem comum de pensamento do método de pesquisa, é uma figura de linha reta, um ponto de partida e outro de chegada. Aqui o método não é caminho para saber sobre as coisas do mundo, mas um modo de pensamento que se desdobra acerca delas e que as toma como testemunhos de uma questão: a potência do pensamento. A cartografia é uma figura sinuosa, que se adapta aos acidentes do terreno, uma figura do desvio, do rodeio, da divagação, da extravagância e da exploração. A cartografia converte o método em problema e torna-se metodologicamente inventiva. Não há como desenvolver uma abordagem da subjetividade em perspectiva hete- rogênea sem ultrapassar as barreiras que confinam cada disciplina a um espaço próprio. A necessidade de um diálogo interdisciplinar é afirmada no seguinte fragmento: Pretende-se atravessar esses contornos [os contornos de disciplinas instituídas] para dar passagens a empréstimos conceituais, contrabando teóricos, contágio entre práticas, reconfiguração dos objetos, tal como se estabeleceram a partir dessa distribuição. O que se exige do pesquisador, nesse contexto parece que não se restringe a aplicação de conceitos já elaborados em outros territórios disciplinares, mas à discussão permanente acerca de possíveis compatibilida- des e, sobretudo, dá sustentação de polêmicas em torno dos materiais com os quais trabalhamos constituindo alianças não previstas entre saberes (Deusdará, 2013, p. 2012). A partir disto constrói-se aqui o caminho no próprio processo de escrita, se apro- ximando da posição do cartógrafo, cuja tensão é pautada pelo acontecimento6. Sobre a escrita e a política, A palavra política, assim como a palavra escrita, é certamente tomada em uma multiplicidade de sentidos, e a conjunção das duas está submetida à lei dessa multiplicação. (...) O conceito de escrita é político porque é o conceito de um ato sujeito a um desdobramento e a uma disjunção essenciais. Escrever é o ato que, aparentemente, não pode ser realizado sem significar, ao mesmo tempo, aquilo que se realiza: uma relação da mão que trata linhas ou signos com o corpo que ela prolonga; desse corpo com a alma que o anima e com outros corpos os quais ele forma uma comunidade, dessa comunidade com a sua pró- pria alma. (...) Antes de ser o exercício de uma competência, o ato de escrever é uma maneira de ocupar o sensível e dar sentido a essa ocupação. Não é por ser o instrumento do poder, nem por ser a via real do saber que a escrita é coisa política. Ela é coisa política porque seu gesto pertence à constituição estética 6 Considera-se aqui acontecimento a partir de perspectivas foucaultianas que indicavam a estrita ligação entre trabalho historiográfico e o trabalho filosófico. 22 da comunidade e se presta, acima de tudo alegorizar essa constituição (Ran- cière, 2014, p. 7). Dessa maneira, pretende-se expressar de forma escrita e intencional as desconti- nuidades desta pesquisa, os desvios. É também sobre forjar conceitos que talhem aconte- cimentos por vir, inaugurando modos de produzir conhecimento sem desejo de totaliza- ção. Há um compromisso com outros regimes de afetação, outros campos de ação política e da busca por ética, autonomia, justiça, igualdade e direitos. A escrita é liberta do ato de conferir apenas legitimidade ou representatividade aos enunciadores e seus receptores autorizados. Escreve-se sobre o que é subtraído dos frágeis suportes dos chamados resul- tados, focando nas texturas das coisas, sem a pretensão de que o sentido possa se separar do corpo que o apresenta. Assim, no Capítulo 1, é desenvolvida conceitualmente a cartografia como meto- dologia central desta pesquisa, além de descrever os procedimentos e percursos metodo- lógicos propostos ao longo deste trabalho, de forma a destacar a cartografia não apenas como uma ferramenta operacional de obtenção de resultados, mas uma proposta que busca compartilhar principalmente a postura ético-metodológica assumida durante todo o processo. A cartografia possibilitou análises e tecituras que ultrapassam a dimensão de representação de materialidades discursivas e que operam como um meio de captar os sensíveis, o extralinguístico e as diversidades que podem vir a compor determinadas nar- rativas. A discussão inclui uma reflexão sobre como a cartografia permite aberturas in- terdisciplinares para as compreensões e hipóteses, evidenciando sua importância para a construção do conhecimento no contexto específico desta investigação, que se debruça sobre uma temática consideravelmente original, inaugurando uma pesquisa a cerca deste acontecimento específico da UFTM. No Capítulo 2, foi realizada uma contextualização dos momentos históricos, soci- ais e políticos que contornam o apagamento das pinturas da Universidade Federal do Tri- ângulo Mineiro, situando-os. A compreensão de seu apagamento está intimamente rela- cionada com as condições de seu surgimento, tornando-se fundamental estabelecer um percurso cronológico-geográfico desses acontecimentos. Além disso, este capítulo traz uma discussão acerca do patrimônio cultural, examinando como essas pinturas se torna- ram parte integrante do patrimônio simbólico da UFTM. Este mapeamento-cartografia permitiu um rastreio das forças que atuaram tanto na produção quanto na eliminação des- sas materialidades, revelando as complexas interações entre poder, resistência e identi- dade cultural. 23 Por fim, no Capítulo 3, a análise é estruturada em torno de três categorias princi- pais. Primeiro, em “Percursos pelo espaço e tempo” foram estabelecidas discussões mi- cro e macropolíticas em relação a um recorte de tempo específico da democracia brasi- leira, o governo Bolsonaro. Examina-se como os contextos políticos mais específicos in- fluenciam e são influenciados pelas dinâmicas macropolíticas, como dentro do ambiente universitário. Em seguida, a categoria "Imagens como discursos" foi explorada para in- vestigar de quais maneiras as materialidades verbo-visuais funcionam como veículos de significação e resistência, articulando narrativas que desafiam as normas institucionais. Por último, em as "Relações de poder e relações de força" buscou produzir análises das dinâmicas de resistência e controle, manifestadas nas interações entre os discentes, do- centes, a administração da UFTM e a Polícia Federal, oferecendo uma compreensão crí- tica das disputas simbólicas e políticas que configuram esses acontecimentos. Em suma, esta dissertação tem como proposta desenvolver uma análise abran- gente e crítica dos acontecimentos na Universidade Federal do Triângulo Mineiro, utili- zando a cartografia na condução metodológica para explorar dinâmicas de poder e dis- curso e suas implicações sociais, políticas e culturais. Ao contextualizar o surgimento dessas expressões artísticas no Capítulo 2 e, ao aprofundar-se nas categorias de análise no Capítulo 3, pretende-se traçar diferentes percursos na produção um panorama desses eventos. Ressalta-se que esta é uma pesquisa que inaugura análises acerca desse evento, já que não foram produzidos estudos anteriores que abordem especificamente o acontecido do apagamento, o que representa um desafio significativo na sua produção. No entanto, essa originalidade também oferece a oportunidade de abrir novos caminhos de reflexão e entendimento sobre as práticas e políticas culturais em contextos acadêmicos. 24 2 ROTEIRO DE PRÉ-COISAS PARA UMA EXCURSÃO: CARTOGRAFANDO O MÉTODO A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sa- biá mas não pode medir seus encantos. A ciência não pode calcular quantos cavalos de força existem nos en- cantos de um sabiá. Quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar: divinare. Os sabiás divinam (Barros, 2016, p. 41). 2.1 Postura metodológica Traçar distintas metodologias e percorrer diferentes caminhos, apresentam-se como compromissos necessários quando nos propomos a pesquisar. Cabe-nos, além disso, refletir como estamos conduzindo nossas pesquisas acadêmicas e produções científicas e como consequentemente, nossas escolhas teóricas têm sido favoráveis a determinadas aberturas ou fechamentos ético-epistemológicos. Parece pertinente mencionar que esta pesquisa não tem como objetivo buscar a re- presentatividade do material selecionado. Em vez disso, parte-se da compreensão de que fazer pesquisa é não só analisar o objeto sobre determinado ponto de vista, mas também compartilhar experiências e ramificá-las com as experiências dos outros, respeitando o pro- cesso de composição do próprio material, seus ligamentos e as rupturas que se darão ao longo deste percurso investigativo. A pesquisa não trata apenas de coletar um material, mas de produzi-lo. Não considero que textos se formem de maneira individual, mas sim por meio de diferentes experiências que são interconectadas por ligações invisíveis, desenvol- vendo um contínuo diálogo com múltiplas perspectivas e artesanias, uma bricolagem. O termo francês bricolage é a prática de construir ou criar algo a partir de uma variedade de elementos disponíveis, frequentemente de maneira criativa, carregando con- sigo o sentido de improviso, de “faça você mesmo”. A bricolagem pode ser vista como um emaranhado de possibilidades, e que em termos de investigação deve ser entendida como criação. Criação de um processo marcado pela experimentação, pelo uso/desuso de proce- dimentos, pelos achados e descartes de referências, de objetos de estudo, de perguntas e objetivos. O antropólogo Claude Lévi-Strauss (1989) popularizou o termo no contexto das Ciências Sociais, referindo-se ao processo pelo qual indivíduos ou grupos utilizam os re- 25 cursos culturais à sua disposição para criar significações e práticas. Bricolagem, neste sen- tido, é a construção de um sistema de significados a partir de elementos culturais hetero- gêneos. O autor ao trabalhar com este conceito, explica que (...) o trabalho do bricoleur se caracteriza por um universo instrumental fe- chado em que ele tem sempre que se virar com um conjunto finito de materiais heterogêneos. Este conjunto não é composto conforme algum projeto pré-es- tabelecido, mas é o resultado contingente das oportunidades que lhe foram dis- poníveis; e os elementos recolhidos por ele representam um conjunto de rela- ções concretas ou virtuais entre si, possibilitando operações diversas (Lévi- Strauss, 1989, p. 33). Dessa maneira, bricoleur é aquele que faz o trabalho com as mãos, e para isso ele faz uso de meios indiretos e é comparado com um artista, ou seja, é aquele que inventa maneiras de operar com os recursos de que dispõe, algo que é excêntrico, fora do comum, materiais recolhidos e guardados para serem utilizados depois. Deleuze e Guattari (1995), influenciados por este conceito de Leví-Strauss (1989), produzem novos conceitos e ferra- mentas que permitissem pensar um novo fazer, um fazer crítico-criativo de articular dife- rentes saberes e consequentemente elaborar intervenções que visem acompanhar as deman- das que o contexto exige, [...] bricolagem possui um sentido parcialmente parecido com o conceito de rizoma, pois, um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas. Rizoma é aliança, unicamente aliança, ele tem como te- cido a conjunção, há nesta conjunção força suficiente para sacudir e desenrai- zar o verbo ser (Deleuze; Guattari, 1995, p. 36). Ao longo desta dissertação trarei imagens e figuras na tentativa de compor uma paisagem nos caminhos aqui percorridos. Para Deleuze e Guattari (1993), as figuras es- téticas são potências de afetos e perceptos. Os afetos não são afecções, porque eles não dependem de um sujeito que sente. Os perceptos não são percepções, pois eles são inde- pendentes de um sujeito que as experimenta. As sensações, percepções e afetos são seres que valem por si mesmos e exce- dem qualquer vivido, (...) são atitudes da sensibilidade, da imaginação, da me- mória, do pensamento, a ver e se desenvolver (Deleuze; Guatarri, 1993, p. 213). A seguir uma proposta de representação do rizoma: 26 Figura 2 – Representação de Rizoma Fonte: Banco de imagens do Google. Para os autores (Deleuze; Guattari, 1995), as relações sociais funcionam como um tipo de rizoma, ou seja, ramificam-se na horizontalidade comunicativa, assemelhando-se às raízes de bulbos ou tubérculos que podem se relacionar e conectar- se às subjetivações do outro. Os autores empregam, em sua obra, certos princípios nos quais utilizam da no- ção de Cartografia, inspirada na Geografia, para considerar a pesquisa como um mapea- mento-conhecimento do “objeto de análise”, possibilitando assim, diversas entradas para análises/experimentações distintas. Dessa forma, o conceito de rizoma pode ser compre- endido também como uma descentralização da hierarquização do conhecimento. 2.2 Sobre a cartografia O processo cartográfico, para Deleuze e Guattari (1995), é utilizado para descre- ver mais as ações do que os estados da coisa, o que significa a possibilidade de a carto- grafia contribuir com o acompanhamento das processualidades nas pesquisas qualitativas (Passos; Kastrup; Escóssia, 2010). Isso nos indica uma realidade a ser apreendida em constante transformação e movimento, compostas por relações, poderes, forças, lutas, 27 enunciações, modos objetivação, de subjetivação, de estetização de si mesmo, práticas de resistência e de liberdade. Suely Rolnik (2016), partindo dos ideais postulados por Deleuze e Guattari (1995), traça um pesquisar-cartografar em sua obra e compreende que Para os geógrafos, a cartografia - diferentemente do mapa: representação de um todo estático - é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de transformação da paisagem. Paisagens psicossociais tam- bém são cartografáveis. A cartografia, nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo que o desmanchamento de certos mundos - sua perda de sentido - e a formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos contem- porâneos em relação aos quais os universos vigentes tornaram-se obsoletos. Sendo tarefa do cartógrafo dar língua para afetos que pedem passagem, dele se espera basicamente que esteja mergulhado nas intensidades de seu tempo e que, atento às linguagens que encontra, devore as que lhe parecerem elementos possíveis para a composição das cartografias que se fazem necessárias. O car- tógrafo é antes de tudo um antropófago (Rolnik, 2016, p. 26). A inclusão da imagem a seguir também busca compor visualmente uma possível representação do conceito de cartografia. Figura 3 – Representação do Noroeste da Argentina, Luíz Quiroga (1974) Fonte: Banco de imagens do Google. Dessa forma, esta pesquisa busca o acontecimento do encontro em cartografia, que, como apontam Passos, Kastrup e Escóssia (2010), ocorre de modo a acompanhar processos e desenhar campos problemáticos para a identificação da rede de forças à qual 28 o objeto ou fenômeno em questão se encontra conectado, desafiando quem pesquisa à abertura do envolvimento. Ainda para os autores, na cartografia pesquisar é intervir, sendo o pesquisador e o que é pesquisado, concebidos em processos de coprodução mútua e simultânea, de modo a compor uma teia de significações possíveis. Nesse sentido, a cartografia não se restringe na busca do que é representado, no significante, na materialidade discursiva, mas opera também com outras materialidades que vão além da representação, busca captar o extralinguístico e os distintos componentes da expressão (Tedesco; Sade; Caliman, 2013). A cartografia também se interessa pelas margens do discurso, pelas forças e intensidades que atravessam os corpos e os territórios. Este enfoque ampliado permite uma compreensão mais profunda e multifacetada dos fe- nômenos culturais e sociais, reconhecendo que a realidade é composta por múltiplas ca- madas de significação que interagem de maneiras complexas. Torna-se uma ferramenta de exploração de dimensões invisíveis e inarticuladas e ao invés de reduzir os dados em categorias amplas e gerais, busca-se complexificar os fenômenos, encontrar as diferenças e não igualdades e semelhanças. A pesquisa-intervenção exige ruptura com uma escrita exteriorizada (Hur, 2021). Quando o próprio procedimento implica conhecer as forças no campo em que se constituem as práticas institucionais e as formas de pensar e agir no cotidiano, a escrita requer uma narratividade que não defina a existência do “outro” como fora do “nós” (Pas- sos; Kastrup; Escóssia, 2010). É requerida nessa perspectiva, uma atenção de quem pes- quisa para o as questões que ganham relevo, pois o próprio método produz efeitos no processo da pesquisa, em quem se propõe a cartografar e nos horizontes das possíveis compreensões, os “resultados” que devem ser considerados nas análises. Indivíduos ou grupos, somos atravessados por linhas, meridianos, geodésicas, trópicos, fusos, que não seguem o mesmo ritmo e não têm a mesma natureza. São linhas que nos compõem. (Deleuze; Guattari, 1996, p. 76). É uma entrada que pede que estejamos abertos às entrelinhas – que, no método cartográfico, referem-se ao que é denominado como extracódigos: o que não é óbvio ao nosso olhar (Passos; Kastrup; Escóssia, 2010). Assim, para Deleuze e Guattari (1995) (...) a cartografia surge como um princípio de rizoma que atesta, no pensa- mento sua força performática, sua pragmática: princípio inteiramente voltado para uma experimentação ancorada no real (Passos; Kastrup; Escóssia, 2010, p. 10). 29 Sendo assim, a análise desses materiais parte da proposta de um rastreio de pos- sibilidades, considerando também que a produção cartográfica se dá nos possíveis mape- amentos de territórios e de suas máquinas sociais. 2.3 A análise dos dados numa lógica das intensidades Na análise da cartografia apreciamos todos os dados coletados e registrados, sele- cionando os que estão mais relacionados ao problema da pesquisa em si e que apresentam maior intensidade. Diferente de uma análise quantitativa, onde direciona-se a atenção aos indicadores de “frequência”, ou de repetição, é elegido um indicador de “intensidade” (Hur, 2021). As intensidades não estão subjugadas pelos planos da quantidade, nem da qualidade, fazendo assim o surgimento de uma coisa outra. Considerando que a intensidade é um grau de força, um grau de potência, que expressa uma rela- ção diferencial, um salto, uma espécie de ‘acento tônico’ que porta um outro processo, numa outra lógica do sentido que não se restringe à identidade, igual- dade e semelhança (Hur, 2021). A imagem abaixo busca ilustrar de que forma a autora visualiza uma intensidade, traduzida por este acento tônico que pode ser observada pela representação do traçado em negrito. Figura 4 – Representação de uma intensidade Fonte: Banco de imagens do Google. 30 Na feitura desta análise busca-se aquilo que incide sentidos sobre os fenômenos estudados, busca-se indicadores intensivos ou tensores (Deleuze; Guattari, 1995) do pro- cesso. “O que importa neste momento é como determinado tema aparece como aconteci- mento, ao invés de quantificarmos a ocorrência de determinado assunto” (Hur, 2021). A partir desse montante de apreensões, há o surgimento de um material que se apresenta muitas vezes fragmentado e disperso, mas que é passível de produção de sentidos, a partir de movimentos de conexão e reterritorialização tornando-se matéria prima das escritas do trabalho. Esse material consiste em consultas a três processos jurídicos, dezenas de des- pachos, atas de reuniões, notas oficiais, reportagens e notícias de jornais e plataformas virtuais, postagens e comentários em redes sociais, banco de imagens produzido pela UFTM e acervo fotográfico pessoal, com mais de 400 registros. Todos esses dados/ma- teriais foram agrupados em conjuntos temáticos de acordo com escolhas da autora. Para Natálio (2013), a noção de desterritorialização hoje, aplica-se frequente- mente ao enfraquecimento da dimensão espacial da vida em sociedade e fortalecimento das virtualidades. Assim, o conceito serve para definir processos que descontextualizam um número de relações estabelecidas, tornando-as virtuais e preparando-as para novas relações por virtude de uma operação de reterritorialização. Nesse sentido, é comum ver a desterritorialização como tônica da pós-modernidade, sociedades em redes, fluxos e hibridismos culturais. Contudo, trata-se de uma derivação pois a territorialização/desterritorialização surge no trabalho de Deleuze e Guattari (1995) como conceitos operativos que não só dão a ver o mecanismo das práticas filosóficas e sociais, como reconstroem, reconduzem, a geografia dos eventos num projeto político de libertação dos desejos, dos corpos, da cri- ação artística e produção da subjetividade (Haesbert; Bruce, 2002). A desterritorialização, e mais genericamente a noção de território, propõe a ideia de pensamento rizomático, que se opõe-se ao pensamento arborescente, que é aquele que funciona por hierarquização, relações binárias, estruturas, por uma centralidade condutora (Deleuze; Guattari, 1995, p 25). No pensamento rizomático, os conceitos, embora possam reconhecer subjetivações ou unificações, não partem de um ponto central, não se hierarquizam. Utilizando o critério de intensidade (Deleuze; Guattari, 2003), realiza-se um se- gundo agrupamento, no qual estima-se categorias gerais de análise. “Ao invés de operar com a significação, subjetivação e organização, operar com a desarticulação, a experi- mentação e o nomadismo” (Deleuze; Guattari, 1995). Assim, na lógica das intensidades, 31 substitui-se dados encerrados em categorias amplas e genéricas, para indicadores que sur- gem como uma complexificação dos fenômenos, destacando suas singularidades e idios- sincrasias. A diferença em detrimento das semelhanças, as irrupções em detrimento das normas. O objetivo é rastrear as intensidades a partir da perspectiva do problema de pes- quisa, atentando para o que emerge, se diferencia e provoca crises (Hur, 2021). Por fim, tais categorias produzidas serão discutidas a partir das articulações e con- ceitos advindos da noção de Discurso trabalhada ao longo da obra de Foucault (1970) e da Esquizoanálise, tendo como referência principal Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995). A perspectiva cartográfica, somada ao paradigma ético-estético-político, traça uma trajetória contrária a uma teorização assentada em princípios dialógicos. Não se espera, portanto, que o pesquisador (iniciante ou não) vá apenas receber conceitos e realizar uma prática de análise. Chamamos “dificuldade” a essa convocação a um posicio- namento teórico em um campo de possibilidades, porque se trata, antes de tudo, de uma convocação a enfrentar a concepção apaziguadora da prática científica - que teria como encargo reforçar dicotomias entre teoria e prática, além de construir hierarquias entre quem pode teorizar e quem deve apenas praticar teorias estabelecidas (Deusdará; Rocha, 2021, p. 24). O trabalho de teorização é uma prática que nos vincula ética e politicamente ao mundo e a comunidade a qual nos dirigimos e, simultaneamente, toda prática de análise pressupõe e instaura concepções teóricas afirmando-as, relativizando-as conjurando suas bordas (Deusdará; Rocha, 2021). Aqui, podemos retomar a ideia de que, de certa forma, somos também escolhidos pela metodologia. Os contornos metodológicos se delineiam à medida que o pesquisador realiza seu trabalho. A pesquisa, sempre em processo de trans- formação, se desenvolve ao longo do percurso e dentro do tempo disponível para seu desenvolvimento. Assim, a metodologia é algo que emerge e se ajusta conforme as ne- cessidades e as descobertas feitas durante o processo investigativo. Por outro lado, é pertinente retomar a questão de que, embora não estejamos fa- lando de um planejamento fechado, existe a necessidade de organização e planejamento prévio. Mesmo que este planejamento seja concebido como um ensaio, ele é trabalhado a partir de uma postura de flexibilidade. Essa abordagem permite ajustar e adaptar as direções da pesquisa conforme surgem novas informações e contextos durante o trabalho de campo. 32 A organização inicial oferece um norte para o pesquisador, enquanto a flexibili- dade garante que a investigação possa evoluir e responder de maneira dinâmica às com- plexidades e imprevistos encontrados ao longo do processo. A negociação pode ser pen- sada como um aspecto chave, considerando a necessidade de nos mantermos abertos, fle- xíveis e considerando que as iniciativas de pesquisa devem ser repensadas, revistas, adap- tadas. Todas as posturas e atos tomados estão sempre imbuídos de objetivos e nunca de neutralidade, por maior que seja nossa abertura ao desconhecido e ao inesperado no tra- balho. 2.4 Analisadores dos processos Os materiais que são compreendidos como possíveis analisadores do processo fo- ram indicados e inseridos nas notas de rodapé. Por tratar-se de links externos foi optado por apresentá-los desta maneira. Estes mesmos links também estão indicados na biblio- grafia consultada com livre acesso. No capítulo 3, na sessão que se dedica as análises de imagens, um link de acesso via Google Drive estará disponível para que se possa visualizar a extensa informação visual a qual se refere, tratando-se de um acervo pessoal da autora com mais de 400 foto- grafias, sendo algumas delas, incluídas ao longo do texto. Alguns documentos, como processos jurídicos, não foram disponibilizados por ainda correm em segredo de justiça e desta maneira houve um desafio em como citá-las e referenciá-las. Essas situações serão devidamente mencionadas quando tratar-se da oca- sião. 2.5 Apresentação de categorias gerais de análise Foram produzidas três categorias que, mesmo aparentemente abrangentes, são sig- nificativas para composição de diferentes articulações e perspectivas para análise do fe- nômeno em investigação, bem como que possibilitasse compreender a temporalidade ma- cro e microssociais em que estão inseridos. A primeira categoria intitula-se como “Percursos pelo espaço e tempo”. Com esta categoria busco produzir análises de como o apagamento das pinturas da UFTM pôde exemplificar um fenômeno mais amplo de práticas antidemocráticas que, por meio de seu exercício, reconfigura as memórias coletivas e formas de resistência cultural. O ato não é considerado apenas como uma simples eliminação física, mas uma ação profundamente 33 enraizada nas dinâmicas de poder que visam reconfigurações de narrativas e das memó- rias institucionais e que dialoga diretamente com um recorte período específico que a democracia enfrentou na política brasileira. Ao apagarem essas pinturas, os agentes en- volvidos tentam reassentar uma hegemonia cultural e política que não tem em vista a pluralidade de vozes e experiências presentes no ambiente universitário. A partir da Esquizoanálise de Deleuze e Guattari podemos compreender esse apa- gamento como uma tentativa de reterritorialização, ou seja, reconfiguração das virtuali- dades, onde as linhas de fuga representadas pelas pinturas são obstruídas para manter uma outra ordem desejada. Junto com outros diálogos teóricos pôde ser compreendido que essas práticas de apagamento não são neutras; elas estão intrinsecamente ligadas a um esforço deliberado de interferência e subjugação das subjetividades que desafiam a nor- matividade institucional. Além disso, Foucault (1996) em sua análise do discurso, nos ajuda a entender que o poder não é apenas repressivo, mas também produtivo. O apagamento das imagens na UFTM produz um novo espaço simbólico. Este processo de exclusão e inclusão é central para a manutenção das estruturas de poder e revela como o controle da memória e do discurso é um campo de batalha crucial nas disputas pelo poder. A luta pela preservação do patrimônio cultural, portanto, assume uma dimensão política vital. Defender esses bens culturais não é apenas uma questão de proteger objetos físicos, mas de salvaguardar as narrativas e memórias que constituem a identidade cole- tiva. A destruição dessas manifestações culturais é uma tentativa de impor um esqueci- mento forçado, apagando a diferença e a diversidade que desafiam a hegemonia institu- cional. A mobilização social em defesa desses bens culturais é essencial para garantir que outras as narrativas e memórias coletivas sejam mantidas vivas. Em suma, o apagamento das pinturas na UFTM é um microcosmo das tensões mais amplas entre memória, poder e disputas discursivas. Ele nos lembra que a luta pela memória é, simultaneamente, uma luta pela justiça e pela democracia, e que a preservação do patrimônio cultural é uma parte crucial dessa batalha contínua. A segunda categoria de análise é intitulada “Imagens como discursos”. As ima- gens como discursos não apenas revelam realidades distintas, mas também constituem enunciados e contemporaneidades, oferecendo uma multiplicidade de interpretações e significados. No contexto da UFTM, as pinturas se configuraram como manifestações visuais de resistência e expressão cultural, operando como dispositivos inventivos que confrontam as normas institucionais. O apagamento dessas imagens é considerado um ato 34 discursivo carregado de intencionalidade política e social, refletindo as dinâmicas de po- der e a reconfiguração do espaço universitário em questão. Nessa categoria de análise propõe-se pensar as imagens como máquinas desejan- tes, conforme proposto por Deleuze e Guattari (2010). Essas máquinas não são meras metáforas, mas realidades que produzem fluxos de desejo e confrontam as estruturas de poder estabelecidas. As pinturas expressam desejos coletivos e individuais, criando espa- ços de significação que desafiam a hegemonia institucional. Cada imagem opera como uma linha de fuga que busca romper com a normatividade e promover novas formas de subjetividade e ação política. A destruição das pinturas foi considerada como uma prática discursiva que busca reterritorializar o espaço universitário. Foucault (1996) argumenta que o discurso é uma prática que forma os objetos de que fala. Nesse sentido, o apagamento das imagens na UFTM não é apenas um ato de limpeza, mas uma tentativa deliberada de interferência nas narrativas visíveis. Além disso, o apagamento das pinturas pode ser contextualizado dentro das políticas conservadoras e autoritárias do governo Bolsonaro, que frequente- mente atacou a liberdade de expressão e a autonomia institucional universitária. A terceira e última categoria é intitulada “Relações de poder e relações de força”. A análise das relações de poder e força no contexto do apagamento das pinturas na Uni- versidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) revela uma densa trama de dinâmicas discursivas e institucionais. A reação imediata da comunidade acadêmica ao apagamento pode demonstrar como o ciberespaço se torna um território virtual para a expressão de indignação e a defesa de direitos, particularmente durante o isolamento social propiciado pela pandemia de Covid-19. A análise explora como as práticas discursivas funcionam estrategicamente para manipular relações de força, buscando uma manutenção e/ou transformação do que se disputa como narrativa. No caso da UFTM, a administração justificou o apagamento das pinturas como uma medida de manutenção predial. No entanto, os depoimentos e reações, seguido pela tentativa de criminalização das manifestações virtuais, sugerem que este ato foi uma tentativa deliberada de reconfiguração das narrativas institucionais. As ações da gestão universitária, ao eliminar as pinturas, sugerem um esforço de imposição de uma nova ordem simbólica. 35 3 ERA UMA VEZ UM ESPAÇO: CONTEXTOS HISTÓRICOS, SOCIAIS E PO- LÍTICOS Não aguento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que vê a uva etc. etc. Perdoai. Mas eu preciso ser Outros (Barros, 2016, p 32). 3.1 Uberaba, Minas Gerais Uberaba é uma cidade situada no estado de Minas Gerais, localizada na região do Triângulo Mineiro. Com uma população de aproximadamente 340 mil habitantes, se- gundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2023). Uberaba é conhecida por seu papel na economia, educação, cultura e predominantemente pelo agronegócio da região. O município se destacou pela criação de gado zebu, tornando-se referência naci- onal e internacional nesse segmento, o que lhe conferiu o título de "Capital do Zebu". Fundada em 1820, Uberaba tem uma rica história que se entrelaça com o desen- volvimento do interior de Minas Gerais. Para Lourenço (2010, p.23), o crescimento de Uberaba teve relação com o “alívio da cobrança nas alfândegas internas e a condição de pouso obrigatório entre São Paulo, Goiás e Cuiabá”, fazendo com que crescesse o número de pessoas vivendo no local e, com isso, se ampliassem as relações de comércio. Ainda assim, sua principal atividade econômica girava em torno da pecuária e a maior parte da população dedicava-se à atividade pastoril e à agricultura de subsistência. Ressalta-se que um número expressivo de pessoas vivia em condições precárias, convivendo com fortes contrastes sociais, sob o domínio político-econômico de uma abastada elite rural (Oliveira, 2023). Contudo, apesar “da pobreza em que estava mergu- lhada boa parte da população urbana e rural, Uberaba apresentava, ao final do período imperial, um panorama favorável no desenvolvimento das atividades econômicas” (Fer- reira, 2015, p.46), levando-se em consideração a precariedade em que se encontrava a maior parte das cidades brasileiras. Também por sua localização estratégica, Uberaba atraía mercadores e se sobres- saía como centro abastecedor do Triângulo Mineiro, o que favorecia o estabelecimento de uma economia de mercado. Wagner (2006) discute como a alternância de coronéis na prefeitura da cidade prejudicou o seu crescimento. Havia grandes fazendas no município, geralmente pertencentes a famílias de renomes, formando a elite da cidade, que monopo- lizava não só o comércio, mas também a política e o clero. Grande parte desses fazendei- ros estavam na liderança dos partidos políticos existentes e manipulavam o eleitorado 36 para a manutenção no poder, bem como acontecia em outras cidades do Brasil, com o coronelismo (Souza, 2012). A política e a economia da cidade giravam predominantemente em torno da cria- ção de gado zebu e, conforme analisa Wagner (2006), isso fez empobrecer a cidade do ponto de vista cultural. Isso porque, apesar de Uberaba ter se destacado no ramo pecuário, segundo a autora, o capital levantado pelos criadores não era reinvestido na cidade, já que a maioria deles comprava em outras localidades, como São Paulo e Rio de Janeiro, dei- xando o comércio local no marasmo. Segundo Zago (2013), os contornos da cidade começaram a ser alterados por volta de 1930, quando despontaram comerciantes e profissionais liberais. A construção de es- tradas e as obras de redes de água e esgoto também trouxeram uma sensível melhoria ao aspecto urbanístico da cidade, seguindo o ideal de modernização perseguido por diversas cidades brasileiras. Apesar disso, Uberaba mantinha “características conservadoras, de- vido ao poder econômico e político exercido pelos coronéis zebuzeiros” (Souza, 2012, p.44). Souza (2012) analisa que no imaginário da população uberabense7, alimentado pela elite e pela imprensa local, havia uma supervalorização da cidade e de sua importân- cia no cenário do interior brasileiro. A cidade ansiava por alinhar se aos ideais de moder- nidade e cultura da época e a educação assumia um papel central. Por isso, destaca-se a criação de três instituições de ensino superior no final dos anos de 1940: a Faculdade de Odontologia do Triângulo Mineiro, a Escola de Enfermagem Frei Eugênio e a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Tomás de Aquino (Oliveira, 2023). Nas décadas seguintes, Uberaba seguiu adquirindo características cada vez mais urbanas, como acontecia com outras cidades da região. Em 1951, um informativo local apresentou dados da cidade, destacando o fato de haver 70.956 habitantes, dos quais cerca de 74% pertenciam à zona urbana (Oliveira, 2023). Esse informativo demonstrava, dentre outros aspectos, o crescimento da população no perímetro urbano da cidade. 7 Desde meados do século XX, uma geração de cientistas sociais começou a reconhecer as funções múlti- plas e complexas que o imaginário exerce na vida coletiva, sobretudo no exercício do poder. As manifes- tações da imaginação social deixaram de ser interpretadas como meros “ornamentos” da vida material - tradicionalmente considerada, nos estudos de história, como a única “real”. Ao contrário, percebeu-se que as imagens e as fabulações de caráter mobilizador são condições fundamentais da própria atuação das forças simbólicos passaram a ser investigados, portanto, como importante lugares estratégicos das mais variadas manifestações do exercício da política (Fonseca, 2020). 37 Foi nesse contexto de crescimento e processo de urbanização que se ocorreu a fundação da FMTM, em 1953, como instituição privada. Seu funcionamento foi autori- zado pelo Decreto Federal n.º 35.249, de 24 de março de 1954, assinado em solenidade realizada no Palácio Rio Negro, no Rio de Janeiro, pelo então presidente da República, Getúlio Vargas (1882-1954), e pelo seu ministro da Educação, Antônio Balbino (1912- 1992). O ato aconteceu sob o olhar do então deputado federal Mário Palmério (1916- 1996), do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) – mesmo partido do presidente Vargas e do então prefeito de Uberaba, que havia levado o processo em mãos ao referido presi- dente. Sobre esse aspecto Oliveira (2023) ressalta que Palmério teve um papel funda- mental na educação e na política de Uberaba, especialmente na criação dos primeiros cursos superiores na cidade. Reconhecido no Triângulo Mineiro por suas ideias inovado- ras no campo da educação, ele havia recentemente entrado na vida política e buscava se consolidar não apenas como proprietário de instituições de ensino renomadas, mas tam- bém como um político que promovia o desenvolvimento da região do Triângulo Mineiro. Seu envolvimento no campo educacional foi, inclusive, o principal fator em sua candida- tura a deputado federal em 1950. Esse desejo de criar uma Universidade na região não era exclusivo de Mário Pal- mério. Outros políticos, como o ex-deputado federal uberabense Fidélis Reis, da União Democrática Nacional (UDN), e o ex-prefeito de Uberaba, Boulanger Pucci, do Partido Social Progressista (PSP), também utilizaram essa ideia em suas campanhas políticas, observando-se assim que a Universidade do Triângulo Mineiro, enquanto ideia, existia antes da fundação da FMTM, assumindo diferentes projetos ao longo do tempo. 3.2 Surgimento da Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro – 1953 De acordo com os estudos de Lopes (2003, n.p.) “existem várias versões para ex- plicar o nascimento da FMTM”. No entanto, a historiadora encontrou um consenso no que diz respeito a uma disputa política partidária entre o Partido Social-Democrata (PSD) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), bem como o descontentamento da sociedade uberabense com a política tributária do Estado de Minas Gerais - governado de 1950 a 1954 por Juscelino Kubitschek de Oliveira, JK, candidato a Presidência da República na sucessão de Getúlio Vargas. 38 Esse descontentamento referia-se à estipulação de um Plano de Metas de Desen- volvimento para o estado de Minas Gerais com o aumento da arrecadação estadual, im- pondo grandes desafios ao povo. Tratava-se de instalações nas entradas e saídas das ci- dades mineiras de portões de arrecadação fiscal onde os agentes de fiscalização perma- neciam por vinte e quatro horas, exigindo das pessoas que entravam e saíam da cidade a apresentação de notas fiscais para a Secretaria da Fazenda. Uberaba viveu uma intensa rebelião contra tal cobrança de impostos considerada arbitrária pela população havendo até depredação e saques em repartições públicas, transformando a situação do município de Uberaba, notícia nos jornais e rádios do país (Lopes, 2003). Tendo conhecimento dessa crise e de um aumento de eleitores para o candidato paulista a Presidência da República, Ademar de Barros, do Partido Social Progressista (PSP), Juscelino propôs a realização de um diagnóstico local na tentativa de aproximação com a população uberabense. Tratava-se de uma estratégia para contornar a situação po- lítica e reconquistar votos. No início do ano de 1953, reuniu-se o governador JK e as principais lideranças políticas de Uberaba que lhe revelaram seus anseios pela criação de um Curso de Medicina que poderia auxiliar no desenvolvimento de Uberaba. Segundo FMTM (1979), a ideia de se criar uma faculdade de Medicina em Ube- raba surgiu na citada Sociedade Médica em 1948, objetivando: 1º) oportunidade para os jovens da região fazerem curso superior em nossa cidade; 2º) melhoria de nível cultural regional; 3º) aprimoramento técnico-ci- entífico dos profissionais da saúde; 4º) desenvolvimento da pesquisa em torno da saúde (FMTM, 1979, p.5). Entende-se que a criação da FMTM almejava, entre outros objetivos, atender aos desejos da classe médica de Uberaba e da região, além de se alinhar às iniciativas de ampliação do número de instituições de ensino superior na cidade. Observa-se que as lideranças locais buscavam integrar o desenvolvimento socioeconômico com o desenvol- vimento científico-cultural de Uberaba. Além disso, ainda para Oliveira (2023), a elite uberabense, composta principalmente por criadores e comerciantes de gado zebu, de- monstrava interesse em proporcionar aos seus jovens formação em cursos prestigiados na época como Direito, Engenharia e Medicina. Dessa forma, foram concretizadas ações com vistas à criação da FMTM, como por exemplo, a fundação da Sociedade Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro, 39 com a finalidade de promover, manter e dirigir a FMTM, oficialmente fundada em 27 de abril de 1953 (LOPES, 2003). Esse fato pode ser comprovado em documento da Facul- dade de Medicina do Triângulo Mineiro, produzido por ocasião do 1º Congresso Médico dos ex-alunos da FMTM, em 1983: A criação da FMTM teve sua origem, ainda que pareça incrível, num ato de vandalismo e sob a égide da política. Existe por toda a parte o dito popular que “Deus escreve certo por linhas tortas” e, este aforismo se aplica perfeitamente bem a nossa faculdade (Borges Júnior apud Lopes, 2003, n.p.). A autorização para o funcionamento da FMTM foi assinada pelo Presidente Ge- túlio Vargas e pelo Ministro da Educação, Antônio Balbino, com o Decreto-Lei nº. 35.249, de 24 de março de 1954, com base em projeto técnico-pedagógico elaborado se- gundo a legislação educacional vigente. A partir disso, é possível verificar a relevância dos aspectos políticos e econômi- cos na constituição da história de criação da FMTM, já que médicos estavam alinhados com as principais lideranças desses dois segmentos, o que foi determinante para o seu surgimento e federalização. Essas são marcas que condicionaram a identidade institucio- nal da atual Universidade Federal do Triângulo Mineiro. 3.3 O REUNI e a Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) - 2005 A ampliação do acesso ao Ensino Superior é uma demanda antiga da sociedade brasileira que vem sendo enfrentada pelos diferentes Governos e pela própria Universi- dade pública, de diferentes modos. Entre os anos 1964 e 2006 houve significativo au- mento no número de matrículas no Ensino Superior, apresentando um aumento à razão de dez vezes entre os anos 1964 e 1980, uma retração entre 1980 e 1995, e uma verdadeira explosão a partir de 1995, especialmente no âmbito das instituições privadas de Ensino Superior. Não obstante, os dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educaci- onais Anísio Teixeira (INEP) apontavam, no ano de 2006, que a oferta da Educação Su- perior no Brasil alcançava apenas cerca de 11% dos jovens na faixa etária de 18 a 24 anos. (UFTM, 2012). Nesse cenário, o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Públicas Federais (REUNI), instituído pelo Decreto no 6.096, de 24 de abril de 2007, foi proposto às Universidades Federais. 40 De acordo com suas Diretrizes Gerais e Complementares, O Programa foi proposto para dotar as Universidades Federais das condições necessárias para ampliação do acesso e permanência na educação superior, tendo como “meta global a elevação gradual da taxa de conclusão média dos cursos de graduação presenciais para noventa por cento e da relação de alunos de graduação em cursos presenciais por professor para dezoito, ao final de cinco anos, a contar do início de cada plano (Brasil, 2007). Proposto como forma de congregar esforços para a consolidação de uma política nacional de expansão da educação superior pública brasileira, o Plano visava consubstan- ciar uma das ações do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), lançado em 24 de abril de 2007 pela Presidência da República, em consonância com a Lei nº 10.172/2001, Plano Nacional de Educação. Em outubro de 2007, a antiga FMTM, transformada em Universidade Federal do Triângulo Mineiro em 2005, pactuou junto ao MEC seu Plano de Reestruturação e Expansão em conformidade com o disposto no Decreto 6.096/2007. Orientando-se por seis dimensões previstas nas Diretrizes Gerais do REUNI, pre- tendia viabilizar (...) uma concepção mais flexível de formação acadêmica na graduação, de forma a evitar a especialização precoce e a possibilitar que o seu desenvolvi- mento atenda às diversidades regionais, às particularidades locais, bem como às diferentes áreas de conhecimento que integram os diferentes cursos, res- guardado o caráter de universalidade que caracteriza o saber acadêmico (UFTM, 2007). A mudança de status permitiu a criação de novos cursos que abrangeram diversas áreas do conhecimento. A FMTM abandonou seu projeto de especialização em saúde e inaugurou um campo para Ciências Humanas, Sociais e Tecnológicas. A criação da UFTM veio acompanhada da implementação dos cursos de graduação em Fisioterapia, Terapia Ocupacional, Nutrição, licenciatura em Letras (Português e Inglês) e licenciatura em Letras (Português e Espanhol), autorizados pela Resolução UFTM n.º 5, de 21 de novembro de 2005. Nessa mesma resolução, estava prevista a criação dos cursos de gra- duação em Psicologia e Educação Física, que só passaram a ser ofertados a partir de 28 de julho de 2008 e de 3 de março de 2009, respectivamente. 41 No início de 2009, vieram os cursos de graduação em Serviço Social, licenciatura em Ciências Biológicas, licenciatura em Física, licenciatura em Geografia, licenciatura em História, licenciatura em Matemática e licenciatura em Química, autorizados pela Re- solução UFTM n.º 4, de 25 de outubro de 2007. Os cursos de Engenharia foram criados em 2010, iniciando suas atividades em 22 de fevereiro, abrangendo Engenharia de Alimentos, Engenharia Ambiental, Engenharia Civil, Engenharia Elétrica, Engenharia Mecânica, Engenharia Química e Engenharia de Produção, autorizados pela Resolução UFTM n.º 4, de 25 de outubro de 2007. Segundo o relatório produzido a partir das análises do plano REUNI da UFTM (2008-2012)8, do ponto de vista da oferta de cursos de graduação, para a UFTM o REUNI significou um incremento da ordem acima de 300% de crescimento, que se somam a ou- tros números, também consideráveis, relacionados ao aumento de matrículas na gradua- ção e na pós-graduação, número de docentes e servidores técnico-administrativos, au- mento de infraestrutura física e de equipamentos. Entretanto, com a conclusão do REUNI em 2012 podia-se perceber pelas análises do plano que o crescimento da UFTM não foi acompanhado, em igual proporção, de con- dições adequadas para a concretização quantitativa dos seus objetivos, mas, especial- mente aqueles que visam à qualidade de seus cursos, notadamente em relação à quanti- dade de docentes e técnicos administrativos necessários para a consolidação dos cursos. Percebia-se ainda a grande necessidade de avanço na disponibilização de espaços físicos com vistas à manutenção da excelência na Educação Superior que atendessem às neces- sidades da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão e que proporcionasse aos estudantes da UFTM uma verdadeira socialização, em um espaço de formação acadê- mica, cidadã e humanística. Esta avaliação integrada justifica-se em razão do estreito entrelaçamento entre a expansão das vagas, a garantia da permanência dos estudantes e elevação da taxa de con- clusão - constantes do objetivo geral e meta global do REUNI -, com o princípio consti- tucional da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, de modo a garantir a qualidade da formação de seus estudantes como profissionais, pessoas e cidadãos. 8 Este documento foi elaborado por um conjunto de docentes, discentes e técnicos administrativos de di- versas áreas do conhecimento que se dispuseram a compor um Grupo de Trabalho (GT – Repactuação) para analisar o documento prévio da Proposta de Repactuação da UFTM, elaborado pela Pró-Reitoria de Ensino (PROENS) e apontar contribuições para orientar os departamentos, cursos e institutos na elaboração de suas propostas para a consolidação do documento final da Repactuação. 42 A seguir, observamos parte dos seus resultados: A exemplo disso, a expansão das vagas de ingresso (Dimensão A)9 não pode ser pensada sem a garantia da permanência através do fortalecimento do com- promisso social da instituição (Dimensão E)10, garantindo maior inclusão so- cial, ampliação e fortalecimento dos programas de assistência estudantil e das políticas de extensão universitária, bem como da articulação entre a pós-gra- duação e a graduação (Dimensão F)11, com respectivo aumento das oportuni- dades de bolsa de iniciação científica aos alunos da graduação. A ampliação do escopo social dos alunos que passam a ter acesso à universidade através do programa de expansão precisa ser pensada à luz da reestruturação acadêmico- curricular (Dimensão B)12 e da renovação pedagógica da educação superior (Dimensão C)13. Estas, associadas à mobilidade intra e inter-institucional (Di- mensão D)14 também são fundamentais para a redução da profissionalização precoce e a garantia da formação humanística sintonizada com formação a res- ponsabilidade social e ambiental dos alunos das diferentes áreas do saber. Nesse sentido, o dimensionamento do espaço físico necessário e da quantidade de docentes e técnico-administrativos deve correr transversalmente a todas es- tas dimensões para a garantia da efetividade da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, do compromisso social da UFTM com a formação de seus estudantes, bem como com os rumos societários para a humanidade dos quais a UFTM não pode furtar sendo uma instituição produtora e reprodutora de co- nhecimentos (UFTM, 2012). Posteriormente foram criados os cursos de licenciatura em Educação do Campo, cuja primeira oferta ocorreu a partir de 1º de julho de 2014, por intermédio da Portaria MEC n.º 72, de 21 de dezembro de 2012. O curso de licenciatura em Pedagogia (modali- dade de ensino a distância) foi iniciado em 16 de outubro de 2020 e criado pelo Ofício Reitoria UFTM n.º 3, de 31 de janeiro de 2019. Todos os cursos listados acima estão alocados na sede da UFTM, na cidade de Uberaba. Já em de 2015, foi inaugurado o Cam- pus Universitário de Iturama-MG, que oferta os cursos de licenciatura em Ciências Bio- lógicas, licenciatura em Química e o curso de Agronomia. 3.4 Manifestações do Movimento Estudantil - 2014 Segundo uma carta aberta à comunidade acadêmica realizada pelo Movimento Es- tudantil da UFTM (ME) em 2014, a Universidade estava enfrentando um grave processo 9 Ampliação da Oferta de Educação Superior Pública 10 Compromisso Social da Instituição 11 Suporte da pós-graduação ao desenvolvimento e aperfeiçoamento qualitativo dos cursos de graduação 12 Reestruturação acadêmico-curricular 13 Renovação pedagógica da educação superior 14 Mobilidade Intra e Inter-Institucional 43 de precarização que se materializou na falta de professores, políticas de permanência es- tudantil ineficientes, infraestrutura insuficiente para a consolidação dos cursos abertos pelo REUNI, falta de transparência orçamentária, entre diversos problemas que impacta- vam não apenas no corpo discente da UFTM, mas em toda a comunidade, inclusive, os usuários do Hospital de Clínicas da UFTM. (Movimento Estudantil da UFTM, 2014). Diante desta realidade, o Movimento Estudantil se articulou para questionar o po- sicionamento da Reitoria, frente àquelas circunstâncias e visando à divulgação e o forta- lecimento das reivindicações. Nesse contexto, é fundamental o papel da organização es- tudantil, tanto na promoção do debate político e na transformação da qualidade da educa- ção, quanto na realização de ações diretas de tensionamentos que visassem o exercício e observância do respeito ao direito ao ensino público de qualidade e socialmente orientado. Segundo o ME, as várias reuniões realizadas com a administração da UFTM não surtiram efeitos práticos que alterassem a situação vigente, o que aumentava cada vez mais a insa- tisfação dos estudantes. Essas insatisfações foram tensionadas em diversos tipos de discussões e Assem- bleias Gerais até que, não por unanimidade, foi deliberado que os estudantes ocupariam o Centro Educacional da UFTM. A partir dessa ação, dias depois, ocorreu a intervenção de pintura das paredes. Figura 5 – Não faz parte da solução Fonte: acervo pessoal 44 Figura 6 – O amanhã Fonte: acervo pessoal Figura 7 – Nada do que foi será Fonte: acervo pessoal Figura 8 – Paredes falam Fonte: acervo pessoal 45 Figura 9 – Eu e você Fonte: acervo pessoal Figura 10 – Por quê? Fonte: acervo pessoal O autor Dilvo Ristoff (2014) analisa a mudança do perfil socioeconômico dos es- tudantes da graduação e a consequente transformação do cenário do campus universitário brasileiro. Por meio de discussões acerca de políticas como o Programa Universidade para Todos (PROUNI), o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento das Ins- tituições de Ensino Superior (PROINES), o Programa de Apoio a Planos de Reestrutura- ção das Universidades Federais (REUNI), o Sistema de Seleção Unificada (SISU), o novo Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES), a Lei das Cotas nas Instituições Federais, o Plano Nacional de Assistência Estudantil (PNAES), a criação de novas universidades e novos campi das universidades federais, a política de interiorização e a criação dos Institutos Federais de Educação, entre outras, é observado uma crescente alteração do perfil socioeconômico do estudante de graduação do campus brasileiro. A principal fonte de informações utilizada pelo autor, é o questionário socioeconômico do 46 Exame Nacional de Desempenho do Estudante (ENADE) referente aos três primeiros ci- clos completos do Enade. A partir do terceiro ciclo do Enade já é possível confirmar que a mudança de perfil socioeconômico da graduação, observada nos últimos anos, se mantém e se acelera. Fica, assim, evidente que as políticas adotadas, embora lentas de- mais na sua execução aos olhos dos que delas precisam e dos indignados pela exclusão histórica, apontam para a direção correta: a educação superior brasi- leira está criando importantes oportunidades de mobilidade social para alunos trabalhadores, de baixa renda, pretos, pardos, indígenas e filhos de pai sem escolaridade, ampliando significativamente as energias criativas da nação (Ristoff, 2014). Figura 11 – Muda Fonte: acervo pessoal A partir disso, fica evidente a transformação do tecido social que compunha a Universidade, seus novos grupos sociais inseridos e lá mantidos por meio de políticas assistenciais, ainda que insuficientes, mas que passaram a fazer parte do conjunto orça- mentário das instituições. Dessa maneira, as produções realizadas nas paredes da Universidade, podem ser consideradas como estratégias de tensionamento e embate direto com os posicionamentos da reitoria. Podem também ser consideradas como uma tentativa de articulação com os dispositivos de poder e legitimação de produções de subjetividades e identidades dos es- tudantes, como à comunidade e militância LGBTQIAPN+ e outros grupos étnico-raciais, o movimento negro, o movimento feminista e outros plurais que passaram a se fazer cada vez mais presentes no espaço universitário e no acesso à educação de Ensino Superior. 47 Figura 12 – Dê pinta Fonte: acervo pessoal Figura 13 - Banheiros Fonte: acervo pessoal 48 Figura 14 – Que só os beijos lhe calem a boca Fonte: acervo pessoal Figura 15 – Portas e armários Fonte: acervo pessoal 49 Figura 16 – Mão que cuida Fonte: acervo pessoal Figura 17 – Que a Universidade se pinte de povo! Fonte: acervo pessoal 50 Figura 18 – Panteras Negras Fonte: acervo pessoal Figura 19 – Frida Kahlo Fonte: acervo pessoal 51 Figura 20 – Mulheres que lutam e sonham Fonte: acervo pessoal 3.5 O movimento estudantil no Brasil O movimento estudantil brasileiro é uma expressão significativa da participação política e social dos jovens no Brasil, marcando sua presença em diversos momentos crí- ticos da história nacional. Desde sua origem nas primeiras instituições de ensino superior, o movimento estudantil tem se caracterizado pela defesa de direitos e reformas educaci- onais e sociais, destacando-se também por sua capacidade de mobilização e resistência política (Valle, 2008). Narrar a experiência dos estudantes, o percurso de lutas, as repres- sões enfrentadas na época da ditadura militar, a vigilância sobre suas atividades no âmbito do movimento estudantil e as conquistas importantes alcançadas, é crucial para estimular uma consciência histórica. No início do século XX, o movimento ganhou corpo com a fundação de entidades como a Federação Brasileira dos Estudantes (1922), precursora da União Nacional dos Estudantes (UNE), fundada formalmente em 1937 (Araújo, 2008). A UNE surgiu em um contexto de crescente politização dos estudantes, muitos dos quais foram opunham ao governo autoritário de Getúlio Vargas e suas políticas centralizadoras e repressivas (San- felice, 2008). Movimentos estudantis emergentes não foram apenas despontados no Brasil, mas inspirados por uma movimentação de todo o continente latino-americano: 52 Suas raízes mais tenras podem ser identificadas na Carta de Córdoba (Argen- tina) de 21 de junho de 1918, impelindo a reforma universitária e a formação de federações nacionais de estudantes ou uniões entre 1920 e 1930 em que quase toda a América Latina – Chile, Paraguai, Uruguai, Bolívia, Venezuela, México, estendendo-se mais tarde a Cuba (Fávero, 1994, p. 11). O reconhecimento oficial e formal da UNE ocorreu no II Congresso Nacional dos Estudantes: Com a preocupação de oficializar a entidade que representaria o segmento uni- versitário, discutir e elaborar propostas, é aberto solenemente o II Congresso em 05 de dezembro de 1938, contando com cerca de 80 associações universi- tárias e secundárias, ao qual compareceram professores e um representante do Ministério da Educação (Fávero, 1994, p. 17-18). Esse Congresso representou a consolidação e unificação do movimento, que se fortaleceu em torno de bandeiras e objetivos de âmbitos nacionais, estabelecendo e defi- nindo a UNE como uma entidade/movimento de caráter democrático. Seu caráter polí- tico-pedagógico dedicou-se principalmente à defesa da democracia, incentivando e pro- movendo a transmissão do conhecimento. A UNE destacou a importância da autonomia e do poder universitário, colocando a eleição de reitores e diretores por professores e alunos, no centro dos principais debates acadêmicos. 3.5.1 O movimento estudantil e as forças repressoras O movimento estudantil extrapolou o campo da educação. Durante a ditadura mi- litar, iniciada em 1964, o movimento estudantil assumiu um papel central na oposição ao regime. Apesar da repressão intensa, que incluiu o incêndio da sede da UNE em 1964, os estudantes organizaram protestos significativos, como a Passeata dos Cem Mil em 1968, um marco na resistência democrática (Sanfelice, 2008). Ainda para o autor, esse período é caracterizado por uma radicalização do ativismo estudantil, com uma participação cres- cente em movimentos de guerrilha e organizações clandestinas. Compreende-se pelos relatos históricos que os estudantes tomados por um poten- cial revolucionário e pela esperança de uma sociedade melhor e objetivando com isso um mundo melhor, fizeram-se voluptuosamente presentes na luta pela reforma universitária e posteriormente na luta pelas reformas sociais. Os militares intensificaram a perseguição às forças progressistas e democráticas. Conforme assinala Artur José Poerner (1979), em O Poder Jovem: os estudantes “passa- ram, automaticamente, à condição de elementos de alta periculosidade para a segurança 53 nacional, aos olhares ‘eternamente vigilantes’ das novas autoridades”. Ser estudante equi- valia a ser ‘subversivo’ (Cintra, Marques, 2009, p. 102). As perseguições foram recorrentes e o enfrentamento marcou os estudantes de forma brutal, [...] declara ao MME o músico Carlos Lyra, um dos líderes de Centro de Cul- tura Popular (CPC) da UNE. “No momento que nós entramos, nós começamos a ouvir as rajadas de metralhadora. Os caras estavam chegando e metralhando. E como havia um vão na parede do prédio da UNE, eles atiravam pelo vão para que as balas ricocheteassem e nos atingissem lá dentro. Então foi uma noite muito angustiante mesmo (Cintra, Marques, 2009, p. 102). 3.5.2 O novo há de surgir Figura 21 – Lento mais vem Fonte: acervo pessoal Figura 22 – Lento mais vem II Fonte: acervo pessoal 54 Figura 23 – Lento mais vem III Fonte: acervo pessoal Figura 24 – Lento mais vem IV Fonte: acervo pessoal Com o processo de redemocratização na década de 1980, os estudantes exerceram influência nas questões nacionais, participando ativamente das campanhas pelas Diretas Já e na formulação da Constituição de 1988. A luta por políticas inclusivas de educação também ganhou destaque, especialmente no que diz respeito às políticas de cotas raciais e sociais, uma bandeira importante nas últimas décadas (Mendes Junior, 1982). No século XXI, o movimento estudantil enfrenta novos desafios e se diversifica, abordando questões que vão desde a luta contra o aumento das tarifas de transporte pú- 55 blico, como visto nas manifestações de 2013, até o debate sobre o meio ambiente e sus- tentabilidade (Cancian, 2008). A fragmentação do movimento também é evidente, com o surgimento de várias novas entidades e coletivos que buscam representar os interesses estudantis em um espectro mais amplo de questões. Essa trajetória do movimento estudantil brasileiro não reflete apenas as transfor- mações sociais e políticas do país, mas também demonstra uma capacidade contínua de mobilização e influência política dos jovens e estudantes. A história desse movimento é, portanto, fundamental para compreender os caminhos da democracia e da participação social no país. Figura 25 – Liberdade é pouco Fonte: acervo pessoal 3.5.3 Os instrumentos de luta: arte e cultura Durante a ditadura militar, a relação entre movimento estudantil, arte e cultura tornou-se ainda mais significativa. Em um período de censura e repressão, os estudantes utilizaram a arte como forma de resistência e expressão de suas ideologias. O teatro,