BIBLIOTECA DIGITAL DE TESES E DISSERTAÇÕES UNESP RESSALVA Alertamos para ausência de figuras, não incluídas pela autora no arquivo original. ANA CRISTINA TEODORO DA SILVA O TEMPO E AS IMAGENS DE MÍDIA capas de revistas como signos de um olhar contemporâneo ANA CRISTINA TEODORO DA SILVA O TEMPO E AS IMAGENS DE MÍDIA: capas de revistas como signos de um olhar contemporâneo Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências e Letras, UNESP, campus de Assis, para obtenção do título de Doutora em História. Área de Concentração: História e Sociedade Linha de Pesquisa: Identidades Culturais, Etnicidades e Migrações Orientadora: Dra. Zélia Lopes da Silva ASSIS 2003 Dados Internacionais de Catalogação-na- Publicação (CIP) (Biblioteca Central - UEM, Maringá – PR., Brasil) Silva, Ana Cristina Teodoro da S586t O Tempo e as imagens de mídia: capas de revistas como signos de um olhar contemporâneo / Ana Cristina Teodoro da Silva. -- Assis : [s.n.], 2003. 240 f. : figs. color., quadros. Orientadora : Prof. Dr. Zélia Lopes da Silva. Tese (doutorado) - Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências e Letras. UNESP, Câmpus de Assis, 2003. 1. História do Brasil - Imagens de mídia - Décadas de 60 e 80. 2.Comunicação - Imagens de mídia - História do Brasil - Décadas de 60 e 80. 3. Educação - Século XX - Imagens de mídia. I. UNESP. Programa de Pós-Graduação em História. II. Título. CDD 21.ed. 981.063 Eliane M. S. Jovanovich CRB 9/1250 Aos professores que amam seu trabalho. Ao Tao. AGRADECIMENTOS A orientadora, Zélia Lopes da Silva, acompanha minha trajetória desde o mestrado. Mostrou confiança nesse processo e respeitou meu estilo. O professor José Carlos Barreiro sempre encontrou uma palavra de apoio. Os professores Antonio Celso Ferreira e Laura Antunes Maciel compuseram a Banca do Exame de Qualificação, com sugestões e críticas que levarei em minhas reflexões. Os colegas do Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Estadual de Maringá encamparam esta proposta; os funcionários do DFE e da Pró-Reitoria de Pesquisa e Graduação da UEM foram sempre gentis e solícitos; enquanto que a CAPES concedeu uma bolsa que ajudou no sustento. Por onde andei encontrei muita gente disposta e que me acarinhou com sua competência discreta. Represento-os através de Adelício da Silva Freire, Maria Sobrinho Soares e Cesarina V. Felix, da Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo; João Alves Barbosa e Vera Lúcia Ferraciolli, da Biblioteca Municipal Prof. Viriato Parigot de Souza, em Londrina. A Biblioteca Municipal Prof. Bento Munhos da Rocha Netto, em Maringá e a Biblioteca da UNESP, campus de Presidente Prudente, disponibilizaram seus acervos. A Biblioteca Central da UEM por vezes descomplicou minha vida; Eliane M. S. Jovanovich elaborou prontamente a ficha catalográfica. O Professor Thomas Bonnici, prestativo, ajudou-me com o abstract. A Professora Jeanette De Cnop revisou o texto de forma competente e sensível. Meus alunos, do passado e futuro, compõem uma das razões pelas quais estou aqui. As amigas Luzia Marta Bellini e Sílvia Helena Zanirato Martins sempre estiveram disponíveis para conversas e desabafos, inclusive dispuseram-se a ser cobaias de meus rabiscos. Nas diversas partes da estrada contei com o apoio de Ana Paula Vosne Martins, Valéria Soares de Assis e Elaine Rodrigues. Maria de Fátima Salum Moreira abriu-me sua casa e sempre deu combustível à minha latência. Maria de Lurdes dos Santos ajudou-me misturando meus papéis e não tocando em meu computador. Sempre rememorarei os perfumes da casa do Eudes Fernando Leite, em Assis, mais tarde também do Protásio Langer. Ambos estão em meu coração. Já que cheguei na canalha, José Henrique de Paula Borralho é para mim um referencial de amor. Jorge Luis Romanello ajudou-me nas fotografias das capas, e sempre esteve pronto a discutir, inclusive lendo um texto. Edméia Aparecida Ribeiro é uma presença amiga com quem conto já há muito tempo. Obrigada pela acolhida. Foram muito importantes minha terapeuta-acompanhante Elizabeth Regina Maio de Siqueira e meu médico querido Nelson Pala. Alguns fizeram-me esquecer a tese de forma maravilhosa. Dentre eles, Carlos Alberto Mororó da Silva, simplesmente por existir como é; Paulo Campagnolo, com seu maravilhoso projeto de cinema; Purna Kabash e Lama Ngawang K. Bista. Meu irmão Matheus Teodoro da Silva Filho sempre me incentivou e compartilhou comigo seus conhecimentos de informática . Minha Mãe, Gedalva Batista e Silva, talvez seja quem mais fica feliz com essa conquista ,que é também dela. Obrigada pelos almoços de domingo. Teresa Cristina Moreira esteve presente em todos os momentos. Deu-me casa, comida e afeto. Não bastasse isso, sempre interessada, descobriu para mim livrarias e o acervo da Biblioteca de Londrina . Minha irmã e grande amiga Ana Lucia da Silva é referência de vida. É simplesmente uma fonte de energia e devo a ela algumas das melhores coisas que consigo ser. Edilene de Lima ri e chora junto comigo, fazendo-me sentir menos só, menos pozinho. SUMÁRIO LISTA DE FIGURAS......................................................................................................08 LISTA DE QUADROS ...................................................................................................09 RESUMO.........................................................................................................................10 ABSTRACT ....................................................................................................................11 INTRODUÇÃO ...............................................................................................................12 Capítulo 1 − AS PROPOSTAS DAS REVISTAS DE “SUCESSO”..............................28 1.1 Imprensa nos anos sessenta e oitenta ........................................................29 1.2 As pretensões das revistas.........................................................................47 1.3 Mídia, sucessos de consumo .....................................................................60 Capítulo 2 – AS FORMAS DOS TEMAS – opções, diferenças, continuidades ............78 2.1 Repetições ordenadoras .............................................................................80 2.2 Diferenças e aproximações nas edições ....................................................89 2.3 Permanências cromáticas ........................................................................116 Capítulo 3 – CORPOS ESPERADOS, OLHARES FUGAZES....................................138 3.1 Imagens do corpo ....................................................................................139 3.2 Estereótipos corporais nas capas das revistas .........................................148 3.3 A exceção que confirma a regra: o corpo inesperado detém o olhar.......169 Capítulo 4 − TEMPO E MEMÓRIA NAS SÍNTESES .................................................182 4.1 As premissas das sínteses ........................................................................185 4.2 O que nos fará rememorar 1968 e 1969? ................................................199 4.3 O que nos fará rememorar 1989? ............................................................212 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................218 BIBLIOTECAS PESQUISADAS .................................................................................228 LISTA DE FONTES......................................................................................................229 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...........................................................................230 AUTORIZAÇÃO PARA REPRODUÇÃO...................................................................240 LISTA DE FIGURAS Figura 1 e 2 – A imagem da terceira semana de dezembro de 1968, de acordo com as revistas......................................................................................................................14 Figura 2 e 3 – Diferentes formas de crítica aos presidentes da República...........................16 Figura 4 – Ninguém segura este país...................................................................................32 Figura 5, 6 e 7 – Imagens de cisões na “ordem mundial”....................................................39 Figura 8, 9, 10, 11, 12 e 13 – Mulheres em Manchete.........................................................82 Figura 14, 15 e 16 – O início do governo Médici................................................................92 Figura 17 e 18 − A mídia se reconhece.............................................................................103 Figura 19 e 20 − Alterações na relação com a natureza?...................................................112 Figura 21 e 22 − O impacto do vermelho e do amarelo.....................................................118 Figura 23, 24 e 25 − Carnaval em Veja e Manchete..........................................................123 Figura 26 e 27 − Dramas em amarelo, preto e branco.......................................................133 Figura 28 e 29 – Segundo turno em 1989: a expressividade dos rostos contrapostos em perfil....................................................................................................................164 Figura 30 − A imagem de Cazuza quebra o ritmo.............................................................171 Figura 31, 32 e 33 − Anos sessenta em Manchete.............................................................200 LISTA DE QUADROS Quadro 1 − Distribuição geográfica das revistas em porcentagem.....................................................67 Quadro 2 − Comparação entre destaques antagônicos de capas das revistas Manchete e Veja..................................................................................................................................90 Quadro 3 – Comparação dos destaques de capa das revistas Isto é Senhor e Veja............................99 Quadro 4 – Destaques diferenciados às eleições nas revistas Isto é Senhor e Veja.........................100 Quadro 5 − Veja e Isto é Senhor enfocando a mesma questão dentro do tema “eleições”.......................................................................................................................104 Quadro 6 – Outros temas coincidentes nas capas de Veja e Isto é Senhor, em 1989.......................105 Quadro 7 – Cartas publicadas por Veja que fazem referência à capa com Cazuza..........................174 Quadro 8 – Reações e argumentos negativos à capa com Cazuza...................................................175 Quadro 9 – Reações e argumentos positivos à capa com Cazuza....................................................177 SILVA, A. C. T. O tempo e as imagens de mídia: capas de revistas como signos de um olhar contemporâneo. Assis, 2002. 240p. Tese (Doutorado em História) - Universidade Estadual Paulista. RESUMO Este trabalho se fundamenta na importância crescente das imagens no século vinte, as quais podem ser entendidas em duplo sentido: como estimulantes dos olhares e como aparências investidas de potencial comunicativo. É privilegiado o uso que a mídia efetuou do universo do olhar. As imagens, em sua ambigüidade, são instrumentos adequados ao uso publicitário em um século em que, paulatinamente, a notícia e a informação são consideradas mercadorias pelos grandes grupos de comunicação. As fontes da pesquisa são as capas de revistas brasileiras de sucesso de mercado. O mercado da informação está fundamentalmente ligado ao exercício da política, eis porque o período de análise corresponde ao final da década de sessenta (início da censura governamental à imprensa) e da década de oitenta (primeira eleição direta para presidente da República após o fim da censura), sendo lícito questionar de que forma a comunicação foi empreendida enquanto entrávamos e saíamos da ditadura militar. As capas são signos do funcionamento da chamada grande imprensa e, ao mesmo tempo, são signos de um olhar que se estrutura no decorrer do século: olhar que busca informação rápida e concisa. Estratégias comuns utilizadas nas imagens de capa são analisadas, como o uso dos códigos das cores e das expressões corporais, assim como os temas que tiveram destaque nas capas das revistas e que mostram a constituição de sentidos propostos à massa de fatos que os próprios meios de comunicação oferecem. As sínteses compostas em imagens estabelecem pautas de discussões, tornando-as importantes e exercendo um poder excludente. As capas das revistas buscam seduzir um público entendido pelas revistas como consumidor. Subjacente a suas sínteses, percebeu-se um arranjo temporal, um ritmo relacionado ao imediato, ao fugaz, ao fragmentado. A temporalidade presente nas imagens da mídia é um dos caminhos de compreensão do mundo contemporâneo e contribui para a constante reformulação dos imaginários e da memória histórica. Palavras-chave: Imagens de mídia; capas de revistas; ritmos do olhar contemporâneo; sínteses; tempo; comunicação, memória e história. SILVA, A. C. T. Time and media pictures: magazine covers as signs of the contemporary gaze. Assis, 2002, 240 p. Doctoral Thesis in History – Universidade Estadual Paulista, Assis SP Brazil. ABSTRACT The thesis is based on the increasing importance of pictures in the 20th century. Pictures may be understood as (1) gaze stimulating and as (2) appearances charged with communicative potentiality. The use that the media make of the gaze is extremely conspicuous. Even in their ambiguity, pictures are veritable publicity instruments in a century during which news and information became gradually commercial goods in the hands of great communication groups. Our research sources are covers of best selling Brazilian magazines. Since the information market is intimately linked to politics and the analyzed period ranges from the late 60s (the starting point of press censorship by the government) to the late 80s (the first true election for the presidency of Brazil after censorship), it is important to problematize the communication theme as Brazil alternated from censorship and dictatorship to democracy. Magazine covers are performance signs of the big press and, at the same time, of the gaze structuring itself throughout the century: the gaze that seeks precise and fast information. Common strategies in magazine covers, uses of color, body expression codes, underlined themes which show the constitution of meanings suggested to the great amount of photos by the same communication media, are analyzed. Picture-composed synthesis establishes discussions, giving great importance to pictures since they exercise an excluding stance. Magazine covers allure the magazines’ target public, or consumers. Beneath the magazines’ syntheses lie a time arrangement, an immediate-related rhythm, the ephemeral, life fragments. Temporality in media pictures is one method in the comprehension of the contemporary world and contributes for a constant reformulation of the imaginary and historical memory. Key words: media pictures; magazine covers; rhythms of contemporary gaze; synthesis; time; communication, memory and history. I N T R O D U Ç Ã O Venderíamos tudo o que você necessita se não preferíssemos que você necessitasse do que temos para vender. José Saramago. A Caverna. Manchete, a revista de maior circulação do Brasil em 1968, traz na capa da terceira semana de dezembro deste ano a fotografia colorida de Veruschka, modelo internacional de grande sucesso. Sobre seu colo nu apenas os longos cabelos, loiros e lisos. A tonalidade dourada toma a fotografia, está nos cabelos, na pele e maquiagem, no batom e na sombra, fazendo ressaltar os olhos verdes, um pouco encobertos pela displicência calculada de alguns fios que caem sobre o rosto. No canto superior esquerdo, um pequeno retângulo vermelho traz o nome da revista e a imprenta. Ao seu lado, e acima da fotografia da modelo, os títulos da semana: viagem à lua: os perigos da Apolo-8; entrevista exclusiva de Picasso; como nascer num tubo de ensaio; um negro ameaça a América; Veruschka no cinema. A capa busca chamar a atenção destacando a foto de uma bela mulher e resumindo a semana, que tem como pauta a viagem lunar, uma entrevista, uma questão científica, a questão racial e o cinema. É sábado, aproxima-se o Natal e o mundo parece continuar em sua normalidade. Possivelmente ao lado, uma revista recém-lançada não causaria a mesma impressão, tendo na capa uma fotografia em preto e branco, sem título, sem comentário nem legenda. O nome da revista aparece em grandes tipos vermelhos, coloridos que, diante do silêncio verbal da capa, destaca o nome da revista e ordena ou sugere, em tom imperativo: veja! No período, o colorido já é amplamente utilizado nas capas de revistas e fotografias de destaque publicadas pela grande imprensa. O preto e branco da imagem em questão, portanto, é uma opção de edição, que, juntamente com a ausência de título, dão idéia do drama que se busca compor. Na imagem, uma fileira de poltronas escuras, iguais e vazias, que têm a sua frente bancas de trabalho. Seguindo a ordem vertical das poltronas, na última visível, um homem sentado, corpo voltado em direção ao observador, braços abertos, apoiados um no encosto da poltrona, o outro na banca à frente. O homem de terno e gravata escuros, óculos pesados, cabelos grisalhos e expressão séria é o presidente Artur da Costa e Silva. Seguindo a linha de força horizontal da fotografia, novamente teríamos a imagem de Costa e Silva centralizada. Ao seu lado direito, sobre uma banca, um quepe branco e uma manga de paletó com insígnias militares sugerem a presença de mais alguém, no extra-foto. Ao seu lado esquerdo, um vazio microfone no pedestal. Os elementos descritos sugerem, por si só, um plenário. As poltronas perfiladas, as bancas e o microfone. A solidão do homem não parece apropriada em um espaço que demonstra ser de discussão, assim como sua centralidade na imagem destoa de um espaço democrático. Sua postura à vontade sugere domínio de ambiente; a presença de símbolos militares, o quepe e a manga ao lado rememoram o autoritarismo. Não ocorreu, porém, o sugerido contraponto com a imagem de Manchete, pois a edição de Veja foi retirada das bancas pelos militares. O governo sentiu-se no direito de fazê-lo respaldado pelo fato que uma das revistas tentara destacar: a assinatura, pelo presidente, do Ato Institucional nº 5 e o fechamento do Congresso Nacional. Em 5 de julho de 1989, a revista Isto É Senhor traz uma capa azul. Azul plácido na moldura cor de céu, por trás do título da revista, produzido em tipos vazados. A fotografia, uma montagem, é do presidente José Sarney, de terno e gravata escuros, segurando uma folha de papel com a mão esquerda. Porém não o lê, a mão está abaixada, o papel meio escondido; parece mesmo estar de olhos fechados, deitado em uma rede xadrez. O título é uma advertência ao leitor: silêncio, ele está governando. Governar é o que se diz, mas o que aparece é dormir. O sossego é reforçado pelo fundo da imagem, paisagem que mostra dois animais calmamente pastando. Mais uma vez um presidente em situação pouco adequada: não poderia governar de uma rede, e não poderia dormir de terno, com o trabalho na mão. Há diferenças e aproximações no tratamento dado, nas capas descritas, a dois presidentes da República, em dois momentos distintos. Em 1968, uma revista recém- lançada critica o governo e busca mostrar seu autoritarismo. A mensagem, porém, mal chegada às bancas, será cortada. Em 1989, o primeiro governo civil do período posterior à ditadura é acusado de leniente, e essa sua imagem estará presente nas bancas de revistas, nos cartazes e outdoors da segunda maior revista de interesse geral do país, Isto É Senhor. Veja, então, é primeiro lugar, por isso já não ousaria tamanho sarcasmo. Ambos os presidentes são criticados; ambos são representados exercendo indevidamente suas funções. Para a composição da mensagem no espaço de uma capa de revista foram utilizados, preferencialmente, em ambos os casos, a expressão corporal e o código das cores, bem como o código verbal: em sua presença, em 1989, e em sua ausência, em 1968. No que diz respeito à temática, a maior revista do Brasil, em 1968, optou pela modelo internacional Veruschka, tendo como alternativa a outorgação do AI-5. A memória histórica do período tem entrado em acordo com a capa de Veja, porém a revista de sucesso, então, era Manchete. 1 A imprensa de circulação nacional é uma das produtoras privilegiadas do imaginário da nação e dos lugares da memória. É rica em exemplos sobre como a memória histórica é gerada de acordo com interesses do presente; no caso, de acordo com a imagem que calha ao meio de comunicação, no momento. Fenômenos associados à memória histórica estão presentes na urdidura desse trabalho: sua constituição através da importância investida em um fato; a associação do fato a palavras e imagens; a recuperação e a recriação do fato em um momento distinto; o lembrar e o esquecer, e mesmo as associações afetivas geradas pela rememoração. Este trabalho centra sua atenção no final de duas décadas, a dos anos sessenta e a dos anos oitenta. São momentos em que temos a gestação da rede de poder que envolve os meios de comunicação da forma como os temos hoje, no início do milênio. Por um lado o 1968, símbolo de rupturas, resistências, questionamentos. E também 1969, ano em que a crença na tecnologia terá espaço de expansão nos meios de comunicação através do acompanhamento da chamada conquista da Lua. É o início da fase mais severa da ditadura no Brasil. Os militares tomaram o poder à força e nele se mantiveram, decidindo dentro da própria corporação quem seriam os presidentes do Brasil, em nome do que chamaram “revolução”, lançando mão de intervenções autoritárias não apenas na política e na economia, mas também em manifestações artísticas e culturais. Por meio de sucessivos atos institucionais, aumentava-se o poder do presidente. O Congresso Nacional foi fechado, a imprensa em geral foi colocada sob vigilância. Apenas vinte anos depois, em 1989, outro período analisado neste trabalho, voltaríamos a ter uma eleição direta para presidente da República, disputada entre um operário-sindicalista e um dono de empresas de comunicação - filho e neto de políticos importantes. Após um longo período de lutas, torturas, guerrilhas, vozes abafadas, a 1 A memória histórica é desprovida da experiência do vivido característica da memória e desprovida da crítica característica da história enquanto conhecimento. É produção deliberada de grupos de poder que manipula imaginários e gera identidades. Ver DE DECCA, E. Memória e cidadania. In. SÃO PAULO. Secretaria Municipal de Cultura/DPH. O direito à memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: DPH, 1992. Para as associações entre memória e poder, ver também LE GOFF, J. Memória. Ibid. sociedade brasileira conseguiu essa grande vitória na construção de um processo democrático. A imprensa estava livre das censuras governamentais e exerceria influência ampla, e até então não experimentada, na eleição presidencial. Os últimos anos das décadas de sessenta e oitenta, aqui enfocados, são dois momentos diferentes da história política e da história da imprensa nacional, escolhidos por evidenciarem a relação entre os grupos da imprensa e outros grupos de poder. De início, a pergunta era porque a imprensa faz sucesso. Eram questionados quais motivos levam um público amplo a ser atraído pela informação produzida por poucos meios de comunicação. Unia-se à indagação a constatação de que as imagens assumiam um papel fundamental no processo que investiu tamanho poder na indústria da informação. O início da censura oficial, em 1968, mostrou-se bastante adequado. Os grandes grupos nacionais de comunicação consolidavam-se e precisavam se relacionar com um momento político delicado. Ao mesmo tempo, as narrativas imagéticas já provavam que vieram para ficar, não apenas em sua forma estática mas também em movimento, já que se expandia o número de aparelhos de televisão no país. Os jornais têm pulsação diária, bastante imediata. Suas primeiras páginas são feitas no calor da hora, marcando uma certa temporalidade que associa o início do dia com as novidades, para, no fim do dia, o jornal estar velho e desinteressante. É também uma temporalidade de marcação importante para esta análise. No entanto, neste trabalho privilegia-se como fonte as revistas, especialmente por conta de sua proposta explícita de trabalhar narrativas visuais, reunindo então a periodicidade semanal com a produção de imagens bastante cuidadas e produzidas para dizer muito em pouco espaço e tempo. Privilegiam-se as chamadas revistas de interesse geral, que também têm em comum a proposta de dar conta das principais notícias da semana. O conjunto das edições de Manchete, em 1968, exerce quase imediatamente alguns apelos. Percebe-se que há ciclos repetitivos de temáticas presentes em suas capas, que remetem a hipóteses de fórmulas de sucesso. Assim, assumiu-se o risco de dobrar o número de imagens pesquisadas, incorporando também as de 1969. Diversas seriam as vantagens: seriam explicitados os temas que se repetiam ciclicamente nos dois anos e seria acompanhado o transcorrer de um acontecimento narrado como uma novela: a “conquista da Lua”. Na historiografia, a revista Veja, lançada em 1968, de início com uma baixa circulação, é mais lembrada que Manchete, pois está em melhor acordo com a memória constituída de resistência à ditadura. Inevitável querer compará-las, ainda mais que Veja se tornará, menos de uma década depois, a líder do mercado, mantendo-se nessa posição até hoje. Nas duas revistas, em 1968 e 1969, percebeu-se semelhanças e diferenças. Chamam a atenção especialmente algumas estratégias em comum; afinal, são duas grandes editoras em busca do sucesso. Nesse período, enfatizam-se as diferenças das propostas da poderosa Manchete e da recém-lançada Veja. Como seria em um período com outra entonação política, em que Veja estaria em posição de liderança? Com essa indagação, mais um fôlego foi tomado, e parti para 1989, ano marcante da democracia nacional, em que a imprensa está livre politicamente. Aqui, Veja é confrontada com Isto É Senhor. Por fim, o universo pesquisado incorporou todas as capas postas em circulação nos anos de 1968 e 1969 por Manchete e Veja e em 1989 por Veja e Isto É Senhor. 2 Também foram estudados as cartas dos leitores e os editoriais das mesmas edições bem como de edições comemorativas posteriores, que rememorarão os anos estudados de acordo com a conveniência. Os períodos em questão não são o início ou o fim do fenômeno da construção do olhar contemporâneo. Subjacentes às questões políticas, esta imprensa conta com a existência de um público educado para suas imagens, e de quebra para suas propostas formais de mensagens, para seu entendimento de tempo. Esse olhar, idealizado pelas revistas, é levado em conta por elas como se fosse um sujeito da história, representativo e mediador de instituições fundamentais, como a política e os meios de comunicação. No conjunto das revistas analisadas, as imagens de capa são as que via de regra explicitam as premissas do sucesso – e do poder − da mídia. É o momento em que mais distância existe do jornalismo e mais proximidade da publicidade. Colocadas em conjunto, fazem falar sentidos, apresentam padrões de confecção. Há diferenças relevantes nas composições do grupo de Manchete e do grupo de Veja, e há autênticos contrastes no tratamento das questões, como vimos acima em duas capas que buscaram simbolizar a mesma semana. A comparação gerará ora contradições, ora aproximações, no que diz respeito ao destaque das questões da semana. No entanto, alguns elementos fundamentais da composição do discurso, alguns códigos utilizados para a composição da imagem de capa, como expressões corporais e significados associados a 2 Foram analisadas, no total, 276 capas de revistas. cores, permanecem os mesmos, e esse léxico comum é um incômodo neste trabalho. Indaga-se de que matéria é constituído o comum, como é reiterado aquilo que é interseção para diferentes leituras, que gera a possibilidade da comunicação. Elementos comuns ao olhar são utilizados para que a mensagem faça sucesso de forma ampla, para que a mensagem seja comunicativa. O calor das temáticas não impede que seja significativo analisar esses códigos comuns, que trazem características importantes da educação do olhar. Privilegiam-se as capas das revistas para análise porque, se as revistas pretendem trazer o mais importante da semana, exercendo os cortes das edições de acordo com os próprios critérios, a capa pretende propagandear a revista através do mais atrativo dentre os importantes. Busca seduzir o leitor, trazer seu olhar e seu interesse. Capas e imagens afins apostam no olhar fragmentado. Oferecem um sentido que vem a calhar para a organização do mundo em que vivemos: ritmo, aparência, fragmento. Organiza o tempo, que é um "ao mesmo tempo". 3 As capas compõem a imagem do próprio meio de comunicação, no caso as revistas, da mesma forma que ocorre com uma primeira página de jornal, com o símbolo de uma emissora de televisão ou de uma marca comercial conhecida. Não é sem razão que os tipos com os quais se escreve Manchete, Folha de S.Paulo ou Seleções podem ser reconhecidos e apenas são alterados com base em detalhados estudos. É de imagem que se trata, de aparência, de como muito se comunica com uma imagem rápida, aproveitando uma tradição de entendimento através de códigos altamente inteligíveis. As capas são imagens sintéticas, tratam de um tempo condensado, formado através de fragmentos, contando com uma leitura rápida. A síntese, no caso, é o que é eleito fundamental na forma do instantâneo. 4 Para isso, são utilizados códigos que reiteram 3 “Deste ponto de vista, a capa do nosso Guia Levi, com seus 65 anos de idade, não só é uma preciosidade, como representa (ou representou) a real disposição visual da grande massa, numa determinada época. O mesmo sucede com as revistas de grande tiragem, incluindo gibis e as de fotonovelas, com os jornais, com as etiquetas e rótulos, com os cartazes e anúncios, com as capas de livros e cadernos, com os postais e folhinhas”. Pignatari, D. Informação, linguagem, comunicação. 9. ed. São Paulo: Cultrix, 1980. p. 103. 4 A palavra síntese tem origem no grego synthesis, que, segundo o Aurélio, significa ‘composição’. São bastante adequadas as definições do vocábulo: “1. Operação mental que procede do simples para o complexo. 2. P. ext. v. resumo (2 = exposição abreviada de uma sucessão de acontecimentos, das características gerais de alguma coisa, etc., tendente a favorecer sua visão global: síntese, sumário, epítome, sinopse). 3. Reunião de elementos concretos ou abstratos em um todo; fusão, composição.” AURÉLIO, Novo dicionário da língua portuguesa , 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1986, p. 1592. No Vocabulário técnico e crítico da filosofia, de Lalande, o sentido geral dado à síntese é “composição, ato de colocar em conjunto diversos elementos, dados de início separadamente, e de os unir num todo. Opõe-se a análise.” LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 1029. significados tradicionais e que não deixam ver a historicidade dos signos, na medida em que o tempo de uma imagem sintética é não apenas rápido, é o tempo do presente, é a simultaneidade. As imagens acima exemplificadas foram dispostas em meio a uma miríade de outras imagens características da urbanidade. A aposta em uma relação tão rápida revela- nos um certo grau de disponibilidade de refletir, de comunicar, de ver o outro, de mudar. Esse é o ponto central deste trabalho: a disposição de tempo utilizada e reiterada por imagens sintéticas, tempo de sínteses, tempo em fragmentos, fragmentos sedutores de olhares fugazes. Imagens produzidas para um olhar que pouco se fixa não são utilizadas apenas em movimento, podem ser estáticas, como no caso dos outdoors e das capas de revistas. Neste caso, esperam que o olhar esteja em movimento, não seja estático. Com isso conclui- se que apenas com um determinado ritmo, com um determinado arranjo do tempo essas imagens se mantêm, e até mesmo reafirmam e reinventam o ritmo, na medida em que são sustentadas por eles. Para atrair um olhar tão inquieto, é necessário enfocar um interesse imediato, enfocar necessidades do momento, seduzir propondo respostas, propondo resolver um problema, entreter ou informar e simultaneamente manter o ritmo; qualquer tema é trabalhado, qualquer problema, desde que não se precise abrir mão do ritmo. As imagens são compostas para um olhar que não tem tempo a perder. As mesmas imagens são elementos fundamentais para a sensação de tempo insuficiente. Fazem-se necessárias, fundamentais, buscando coagir os olhares à sua busca. As imagens compõem esse ritmo através da periodicidade dos meios, dos recursos da tecnologia e dos códigos disponíveis. Porém, faz-se referência, aqui, a um tipo de imagem que dá maior velocidade ao tempo. Não são absolutamente todas as imagens que estão associadas à rapidez, à aceleração do tempo, mas um determinado tipo de imagem, do qual este trabalho trata. A fotografia é um exemplo deste tipo de imagem, produzido para ser lido com maior velocidade. Para Susan Sontag, “a fotografia está intimamente relacionada com modos descontínuos de ver”; é um tipo de imagem que busca mostrar o todo através da parte, através de um detalhe ou de um corte surpreendente. 5 Essa característica da fotografia está presente nas imagens analisadas: a descontinuidade, a busca de uma “metonímia imagética”. As capas usam a montagem como artifício de diagramação, o que as remete a uma tradição de artistas gráficos do início do século, os quais, na descrição de Helouise Costa, trabalhavam com a “fragmentação da realidade, a quebra da continuidade do espaço, a desconstrução do ilusionismo perspéctico, a justaposição de elementos díspares e a simultaneidade." Tal tradição estava presente nas capas da revista O Cruzeiro, na década de 50. 6 Quanto à periodicidade dos meios, a estratégia é similar à da publicidade: as capas de revistas têm impactos calculados pelo tempo da novidade. A tecnologia utilizada, embora propagandeada, não é de fácil acesso ao público final. Os códigos utilizados, esses sim são comuns: cores e luzes, corpos e lugares comuns da linguagem, respostas geradas nas interações para a resolução dos problemas da comunicação, culturais e históricos, captados por mentes e máquinas que vão torná-los mais que comuns, vão deixá-los à beira da saturação, e vão substituí-los por algo bem semelhante, mas com aparência de novo. O ritmo não vai deixar ver a diferença. 7 Uma das estratégias de sentido utilizada pela imprensa é o encadeamento cronológico, que gera a necessidade de explicação do mundo no intervalo marcado pelas edições, desde o que é fato, o que é importante e será pauta até a explicação do fato, quais suas causas e possíveis conseqüências. Um ritmo de informação é estabelecido. Além das sínteses semanais, no caso das revistas, Veja e Manchete têm efetuado a síntese das sínteses, a cada final de ano, década ou século, a cada aniversário, em que a importância do meio é rememorada, reconstituída. O mesmo sistema que constrói símbolos e ratifica códigos com aparência de atuais constrói uma noção de tempo, projetando ritmos sobre os espaços. Toda cultura humana desenvolve mecanismos e procedimentos para lidar com a insegurança e a incerteza do caos das simetrias da contemporaneidade. Juntamente com todos os outros tipos de produtores 5 SONTAG, S. Ensaios sobre fotografia. Tradução de José Afonso furtado. 5. ed. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1986. p. 149. 6 COSTA, H. Aprenda a ver as coisas. Fotojornalismo e modernidade na revista O Cruzeiro. São Paulo, 1992. Dissertação (mestrado) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo. p. 52. 7 A síntese de conteúdos simbólicos nas imagens é fenômeno de longa duração. Analisando retratos do século XVI, Courtine e Haroche percebem um movimento em que “...o rosto resume o corpo e, portanto, condensa o mundo.” COURTINE, Jean-Jacques, HAROCHE, Claudine. História do rosto. Tradução de Ana Moura. Lisboa: Editorial Teorema, s/d. [original: 1988] p. 44. de textos culturais, o sistema de transmissão de notícias não é outra coisa senão o resultado de um desenvolvimento daqueles mecanismos e procedimentos culturais de textualização. Lá onde a complexidade do acontecimento em seu presente dificulta ou impossibilita a compreensão, o homem lança mão de processos codificadores que, por sua vez, se compõem de procedimentos desenvolvidos ao longo da história cultural do próprio homem. 8 Os símbolos utilizados, portanto, estão inseridos na história e nas teias da cultura. A proposta é estabelecer uma leitura em outra temporalidade que não a esperada pela revista, fazendo com que os símbolos apareçam em sua historicidade e os códigos se dinamizem, aproximando-os da linguagem. Não se propõe descobrir a verdade das significações ou revelar o caminho correto da leitura, tarefa que se considera improvável, mas sim mostrar que os significados estão em relação com o tempo disposto na leitura. Como as produções mais atraentes das revistas, suas capas, sintetizaram os finais das décadas de sessenta e de oitenta? Os períodos enfocados representam o começo da ditadura, em 1968, e seu fim, com a eleição democrática para presidente da República. Que aproximações e diferenças se fazem presentes nos dois períodos? Que ritmo propuseram, e com ele, que espécie de captação dos fenômenos? São questões que se espera inspirar com este trabalho. As capas se sustentam como discurso apenas se inseridas em um determinado ritmo, nele e com ele reelaboram memórias e inscrevem uma determinada história. Trata-se de meios de comunicação bem-sucedidos no mercado, de revistas que alcançaram boas tiragens, porque têm circulação sólida, em momentos cruciais da ligação intrínseca entre poder, política e meios de comunicação. Seu sucesso, de certa forma, é incompatível com a mudança. A pretensão das revistas é a de informar muito e rápido, para o que precisam usar códigos inteligíveis, palatáveis, de fácil decodificação, o que significa trabalhar com a reflexão apenas até um certo ponto. Imagens muito questionadoras, difíceis de compreender, que revolvem as verdades do público fazendo-o repensar suas identidades não são imagens de sucesso fácil. Até com isso se deve lidar em uma capa de revista, com o fato de que não se pode ser criativo demais. Percebe-se ampla utilização de elementos que compõem uma formação do olhar comum, códigos assimilados na educação, que, unidos ao tempo pequeno de leitura e 8 BAITELLO Jr., N. O homem que parou os relógios: ensaios sobre comunicação, cultura e mídia. São Paulo: Annablume, 1999. p. 80 reflexão, revelam o retrato médio de um sujeito que pode ser seduzido por imagens sintéticas. Tais seduzidos não formam um grupo à parte, são momentos mais ou menos freqüentes na vida de um sujeito contemporâneo. A média não é o normal, e dizer que a média dos indivíduos é equivalente a x não significa encontrar x dentre o grupo mensurado. Este trabalho trata da reiteração da proposta de um olhar educado, efetuada na composição das capas das revistas, para uma certa disposição temporal, que dá sentido às imagens contemporâneas. São fatos que dizem respeito ao imaginário, dizem respeito a como lemos, como aprendemos, como assimilamos informações, cultura, preconceitos. Por vezes, a insistência e a repetição de certos conteúdos contribuirão para que se autentique sua importância; freqüentemente a insistência em certas formas de comunicação, que não costumamos questionar, formas óbvias, naturalizadas − um vermelho associado ao sangue ou à determinada personalidade ou a um padrão de feminilidade − trazem a marca mais patente do conservadorismo, pois mais que comunicar temáticas, comunicam formas de pensar. Formam-se imagens sintéticas, fenômenos da comunicação e da história recente, que recuperam elementos tradicionais da semiótica das artes e dos corpos, elementos revestidos de pós-modernidade, não apenas com o intuito de fazer contato mas de fazer um contato sedutor, persuasivo, que capture o olhar da presa de forma cada vez mais ágil. Tal fenômeno tem muito a dizer sobre nosso ideal de raciocínio, sobre o que cada vez mais se exige de um sujeito contemporâneo: agilidade, eficiência, conformação. Após definir o conjunto principal das fontes, utilizou-se como estratégia descrever cada uma das capas, em sua ordem cronológica. Algumas pareceram ter mais a dizer, e em outras a repetição era patente. No decorrer do texto alguns exemplos desse momento de narrativa das capas serão utilizados, pretendendo mostrar como o encadeamento sistemático dos detalhes e a tentativa de perceber a importância de cada um são uma alternativa ou um passo da análise. Com as descrições feitas e repetidas, perceberam-se diversos conjuntos possíveis de análise, já que o estereótipo é bastante presente nas capas das revistas analisadas. Há possibilidade de se analisar o estereótipo da mulher, do homem, do político e da política, o imaginário da ciência e da tecnologia, por exemplo. Porém o que mais interessou neste texto foi a repetição das estratégias formais: a repetição de alguns temas, a supremacia do uso das expressões corporais, o artifício das cores. Busca-se, neste trabalho, analisar tais estratégias, seus significados, suas relações com o tempo e o espaço. Procurou-se representar, através das figuras presentes neste texto, algumas das principais estratégias utilizadas nas capas das revistas: o uso das expressões corporais, especialmente dos rostos; o poder dos significados usuais das cores; a exploração das palavras e das figuras de linguagem; a repetição temática; as montagens; a utilização e recriação de símbolos e outras. Compõem-se dramas ou mensagens de otimismo patriótico; ora realça-se a pessoa, ora enfatiza-se o artefato tecnológico. No primeiro capítulo serão discutidas as relações entre as configurações que vão tomando os meios de comunicação e os momentos políticos. O crescimento da importância das empresas de comunicação no século XX faz aumentar as ambições e as pretensões dos editores, vozes que se mostram em editoriais e cartas publicadas. Com elas, as premissas do funcionamento das revistas, o entendimento que se tem de informação, de comunicação e do fazer história. Essas perspectivas estarão presentes em sua roupagem mais mercadológica nas capas, que buscarão atrair o público, imagens que trazem o pensamento de seus produtores, a cultura da qual fazem parte, vicissitudes de mercado, características traduzidas em signos que são abertos, e como tal são interpretados, de forma polissêmica. Seria normal imaginar que as capas das revistas trazem os temas mais variados. De fato ocorre variação nos temas secundários, que aparecem em títulos, faixas laterais ou pequenas fotos pouco destacadas. Porém os temas de destaque central da capa podem ser bastante repetitivos: é o que será trabalhado no segundo capítulo. Os temas reiterados dão noções de como se organiza a informação que o século XX ofereceu, mostram sentidos explicativos de nosso mundo. O que mais chama a atenção na ordenação dos temas é que ela só é possível com muito silêncio, com muito trabalho de edição, de recorte. Ora tem-se a síntese da semana oferecida por duas revistas simultâneas, o que traz a tensão das opções de edição, ora se pode comparar como os mesmos temas foram tratados nos dois períodos, fim da década de sessenta e da de oitenta, e verificar se permaneceram ou foram esquecidos. A tensão entre o novo e o velho está presente na capa da revista. O novo, o que aconteceu e se mostra como diferente, e o fato histórico visto como o que se evidencia diante do cotidiano buscam chamar a atenção para a capa. A mensagem, no entanto, deve utilizar códigos comuns a todos, deve fazer a ponte entre a ansiedade pelo novo, pelo considerado novo, e a acomodação do já existente, do conhecido. É assim que as cores são utilizadas: mais sutis que a palavra escrita, menos questionadas, fazem parte fundamental da comunicação, com os valores que carregam. De uma perspectiva antropológica, valoram os temas que envolvem. Os significados que podem ser associados às cores utilizadas nas capas de revista mostram um repertório comum, que orienta o olhar. Associadas às cores e à força das palavras, as expressões corporais serão trabalhadas no terceiro capítulo. A ousadia em relação ao potencial comunicativo do corpo pode ser mensurada, e raramente gera surpresa. O corpo fica, em ambos os períodos, preso a padrões que o tornem facilmente decodificável, preso a um léxico gestual e de presença de corpos que chegam a ser normatizadores. Tais padrões são fruto da construção histórica da civilização e da educação dos corpos. O desenvolvimento de tecnologias, como a fotografia, no século XIX, contribui fundamentalmente para a divulgação e aceitação desses padrões, que se mantêm preservados nas capas analisadas. A periodicidade das revistas é uma das amostras do acordo que têm com o tempo. Em determinado dia, pontualmente, está lá a nova edição, explicando a semana anterior, cumprindo seu papel de fornecer a informação e o entendimento, transferindo ao leitor a responsabilidade de assimilá-los. Essa imprensa assumiu como tarefa de fim de ano, como forma de fazer parte dos rituais de passagem, e como fórmula de garantir um público, o reenquadramento dos principais fatos do ano em um programa de televisão ou em uma edição especial da revista. No quarto e último capítulo, o diálogo será com edições especiais, que marcam o tempo, oferecem explicações ao passado recente, participando da constante construção da memória social. Algumas vezes, quando um fato gera muito destaque, como no caso da corrida espacial, ou quando se forja um fato para torná-lo importante, temos "edições históricas", que desde a capa claramente se apropriam da autoridade da história para se fazerem importantes. As revistas consideram-se guias de entendimento do mundo, arrogam-se o dever de organizar o mundo para seus leitores, ao mesmo tempo propondo ritmos às suas vidas e utilizando a memória histórica. Constituem assim uma história alternativa, história sintetizada, digerida, traduzida em um código absolutamente contemporâneo, o das imagens sintéticas, e em uma temporalidade que trabalha com o que já está estabelecido. É esperado que uma nova temporalidade, a da análise, aplicada a essas imagens de capas de revistas, gere outros sentidos, recolocando nas mensagens suas filiações de linguagem, ou seja, recolocando o movimento do olhar do leitor, que renova a mensagem com sua leitura, recolocando as possibilidades de quem se faz sujeito da história. Enfim, este trabalho busca trazer reflexão sobre as imagens de mídia que nos cercam, especialmente no que diz respeito à organização temporal que sugerem. Sedutoras, trazem o desafio do sucesso comunicativo, porque conseguem associar a promessa do novo com a tradição do velho; parecem associar passado e futuro e daí retiram seu potencial. São fundamentalmente signos da organização de tempo que se constituiu no século da informação. Porém essas imagens não têm como objetivo esclarecer os caminhos que trilham para chegarem a ser comunicativas. A busca da consciência dos processos que fazem com que essas imagens sejam parecidas conosco pode inseri-las em uma história que tem leitores, e não apenas consumidores. C A P Í T U L O I AS PROPOSTAS DAS REVISTAS DE “SUCESSO” A nossa proposta é analisar as capas das revistas Manchete e Veja (em 1968 e 1969) e Veja e Isto é Senhor (em 1989), entendidas enquanto imagens sintéticas, que utilizam códigos ratificados pela cultura e em movimento histórico, para comporem mensagens em um espaço estreito. As imagens funcionam como suportes de uma temporalidade contemporânea, que reclama cada vez mais agilidade. Parte da hipótese do trabalho é que as capas das revistas somente fazem o sentido que as revistas propõem se vistas na temporalidade para a qual são feitas. Busca-se enfocá-las, então, de uma perspectiva e de uma temporalidade outra, fazendo outros sentidos falarem, re-inserindo os códigos utilizados no campo das linguagens dinâmicas. O primeiro movimento será o de discutir o significado da imprensa nas décadas de oitenta e de sessenta. Lances fundamentais da política e do mercado de comunicação, bem como de suas interseções serão rememorados, por serem fundamentais ao entendimento da constituição das capas, espaços de maior visibilidade das revistas. Na seqüência, serão discutidas as propostas editoriais das revistas, suas pretensões em relação ao fenômeno da comunicação. Conjuntamente é possível observar o entendimento da notícia, da informação, da importância que os editores arrogam aos meios de comunicação. Por fim, questiona-se que espécie de sucesso coroa os meios analisados, através da análise de seu público que, antes de ser leitor, é encarado como consumidor. 1.1 IMPRENSA NOS ANOS SESSENTA E OITENTA Na análise de Eric Hobsbawn, o final da última década de oitenta com o início da década de noventa marcou a passagem de uma era a outra. Para o autor, o século XX foi tão curto quanto trágico. Iniciado em 1914, com a 1ª Guerra Mundial, viveu uma "Era da Catástrofe" até o fim da Segunda Guerra. A esse período sucederam trinta anos de extraordinário crescimento econômico e mudanças sociais radicais, a ponto de jamais, em tão curto período de tempo, termos notícia de tamanhas transformações. Espécie de "Era do Ouro", esse período acabou no início da década de setenta. 9 Então, na década de oitenta e início da de noventa, o mundo capitalista precisou encarar problemas que pareciam ter sido eliminados com a "Era do Ouro": 9 HOBSBAWN, E. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. Tradução de Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 15. desemprego, ondas de depressão econômica, estados falidos e com balanças desequilibradas, distâncias cada vez maiores entre ricos e pobres, oriundas de uma distribuição perversa da renda. A análise de Hobsbawn é, principalmente no que diz respeito à década de oitenta, apropriada para situar o Brasil, tanto para identificar grandes movimentos que aqui ocorriam quanto para entendê-los como parte de uma tendência ocidental. O "milagre econômico", forjado por militares na década de setenta, já não se sustentava. A década de oitenta é um período de estagnação ou mesmo de regressão de indicadores econômicos. Inicia com uma "estabilidade aparente" no governo João Batista Figueiredo e termina com o desencantamento do Plano Cruzado, seguido pelo descontrole da inflação e das contas nacionais. Com isso abrem-se os caminhos para a política neoliberal da década seguinte. 10 Ao mesmo tempo, a abertura do regime ditatorial, pretensamente iniciada pelo governo de Ernesto Geisel, talvez mais lenta e gradual que progressiva, testava os limites viáveis das liberdades. As eleições diretas para governadores de estado, já em 1982, no governo Figueiredo − sucessor de Geisel e ex-chefe do Serviço Nacional de Informação - SNI − marca uma derrota do partido da situação. Logo após, a população apóia amplamente a campanha "diretas-já", que se não tem resultados práticos imediatos, será símbolo de descontentamento e renovará a esperança no exercício do voto direto para presidente. Em 1985, um novo presidente será eleito indiretamente, através de Colégio Eleitoral. A oposição vence. Uma nova constituição foi promulgada em 1988, representando uma grande conquista política, mostrando possível a retomada das instituições democráticas. As expectativas de 1988 foram duramente abaladas em 1990, quando a crise mundial chegou ao Brasil, que foi signatário do Consenso de Washington, comprometendo-se a fazer uma reforma no Estado, a diminuir os gastos públicos e a pagar a dívida externa. É relevante ter em conta que as transformações ocorridas entre as décadas de sessenta e oitenta foram estruturais. Mais da metade da população, em 1960, vivia no campo, enquanto em 1990 a população rural está em torno de 20%. 11 A opção pelo crescimento desordenado e a concentração de renda produziram efeitos sociais 10 GONÇALVES Neto, W. Modernização sem participação: transformações na política brasileira a partir dos anos 60. In: MARTINS, Ismênia de Lima et al. (orgs.) História e cidadania. XIX Simpósio Nacional de História-ANPUH. São Paulo: Humanitas Publicações/FFLCH-USP, ANPUH, 1998. 2v. 11 GONÇALVES Neto, W. op. cit. incalculáveis. A urbanização, que no caso de algumas capitais resultou em megacidades descontroladas, levou a problemas seriíssimos de transporte, saneamento básico, poluição. Além disso, tais cidades tornaram-se focos de insegurança e criminalidade. Na análise de Boris Fausto, a "mão invisível" do mercado não estabelece prioridades sociais. 12 O momento é tematizado pela revista Isto é Senhor em 17 de maio de 1989. Na capa, um desenho de piso de banheiro, de cor neutra, bege. Aparecem sete ladrilhos, as linhas que ladeiam a parte mais extensa dos retângulos formam duas paralelas diagonais ascendentes. Na peça central, um ralo cinza, com um parafuso ao meio. Através do preto de alguns buracos escorre a água de uma pequena poça azul, que tem o formato do mapa do Brasil. Não bastasse a imagem do país indo pelo ralo, o título em destaque de tipos vermelhos estabelece uma redundância que reforça o inevitável escoamento: NINGUÉM SEGURA ESTE PAÍS. (ver FIGURA 4) O pessimismo da mensagem refere-se certamente ao momento econômico. Índices impensáveis de inflação corroem o valor dos salários, gerando as incertezas de um mercado sem controle, imprevisível. O pessimismo remete também à decepção diante do primeiro governo civil em vinte anos - ainda que tenha sido referendado por um colégio eleitoral e não pelo voto popular. O tom de decepção e frustração mostra o tamanho da expectativa em que era aguardada a saída dos militares, marcada desde seu início pelo mau agouro da morte de Tancredo Neves. Após alguma discussão, o vice-presidente, José Sarney, é empossado. Ao final do mandato, sua imagem é de presidente fraco, impotente diante dos eternos três dígitos nos índices anuais de inflação. 12 FAUSTO, B. História do Brasil. 2. ed. São Paulo: Edusp/FDE, 1995. p. 554. Porém uma outra bandeira esperançosa ainda estava sendo hasteada: a eleição democrática para presidente da República, que ocorreria no mesmo ano de 1989, sobre a qual mais fortes expectativas ainda pairavam. Quem sabe então distinguiríamos o que teria a marca, o eleito capaz de substituir o sujeito do título da capa, "ninguém". O ninguém desqualifica o governo Sarney, acentua sua incompetência e joga uma sombra negra nas expectativas. Acreditava-se que um nome próprio poderia ser sujeito da frase − caso contrário seria: 'nada' segura este país. Depositavam-se todas as apostas em um bom nome para presidente, como se de um homem dependesse nosso destino. O título da capa mencionada remete ao último período autoritário. É uma frase ambígua: além de remeter à desesperança do Brasil escorrendo pelo ralo, rememora um jargão militar, um imaginário já operante em fins da década de sessenta e início da década de setenta, constituído e reforçado através de meios de comunicação coniventes com o regime. "Ninguém segura este país" significava, no período militar, que o país rumava inevitavelmente a um futuro glorioso. As cidades cresciam, a ciência e a tecnologia avançavam em grandes obras da engenharia e em feitos da medicina, o futebol rumava ao tricampeonato mundial. Tudo parecia fadado ao sucesso. Alguns lamentavam o fato de que provavelmente não estariam vivos no ano 2000 para ver o que seria o Brasil, "país do futuro". Talvez por isso Dom e Ravel cantassem "ninguém segura a juventude do Brasil", juventude que testemunharia o futuro áureo de um país com praias ensolaradas, verdes matas, abençoado por Deus, e que devíamos amar. A capa ironiza o otimismo do período anterior, contrapondo o luminoso futuro ao escuro ralo de um banheiro. A perspectiva pessimista da revista apenas é possível em oposição à perspectiva otimista anterior; a frustração é enorme porque a expectativa era exagerada. Curiosamente, a crítica da capa respalda o jargão militar, mostra-se como o oposto de uma mesma moeda. Com isso, transforma-se em material de análise significativo não apenas no que diz respeito aos acontecimentos e imaginários presentes em 1989 mas também aos relativos ao período ironizado, que forjou o imaginário do Brasil como país que ninguém segura. Um impasse a ser colocado é que em 1969 não seria possível uma ironia como a descrita em uma capa de revista de circulação nacional, por conta da censura oficial aos órgãos da imprensa. Com todo o pessimismo de 1989, a capa foi possível, tínhamos maior liberdade de expressão. Contudo, o moral do país estava baixo. Para Thomas Skidmore, um dos principais sinais era a fuga dos melhores e mais brilhantes cérebros do Brasil para o exterior, bem como da população em geral: centenas de milhares foram para os Estados Unidos e para o Japão. Um governo Sarney fraco, desorganizado e corrupto, unido ao caos econômico, acabou com o usual patriotismo. 13 O desemprego, a criminalidade nas grandes cidades, a inflação para a qual os mais pobres não tinham saída são características do período. Os salários chegaram a perder mais de 50% do valor aquisitivo entre as datas de pagamento. Os nomes que preenchiam os quadros de altos escalões nos primeiros governos pós-ditadura permaneciam bastante semelhantes. Houve mudança de regime, mas não uma transformação radical; houve, sim, um consenso em torno do que Boris Fausto chama de "situação democrática", e não um regime democrático consolidado. As disputas partidárias cresciam, porém como forma de conseguir privilégios. A imagem de Sarney como favorecedor de interesses particulares instalou-se. Mesmo assim, considera-se como ponto alto de seu governo o respeito às liberdades públicas. 14 Nesse quadro teríamos as primeiras eleições presidenciais diretas em vinte e cinco anos, marcada para novembro de 1989. O eleitorado poderia ser instável, e os resultados das eleições, imprevisíveis. Boa parte nunca havia votado em presidente na vida, e além disso o voto tornou-se possível aos dezesseis anos. Skidmore traz o dado de que em 1960 houve 12,6 milhões de votos para presidente e em 1989 houve 82 milhões. A dúvida que tinham os militares sobre a instabilidade do eleitorado poderia agora ser desfeita, uma vez que todos os próximos quatro anos teriam eleições em algum nível, federal, estadual ou municipal. 15 Um dos donos de uma rede de comunicação, Fernando Collor de Melo, comparecia na imprensa, enquanto governador do estado de Alagoas, posando de político jovem, corajoso. O Estado tinha uma imagem de gigante falido e inchado, o funcionalismo público era visto como uma turba de privilegiados que recebiam sem trabalhar. Collor aproveita-se da crescente indignação popular e dos casos de corrupção, que agora apareciam, envolvendo dinheiro público, e constitui uma imagem de "caçador de marajás". Collor é bastante fotogênico, atlético, usa de seu corpo para atividades mirabolantes, que chamam a atenção, em união com um discurso incisivo e conclusivo, de 13 SKIDMORE, T. Uma história do Brasil. Tradução de Raul Fiker. São Paulo: Paz e Terra, 1998. p. 277. 14 FAUSTO, B. op. cit. 15 SKIDMORE, T. op. cit. p. 271. quem sabe exatamente que caminho tomar. Prometeu colocar o Brasil no primeiro mundo, assumiu a imagem do messias que resolveria os problemas por conta de sua personalidade. Significativamente, a estratégia deu certo, calou no imaginário da maioria do povo brasileiro, que, sem ter como saber o trabalho de se construir a democracia, estava vulnerável a quem prometesse milagres. 16 O principal oponente era Luís Inácio Lula da Silva, liderança tornada pública nas greves do fim da década de setenta. Operário, não tinha a imagem do herói esperado pela maioria. Com dicção sofrível, não se acomodava nos ternos que usou durante a campanha. Parecia demasiado popular para boa parte do povo e sofria rejeição de ampla parte da população, que temia o fantasma do comunismo. Fernando Collor de Melo entendeu a importância de agradar a mídia, com o que se mostrou bastante habilidoso. Apareceu como alternativa a empresários e boa parte de seus "descamisados", em grande parte por contrapor-se a Lula e ao Partido dos Trabalhadores, de quem se dizia até que, se comandasse o Brasil, faria com que os empregados pudessem morar nas casas dos patrões. Muitas alusões foram feitas associando Lula à imagem negativa do comunismo. Apesar disso, Lula perdeu no segundo turno das eleições por margem relativamente pequena de votos: 42,7% optaram pelo jovem elegante enquanto 37,8% optaram pelo operário. Foi uma votação expressiva, mostrando, no mínimo, uma base constituída de simpatia aos partidos até então de esquerda. Collor tentara enquadrar Lula como perigoso e radical, aproveitando o momento em que se discutia, internacionalmente, a simbólica queda do muro de Berlim. No segundo semestre de 1989 o "poder comunista abdicou ou deixou de existir na Polônia, Tchecoslováquia, Hungria, Romênia, Bulgária e República Democrática Alemã". 17 Na União Soviética, Mikhail Gorbachev encaminhava sua perestoika (reestruturações econômicas e políticas) e a glasnost (defesa das liberdades civis, como a liberdade de expressão). A Guerra Fria desfazia-se e parecia existir apenas um caminho, o capitalismo respaldado por políticas liberais, que era associado à liberdade de forma geral. Neste clima, a revista Veja, em abril de 1989, compõe uma capa com fundo predominantemente vermelho, nuançado na parte de cima até tons mais escuros, próximos 16 Eric Hobsbawn identifica, analisando a América Latina do início da década de noventa, uma rejeição à velha política. Saídos de períodos ditatoriais, alguns países mostraram querer nomes novos. Cita como exemplo "os eleitores do Brasil e Peru, que em 1989 e 1990 elegeram homens para a Presidência com base em que deviam ser dignos de confiança, pois nunca tinham ouvido falar neles antes." Cf. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991, op. cit., p. 407. 17 Id. Ibid. p. 471. ao preto. Em primeiro plano, um objeto amarelo, em forma de foice e martelo, repleto de rachaduras. A imagem é bastante eficaz: não se trata de uma foice e um martelo, mas sim de um objeto que faz lembrar a foice e o martelo, que, representados entrecruzados, como de praxe, constituem um só instrumento. Portanto, não estão rachados uma foice e um martelo quaisquer, está rachado o símbolo do comunismo, assim como para além dos questionamentos a respeito das dificuldades pelas quais passam os países comunistas, acima de tudo a imagem do comunismo como utopia possível está em queda. O título dá outros significados à imagem: O TERREMOTO DA REFORMA SACODE O COMUNISMO. Lido em conjunto, a imagem mostra que a reforma, tal qual um terremoto, traz mudanças estruturais, rachaduras que podem acabar com uma estrutura sólida. Aposta-se na ambigüidade com a metonímia utilizada, que substitui os países que passam por reformas pelo substantivo "comunismo". As reformas referem-se às ações em processo em países do bloco comunista, porém, na frase, o objeto da ação não são os países, mas o próprio comunismo. No subtítulo, mais fenômenos naturais: "o vento da liberdade que varre a Europa do Leste". As figuras de linguagem são bastante adequadas a mensagens sintéticas, porém têm carga polissêmica, abrem maiores possibilidades de associação. A liberdade, direito tão prezado, passa por países comunistas como um vento forte, que varre, outro fenômeno natural que parece independer das vontades das gentes. Ao qualificar o vento como sendo da liberdade, a frase valora positivamente as reformas e as rachaduras na imagem do comunismo. No Brasil, assim como em todo o mundo, a discussão situa-se em torno do fim das utopias, passando-se a desqualificar ainda mais posições políticas associadas ao comunismo e ao socialismo. A revista faz, ao mesmo tempo, uma auto-citação. O mesmo símbolo já fora usado na capa da revista, justamente em seu primeiro número, que data de 11 de setembro de 1968. Acima há uma faixa branca, sobre a qual está escrito o nome da revista. Três quartos da capa, no entanto, mostram duas mãos que seguram um martelo e uma mão que segura uma foice, entrecruzados da forma costumeira. Porém não há mãos e objetos, e sim suas sombras projetadas ao fundo. A capa não explora as três dimensões. A presença das mãos segurando as ferramentas sugere que há contraposição, parece existir contenda entre a foice e o martelo. A cor vermelha do fundo dramatiza a cena. O título dá o sentido da leitura: O GRANDE DUELO NO MUNDO COMUNISTA. Sugere-se que há diferenças no mundo comunista. A matéria irá colocar o desejo da Rússia de liderar o chamado "bloco comunista". As dissidências dos partidos comunistas, os conflitos da União Republicana Socialista Soviética (URSS) com a China tornaram o tema popular. A revista era lançada com grande divulgação, com grande celeuma e com apoio das classes empresariais e governantes, após diversas edições experimentais. Esse número um vendeu centenas de milhares de exemplares. À época, ao contrário de 1989, o comunismo era uma alternativa. Mesmo os contrários a ele imaginavam-no possível. Mesmo com o golpe de 1964 - que se apropriou da idéia tão presente de mudanças radicais, auto-intitulando-se de revolução para legitimar-se - respiravam-se possibilidades: o capitalismo não era o único caminho. Discutia-se qual o caráter da revolução brasileira, que variava entre a burguesa ou a socialista, com diversos níveis intermediários. 18 A capa explora um imaginário que coloca o comunismo dentro da ordem do dia, e mostra que há divergências nesse mundo, atingindo assim o presumível interesse existente por mais e mais informações sobre uma experiência que, da perspectiva da imagem, se vê por sombras. O final da década de sessenta tornou-se símbolo de mudanças. Não apenas gerava-se uma nova era econômica, como disse Hobsbawn. Os costumes eram afetados por novas descobertas e posturas. A visão do futuro estava imbuída de crença no avanço do homem através do conhecimento científico; e na política havia disputa entre diferentes alternativas. Em novembro de 1969, a revista Manchete tenta sintetizar o espírito do período em uma capa que chama para uma análise do último quarto de século: "1945/1970 - 25 anos dramáticos". O grande título em destaque tenta traduzir o movimento: "ESTAMOS EM REVOLUÇÃO". (ver FIGURAS 5, 6 e 7) Sobre fundo azul, quatro fotografias. Acima, a famosa imagem do astronauta na lua, em seu capacete vê-se refletida sua sombra, o companheiro fotógrafo e o módulo lunar. A legenda, diminuta, mostra bastante do significado do empreendimento: "a conquista do espaço". Pisar na lua significou, nos imaginários, conquistar todo o espaço sideral. O homem, além de ser o centro da terra, senhor de sua natureza e do planeta, conquistaria também outras galáxias. A potência do futuro que nos aguardava era estrondosa, inimaginável. 18 RIDENTI, M. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1993. Ao lado, uma passeata de orientais empunhando bandeiras vermelhas. A legenda especifica: "o poder de Mao". As faces são sisudas, as roupas todas iguais, mal se distinguem mulheres e homens. Faz-se referência à presença do comunismo como onda crescente no planeta. Abaixo, a foto de um casal representando o que a legenda chama "a onda hippie". A moça está com longos colares, barriga de fora, leva o braço ao pescoço do rapaz. Ele tem cabelos compridos e usa uma blusa colorida, com motivos talvez andinos. Ambos olham adiante e parecem felizes, sorriem. Ao lado, na foto de uma boca rosada, alguns dentes podem ser vistos; o destaque, no entanto, é para um comprimido branco equilibrado no lábio inferior: "a era da pílula". O subtítulo dá uma versão do que se quer dizer: "Do fim da última guerra até os nossos dias, a humanidade vive o seu mais turbulento período de transformações". Um tanto pretensioso, ao situar o período como o de maiores mudanças na história da humanidade. A frase ajuda a compor um cenário de espanto e surpresa. Uma outra leitura pode ser proposta. Imagens e textos compõem um todo, que deve ser analisado em conjunto. A legenda direciona o entendimento da imagem, a imagem explica a legenda. Porém temos aqui um outro fato, a publicação de fotografias lado a lado, o que as faz dialogar entre si. Diversos sentidos podem ser estabelecidos: em um deles, o 'amor livre' hippie tornou-se possível também por conta da separação entre sexo e gravidez estabelecida com o uso da pílula anti-concepcional. Pílula e hippies estão lado a lado. O astronauta e a conquista do espaço são frutos do avanço da ciência, estão acima da pílula, produzida pela mesma ciência. Acima também, porém ao lado do astronauta, a foto dos chineses. Nas três fotos ocidentais poderíamos dizer que a ciência leva à liberdade, à potência de ações, ao poder. Quem "venceu" a disputa espacial, a despeito da fala de Armstrong, simbolicamente foram os Estados Unidos, líder do bloco capitalista. Do lado ocidental estariam, portanto, o progresso da melhor ciência, a liberdade da pílula, a alegria hippie. Do outro lado, faces sisudas, a negação da identidade com roupas muito semelhantes − especialmente se comparadas com as roupas dos hippies ou a roupa tecnológica dos astronautas. A montagem não dá conta, por exemplo, da oposição que os hippies exerciam em relação à guerra do Vietnã e mesmo ao imperialismo norte-americano. O "drama" seria composto por mudanças radicais que, na capa, não são associadas a contradições dentro do próprio bloco capitalista. No período, o mundo era dividido em pobres e ricos, industrializados e rurais. No Brasil, tal polarização parecia ser refletida nos contrastes existentes entre as regiões Sul-Sudeste e as regiões Centro-Oeste, Norte e Nordeste, bem como entre as cidades e as zonas camponesas e sertanejas. São Paulo seria o pólo de exportação da industrialização e modernidade para o país, enquanto Brasília fez parte de um projeto de integração nacional; situando-se no centro, atrairia a construção de estradas em todos os sentidos do território nacional. A publicidade das décadas de cinqüenta e sessenta trazem produtos ditos novos, inéditos, modernos, consonantes com o progresso − em que cada etapa evolui de uma anterior −, de acordo com os planos de modernização do país. A burguesia industrial atribuía ao governo a responsabilidade pela modernização, cujo caminho natural seria o investimento em estradas para levar a produção da cidade ao campo, para integrar o campo ao consumo. Também era prioritário o setor de comunicações, que integraria o país em uma só voz. De tal perspectiva, o governo administra dinheiro público para o interesse da burguesia industrial, colocado como sendo o interesse público. As classes médias desejavam eletrodomésticos e outros confortos da vida moderna, almejavam um padrão de vida compatível com a industrialização. O trabalho perdeu o sentido por conta de suas divisões técnicas e condições alienantes. Outros elementos, como renda, poder e status passam a dar o sentido, e a publicidade aproveita isso. Não há satisfação com o trabalho, que é apenas mercadoria, uma forma de arrumar dinheiro para suprir outras necessidades. Assim procura-se constituir uma verdadeira existência fora do trabalho, porque ele é contraditório com o que se espera da vida. Gradualmente, o prazer foi associado ao lazer e ao consumo. O ideal de modernidade e o papel do trabalhador, sendo assimilado, abre espaço para a necessidade de criação de um público consumidor, a classe média em suas horas de lazer, que são contrapostas ao trabalho. Fica difícil imaginar lazer sem consumo; com consumo há libertação do trabalho, há lazer. No trabalho, deve-se ser produtivo, no tempo livre deve-se consumir. Ocorre um constrangimento ao lazer. Da década de cinqüenta à década de sessenta, a publicidade passa de um discurso que atinge a todos, de um bem que seria coletivo - como o progresso e a modernidade - a um discurso que atinge a intimidade, o dia a dia do consumidor. 19 Trata- se de um período em que a cultura do consumo está se afirmando por diversos motivos, tais como o momento desenvolvimentista, a saída das guerras, o desenvolvimento dos meios técnicos e de comunicação, o crescimento das cidades e uma classe média que só se diferencia dos pobres porque consome mais, já que é tão trabalhadora quanto. Também Marcelo Ridenti entende que a contra-revolução criou mecanismos fundamentais para a estabilização e a legitimação da nova ordem, dentre eles o consumo, a propaganda, os meios de comunicação. O mundo harmônico que a publicidade − fundamental nas bastante procuradas revistas ilustradas − apregoa, que quer nos vender através da persuasão, não deixa espaço ao conflito, que, como vimos, parece ausente no modo capitalista de viver, conforme a capa de Manchete acima analisada. O outro, que recolocará o importante papel do contraponto, é o estranho mundo comunista. O comunismo é associado à ausência de liberdade de consumo. Ocorre, assim, uma distorção do conceito de democracia, associada à possibilidade de acesso, acúmulo e ostentação de bens de consumo. No período, a publicidade consolidou-se e as pesquisas de opinião passaram a ser o guia das atividades. Após o golpe de 1964, o Ato Institucional número 1 reforçou o Poder Executivo e reduziu o poder de ação do Congresso. João Goulart, Leonel Brizola, Jânio Quadros e Juscelino ou tiveram mandatos cassados ou os direitos políticos suspensos. Criou a base para a instalação dos Inquéritos Policiais Militares (IPMs), objetivando perseguir quem se contrapunha ao regime. Estabeleceu a eleição presidencial da República por votação indireta do Congresso Nacional. Em junho de 1964 foi criado o Serviço 19 FIGUEIREDO, A. Liberdade é uma calça velha, azul e desbotada. Publicidade, cultura de consumo e comportamento político no Brasil (1954-1964). São Paulo: ed. Hucitec, 1998. Nacional de Informação (SNI), cujo idealizador e primeiro chefe foi Golberi do Couto e Silva. Apesar disso, a imprensa permanecia relativamente livre nesse período inicial, já que seus empresários em grande parte apoiaram o golpe. A censura veio mais tarde, quando contraposições entre os poderes começaram a aparecer. O Ato Institucional número 2, na prática, extinguiu os partidos, surgindo o MDB e a ARENA. Em 1966, o AI-3 estabeleceu eleições indiretas também para governadores de estados. O governo Castelo Branco completou as mudanças nas instituições do país, fazendo aprovar, pelo Congresso, uma nova Constituição, em janeiro de 1967. A sucessão presidencial se realizava, de fato, no interior da corporação militar. Foi o regime autoritário que permitiu aos ministros tecnocratas Roberto Campos e Otávio Bulhões tomarem medidas que resultaram em sacrifícios forçados, especialmente para a classe trabalhadora, sem que esta tivesse condições de contestar à altura. 20 Questiona-se se o posterior "milagre econômico" seria possível sem os desmandos da ditadura. Grupos artísticos manifestavam-se: o cinema novo; o teatro de Arena e o teatro Oficina; a Bossa Nova; os Centros Populares de Cultura da UNE; e muitos outros, pelo país. Do período veio a discussão sobre a possibilidade de qualificar a arte como popular e revolucionária. A ausência de democracia nos meios tradicionalmente políticos não significou, no entanto, silêncio político. Segmentos significativos dos meios artísticos, estudantis e operários mantinham a chama de sonhar com outro país e engajavam-se em outras formas do político. 21 A vida diária de muitas famílias urbanas de classe média transformara-se em pesadelo. A família tradicional, criticada por jovens contestadores na revolução de costumes, foi um ponto de apoio para presos e perseguidos. 22 Assim, alguns dos pais, mães e membros de família transformaram-se em militantes, criando novas formas de resistência ao regime, novas formas de fazer política, transformando a ação familiar e 20 FAUSTO, B. op. cit. especialmente p. 473. 21 Para associações entre os movimentos artísticos do período e a revolução brasileira ver RIDENTI, M. Em busca do povo brasileiro – artistas da revolução, do CPC à era da tv. Rio de Janeiro: Record, 2000. O autor lista parte significativa da vasta bibliografia que discute a questão. 22 ALMEIDA, M. , WEIS, L. Carro-zero e pau-de-arara: o cotidiano da oposição de classe média ao regime militar. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (org.) História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. v. 4. privada em atividade pública, constituindo uma das bases da posterior campanha pela anistia. A resistência à ditadura militar sem dúvida foi exercida por homens da política, jornalistas, artistas, estudantes, religiosos. Certamente foram inúmeras as resistências menos abarcadas por fontes do conhecimento histórico, mulheres, esposas, mães e bóias- frias, pessoas que certamente em um dia-a-dia de luta ou em pequenas ações de apoio, agindo apesar do medo, exerceram alguma contraposição à ordem imposta. Um estudante, Edson Luís, foi morto pela Polícia Militar durante um protesto contra a qualidade da alimentação fornecida a estudantes pobres no Rio de Janeiro, em 28 de março de 1968. O fato foi mobilizador: seu enterro e a missa realizada na Igreja Candelária foram acompanhados por milhares de pessoas. A indignação aumentou com a ocorrência de novas violências, gerando ânimo para uma mobilização mais ampla, que reuniu estudantes, setores da Igreja e da classe média do Rio de Janeiro. O ápice foi atingido na chamada "passeata dos cem mil", em 25 de junho. Músicas eram censuradas, surgiam grupos dissidentes do Partido Comunista Brasileiro, que tinham em comum a proposta de subverter a ordem imposta. A "linha- dura" estava certa de que os ideais de sua "revolução" perdiam-se, e novos mecanismos eram necessários para acabar com a subversão. O deputado Márcio Moreira Alves, do MDB da Guanabara, fez um discurso que sugeria à população boicotar as comemorações militares do 7 de setembro. Sugeria ainda que as mulheres não namorassem oficiais favoráveis ao regime. Thomas Skidmore interpreta que "a linha dura ficou lívida diante desse escárnio", que foi a "faísca que ateou fogo" ao momento tenso que se vivia. Boris Fausto narra que as Forças Armadas ficaram indignadas, sentiram-se ofendidas em sua honra. O autor considera o episódio um pretexto para pôr fim à liberalização restrita de até então. 23 O deputado carioca foi processado; porém, por conta da imunidade parlamentar, o processo dependia de licença do Congresso, que se negou a concordar com o desejo dos militares. Em menos de vinte e quatro horas o presidente Costa e Silva fez divulgar o Ato Institucional nº 5, fechando o Congresso Nacional. Posteriormente, mandatos foram cassados e direitos políticos suspensos. Estabeleceu-se a censura à 23 SKIDMORE, T. op. cit., p. 232 e FAUSTO, B. op. cit., p. 479. imprensa e às produções culturais. Professores foram demitidos, aumentou a violência contra grupos oposicionistas, cresceu a utilização da tortura. O golpe de 1964 foi reafirmado pelo AI-5 em 1968, instaurando a "modernização conservadora da economia", que concentraria riquezas, e foi propagandeada como a única saída para o crescimento do país. A política econômica gerava a necessidade da submissão do trabalho à lógica do capitalismo; como conseqüência, qualquer organização de trabalhadores que se opusesse seria reprimida ou desarticulada. Buscava-se substituir o homem sujeito de seu destino pelo homem consumidor. 24 Em 1968, mesmo os grupos de esquerda precisaram conscientizar-se que estavam em uma ditadura militar efetiva. O AI-5 estabelece, disciplina e evidencia as intenções de um direcionamento guiado dos destinos do país. O aumento da repressão reforçou a tese dos grupos de luta armada, incentivando movimentos de guerrilha que seriam reprimidos com agressões cada vez mais violentas. Nas palavras de Thomas Skidmore, a lógica da linha dura era tão simples quanto absurda. Eles acreditavam que o Brasil sofria da doença maligna do “populismo”, “comunismo” ou “corrupção” – termos que usavam indiferenciadamente. Os oficiais mais fanáticos viam essa doença como um desafio à civilização cristã, da qual o Brasil era supostamente um baluarte. Por essa lógica, a pornografia era uma ameaça tão grande quanto agentes cubanos. 25 Em agosto de 1969, enquanto soldados invadiam a Universidade de Brasília, Costa e Silva era vítima de um derrame, cujas conseqüências acabariam por provocar sua morte, ao final do ano. Mais uma vez violando a Constituição, os militares não fizeram assumir o vice-presidente Pedro Aleixo, civil que fora contrário ao AI-5. Através de mais um ato institucional, os ministros Lira Tavares, do Exército, Augusto Rademaker, da Marinha, e Márcio de Sousa e Melo, da Aeronáutica, assumiram temporariamente o poder. No decorrer dessa crise no governo, grupos de esquerda executavam diversas ações de resistência e combate ao regime, como assaltos e seqüestros. A ação de maior ressonância foi o seqüestro do embaixador Charles Burke Elbrick, dos Estados Unidos, quatro dias após a junta militar tomar o poder. Na barganha, quinze presos políticos foram transportados para o México, em troca da liberdade do embaixador. 24 RIDENTI, M. O fantasma da revolução brasileira. . São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1993. 25 SKIDMORE, T. op. cit., p. 256. A partir de 1969, o caminho estava livre para a chamada indústria cultural. As manifestações alternativas da música, do cinema e do teatro estavam censuradas. Segundo Marcelo Ridenti, o número de adeptos dos grupos armados crescia na mesma proporção em que tais manifestações artísticas decresciam, os setores que alimentavam as esquerdas estavam em queda por conta da repressão, da recuperação econômica e da manipulação ideológica, e também por conta da própria atuação das esquerdas em geral. 26 O governo Médici procurou distinguir os adversários do regime (grupo relativamente pequeno, porém poderoso) da maioria da população, que guardava esperança na prosperidade econômica. Os primeiros foram duramente reprimidos, enquanto a propaganda neutralizava os demais. 27 Para isso, o governo estimulou o crescimento das telecomunicações após 1964. A TV Globo, porta-voz do governo, expandiu-se até tornar- se rede nacional e dominar o setor. O Brasil era promovido como uma "grande potência". Foi a época do "ninguém segura este país", que vimos satirizado vinte anos depois na capa da revista Isto é Senhor. O governo federal moldou a propriedade da mídia, através da qual a maior parte da população recebia informações e entretenimento. 28 A mídia impressa era mais fácil de controlar, através da manipulação de anúncios − o Estado era o maior anunciante − e da censura, muitas vezes desnecessária, já que jornais e revistas aplicavam a auto- censura. Na avaliação de Paulo Marconi, a revista Veja é exemplo do mecanismo de censura aplicado à imprensa: "nasceu sem censura, passou a ser obrigada a acatar os famigerados bilhetinhos contendo as proibições, esteve sob censura prévia algumas vezes, e só se viu livre dela com a saída compulsória do seu diretor e fundador Mino Carta." 29 Esse diretor narra o processo: Nós tivemos a primeira manifestação da censura na Veja precisamente no seu n. 15, que foi apreendido nas bancas. A capa era uma foto do Costa e Silva sozinho no plenário do Congresso. Na época, a Polícia Federal e o Ministério da Justiça disseram que a foto era uma fotomontagem, quando na verdade era um fotografia feita anteriormente quando de uma sua visita ao Congresso. 26 RIDENTI, M. op. cit. 27 FAUSTO, B. op. cit. 484. 28 SKIDMORE, T. op. cit. 29 MARCONI, P. A censura política na imprensa brasileira: 1968-1978. 2. ed. São Paulo: Global, 1980. p. 84. Os censores voltaram a aparecer na revista a partir de outra edição apreendida, cerca de um ano depois, cuja capa era sobre torturas. Nós havíamos feito duas capas sobre o tema. A primeira trazia como chamada de capa "O Presidente não admite Torturas" e nela aparecia a estátua da Justiça. (...) O presidente em questão era o Médici, que tinha assumido dizendo que até o fim de seu mandato o País estaria redemocratizado, que faria o jogo da verdade, essas coisas todas. Então havia um clima favorável e nós achamos que estava se abrindo um espaçozinho, e nós encaixamos a capa. O assunto dominou as páginas de toda a imprensa e aí, de repente, a Polícia Federal baixou uma ordem proibindo o assunto torturas, através de um telex que não chegou até a revista. Aí a Veja preparou naquela semana a Segunda matéria sobre torturas, essa bastante detalhada. Nós relatávamos três histórias de torturas, muito bem contadas e muito bem documentadas. Essa edição foi para as bancas e apreendida na mesma tarde de segunda-feira. Aí surgiu a censura na revista. Até naquele momento nós estávamos no circuito dos bilhetinhos, que nem sempre nos alcançavam, como se deduz desse episódio. A partir desse fato passamos a ter censura na revista, inicialmente exercida por militares. (...) 30 O Estado não é apenas repressor, também impõe normas de conduta, estimula certas atividades. É reconhecida a importância dos meios de comunicação, sua capacidade de difundir idéias, de “criar estados emocionais coletivos”. 31 Por um lado, o Estado reprime as oposições ideológicas, procurando disciplinar as ações políticas. Por outro, bens culturais serão produzidos e difundidos em grande escala. Surgem no período: o Conselho Federal da Cultura; o Instituto Nacional do Cinema; a Embrafilme; a Funarte e a Pró- memória. Em 1965 são criadas a Embratel e a Intelsat; em 1967 o Ministério das Comunicações. A rede necessária ao funcionamento dessa indústria cultural resulta, no Brasil, de um investimento do Estado. A idéia da integração nacional é estimulante aos militares e interessante aos empresários, com poucas diferenças. A crescente “industrialização” do jornalismo, exigindo grandes investimentos, condicionava a conduta e os cálculos dos senhores da mídia, seja diante do governo – no triplo papel de fonte de financiamento, anunciante e censor − seja diante das redações. 32 A indústria cultural reclama da censura, mas da “censura excessiva”, que incomoda seu crescimento, o qual, no entanto, é sustentado por 30 Id. Ibid., p. 86 e 87. 31 ORTIZ, R. A moderna tradição brasileira. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995. p. 116. 32 ALMEIDA, M. , WEIS, L. op. cit. seu maior cliente publicitário: o Estado. 33 Essa relação vai mudar, na medida em que os meios de comunicação puderem abrir mão do subsídio do Estado, tendo consolidado seu mercado e passando a agir conforme suas regras. 34 1.2 AS PRETENSÕES DAS REVISTAS Telégrafos e telefones são contemporâneos das primeiras agências de notícias no país (décadas de 50, 60 e 70 do século XIX). Na virada para o século XX, duas características marcantes são introduzidas nas revistas: a fotografia e a cor. Nesse período, a imprensa em geral começa a ganhar o perfil de empresa. 35 Com capa e algumas páginas coloridas, sai em novembro de 1928 a primeira edição de O Cruzeiro, com matérias do exterior, noticiário sem críticas, tratando de amenidades. Nos anos 30, quando a população brasileira estava em torno de 50 milhões de habitantes, O Cruzeiro tinha tiragem de 750 mil exemplares. Deixou de ser publicada apenas em 1975. Embora os anúncios publicitários em revistas existissem desde o final do século XIX, no Brasil, a partir do período "desenvolvimentista” de Juscelino Kubitschek, as agências de publicidade quintuplicaram, chegando a quinhentas empresas entre 1953 e 1958. Apesar disso, segundo Renato Ortiz, nos anos 40 e 50 a indústria cultural era incipiente, e mesmo o projeto radiofônico de Vargas desfez-se por falta de base material. O 33 ORTIZ, R. op. cit. 34 A partir de 1964 as telecomunicações foram consideradas estratégicas para o regime militar, e a ingerência do Estado na indústria da televisão, por exemplo, aumenta e muda de qualidade. Para Hamburguer, na década de noventa os indivíduos telespectadores formaram-se consumidores antes de formarem-se cidadãos, constituindo a referência do mercado televisivo, que já não necessita de investimentos públicos. "Baseados em diferentes pesquisas de audiência e opinião, os profissionais de marketing, propaganda e televisão constroem imagens da audiência que gostariam de atingir e com as quais dialogam. Os mecanismos de pesquisa sintonizam emissores e receptores, e garantem uma dinâmica constante de captação e transformação de representações." HAMBURGUER, E. Diluindo fronteiras: a televisão e as novelas no cotidiano. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (org.) História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. v. 4. p. 454 e 459. 35 Para a análise do processo de implantação da empresa jornalística em São Paulo e suas relações com a chamada “pequena imprensa” e com os grupos de poder, ver CRUZ, H. F. São Paulo em Papel e Tinta. Periodismo e vida urbana – 1890-1915. São Paulo: Educ/Fapesp, 2000. autor contraria boa parte da bibliografia, que trata o período como “momento de modernização”. 36 O mercado de revistas tem, nas décadas de sessenta e setenta, uma grande expansão de produção e distribuição. Se, em 1960, 104 milhões de exemplares eram produzidos, em 1970 esse número chega a 193 milhões, e em 1985, a 500 milhões. 37 A década de oitenta duplicou os títulos das revistas nas bancas e traduziu as novas tecnologias e aperfeiçoamentos de pesquisa de mercado em uma melhor aferição dos interesses dos diversos públicos. Edições de grandes tiragens convivem com outras de público mais restrito: informação, cinema, televisão, técnicas, quadrinhos, rurais, circulação dirigida. A tendência é a personificação. Em 1992 havia mais de mil títulos, com volume superior a 300 milhões de revistas, em 20 mil bancas e 800 livrarias especializadas. Indignação − eis a característica que o leitor quer ver formulada na concepção de Altamir Tojal, da Isto é Senhor. A revista quer informar, comentar, opinar. A televisão é imediatista, traz o momento. O jornal dura no dia; a revista, por sua vez, está atual por sete dias, dando um tempo maior para as pessoas se sentirem informadas. Para Fabio Altman, da Veja, a revista semanal traz literatura, organiza a semana e, devido a sua periodicidade, deve prever o que será notícia no período em que vigora. 38 Não é uma concepção muito diferente da de Juarez Bahia, que expõe o objetivo da revista como "oferecer aos leitores uma seleção ordenada e concisa dos fatos essenciais da semana em todos os campos do conhecimento, explicando seu significado, fornecendo seu pano de fundo e servindo como uma espécie de rascunho semanal da história desse mundo efervescente e aparentemente inexplicável." 39 A mídia revista, portanto, tem o encargo de editar o mundo, sintetizá-lo, gerando narrativas que expliquem e dêem sentido aos fatos. Podemos acrescentar que, ao buscar prever o que será notícia, a revista semanal, com seu potencial, contribui para criar 36 As verbas de publicidade aplicadas eram: TV, 8%; rádio, 22%; jornal, 44%. Em 1950, a TV é precária, tem objetivos empresariais e é incapaz de realizá-los plenamente. Cf. ORTIZ, R. op. cit. p. 48. Esther Hamburguer concorda, afirmando que em 1970 apenas 24,11% dos domicílios brasileiros possuíam um aparelho de televisão, domicílios esses concentrados nas regiões Sul e Sudeste; nessas regiões o número de domicílios com TV deu um salto na década de setenta, enquanto nas outras regiões o salto ocorreu na década de oitenta. HAMBURGUER, E. op. cit. p. 448. 37 ORTIZ, R. op. cit. p. 122. 38 TOJAL, A., ALTMAN, F. O charme das semanais. In. RITO, Lúcia et. Al. (org.) Imprensa ao vivo. Rio de Janeiro: Rocco, 1989. 39 BAHIA, J. Jornal, história e técnica. História da imprensa brasileira . São Paulo: Ática, 1972. p. 401. a notícia. Oferece a notícia como uma mercadoria, considerando a premissa de que ela necessita ser um produto de mercado. As cores atraentes, a busca de fotografias perfeitas e títulos exatos, resultantes do fenômeno contemporâneo da explosão da comunicação enquanto mercado, do desenvolvimento tecnológico e profissional, são características das revistas semanais, que oferecem a articulação das informações que televisão, jornal e rádio não ofereceriam e, mais que isso, contribuem para a permanência dessa necessidade de formulação da massa de fatos oferecidas. Não é como consumidor que alguém compra uma revista, ou pelo menos não é apenas como consumidor. Busca-se muito mais que isso: informação, explicação, perspectivas, conhecimento, satisfação de curiosidades. Há um processo de identificação e ao mesmo tempo de incômodo, há algo ali que não se tem, mas que se pode ter, algo que se quer ter. É essa a chave do sucesso mercadológico das revistas analisadas: vendem informação acessível. Precisamos da sensação de segurança que o conhecimento gera e esse conhecimento precisa se fazer rapidamente. A informação reduz a incerteza. Quanta informação é necessária para gerar a sensação de mundo globalizado, a sensação de que o mundo está interligado por uma rede de conhecimento que pode ser apreendido? Para termos o aparente conforto da sensação de um mundo dominado criamos "rituais de vínculo", campos que transformam as tensões, incertezas, instabilidades em informação. 40 Um meio representativo e acessível de análise dos meandros dos meios de comunicação e capaz de ser desconstruído enquanto representação social é a revista de interesse geral, que tem como componente de perfil a “imparcialidade” e a “seriedade”. Segundo analistas da Meio e Mensagem, quem pode comprar revista é consumidor em potencial. Por isso a revista é uma mídia privilegiada para o mercado publicitário: tem público selecionado, específico, significando retorno garantido de investimentos em propaganda. Além disso, as revistas semanais são consideradas “transmissoras de idéias” e “meios de maior credibilidade”. A primeira revista ilustrada surgiu em Londres, em 1842, e circula até hoje (Illustrated London News). A fotografia e a impressão com meio-tom facilitaram a “reprodução” de acontecimentos. Com essa idéia nasceu Life, em 1936, propondo, nas 40 BAITELLO Junior, N. op . cit. p. 29. palavras de seu fundador, “a ver a vida; ver o mundo; a testemunhar grandes acontecimentos... a ver e ter prazer em ver; a ver e se surpreender; a ver e se instruir”. Essa fórmula inspirou na França a Paris Match; na Alemanha Stern; no Brasil, Man- chete. 41 Henry Luce, idealizador da Life, queria uma revista que desse lucro, mas também queria ser "educador das massas". Era uma revista familiar, que não publicava coisas chocantes. 42 Segundo Gisèle Freund, na década de 30 Stefan Lorant encorajava repórteres a contar uma história através de imagens, dando origem à "fotorreportagem" (no que foi sucedido pela revista francesa Vu). Foi também o primeiro a perceber que o público gostaria de ver cenas de seu cotidiano, o que faria o sucesso da revista Life, que contaria histórias através de seqüências fotográficas. O lançamento de Manchete em 1952 é representativo de um fenômeno editorial que seguiria nas próximas décadas. Os Bloch, donos da editora, já imprimiam revistas infantis para outras empresas jornalísticas. 43 Adolpho Bloch, imigrante russo naturalizado brasileiro, apresen