unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP CRISTIANE DE ASSIS LUCIFORA A REPRODUÇÃO DAS DESIGUALDADES DE GÊNERO NOS CONTOS DE FADAS/MARAVILHOSOS COMO MARCAS CIRCUNSCRITAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL ARARAQUARA – SP 2017 CRISTIANE DE ASSIS LUCIFORA A REPRODUÇÃO DAS DESIGUALDADES DE GÊNERO NOS CONTOS DE FADAS/MARAVILHOSOS COMO MARCAS CIRCUNSCRITAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL Dissertação de Mestrado apresentado a comissão avaliadora do Programa de Pós- graduação em Educação Sexual da Faculdade de Ciências e Letras - UNESP\Araraquara, como requisito para a obtenção de título de Mestre em Educação Sexual, sob a orientação do Prof. Dr. Fábio Tadeu Reina. ARARAQUARA – SP 2017 Ao meu esposo Leonardo meu maior incentivador e companheiro na trajetória pessoal e profissional Ao meu filho Alexandre pelo carinho e paciência e inspiração na busca por uma sociedade mais igualitária AGRADECIMENTOS: Primeiramente ao Prof. Dr. Fábio Tadeu Reina que com muita paciência e sabedoria auxiliou no processo construtivo deste trabalho, orientando sempre de forma positiva e preciosa na busca do saber. Pela atenção dedicada ao longo de todo trabalho sempre solícito e disposto a ajudar. Aos professores do programa em Educação Sexual que ao compartilharem seus conhecimentos nas disciplinas enriqueceram minha formação Á professora Márcia Argenti Perez que ao longo de uma disciplina auxiliou a reformular aspectos do projeto inicial e compartilhou conhecimentos preciosos de forma sempre muito esclarecedora. Agradeço as professoras Márcia Argenti Perez e Flávia Baccin Fiorante Inforsato pelas valiosas contribuições na banca de qualificação. Aos professores que participaram da pesquisa e que se envolveram com o questionário de forma positiva compartilhando de suas trajetórias pessoal e profissional e dedicando tempo para contribuir com aprendizados presentes em suas práticas pedagógicas Aos amigos queridos que durante o mestrado souberam aconselhar e ouvir de forma sempre carinhosa e encorajadora. Especialmente Ana Tatiana Gobato, Lívia Brassi e Renata Botaro amigas queridas que além de sempre me incentivarem me ajudaram com as correções ortográficas. Ás professoras que dividiram sala comigo neste processo e que diante de alguma ausência compreenderam que era para crescer em termos de formação e que mesmo com as dificuldades me encorajavam a não desistir. Algumas colegas foram participativas trocando de período quando necessário e tornaram a conciliação do trabalho e estudo possível Ao meu querido esposo Leonardo que foi meu maior incentivador para lutar pelo meu sonho, sempre motivando para que nunca desistisse, me encorajando a evoluir profissionalmente, tornando as minhas multifunções possíveis sendo um ótimo pai fazendo-se sempre presente Ao meu amado filho Alexandre que neste processo foi aquele que com sua alegria revigorava minha energia e me estimulava ir além. Que é a razão para acreditar que a luta por uma sociedade mais justa para as futuras gerações é sempre valida. Resumo A pesquisa de mestrado intitulado “A reprodução das desigualdades de gênero nos contos de fadas/maravilhosos como marcas circunscritas na Educação Infantil” foi realizado com um grupo de professores que lecionam com crianças de cinco à seis anos de idade no seguimento da Educação Infantil da rede municipal de ensino em uma cidade do interior de São Paulo, tendo como objetivo identificar como se dá o trabalho com os Contos de Fadas/Maravilhosos na prática pedagógica destes professores, identificando se o trabalho com tais contos caminham na direção da ruptura com os conteúdos ideológicos de gênero ou se estes tem sido reproduzidos. Foi utilizado o instrumento metodológico questionário com perguntas abertas baseado nos pressupostos teóricos do autor Pierre Bourdieu. A pesquisa reconheceu que a reprodução está relacionada com os mecanismos formadores de tais professores, seja no âmbito de seu contato com os contos em sua formação identitária com familiares e escolarização ou tendo haver com a formação profissional. A perspectiva teórica crítica fundamentou a dissertação com o referencial bourdieusiano e suas categorias de análises como campus, habitus, trajetória, reprodução, capitais entre outros. Os Contos de Fadas/Maravilhosos assumidos neste trabalho por uma perspectiva histórico-cultural situa a Literatura Infantil como um artefato cultural passível de mudança ao longo da história e assim sendo como um instrumento reprodutor de ideologias presentes na cultura ocidental. Tal reprodução sendo assumido pelo autor Bourdieu como sistema social que tende a assegurar a perpetuação das estruturas sociais ou das relações de ordem que formam a manutenção social. Palavras-chaves: Reprodução. Gênero. Prática pedagógica. Contos de fadas/Maravilhosos Abstract The master's research entitled "Reproduction of gender inequalities in fairy tales/marvels as circumscribed marks in Pré-School" was performed with a group of teachers who teach with children from five to six years in the segment of pré-school at Municipal’s Network Schools in a city in the interior of São Paulo, sought understanding to identify how the work with Fairy Tales/marvels takes place in the pedagogical practice of these teachers, identifying if the work with such tales go on break rupture’s direction with the ideological contents of gender or if they have been reproduced. The methodological tool was a questionnaire with open questions based on the theoretical assumptions of author Pierre Bourdieu. The research acknowledged that the reproduction is related to the training mechanisms of such teachers, either in the context of their contact with the tales in their identity formation with family and schooling or having with the professional training. The critical theoretical perspective grounded the dissertation with the bourdieusiano reference and its categories of analyzes like campus, habitus, trajectory, reproduction, capitals among others. The Fairy Tales / Marvelous in this work from a historical-cultural perspective places Children's Literature as a cultural artifact capable of change throughout history and thus as a reproductive instrument of ideologies present in Western culture. This reproduction is assumed by the author Bourdieu as a social system that tends to ensure the perpetuation of social structures or the relations of order that form social maintenance. Keywords: Reproduction. Gender. Educational practice. Fairy tales. LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Perfil profissional………………….…………………………………………….92 Quadro 2 – Trajetórias familiares……………………………………………………………95 Quadro 3 – Trajetórias complementares…..………………………………………………..102 Quadro 4 – Capital cultural………………...……………………………………………….109 Quadro 5 – Interação com os contos de fadas/maravilhosos………………………………..114 Quadro 6 – Trajetórias escolares iniciais……..……………………………………………..120 Quadro 7 – Trajetória profissional e prática pedagógica……..……………………………..126 Quadro 8 – Crítica aos contos de fadas/maravilhosos………………………….…………...134 Quadro 9 – Influência da formação profissional na prática pedagógica……………………138 Quadro 10 – Contos de fadas/maravilhosos, diversidade e gênero…………………………142 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO 11 2. REFERENCIAL TEÓRICO 18 2.1. Marcas sociais de nossos tempos: gênero, sexualidade e educação em âmbito escolar 18 2.2. História da sexualidade na Sociedade Ocidental: a submissão feminina no seio da cultura 33 2.3. Sociedade generificada: a formação do habitus e os campus possibilitadores de tal formação 44 2.4. Inculcações de Gênero: o currículo como instrumento de reprodução das desigualdades sociais 51 2.5. O contexto histórico-cultural dos Contos de Fadas/Maravilhosos e o imaginário social sobre o feminino, masculino, família, criança e infância 65 3. METODOLOGIA DA PESQUISA 82 4. DADOS DE PESQUISA COM AS CATEGORIAS DE ANÁLISE REPRODUÇÃO, HABITUS, TRAJETÓRIA DOCENTE E VIOLÊNCIA SIMBÓLICA 87 4.1. Perfil profissional dos participantes 87 4.2. Trajetórias familiares 94 4.3. Configuração Familiar – Número de irmãos 106 4.4. Capital Cultural 108 4.5. Interação com os Contos de Fadas/Maravilhosos na construção do habitus primário: reprodução dos esterótipos de gênero ou ruptura? 114 4.6. Trajetórias escolares iniciais 120 4.7. Trajetórias Profissional e prática pedagógica 124 5. SIMILARIDADES E DIVERGÊNCIAS 149 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS 151 REFERÊNCIAS 158 APÊNDICES 163 11 1 INTRODUÇÃO A sociedade, estando envolvida em constantes transformações ao longo da história, incluindo as relações que se desenrolam entre os agentes sociais, demonstram que as construções de gênero e sexualidade estando inicialmente imersas em relações desiguais foram questionadas e desestruturadas por movimentos sociais como o feminista que lutaram por uma superação daquilo que oprime e exclui certos seguimentos em relação a outro, entretanto, apesar de parecem ter sido superadas se reconfiguraram ganhando novas facetas muitas vezes de forma mascarada tornando seu reconhecimento mais difícil. A instituição escolar inicialmente contribuindo abertamente com a propagação das divisões culturais de gênero também sofre transformações, assumindo assim um discurso de espaço democrático e neutro. Entretanto, ainda se faz necessário estudos que adentrem neste contexto para conhecê-lo na atualidade e verificar se de fato isso acontece. O Conto de Fadas/Maravilhosos assumido como artefato cultural presente na escola e tendo em seu conteúdo concepções que transmite ideais de ser para ambos os sexos, acaba sendo um material selecionado por muitos professores em sua prática pedagógica. Tal artefato foi um dos caminhos para que se pudesse compreender um pouco da prática pedagógica dos professores envolvidos, no que diz respeito ao trabalho com gênero e sexualidade, e dessa forma encontrar traços de suas trajetórias pessoal e profissional na forma como estes lidam com um material que não sendo desconstruído pode caminhar para a reprodução do status quo nas relações entre homens e mulheres. Minha trajetória como pesquisadora nasceu do encontro com a formação docente e a inserção no contexto escolar de trabalho. Ao longo da minha graduação encontrei poucos espaços para a discussão da dimensão social de gênero e sexualidade, mas as poucas oportunidades que tive me fizeram questionar minha formação pessoal e as teias simbólicas e corporais no qual estive envolvida ao longo da vida. Assim nasceu a sementinha para questionar o que era assumido como inerente e inquestionável. Ao adentrar no contexto pedagógico percebi o quanto a escola ensina condutas pelos conteúdos que são trabalhados, pela via do discurso, nas diversas relações e também pelo que silencia. Convivi com crianças que mostraram-se abertas ao diálogo e respeito ao próximo, mas que por conviver com os conceitos estabelecidos dos adultos reproduziam em alguns momentos relações desiguais. Isso me fez questionar sobre o alcance escolar na superação de relações desiguais e mais ainda, se a escola tem interesse em atuar modificando tais relações. Sou professora de Educação Infantil e utilizava os contos clássicos da Literatura Infantil por acreditar que as crianças gostavam dessas histórias e que ao ouvi-las sentiam-se estimuladas a terem hábitos de leitura. Isso gerou a inquietação e as bases para a busca do objetivo de minha pesquisa que foi identificar como se dá o trabalho com os Contos de Fadas/Maravilhosos1 na prática pedagógica de um grupo de professores que lecionam com crianças de 5 à 6 anos, identificando se o trabalho com tais contos caminham na direção da ruptura com os conteúdos ideológicos de gênero ou se estes tem sido reproduzidos. Tal pesquisa também identificou os mecanismos ideológico de formação dos professores participantes, como a família, escola, formação profissional inicial e continuada e que fazendo parte de seus habitus manifestam-se em suas posturas diante do conhecimento que é incorporado em suas práticas. Suas trajetórias foram importantes para compreender os mecanismos de formação de suas posturas diante da prática pedagógica. A pesquisa analisa à luz dos conceitos bourdieusianos como a leitura dos contos de fadas/maravilhosos são trabalhados no contexto escolar, reconhecendo se trabalhos de desconstrução de estereótipos fazem-se presentes nestes e são empreendidos pelos 1 A autora Marta Morais da Costa no livro Metodologia do ensino da Literatura Infantil (2007, p. 75) explica que é possível englobar sob o título de contos maravilhosos as narrativas com ou sem fadas, que apresentem uma visão mágica da realidade (com objetos, animais e acontecimentos fora da realidade e transformáveis). professores, bem como, perceber se estes percebem que há transmissão dos estereótipos de gênero pelos contos e identificar como os contos de fadas/maravilhosos foram inseridos na vida destes seja em sua formação pessoal como a profissional. Para fundamentar a pesquisa foi utilizado primordialmente os estudos de Pierre Bourdieu com algumas de suas categorias de análise assim como a contribuição de outros autores pertencentes a teoria crítica e também dos estudos culturais e de gênero. O recurso metodológico denominado praxiológico baseia-se no campo de análise empreendido por Pierre Bourdieu; tal metodologia pauta-se pela busca do afastamento da dicotomia entre objetivismo e subjetivismo que durante muito tempo marcou as Ciências Humanas. O contexto social dessa maneira foi investigado enquanto aspecto objetivo e manifesto e subjetivo como a esfera psicológica responsável pelas ações dos indivíduos. Na perspectiva teoria-metodológica baseada no pressupostos de Pierre Bourdieu, a interioridade e exterioridade estão em constante dialogicidade na busca pela compreensão dos motivadores das relações que se manifestam. Os agentes são assumidos como sujeitos que tem suas representações e ações construídas no meio cultural de convívio e tendo suas relações muitas vezes cerceadas, pelas próprias condições materiais de existência específico da fração de classe do qual é originário este agente social. O instrumento de pesquisa utilizado foi do tipo questionário, com questões abertas (35 questões), elaborado seguindo as conceituações de Pierre Bourdieu. As questões seguiram uma organização que buscava identificar primeiramente o perfil profissional (tempo de trabalho e formação profissional), qual faixa econômica considerava sua família, nível de escolaridade dos avós e pais, número de irmãos, inserção dos Contos de Fadas/Maravilhosos na família, se tais contos fizeram parte da trajetória escolar e como eles eram trabalhados, se na trajetória profissional eles haviam sido levados a refletir sobre os conteúdos ideológicos que permeiam os Contos de Fadas/Maravilhosos, se eles selecionavam tal material para trabalhar em suas aulas, com qual motivação e como trabalhavam; o questionário identificou se os professores se viam preparados para trabalhar com a diversidade e mais propriamente com gênero. Os professores selecionados atuam na rede municipal de ensino no interior do estado de São Paulo e atuavam no momento de realização pesquisa com crianças de 0 à 5 anos pertencentes a Educação Infantil. Um dos critérios de seleção foi encontrar professores que aceitassem participar que tivessem níveis de escolaridade diferentes e também a formação profissional. Para desenvolver a pesquisa contei com a participação de 8 professoras mulheres e um professor homem. Todos tiveram uma semana para responder ao questionário com privacidade e destes apenas um pediu mais uma semana alegando que o tempo foi curto. O perfil dos professores foi estruturado em um quadro (quadro 1) de forma que permitisse uma melhor visualização sobre suas classificações aquisitivas, idade, tempo de trabalho, nível de formação atual e formação inicial e encontra-se ao fim da metodologia, antes de adentrar na análise de conteúdo. Na análise buscou-se identificar as trajetórias dos professores participantes, no contato com os contos, hábitos de leitura e os usos que estes fazem do artefato cultura contos de fadas/maravilhosos em suas práticas pedagógicas. Também foi investigado se os professores possuíam críticas aos conteúdos ideológicos presentes nos contos de fadas/maravilhosos de forma que as categorias de análise de Pierre Bourdieu e outros referenciais teóricos estivessem presentes refletindo sobre seus relatos. Essa pesquisa foi importante por trazer a problemática dos conteúdos escolares e seus usos pedagógicos na reprodução e reforço de ideologias excludentes. Ela identificou, dentro do uso do material contos de fadas/maravilhosos, se os professores tinham críticas em relação aos conteúdos sexistas e os ideais desejáveis e por que se eles possuíam críticas os utilizavam em suas práticas. Ficou evidente o alcance do currículo como prática de transmissão de juízos de valor e a reprodução de estruturas sociais pré fixadas que sem uma ruptura seguem dentro de alguns conteúdos escolares. O anonimato dos professores, garantidos pelo Termo de Responsabilidade, foi respeitado na pesquisa e foi utilizado como compromisso firmado de que como pesquisadora não exporia seus nomes em nenhuma situação. O estudo foi composto por cinco seções teóricos. Sendo o primeiro a problematização do contexto atual no que tange às relações de gênero presentes na sociedade e a influência dos mecanismos culturais que adentrando na instituição escolar conta com seus meios de propagação. A sociedade atual foi problematizada a fim de reconhecer o quanto ainda temos relações marcadamente desiguais entre homens e mulheres e como tais relações estão sendo reconfigurada através da modernidade no contexto escolar. Na segunda seção traz-se um pouco da história da sexualidade e a influência da doutrina cristã no ocidente que lançou mão de diversos recursos para impingir uma sexualidade cerceada em direitos iguais para homens e mulheres. No mesmo item incorpora- se a influência da medicina no também controle das condutas sexuais. Na terceira seção faz-se presente a explanação teórica acerca da cristalização desigual nas relações entre homens e mulheres, sendo tal desigualdade iniciada no seio familiar; a qual é tida como a primeira instituição a inculcar valores e características para cada sexo, representando assim o que o autor Bourdieu (2014) classifica como habitus primário dos indivíduos. Instituições como a Família, a Igreja, a Escola, e também em outra ordem, o esporte e o jornalismo nos quais os sujeitos estarão inseridos ao longo de suas vidas reforça tais desigualdades de forma naturalizada e encoberta por uma ideia de arbitrariedade no qual os sujeitos assumem dadas características como inerente ao sexo que pertence. Na quarta seção reflete-se sobre a prática curricular voltada para o questionamento dos conteúdos ensinados e a reprodução de estruturas tidas como inerentes. As categorias sociológicas de Pierre Bourdieu são incorporadas na discussão dando estruturação teórica para as análises que serão construídas posteriormente. A quinta seção problematiza o artefato cultural conto de fadas/maravilhosos e suas raízes históricas e culturais associadas ao nascimento do sentimento de infância, família e crianças. Empreende-se uma discussão voltada para o reconhecimento de que os contos transmitem conteúdos sexistas e que apesar de sua função inicial de moralização nas escolas continua mesmo na atualidade sendo incorporado pelos professores. Há mais uma seção que explica os passos desenvolvidos na pesquisa metodológica e posteriormente a análise de conteúdo que estrutura-se com a apresentação de quadros que buscam a visualização das similaridades e divergências manifestas nos relatos dos professores, a transcrição de suas respostas por se tratarem de dados bastante pessoais descrevendo suas trajetórias pessoais e profissionais e por último a análise de seus relatos utilizando as categorias de análise de Pierre Bourdieu e referenciais teóricos da teoria crítica, estudos culturais e de gênero. Conclui-se que tal investigação foi importante, por identificar em um grupo de professores mesclados em relação as suas formações e grau de escolaridade, que são selecionados os contos de fadas/maravilhosos em suas práticas pedagógicas não com o critério de utilizá-los como moralizador de condutas, mas sim como estímulo de leitura e escrita dentre outros. Foi importante para reconhecer que estes professores possuem críticas quanto aos conteúdos ideológicos presentes nos contos de fadas/maravilhosos, no entanto, ao se questionar sobre os trabalhos que empreendem não aparece o relato de desconstruções. As semelhanças manifestas nos relatos pode ser explicada por Bourdieu como os agentes sociais originários da mesma fração de classe, tendo as mesmas condições materiais de existência e sujeitos as mesmas ações práticas, tendem a ter a homogeneização de seus habitus, portanto a regularidade das disposições manifestam-se de forma grupal. Espera-se que tal pesquisa contribua com reflexões sobre o alcance dos conteúdos incorporados nas instituições escolares, como as trajetórias que constituem os agentes manifestam-se em suas ações podendo gerar a transmissão de juízos de valor que cristalizados na sociedade seguem de forma naturalizada. 2 REFERENCIAL TEÓRICO 2.1 Marcas sociais de nossos tempos: gênero, sexualidade e educação em âmbito escolar Estudos na área da educação, cultura e sociedade apontam um contexto desigual no Brasil, no que diz respeito às relações entre os gêneros e, que se iniciando na formação familiar acaba avançando por diversas outras instituições como escola, igreja, hospital, mídia etc. que seguem podando relações mais justas e igualitárias entre os diferentes sujeitos. A ideologia dominante cuida de naturalizar as relações como se estas fossem organicamente distintas entre homens e mulheres; aquilo que por força de uma manutenção social iniciada na família e reforçada por outras instituições mantêm-se ao longo da história e na cultura como um dado biológico inerente aos indivíduos. Segundo Gomes (2006): Nesse sentido, cabe enfatizar que a perpetuação da ordem dos gêneros esteve, até bem pouco tempo, garantida fundamentalmente pela ação conjunta de instituições como a família, a igreja, a escola e o Estado, sobre estruturas inconscientes. Todavia, é a família que tem o papel mais relevante na reprodução da dominação masculina, pois é no ambiente familiar que a criança, desde a mais tenra idade, vai interiorizando divisão sexual do trabalho e, consequentemente, os estereótipos vão sendo inculcados sob a forma de habitus primários. (p. 36). Gomes (2006) assume Habitus como o aprendizado que ocorre desde os primeiros momentos da vida, podendo iniciar-se antes mesmo do nascimento do sujeito com as aspirações sociais que se formam partindo da descoberta do sexo do bebê. A instituição familiar com seus valores e crenças constroem comportamentos positivos e negativos desde a primeira infância, utilizando-se de meios sutis e refinados nas naturalizações que impregnam o habitus primário. O gênero compreendido como conjunto de caracteres simbólicos que permeiam o imaginário social voltado para formas de ser, estar e agir de homens e mulheres, foge da ideia de que são fruto de condicionamentos biológicos. A formação do gênero inicia-se no contexto familiar, mas avança para outras instituições. Os sujeitos internalizam no convívios sociais representações de masculinidades e feminilidades e compreendem mesmo que de forma inconsciente como enquadrar-se na heteronormatividade. A família inculca desde muito cedo formas consideradas normais de agir em sociedade e repreende aquilo que é visto como um desvio. Segundo Bourdieu (2014): As divisões constitutivas da ordem social e, mais precisamente, as relações sociais de dominação e de exploração que estão instituídas entre os gêneros se inscrevem, assim, progressivamente, em duas classes de habitus diferentes, sob a forma de hexis corporais opostos e complementares e de princípios de visão e de divisão, que levam a classificar todas as coisas do mundo e todas as práticas segundo distinções redutíveis à oposição entre o masculino e o feminino. (p. 49). Muitas são as facetas das desigualdades de gênero e estas contam com diversos meios de propagação dos ideais de divisão cultural e social entre homens/meninos e mulheres/meninas, sendo estes reconfigurados na sociedade; vemos na atualidade a grande influência midiática e dos meios eletrônicos como smartfones, internet e a publicidade que reinventam as formas de propagação da desigualdade e muitas vezes dá um ar de superação apontando para um poder feminino que está longe de ser alcançado plenamente. Nosso contexto atual aponta um processo de ruptura com muitas ideias vistas como arcaicas motivadas por lutas históricas de movimentos sociais como o feminista que reivindicaram uma participação da mulher em locais onde há pouco tempo lhe era negado. As mulheres se viram em uma participação maior na sociedade e reconfiguração do que é assumido como feminino, criou-se uma falsa ideia de que a igualdade entre os sexos foi conquistada por completo e aumentou de certa forma a identificação de tais desigualdades que foram reveladas por diversos meios. Ruth Sabat (2001) chama atenção para o poder que a publicidade tem em subverter os padrões estabelecidos não com fins de contestação, mas sim como maneira de chamar atenção para o produto que está a venda. Temos o caso recente da marca famosa de departamento que em uma propaganda coloca homens e mulheres mesclando figurinos masculinos e femininos dando a entender que as pessoas não precisam se vestir de uma forma específica, mas sim conforme o gosto ou ousando. A propaganda em questão foi alvo de críticas por segmentos tradicionais da sociedade que defenderam ser uma subversão do que biologicamente é para cada sexo e que a vestimenta de homens e mulheres tem que ser diferente. Segundo Sabat (2001): Ao utilizar essas estratégias como forma de atingir consumidoras/es, a publicidade está trabalhando a partir de um currículo cultural que é constituído nas relações sociais e que opera como constituidor dessas mesmas relações. Tal currículo cultural faz parte de uma pedagogia específica, composta por um repertório de significados que, por sua vez, constroem e constituem identidades culturais hegemônicas. (p. 14). A princípio podemos ver essas iniciativas como uma proposta de ruptura com divisões fixas de gênero, porém temos que levar a crítica mais adiante e refletirmos se a mídia ao propor uma subversão dos padrões arraigados não o faz como contestação, mas sim como forma de chamar atenção do cliente para o produto que se quer vender. Se sairmos deste binarismo que limita os sexos as discussões são ainda mais complexas e repletas de tabus e segredos de forma que os sujeitos que fogem as “regras” reservadas para o sexo que nasceu sofre diversas represálias em uma sociedade que estigmatiza os desviantes da dita normalidade heterossexual. Os diversos campus atuam como mecanismos repressores de possíveis “desvios” presentes na sexualidade e gênero dos sujeitos. Aqueles que ousam atravessar as fronteiras voltadas para identidades fixas são na maioria das vezes recriminados pelo grupo. Ao mesmo tempo que os sujeitos são modelados para atender certas expectativas eles também são repelidos quando destoam para que compreendam que ser “diferente” os afasta das pessoas assumidas como “normais”. A sexualidade humana acompanha a expectativa binária antes mesmo do sujeito romper com a vida intrauterina; a pergunta que acompanha o ser em gestação é qual o sexo deste e qual nome será dado, seguindo assim todo um universo representacional de cores, brinquedos, preparação para o quarto etc. São pensados para aquele sexo e dessa forma todo um universo simbólico é colocado em prática para reforçar aquilo que assume-se seja ligado a determinado sexo. Cito uma prática chamada “chá de revelação” que pode ser assumido na atualidade como um rito de passagem onde tal simbolismo se mostra presente. A grávida convida um grupo, de familiares e amigos, para que nessa reunião possa ser anunciado o sexo do bebê e nesta reunião são colocados enfeites simbolizando o masculino abusando da cor azul e a menina com cores rosas. Em certa altura de tal reunião a grávida através de algo também simbólico anuncia para os convidados qual o sexo do bebê; bexigas da cor azul ou rosa saindo do carro, o bolo que é pego na hora da anunciação é em azul ou rosa. O simbólico toma conta do não dito e inicia toda representação generificada por indivíduos que serão marcados por diferenças assumidas como inerentes e não construídas. O chá de revelação é um exemplo valido para compreender esse mundo simbólico que acompanha a descoberta do sexo e também para que se faça a crítica sobre o quanto esse binarismo de gênero ainda faz-se presente em nosso contexto social. Há quem olhe de um dado ângulo e acredite que na atualidade esse binarismo esteja superado ou que ele não implique uma desigualdade entre os gêneros, contudo vemos com práticas como essa uma consagração de um universo que espera-se ser diferente e no qual haverá separações que poderão limitar em qual lado o sujeito estiver. Ainda nos dias de hoje vemos que ao levarmos a discussão de gênero para as instituições escolares temos na maioria das vezes dois tipos de posicionamento, o estranhamento de um assunto que para muitos profissionais da educação não é adequado a este contexto e que portanto deve ser evitado ou o discurso de que as possíveis normas de gênero foram quase superadas gerando pouco ou quase nada de práticas que elevam uma categoria de gênero sobre a outra. A sexualidade é assumidamente um tabu no contexto brasileiro no qual os sujeitos em sua maioria não se sentem a vontade para dialogar sobre ela e em muitas situações é confundida com ato sexual o que fere o pudor, fruto de nossas raízes cristãs que relegam os assuntos sexuais para o âmbito privado. Discutir sexualidade não é algo fácil para todos, já que no imaginário social a ideia de que falar sobre isso é algo vergonhoso se faz presente. Desta forma, os sujeitos presentes em uma dada instituição carregam para esta esfera, suas concepções sobre manifestações sexuais e com isso nas suas relações com os demais sujeitos, deixam “escapar” por meio de suas ações tais concepções. Professores vão para o campus escolar com os ideais construídos ao longo de sua vida e nas relações com os estudantes e corpo de funcionários empreendem uma transmissão dessas construções; pode ser ensinando conteúdos, em conversas descontraídas, no que interfere ou ignora, na presença do que tolera ou repreende etc. O juízo professoral de forma subjetiva, qualifica e desqualifica determinadas características manifestas pelo corpo discente e com isso auxilia na propagação do que é assumido como “certo” e “normal” socialmente. Segundo Bourdieu (2015, p. 213), “O julgamento professoral apoia-se de fato sobre todo um conjunto de critérios difusos, jamais explicitados, padronizados ou sistematizados, que lhe são oferecidos pelos trabalhos e exercícios escolares ou pela pessoa física de seu autor”. A Educação Infantil, que compreende a educação de crianças de 0 à 5 anos, é um campus no qual faz-se ainda mais complicado a inserção de trabalhos voltados para a Educação Sexual já que em tal universo a criança é vista como aquela que não possui sexualidade e que trabalhos com gênero poderiam prejudicar a formação da identidade de tais crianças. As diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil (DCNEI) e os Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (RCNEI) definem a faixa etária de 0 à 5 anos como as atendidas pela Educação Infantil, sendo essa assumida como primeira etapa da educação básica. É oferecida em creches e pré-escolas caracterizando-se esses como espaços institucionais não familiares, que podem ser públicos ou privados e que educam e cuidam das crianças no período diurno, em jornada integral ou parcial. Esses espaços são regulados e supervisionados por órgão competente do sistema de ensino e submetidos a controle social. Segundo Figueiró (2013): Com relação à Educação Infantil, existem os Referenciais Curriculares Infantis (RCI), que, embora não apresentem diretamente uma proposta de ensino do tema sexualidade, trazem vários pontos dentro do conteúdo programático que dão margem ao ensino sobre corpo, gênero e todas as demais temáticas que a professora preparada e sensível conseguirá inserir. (p. 107). Reflito sobre a dificuldade de se inserir a problemática de gênero e sexualidade na escola por haver uma preocupação que tais assuntos devam ser problematizados pela família, mas que na verdade esses façam-se presentes através de representações que os sujeitos carregam em sua própria formação identitária. A escola não é neutra e ao se colocar assim contribui para que muitos ideais excludentes sejam reproduzidos de forma naturalizada. Assim, a violência simbólica inscrita na “ordem das coisas” avança sem chamar atenção ao longo da vida dos sujeitos nos diversos meios onde este passa, como conjunto de caracteres que se colocam com aparência de neutralidade e arbitrariedade. Segundo Bourdieu (2014): A dominação masculina encontra assim reunidas todas as condições de seu pleno exercício. A primazia universalmente concedida aos homens se afirma na objetividade de estruturas sociais e de atividades produtivas, baseadas em uma divisão sexual do trabalho de produção e de reprodução biológica e social, que confere aos homens a melhor parte, bem como nos esquemas imanentes a todos os habitus moldados por tais condições, portanto objetivamente concordes, eles funcionam como matrizes das percepções, dos pensamentos e das ações de todos os membros da sociedade, como transcendentais históricos que, sendo universalmente partilhados, impõem-se a cada agente como transcendentes. (p.54). A Violência simbólica também tem fortes laços com a linguagem, que auxilia na instituição dos sujeitos delimitando os lugares nos quais estes transitam e respondem a determinadas ações. A linguagem por ocorrer de forma simples nas diversas relações humanas têm por trás de si diversos mecanismos de poder que passam despercebidos. Muitos profissionais da educação buscam não comprometer-se com as problemáticas de gênero e sexualidade e quando tais questões entram no universo da educação infantil são limitados por manifestações incrédulas de que as crianças seriam capazes de compreender e refletir sobre tais assuntos. Em um processo de identificação sobre a reprodução das desigualdades de gênero compreende-se a necessidade de reconhecimento sobre os ideais de criança e infância que permeiam o imaginário dos educadores e que acabam influenciando as práticas pedagógicas. Segundo Nunes e Silva (2006): A aquisição da linguagem, a imposição dos papéis sexuais, a cristalização dos comportamentos disciplinares e capacidade de produção são os principais elementos do ethos educacional que construímos e continuamente reproduzimos. Retrato exemplar desta realidade é a curiosa e frequente indagação que fazemos às nossas crianças ‘O que você vai ser quando crescer?. (p.10). Deste modo a criança é assumida como um ser inocente e no qual cabe os investimentos para o adulto que será potencialmente, entretanto tem parte de si oculta como algo não pertencente a sua natureza. A sexualidade presente na formação de sua identidade é inculcada como algo que se deva ocultar reforçando a ideia de que essa é vergonhosa. Para (Nunes e Silva, 2006, p. 13) “A Educação Sexual escolar sempre foi objeto de polêmica em nossa tradição educacional. A escola brasileira, pública e privada, sempre manteve este tema distante de seus procedimentos curriculares e responsabilidades institucionais”. Compreender a ação pedagógica como fenômeno político e ideológico requer a compreensão de que todo sujeito social carrega em si as marcas da construção de sua trajetória pessoal e profissional, sendo estas marcadas por rupturas excludentes ou não que se inserem nas diversas relações estabelecidas entre os diversos sujeitos. Uma das discussões possíveis é o que é assumido/considerado cultura e sua repercussão social para sancionar o que é tomado como digno de valor ou não. Conceituo cultura pela perspectiva antropológica que assume cultura como interpretação da vida social, maneira dos sujeitos viverem e se organizarem socialmente, maneira de viver de determinados grupos, sociedade, país ou pessoas; códigos que são assumidos de forma grupal, tendo um representacional de como pensam, classificam, agem, estudam e modificam seu redor e a si mesmos. São sujeitos que compartilham os mesmos objetos, tendo na maioria vezes grupos formados pelo seguimento de certas normas e objetivos. Segundo Candau (2008): As nossas maneiras de situarmo-nos em relação aos outros tende “naturalmente”, isto é, estão construídas, a partir de uma perspectiva etnocêntrica. Incluímos na categoria “nós”, em geral, aquelas pessoas e grupos sociais que têm referenciais culturais e sociais semelhantes aos nossos, que têm hábitos de vida, valores, estilos, visões de mundo que se aproximavam dos nossos e os reforçam. (p. 29). O determinismo biológico foi e é utilizado como estratégia discursiva e ideológica na concepção do que é considerado naturalmente feminino e naturalmente masculino, marcado por diversas características assumidas no âmbito cultural como sendo da natureza de cada sexo. A cultura sanciona o que é valorativo e por inúmeros processos de inculcamento faz com que pareça inerente e biológico a cada indivíduo e não como formação social. Laraia (1999) aponta: A espécie humana se diferencia anatômica e fisiologicamente através do dimorfismo sexual, mas é falso que as diferenças de comportamento existentes entre pessoas de sexos diferentes sejam determinadas biologicamente. A antropologia tem demonstrado que muitas atividades atribuídas às mulheres em uma cultura podem ser atribuídas aos homens em outras. (p. 19). A construção dos sujeitos por gênero é marcada por diferenças que são apreendidas no seio da cultura e que são marcadas por relações assumidas como naturais e presentes no cerne de tais sujeitos. Representam formas de portar-se conforme o que se espera para cada sexo, conjunto de caracteres que cristalizados na sociedade seguem como inerentes. Aponta (Laraia, 1999, p.20) “Resumindo, o comportamento dos indivíduos depende de um aprendizado, de um processo que chamamos de endoculturação. Um menino e uma menina agem diferentemente não em função de seus hormônios, mas em decorrência de uma educação diferenciada”. A educação auxilia na inculcação dos comportamentos diferenciados, seja em meio escolar quanto na socialização familiar exterior a tal instituição. Os sujeitos aprendem a portar-se da forma como socialmente serão aceitos e tal aprendizado na maioria das vezes não se dá de forma consciente. Para (Laraia, 1999, p. 70) “O modo de ver o mundo, as apreciações de ordem moral e valorativa, os diferentes comportamentos sociais e mesmo as posturas corporais são assim produtos de uma herança cultural, ou seja, o resultado da operação de uma determinada cultura”. Vemos no contexto contemporâneo brasileiro uma corrente forte voltada para o abafamento do trabalho com o gênero e sexualidade, com a justificativa de que o trabalho com tais questões feriria o direito familiar de decidir o que seu filho pode ou não saber e também que problematizar tais questões poderia estimular o interesse por assuntos que sem a informação não surgiriam naquele momento e também o interesse por formas de se relacionar como o homoerotismo que sairiam do contexto entendido como normalidade que é a heteronormatividade. Muito é deixado de fora neste contexto, já que ao se continuar assumindo uma forma de relacionar-se como natural e normativa exclui-se as manifestações que divergem. Isso se dá também no terreno externo a sexualidade e visível nas relações de gênero como diferentes formas de manifestar a feminilidade e a masculinidade. Intensifica-se a ideia que os sujeitos têm que atender a determinadas características e que fora destas sofrerão para serem aceitos em suas diferenças. Furlani (2011) problematiza que uma das vertentes que manifesta a sexualidade com aspectos normativos é a abordagem terapêutica que segue uma interpretação da bíblia literal sendo ela o requisito para referendar a ética moral. Os sujeitos que seguem tal vertente abominam sexualidades que desviam da norma e acreditam inclusive que por terapia pode-se curar tais desvios. Segundo (Furlani, 2011, p. 21), “O uso literal da bíblia tem sido usado, hoje, nas investidas pela manutenção da família patriarcal e pela volta da “submissão” da mulher, tal como se dava nos tempos remotos das antigas escrituras”. O Brasil é fortemente marcado pela tradição católica e esta impregna o imaginário social com ações que naturalizadas seguem como inerentes aos seres humanos. As condutas são marcadas por ideais voltados para o feminino e masculino e configurações familiares. Os professores presentes nessa cultura e tendo seu habitus construído nas relações estabelecidas nos seios institucionais levam tal repertório para sua ação pedagógica mesmo na atualidade a escola sendo laica. Gomes (2006): A igreja contribui apregoando uma moral antifeminista, fundamentada em valores patriarcais, mas, principalmente por meio da crença na inata inferioridade feminina. A escola, mesmo libertada da influência da Igreja, colabora com a reprodução de estereótipos ao fundamentar-se na representação patriarcal, que mantém uma estrutura hierárquica com forte conotação sexuada, fazendo do homem o princípio ativo e, da mulher, o passivo. (p. 36). A mulher nessa tradição é assumida como o homem não desenvolvido, sendo aquela que nasceu de sua costela para ser sua companheira e que posteriormente por sua ambição demasiada foi responsável pela expulsão do paraíso, devendo-lhe assim submissão e subserviência. Ainda que atualmente a tradição católica venha se reinventando historicamente no Brasil, muito de seus valores e morais se dão de forma cristalizada na sociedade e se veem fortalecida pela ideia que naturalmente homens e mulheres são diferentes, visualizando assim as desigualdades entre estes como uma consequência das limitações de cada gênero. Laraia (1999) nos chama atenção para a reflexão de que muito do que se compreende como inerente à natureza dos indivíduos, na verdade é fruto de procedimentos culturais que não estão associados com uma ordem objetiva, mas como efeito de condicionamentos culturais. Justificativas de cunho biológico sempre se fizeram presente na história da sexualidade e muitas vezes serviram para afirmar e reforçar as desigualdades entre homens e mulheres. Muitos são os motivadores de discursos de reafirmação da desigualdade profissional entre os sexos por pautar-se na ideia de que os homens têm mais força ou a mulher mais jeito maternal e cuidadoso, que os homens não se afastam pela e para a maternidade, mas que as mulheres sim, o que justifica estas receberem menos porque os custeios com tal benefício são onerosos para o empregador e o que nos dias de hoje tem menos força a justificativa de que o intelecto do homem é mais aprimorado do que o das mulheres o que faz com que os trabalhos “menos dignos” seja reservado a categoria feminina sem quase prestígio social e econômico algum e no qual é muitas vezes como complementação financeira do salário principal de quem assume o lar que é o homem. Os mecanismos ideológicos que diferenciam a participação política entre homens e mulheres reafirmam a pseudo normalidade dos homens estarem mais presentes neste meio, cria um abismo ainda maior para as mulheres que lutam por maior participação nos diversos espaços. Laraia (1999) aponta: O tempo constitui um elemento importante na análise de uma cultura. Nesse mesmo quarto de século, mudaram-se os padrões de beleza. Regras morais que eram vigentes passaram a ser consideradas nulas: hoje uma jovem pode fumar em público sem que sua reputação seja ferida. Ao contrário de sua mãe, pode ceder um beijo ao namorado em plena luz do dia. Tais fatos atestam que mudanças de costumes são bastantes comuns. Entretanto, elas não ocorrem com a tranquilidade que descrevemos. Cada mudança, por menor que seja, representa o desenlace de numerosos conflitos. Isto porque em cada momento as sociedades humanas são palco do embate entre as tendências conservadoras e inovadoras. (p. 103). Tal autor aponta que o sistema social está sempre em transformação, mesmo que de forma lenta. Macedo (2010) reflete sobre a construção histórica do que se coloca como uma cultura universal, tendo tal universalidade garantida por mecanismos políticos e econômicos poderosos, garantidos pela expansão colonial da Europa pelo mundo. Tal cultura se expandia com ideais civilizadores. Segundo (Macedo, 2010, p. 14) “Por experiência, percebemos que a cultura universal, ou mesmo a cultura nacional, conviveu com o apagamento de muitas manifestações culturais de grupos minoritários que viviam em seu interior. Ainda assim, não se trata de uma questão resolvida”. O que percebe-se em jogo no que diz respeito às desigualdades de gênero é que motivado por lutas históricas de movimentos, como o feminismo, as mulheres adentraram em contextos que até bem pouco tempo eram reservados apenas aos homens, mas tal entrada ainda encontra-se subordinada a ditames que consagram o homem como aquele que lidera e a qual o poder lhe é inerente. As mulheres viram suas configurações alterarem-se da “confinação” do lar para a entrada no mundo do trabalho, porém o fenômeno social que se consagra é a dupla função no qual muitas mulheres viram-se inseridas sem a participação efetiva masculina. Os homens em sua maioria não mudaram suas mentalidades compreendendo a obrigação dos afazeres domésticos como pertencentes as mulheres e entendendo que quando participam destes estão auxiliando e não trabalhando junto. Segundo (Da Silva, 2005, p. 93) “O que a análise feminista vai questionar é precisamente essa aparente neutralidade – em termos de gênero – do mundo social. A sociedade está feita de acordo com as características do gênero dominante, isto é, o masculino”. As instituições como refletido anteriormente continuam reproduzindo ideais desiguais entre os sexos e de certa forma sem seus participantes pensarem criticamente sobre a influência de tal reprodução. A escola neste contexto atual continua operando através do currículo, ritos e ações dos seus agentes características diferentes para meninos e meninas. Tais operações precisam passar pelo crivo crítico e político que a ação pedagógica possa ter na formação das identidades dos agentes que lá estão sendo construídos (crianças) por agentes impregnados de valores construídos em sua trajetória pessoal e profissional (professores) de forma que esses reflitam sobre os conteúdos ensinados e as ações que se estabelecem em meio pedagógico. Todo conhecimento colocado em prática em meio escolar e as ações empreendidas nas relações estabelecidas são sujeitas a relações de poder que refletem os lugares ocupados pelos sujeitos, nível de influência, formas de se manifestar ou não, etc. A instituição escolar imersa em um contexto em transformação precisa que os responsáveis pelo ensino pensem criticamente no conteúdo que transmitem e o quanto historicamente tais conteúdos seguem uma lógica excludente para determinados grupos sociais. 2.2 História da sexualidade na Sociedade Ocidental: a submissão feminina no seio da cultura A fim de esclarecer como é desenvolvida, no contexto histórico ocidental, a desigualdade entre homens e mulheres, faz-se necessária uma problematização sobre a história da sexualidade e a construção da submissão feminina, de forma que suas raízes ainda presente nos dias de hoje são reproduzidas no seio social de forma naturalizada. É importante trazer um panorama histórico sobre a Educação Sexual, para a reflexão sobre o processo de dominação cristã para a reflexão acerca da submissão do ocidente em relação ao cristianismo e suas marcas repressoras sobre a sexualidade humana, utilizando-se da ideologia de corpo como pecado, repelia e condenava as manifestações sexuais motivadas por prazer e não com fins reprodutivos. A história da Sexualidade Ocidental demonstra picos de repressão em alguns períodos específicos; é importante ressaltar que a sexualidade humana não foi sempre subjugada já que a história aponta em determinadas culturas uma realização sexual e de prazer mais igualitária entre homens e mulheres e com registro documentais que evidenciam manifestações de repulsa e enfrentamento do que era tido como práticas condenáveis. Segundo (Garton, 2009, p. 107) “Embora existissem poderosas restrições religiosas sobre determinadas práticas sexuais, havia também uma pujante literatura popular, médica e científica que oferecia um enquadramento alternativo para a compreensão do sexo”. É necessário que se reflita sobre a explicação cristã para a criação dos homens representados por Adão e Eva, que instaurou toda uma concepção de mundo no qual as mulheres seriam inferiores e tuteladas pelos homens, por ser a mulher na imagem de Eva, a responsável pela persuasão de Adão para pecar e com isso serem expulsos do paraíso. A mulher vista como ambiciosa e ardilosa, carrega ao longo da história uma carga de culpa que lhe aprisiona e a impede de gozar de iguais direitos em relação aos homens. O advento do cristianismo trouxe para a sociedade ocidental formas de ser, estar e agir conforme a crença de uma sociedade separada rigorosamente entre os sexos masculinos e femininos, sendo estes assumidos como diferentes desde a origem da civilização, com a expulsão do paraíso pela ambição dos homens por quererem um conhecimento que não lhes devia ser dado. A mulher como a grande estimuladora dessa ambição no homem, foi assumida como traiçoeira devendo portanto, padecer de diversos males incluindo a submissão feminina. Segundo (Garton, 2009, p. 105) “a Igreja cristã estava firmemente implantada como a instituição religiosa dominante no Ocidente”. Tal instituição é apontada pelo autor como constituindo uma força central na sociedade que adentrava, controlando até mesmo as condutas dentro dos lares. Tal instituição tinha um controle intenso das condutas sexuais até mesmo no seio familiar e do casamento, nem tudo era permitido entre os casais e algumas práticas eram vistas como não naturais por serem comparadas as praticadas pelos animais. A igreja ousava até mesmo julgar o que era aceitável ou não dentro do casamento e utilizando-se de um controle das mentes, com auxílio do confessionário, alcançava seu objetivo com a condenação das práticas tidas como anormais. Com o Cristianismo se estabelecendo no Ocidente todo um conjunto de ideologias foram se instaurando nos corpos e mentes fortemente amparada pelo controle e censura dos atos que aguçavam a sensibilidade. O ideal androcêntrico motivado pela crença cristã de criação do mundo, no qual este se inicia por uma relação desigual entre homens e mulheres, por culpa destas, auxiliou no processo de repressão das condutas. A expansão e fortalecimento do Cristianismo com todo seu aparato ideológico e simbólico de incorporação do corpo como algo pecaminoso carrega em si uma gama negativa de rejeição deste. Reflete Garton (2009): A Igreja deixou de ser apenas um veículo para a elaboração e propagação da teologia cristã, era também uma rede de instituições extensa e poderosa que constituía uma força central na sociedade e na política europeia. Embora fosse um sistema institucional essencialmente hierárquico, com o papa no ápice, a Igreja romana, através dos mosteiros, bispos, igrejas locais, freiras e padres, acabou por penetrar profundamente na vida diária. O Concílio de Trento (1545-63) concedeu à Igreja instrumentos ainda mais poderosos para regulamentar de modo mais rigoroso o casamento e a família (p. 4). É importante salientar que em uma sociedade marcada por uma forte bipolarização, bom/mau, direito/esquerdo, reto/curvo, homem/mulher, etc. A mulher é vista como o não homem ou o homem não desenvolvido. Acreditou-se inicialmente que as mulheres não haviam o órgão genital (pênis) desenvolvido e que sendo assim era um homem que não se concretizou. Algumas figuras históricas são importantes para a compreensão desse fortalecimento de uma moral cristã que se expandiu no ocidente. Garton (2009) aponta São Tomás como muito importante na fortificação dos ideais cristãs, por Tomás propagar que as mulheres tinham uma maior tendência às luxúrias sexuais, estando menos aptas ao exercício da razão. São Tomás defendia que o papel das mulheres era para a procriação dentro do casamento e que para ambos os sexos o prazer era vetado já que este atraia os maus impulsos. A ideia propagada pela Igreja era de que cabia ao homem lutar contra seus instintos que o cegavam, incluindo a mulher que era vista como fonte de polução. O papel das mulheres era de procriar dentro do casamento e conter os instintos carnais dos homens. Segundo (Garton, 2009, p. 119) “Apesar das restrições impostas às mulheres pela Igreja e pela sociedade, muitas delas resistiam à exigência de serem obedientes e de se remeterem ao silêncio”. Apesar da dominação cultural e histórica que se impugnava às mulheres, já se viam indícios de que havia resistência na relação de submissão por parte de algumas delas. Com o Cristianismo se estabelecendo no Ocidente todo um conjunto de ideologias foram se instaurando nos corpos e mentes fortemente amparada pelo controle e censura dos atos que aguçavam a sensibilidade. O ideal androcêntrico motivado pela crença cristã de criação do mundo, no qual este se inicia por uma relação desigual entre homens e mulheres, por culpa destas, auxiliou no processo de repressão das condutas. Aponta Garton (2009): Existe uma rica historiografia feminista sobre conventos de freiras como lugares de poder feminino. Neles, as mulheres, embora submetidas a uma hierarquia masculina e restrições severas de movimento e de comportamento, podiam escapar ao fardo da maternidade e das tarefas domésticas, ficando libertas para a busca da devoção espiritual e para o empenhamento artístico. (p. 111). A objetificação das mulheres é uma marca histórica que avançou no Ocidente e que as manteve em relações subjugadas com os homens; a sua constituição enquanto mulher caminha para a realização e aceitação dos desejos masculinos. Para Cabral (1995): A crença da superioridade masculina no pensamento ocidental tem seu aval mais significativo, com base na concepção de que um Deus todo-poderoso, único, onipotente e onipresente cria o mundo, todas as coisas e o próprio homem, feito à sua imagem e semelhança. (p. 65). Os homens são seres criados por Deus todo poderoso devendo a ele submissão absoluta e a compreensão de que há conhecimentos no qual os sujeitos não podem ter acesso. Poderia-se questionar se a gravidade no pecado original se deu pela ambição e ousadia de mulher e homem “provarem” do fruto proibido e que isto não estaria relacionado ao ato sexual propriamente, mas a não obediência. Trazer a história da sexualidade para um trabalho voltado para o gênero é extremamente importante já que ambos os campos estão estritamente ligados, se complementando. A sexualidade foi reprimida e com isso todo um ideal de condutas femininas e masculinas foram formados, sancionando o que é aceitável e permitido para homens e mulheres. Para Heilborn & Brandão (1999): (. . .) o campo da sexualidade mantém uma relação íntima com o de gênero” o que faz-se necessário em um trabalho que se propõem analisar a constituição do gênero no âmbito cultural e no campus específico da escola passar pela problematização histórica da formação social e visão que se tem sob a ótica corporal, sexual e institucional motivadora de relações desiguais de gênero. (p. 8). Compreender que as relações entre homens e mulheres são assumidas como inerentes no seio social e incorporadas em sua natureza biológica, significa compreender a abrangência histórico, cultural e social que implica desrelativiza o que é assumido para cada gênero com marcas presentes na personalidade dos indivíduos. Segundo Cabral (1995): A educação no sentido de negar o corpo ou de secundarizá-lo tem sido, ao longo da história ocidental, uma forma de se viver a sexualidade de maneira reprimida. Esta forma repressiva não se dá somente pela ocultação do corpo, mas também pela exploração erótica, comercialização e objetualização do corpo, reduzido e transformado em objeto de consumo. (p. 28). A dualidade que se compreende nos sujeitos como bondade e maldade é fortalecida no seio do cristianismo. O corpo é assumido por tal doutrina como falho e propenso a promiscuidade devendo ser ao máximo vigiado para que a alma não seja corrompida. Gonini e Ribeiro (2014) demonstram a importância de se veicular a sexualidade a uma compreensão histórica e cultural para que se desvencilhe de uma ideia biologizante, reproducionista e natural. Segundo Gonini e Ribeiro (2014): O sexo foi artisticamente tematizado desde o período paleolítico, quando as primitivas expressões e concepções artísticas dos seres humanos de então se referiam à condição sagrada do corpo da mulher, posteriormente cambiada para o poder emanado do falo masculino e para o prazer do encontro sexual. (p. 266). A mulher historicamente vive uma relação de desigualdade com os homens, não por determinação biológica, o que foi utilizado como balizador para tal conduta por muito tempo, mas sim voltada para satisfação masculina, como boa esposa e mãe dedicada ao lar. No século XIX, há um forte retorno ao puritanismo medieval, que fez com que o sexo fosse visto como algo indecente para ser falado e devendo ser delimitado ao casamento. Entretanto, também era aceito em bordéis e na medicina com fins de saúde pública. Segundo Miskolci (2010): Durante o século XIX, as mulheres foram confinadas ao lar, compreendidas como destinadas ao casamento e à maternidade. Isso as tornou reféns dos maridos, dependentes economicamente e tuteladas do nascimento até a morte: da infância à adolescência pelo pai e, após o casamento, pelo marido. Sem a menor independência ou respeito às suas opiniões, qualquer sinal de rebeldia era ‘diagnosticado’ como histeria. (p. 92). Havia um forte estímulo à família reprodutiva, de forma que o que era assumido como valores e interesses coletivos se mantivesse forte e estabelecido no seio social. A família nuclear, movida pela dominação masculina era reforçada sob a subjugação feminina. Às meninas cabia a preparação para casarem, cuidarem de seus lares e terem filhos, e aos homens serem os provedores dos lares. Com o advento da burguesia, a repressão sexual tomava proporções cada vez maiores, uma vez que, detinha o poder político-econômico da sociedade e com tal poder se circunscreve diversas práticas sociais com moldes de arbitrariedade. Para (Ussel, 1980, p. 30) “Quanto mais progride o aburguesamento, mais a sexualidade é reprimida”. Por volta do século XIX, período Vitoriano, a sociedade foi tomada pelos entraves da medicina, como meio de repressão sexual. Os médicos alertavam às possíveis doenças venéreas que, principalmente os homens poderiam ser acometidos, nas relações extraconjugais, assim como o excesso de sexo, mesmo no casamento, poderia levar o sujeito à demência, ao envelhecimento precoce e até mesmo a morte prematura. O controle repressivo da sexualidade expande da esfera religiosa para o meio médico que com suas censuras e precauções limita mais uma vez o que é aceitável ou não, no que diz respeito a sexualidade. Aponta Cabral (1995): O sexo, por exemplo, era um assunto por demais indecente para ser tratado nas rodas sociais. O lugar dele estava assim delimitado: no casamento, reservado o quarto do casal; nos bordéis, espaço onde ele era falado, praticado e o prazer era permitido; na demografia e na medicina, com objetivos de ordem econômica e de saúde pública. (p. 23). Tal autora aponta Freud como responsável por trazer à tona a problematização e valorização da temática sexual, trazendo a explicação de que a sexualidade está na base de qualquer expressão humana. Segundo Cabral (1995): Freud parece-nos bastante convicto ao expressar-se sobre uma nova condição da mulher, tanto que para ele a independência econômica da mulher necessitava primeiro passar por um novo processo de formação da própria mulher. E, naquele momento, a mulher já tinha o bastante para ocupar-se nas suas tarefas domésticas. Isto significa que ele diferenciava bem os dois papéis. Para o homem, os encargos – no espaço público – que garantissem o bem-estar da família e para a mulher, as tarefas – no âmbito privado – que assegurassem a tranquilidade do marido e a boa educação dos filhos. (p. 75). Trazer a pauta da sexualidade para discussão não fez com que o espaço ocupado pela mulher fosse modificada, essa continuava a ser vista como aquela que tem a responsabilidade de zelar pelo lar, marido e família. O controle ideológico que durante muito tempo esteve nas mãos da Igreja se reformula e passa para a medicina que inculcando interditos acionava diversas proibições nas relações sexuais e matrimoniais. Reflete (Catonné, 2001, p. 69) “Neste ponto a medicina acompanha a Igreja e as finalidades do casamento cristão. Na realidade, a passagem de uma instituição à outra é visível a partir da segunda metade só século XVIII”. A frigidez e passividade feminina ultrapassaram o meio cristão adentrando a repressão sexual que se formou no seio da medicina e posto em prática por muitos médicos como controle sexual entre os homens e mulheres pautados pelo prazer e não puramente com fins procriativos. Podemos perceber que enquanto a mulher foi confinada ao lar ela se manteve em uma relação absolutamente desigual em relação ao homem, já que enquanto o homem explorava o exterior, essa se anulava diante do convívio social. Com o avançar da industrialização as mulheres passaram a ser mão de obra nas fábricas, mas essa participação feminina não se deu de forma igualitária. As mulheres recebiam por sua mão de obra menos que os homens e tinham agora uma dupla função, já que sua inserção no trabalho fora de casa não lhe liberou do trabalho doméstico. Embora muito tenha se conquistado em se tratando de gênero e sexualidade no Brasil com a entrada da mulher no mercado de trabalho e métodos contraceptivos, ainda percebe-se ideais de feminilidade que limitam as possibilidades para o gênero feminino. Esse ideal de feminilidade assim como o de masculinidade inicia-se no seio familiar e adentra-se em diversas instituições moldando as mentalidades dos sujeitos. Segundo Iara Beleli (2010): No início do século XXI, as mulheres têm menos filhos, constituem cerca de 40% da força de trabalho, dedicam-se mais à vida profissional e desfrutam de um grau de liberdade impensável há 30 anos. Se as inserções das mulheres no “mundo dos direitos” - ao trabalho, ao corpo, à sexualidade – são visíveis, ainda podem ser notados padrões de feminilidade ancorados em modelos ‘tradicionais’ que regem seus modos de ser e viver. (p. 49). As mulheres ingressaram no mercado de trabalho mediante lutas de movimentos sociais e adentraram em espaços que antes não lhes eram permitidos, porém muitas barreiras ideológicas e discursivas continua lhes colocando em uma relação desigual com os homens. Algumas profissões apesar de permitidas, para ambos os sexos geram pagamentos distintos para homens e mulheres, assim como, há carreiras que por darem credibilidade social menor para as mulheres, como no caso da política que tem menos participação dessas. De acordo com Martinez (2013): As mulheres encontram uma barreira, um ‘telhado de vidro’, para poder ocupar a mesma posição que os homens. As relações de poder mantêm-se, reproduzem-se, expõem um estancamento na consecução da igualdade. O fato de algumas mulheres realmente consigam e não estimem que exista algum problema cria uma excepcionalidade que parece confirmar a regra de que ‘quem quiser pode conseguir. (p. 89). As mudanças têm permitido o acesso das mulheres à educação e campos de trabalho que até pouco tempo eram reservados aos homens, porém como reflete Martinez (2013), os códigos de gêneros que regem tais âmbitos, mantêm uma hierarquia entre o masculino e o feminino, novas oposições são construídas reafirmando a desigualdade na escolha da carreira, na hierarquia escolar, na exclusão das mulheres das esferas de poder etc. Martinez (2013) aponta que a divisão sexual na educação segue três princípios práticos: 1) as escolhas de carreira das meninas são uma prolongação das funções domésticas (educação, cuidado e serviço) 2) uma mulher não pode ter autoridade sobre alguns homens 3) o homem tem o monopólio sobre os objetos técnicos e as máquinas O gênero enquanto um inculcador de diferenças que limita os sujeitos faz-se presente também no meio escolar, manifestando-se nas diversas relações empreendidas neste contexto, mas em nome de uma escola que se proclama e assume neutra isso se dá de forma indireta realizada pelos agentes que se relacionam. Segundo (Miskolci, 2010, p. 79) “A instituição escolar tende a inviabilizar a sexualidade em um jogo de pressupostos, inferências não apresentadas e silêncios”. A escola enquanto instrumento ideológico utiliza-se do silenciamento que é responsável por umas das faces da reprodução e reforço de muitas desigualdades, dentre elas as de gênero, de forma oculta e sútil. É necessário atentar para a faceta reprodutora de desigualdades que a escola possa ter, e tal caminho passa pela compreensão do enfrentamento que os professores possuem diante de questões ligadas à diferença, o que passa pelo resgate de como a diferença foi vivenciada na própria trajetória deles, em sua formação básica e superior, nas interações familiares, nas suas vivências religiosas e experiência enquanto professores. Para Miskolci (2010): As marcas negativas ou positivas que seu gênero, sua raça, sua sexualidade, sua classe, sua origem regional, sua aparência, etc. frisaram em sua caminhada familiar, escolar, profissional, entre outras, ilustram as fragilidades do discurso estritamente meritocrático, pois demonstram o modo que o sexismo, o machismo, o racismo, a heteronormatividade e o regionalismo posicionam determinadas pessoas em um lócus social de superioridade e outras em um lócus social de inferioridade. (p. 146). A sexualidade na atualidade encontra resistência para ser pronunciada e manifesta, segundo (Heiborn & Brandão, 1999, p. 8) “Talvez a sexualidade ainda encontre resistências ao seu desvelamento em razão do lugar privilegiado que detém no cerne dos valores associados à intimidade da pessoa moderna”. Sendo assim a sexualidade apesar de construída no meio cultural e social é repleta de interditos que sofrem alterações ao longo da história da civilização. 2.3 Sociedade generificada: a formação do habitus e os campus possibilitadores de tal formação A sociedade vista como conjunto de caracteres manifestos pela cultura e num dado período histórico, circunscreve nos agentes, por meio de diversas instituições como a família, igreja, escola, hospitais etc e também atualmente por uma forte influência midiática, o que é tido como de valor e pertencente a dadas categoria de sujeitos. A instituição escolar auxilia na conservação da estrutura social. Para Bourdieu (1983): (. . .) a vida do mundo social, não é outra coisa senão o conjunto das ações e das reações tendentes a conservar ou a transformar a estrutura, ou seja, a distribuição dos poderes que cada momento determina as formas e as estratégias utilizadas na luta pela transformação ou conservação e, em conseqüência (sic), as possibilidades que essas lutas têm de transformar ou de perpetuar a estrutura. (p. 40). O contexto social é dividido por dois tipos de gênero (masculino e feminino) de forma que se insere um leque de características representacionais para ambos os gêneros, que de forma minuciosa e naturalizadora se afirma com ares de inato. Tal divisão é assumida por Bourdieu (2014): A divisão entre os sexos parece estar ‘na ordem das coisas’, como se diz por vezes para falar do que é normal, natural, a ponto de ser inevitável: ela está presente, ao mesmo tempo, em estado objetivado nas coisas (na casa, por exemplo, cujas partes são todas ‘sexuadas’), em todo o mundo social e, em estado incorporado, nos corpos e nos habitus dos agentes, funcionando como sistema de esquemas de percepção, de pensamento e de ação. (p. 21). O poder institucional se faz através dessa renovação histórica dos meios transmissores de ideologias. A escola com um discurso de pseudo democracia com ares neoliberais, permeia o imaginário social e possibilita a assimilação por seus participantes de que a desigualdade se dá mediante o “fracasso” de alguns e por falta de esforço pessoal e que o “sucesso” de outros se dá por êxito e mérito conquistados por esforço pessoal. Tal ideologia neoliberal acompanha as desigualdades de gênero que muitas vezes são justificadas como aptidões naturais dos meninos que prevalecem a das meninas e assim começam limitando desde muito cedo a esfera das possibilidades reais para ambos os gêneros. A instituição escolar também reage diferente a resposta dada pelo educando diante das dificuldades na assimilação do conteúdo ensinado. Há autores que apontam uma permissividade maior dos professores com o comportamento desleixado de meninos, mas que já os repele intensamente se ocorrer com meninas e as dificuldades na compreensão do conteúdo ensinado é mais aceitável se for por parte dos meninos do que das meninas. Segundo Bourdieu (2014): O efeito de dominação simbólica (seja ela de etnia, de gênero, de cultura, de língua etc.) se exerce não na lógica pura das consciências cognoscentes, mas através dos esquemas de percepção, de avaliação e de ação que são constitutivos dos habitus e que fundamentam, aquém das decisões das consciências e dos controles da vontade, uma relação de conhecimento profundamente obscura a ela mesma. (p. 60). A eficácia da inscrição do habitus é possibilitada pela violência simbólica que por se dar de maneira duradoura inscrita no mais íntimo dos corpos com a forma de aptidões e inclinações. As limitações ligadas a escolha da profissão e a esferas, como a inserção na política, que ainda nos dias de hoje no Brasil é representado por homens como sendo uma particularidade voltada para a masculinidade, gozar de altos cargos, e não das mulheres. Segundo Bourdieu (2014): É, de fato na relação entre um habitus construído segundo a divisão fundamental do reto e do curvo, do aprumado e do deitado, do forte e do fraco, em suma, do masculino e do feminino, e um espaço social organizado segundo essa divisão que se engendram, como igualmente urgentes, coisas a serem feitas, os investimentos em que se empenham os homens e as virtudes, todas de abstenção e abstinência, das mulheres. (p. 73). Podemos identificar o habitus enquanto lei social incorporada que se estrutura por um efeito de nominação e inculcação, em que resulta em identidades sociais instituídas, com características místicas, que são conhecidas e reconhecidas no imaginário social, atreladas a uma ideia de natureza biológica e não construídas. A masculinidade é assumida como sendo naturalmente superior ao gênero feminino e tanto na sociedade Cabila analisada por Bourdieu quanto na grande estrutura ocidental, são alimentados por mitologias que explicam a criação do mundo e a subjugação feminina como tendo na figura da mulher uma subversora da ordem das coisas e que no fim das contas, acaba tendo de servir e seguir o homem, por ter ousado em um contexto em que era esperado sua obediência completa. Para (Reina, 2013 p. 30) “Ao feminino, desde tempos remotos, se associa a imagem de beleza, o papel da mãe, da esposa, da anfitriã, enquanto ao masculino a força física associada à figura do herói, e da sexualidade pulsante”. O esporte também contribui com os condicionamentos históricos e sociais que definem o que homens e mulheres podem praticar, normalmente associado a força física no homem e a feminilidade na mulher. Os sujeitos historicamente inferiorizados, como por exemplo as mulheres, são assim moldados por fatores sociais e culturais que se empenham em reforçar, preservar e legitimar os privilégios que agregam poder aqueles que são assumidos como naturalmente merecedores de status. Bourdieu (2014) aponta: Inscrita nas coisas, a ordem masculina se inscreve também nos corpos através de injunções tácitas, implícitas nas rotinas da divisão do trabalho ou dos rituais coletivos ou privados (basta lembrarmos, por exemplo, as condutas de marginalização impostas às mulheres com sua exclusão dos lugares masculinos. (p. 41). A forma naturalizada como a ordem masculina se coloca modela relações aparentemente necessárias a manutenção de uma sociedade que deve ser desigual para que se mantenha a pseudo organização das coisas, sem que se tenha espaço para ousar ser “diferente” e o respeito a singularidade que é diluída e dispersada no contexto social. As mulheres são construídas no seio da cultura ocidental, para serem submissas e aceitarem tal condição como sendo inerente a sua feminilidade, estando no cerne de suas ações e condutas. Na história, o universo social feminino durante muito tempo se limitou ao lar e mesmo na atualidade com sua inserção em massa no mercado de trabalho a predominância feminina na organização das tarefas do lar se dá como uma obrigação destas. Bourdieu (2014) reflete: As divisões constitutivas da ordem social e, mais precisamente, as relações sociais de dominação e de exploração que estão instituídas entre os gêneros se inscrevem, assim, progressivamente, em duas classes de habitus diferentes, sob a forma de hexis corporais opostos e complementares e de princípios de visão e de divisão, que levam a classificar todas as coisas do mundo e todas as práticas segundo distinções redutíveis à oposição entre o masculino e o feminino. (p. 49). São diversos os campus onde a dominação masculina se manifesta de forma sutil e com a ideia de natural e inerente aos indivíduos. Instituições como família e escola através de diversos ritos manifestam o que esperado para os sujeitos pertencentes ao sexo masculino e feminino e as possíveis sanções por não se seguir tal normatização. Segundo Bourdieu (2014): A dominação masculina encontra assim reunidas todas as condições de seu pleno exercício. A primazia universalmente concedida aos homens se afirma na objetividade de estruturas sociais e de atividades produtivas, baseadas em uma divisão sexual do trabalho de produção e de reprodução biológica e social, que confere aos homens a melhor parte, bem como nos esquemas imanentes a todos os habitus moldados por tais condições, portanto objetivamente concordes, eles funcionam como matrizes das percepções, dos pensamentos e das ações de todos os membros da sociedade, como transcendentais históricos que, sendo universalmente partilhados, impõem-se a cada agente como transcendentes. (p. 54). É necessário desestabilizar e desconstruir a ideia de que o binômio dominação e submissão tem que ser colocado em prática na relação entre homens e mulheres, que estas devem ser guiadas pelo e para o desejo masculino. Há também que desestruturar as formações de pensamento pautadas na ideia de que o sexo dos sujeitos define as diferenças de comportamento e pensamento levando para a discussão as construções que atribuíram tal diferença. Para Bourdieu (2014): As mudanças visíveis que afetaram a condição feminina mascaram a permanência de estruturas invisíveis que só podem ser esclarecidas por um pensamento relacional, capaz de pôr em relação a economia doméstica, e portanto a divisão de trabalho e de poderes que a caracteriza, e os diferentes setores do mercado de trabalho (os campos) em que estão situados os homens e as mulheres. (p. 147). A sociedade institui mesmo que de forma velada uma diferenciação dos oficios exercidos por homens e mulheres. São conhecimentos arraigados nas mentalidades que seguem condicionamentos arbitrários. Nas relações coletivas as identidades são formadas, mas com aparência de inerentes. Para (Furlani, 2011, p. 23) “É possível considerar o contexto educacional como campo não apenas de produção e reprodução das representações excludentes, mas também como local de contestação e resistência de grupos subordinados”. Para a autora a ideia de neutralidade pode e deve ser questionada no campo educacional. A escola apesar de auxiliar na inculcação de valores e na manutenção do status quo, tem em suas relações manifestações de resistência por parte dos grupos em geral que nela estão presentes. Aponta Beleli (2010): Ao levantar os títulos mais procurados pelas crianças em uma escola infantil de Campinas, Cruz&Beleli (2008) chamam atenção que o livro Cinderela só foi retirado por meninas. Cinderela é apresentada como uma menina pobre, branca e de cabelos loiros que sonha em encontrar um príncipe encantado. (p. 70). Sem uma análise de gênero que permita refletir sobre um dado como o citado por Beleli (2010) pode-se acreditar que essa escolha aconteça por uma natural predileção das meninas por contos de princesas que são próximos da fragilidade e encarnadas em sua própria natureza. Um “simples” conto de fadas/maravilhosos, por seu caráter majoritariamente lúdico, pode ocultar ideais de comportamento tanto para meninas quanto para meninos; podem ensinar que mulheres devem ser sonhadoras, calmas, passivas, salvas por um homem e acima de tudo belas, já os homens que devem ser corajosos, aventureiros, protetores, etc. O destino da mulher no conto da Cinderela como em muitos outros está nas mãos de homens como os pais, irmãos e de quem os salva que acabam por casar com elas. As meninas estão permeadas dos ideais de feminização, os brinquedos com seus estímulos a maternidade, cuidados do lar, profissões consideradas femininas, as roupas nas cores rosa, vermelho e lilás e que não permitem muita flexibilidade e aventura e também no enfoque dos conteúdos ofertados, como por exemplo a Literatura Infantil que em suas histórias de princesas e fadas encantam os imaginários infantis e a identificação com determinados tipos de personagem. 2.4 Inculcações de Gênero: a prática do currículo como instrumento de reprodução das desigualdades sociais Uma reflexão necessária é o uso que se faz do currículo nas instituições escolares, sua finalidade, seleção e apreciação. Finalidade no sentido do que se espera alcançar com determinado currículo e dentro do que se espera alcançar com o conceito que se tem no campus escolar no que diz respeito aos agentes presentes nesse espaço, crianças, professores, funcionários e pais. A história da educação é marcada por um modelo de escola envolvida com a doutrinação infantil e uma hierarquização no qual a criança é assumida como um receptáculo pelos professores que são responsáveis por preenchê-los com conhecimentos tidos como necessários e valorosos. As teorias críticas e pós-críticas começaram a questionar no que diz respeito ao currículo, os interesses e as relações de poder, que fazem com que determinado conhecimento seja considerado de mais valor que outro, assim como também a necessidade de alguns conteúdos estarem presentes na seleção curricular enquanto outros são deixados de lado. Tais teorias mostram que o currículo está intimamente ligado a estruturas de poder complexas presentes na sociedade. Como aponta (Da Silva, 2005, p. 16) “Selecionar é uma operação de poder. Privilegiar um tipo de conhecimento é uma operação de poder. Destacar, entre as múltiplas possibilidades, uma identidade ou subjetividade como sendo a ideal é uma operação de poder”. Podemos nos questionar sobre o que é assumido na escola como currículo necessário e refletir sobre como essa seleção acaba atendendo aos interesses de uma dada população que tem muitas vezes o conhecimento como algo presente em seu dia a dia. Também vemos na história da educação que a ampliação das massas, no contexto escolar, motivado por luta política e social no Brasil veio acompanhada de uma inserção ainda muito desigual que, pesando sobre um discurso democrático voltado para acesso e permanência, não se fazia igual para todos. Apple (1995) aponta que a decisão de se definir o conhecimento de um grupo como mais digno de ser transmitido na escola exclui a história e cultura de outros grupos e revela quem detém o poder na sociedade. O conhecimento selecionado pode assim ser visto pela dimensão de poder que oculta e que intensifica a ideia de que um conhecimento é mais valioso que outro. Segundo Cambi (1999): No século XX, a escola sofre processos de profunda e radical transformação. Abre-se às massas. Nutre-se de ideologia. Afirma-se cada vez mais central na sociedade (para ofuscar essa centralidade só por volta do fim do século, na época do mass media). Essa renovação foi maior no âmbito da tradição ativista, quando a escola se impôs como instituição-chave da sociedade democrática e se nutriu de um forte ideal libertário. (p. 513). Para tal autor a escola se reformulou, colocando a criança no centro e voltando-se para suas necessidades e capacidades. A escola tem sido pensada na modernidade por diversos ângulos e perspectivas, mas ainda precisa se reformular e se reconhecer como parte participante na formação dos habitus dos sujeitos que ali transitam; reconhecer que os agentes envolvidos têm suas marcas de vida pautadas em suas vivências e que estas transbordam nas relações entre esses e claramente no que é transmitido. Segundo Candau (2008): A escola como instituição está construída tendo por base a afirmação de conhecimentos considerados universais, uma universalidade muitas vezes formal que, se aprofundarmos um pouco, termina por estar assentada na cultura ocidental e européia, considerada como portadora da universalidade. (p. 33). O currículo que se manifesta como o responsável pelo acesso ao conhecimento, está envolvido por uma rede de poder que tem imbricada uma complexidade magnífica, que por se colocar tão sútil na sua ação diária, ensina conteúdo e também atitudes, formas de ser, estar e agir. A prática curricular manifesta-se em dois sentidos, sendo um voltado para ação e outro como o que se coloca como oculto e é responsável por aquilo que se manifesta em relações desenvolvidas na escola de forma que a atividade docente, repleta de ideais formadores de sua identidade, acaba por reproduzir ideais de mundo. Segundo (Nogueira, 2010, p. 37) “Apesar de arbitrária e socialmente vinculada a uma dada classe, a cultura escolar precisaria, portanto, para ser legitimada, ser apresentada como uma cultura neutra”. O currículo durante muito tempo foi tratado como seleção de conteúdos de forma linear sem considerar a dinâmica social no qual ele é colocado em prática; as relações entre os sujeitos que são o foco da aprendizagem não eram tomadas em sua complexidade. Estas relações que se travam no seio escolar são tidas como o currículo oculto porque não se coloca como uma realidade prevista e na maioria das vezes não identificada; tal currículo pode ser considerado como as características presentes na instituição sem fazer parte do currículo oficial e explícito que influenciam grandemente nas aprendizagens que são tomadas como relevantes na sociedade. Há a necessidade de compreender o currículo não somente em sua dimensão instrumental, mas também em seus aspectos ocultos, já que os conhecimentos que são valorizados no processo de escolarização são tidos como conhecimentos necessários e que a necessidade se faz para todos de forma igual sem pensar e integrar a diferença de forma concreta em toda dimensão curricular de forma a buscar possibilidades de superação que apontem para uma sociedade mais justa. É necessário que se analise criticamente o contexto social e cultural meritocrático em que a sociedade brasileira se encontra, descortinando a ideologia de neutralidade sobre a escola; essa transmite a ideia de que as oportunidades são iguais e que os que alcançam assim o fazem por mérito e dedicação e que os que não conseguem são responsáveis pelo próprio fracasso, começando na escola e se arrastando por toda a vida do indivíduo. A escola não é um campo neutro e está repleto de transmissões de juízos de valores e de formas de ser, estar e agir em sociedade. O currículo não passaria longe desta construção perversa e excludente e os professores, muitas vezes despreparados e não atentos a esta faceta, acabam por reproduzir muitas das desigualdades de forma naturalizada e incoerente, por acreditar que o conhecimento que é trabalhado na escola se dá de forma asséptica. Dentro da perspectiva apontada por Callai & Serpa (2012) podemos fortalecer a ideia de que a escola segue a lógica de seleção e que esta passa inevitavelmente pela exclusão. A ordem hegemônica que busca ajustar os indivíduos e que exclui os que se não são capazes de fazê-lo, de forma que ele acredite que é responsável por não ter sido capaz de se ajustar. Esta lógica não se dá de forma linear e absolutamente sem conflito, podemos ver formas de resistência brotando e gritando nas paredes da escola, mas que na maioria das vezes são tachadas como indisciplina e como absoluta “falta de vontade” de estar ali e de querer aprender por parte dos estudantes. Como aponta Nogueira (2010): Uma vez reconhecida como legítima, ou seja, como portadora de um discurso universal (não arbitrário) e socialmente neutro, a escola, na perspectiva bourdieusiana, passa a exercer, livre de qualquer suspeita, suas funções de reprodução e legitimação das desigualdades sociais. (p. 37). Compreender o currículo por esta perspectiva passa inevitavelmente pela necessária compreensão e imersão na história das diferentes perspectivas e no ângulo que cada uma delas tem para o que é necessário enquanto saber, quais conhecimentos são considerados importantes e o que os indivíduos devem se tornar; esta seleção pode pautar as conexões entre saberes, identidade e poder. Para Apple (1995): Não se trata ‘apenas’ de uma questão educacional, mas de uma questão intrinsecamente ideológica e política. Quer reconheçamos ou não, o currículo e as questões educacionais mais genéricas sempre estiveram atrelados à história dos conflitos de classe, raça, sexo e religião(. . .). (p. 39). Levando em conta a história do currículo pode-se perceber que a sua complexificação, dentre outras coisas, a sua fragmentação, segmentação e seleção começa a firmar-se diante da intensa massificação da instituição escolar. Durante muito tempo o estudo do currículo ficou limitado aos aspectos instrumentais e técnicos como se este seguisse uma lógica de neutralidade e descolado dos embates travados no seio da sociedade. Diante da problemática da desigualdade de acesso a gama de conhecimentos considerados valiosos em nossa sociedade se coloca outra questão que é a possibilidade ou não de superação dos mecanismos que excluem e selecionam os “mais aptos” e a construção de práticas escolares mais igualitárias no que diz respeito a direitos e menos enquadratória quando se pensa em cultura. Desestruturar a ideia etnocêntrica de que existe uma cultura melhor que a outra e que esta é que deve prevalecer nos muros da escola é um desafio que deva ser assumido por todo educador. Da Silva (2005) traz a importante questão da cultura popular ao incorporar as contribuições de Henry Giroux nos estudos sobre currículo e também por mostrar a perspectiva da possibilidade de resistência no processo de possível transformação social; a superação do pessimismo e imobilismo são incorporados e tidos como necessários. (Da Silva, 2005, p.54) aponta que “É através de um processo pedagógico que permita às pessoas se tornar conscientes do papel de controle e poder exercido pelas instituições e pelas estruturas sociais que elas podem se tornar emancipadas ou libertadas de seu poder e controle”. Trazendo a questão multicultural, Da Silva (2005) afirma que não temos que tratar a diferença como algo que deva ser tolerado ou respeitado, mas como uma questão permanentemente e dessa forma amplia o leque da compreensão dos mecanismos que são responsáveis pela resposta às desigualdades como não pertencentes unicamente nas dinâmicas de classe, mas também atendendo às dinâmicas como as de gênero, raça e sexualidade. A vertente multicultural também questiona sobre a não obtenção da igualdade simplesmente através da igualdade de acesso ao currículo considerado hegemônico, mas sim por uma mudança estrutural no currículo que é tido como “universal”. O conceito de currículo e a utilização que fazemos dele aparecem desde os primórdios relacionados à ideia de seleção de conteúdos e de ordem na classificação dos conhecimentos que representam, que será a seleção daquilo que será coberto pela ação de ensinar. Podemos perceber através da problematização de Sacristán (2013) sobre a construção do currículo em toda a sua complexidade, que este atende a interesses externos à instituição escolar, e que as marcas que podemos encontrar em todos os rituais empreendidos na escola, são marcas que delimitam o que se espera que os estudantes aprendam. A submissão, dominação e subordinação são estimuladas e sendo assim a escola age no sentido de reforçá- la sempre. Reforça-se assim que o currículo não é uma realidade abstrata e neutra, mas sim uma práxis, e que é carregado de valores e conflitos e regado de relações de poder; para pensá-lo temos que pensar tanto nos aspectos técnicos/instrumentais quanto nas relações que se estabelecem no âmbito escolar e que são repletos de mecanismos seletivos e excludentes. Segundo Apple (2001): O currículo nunca é simplesmente uma montagem neutra de conhecimentos, que de alguma forma aparece nos livros e nas salas de aula de um país. Sempre parte de uma tradição seletiva, da seleção feita por alguém, da visão que algum grupo tem do que seja o conhecimento legítimo. (p. 53). Temos que pensar o currículo em duas direções, tanto o que está estabelecido e previsto com toda sua dinâmica complexa de organização, quanto o currículo que se circunscreve nas relações presentes na instituição escolar e que se manifestam através de relações entre os participantes. Para ser formado, o currículo passa por julgamentos de valores, nada se dá de forma neutra e descolada das relações complexas e forjadas na sociedade; se as relações são atravessadas por mecanismos de poder, a construção do currículo não poderia se dar de forma diferente. Louro (1997) aponta a importância de questionar em um primeiro momento o que é tomado como natural e transmitido de forma sutil no interior escolar, os currículos, normas, procedimentos, teorias, linguagem, material didático e processos de avaliação e problematizar desta forma o que tem sido ensinado pela escola. Questionar o que é dado como natural ou imutável é um comprometimento que todo educador deve ter, refletir sobre o que é “transmitido” pela escola é um desafio que deve ser assumido no sentido de qualquer luta por transformação social. Segundo Louro (1997) a escola utiliza-se de símbolos e códigos para afirmar o que cada pessoa pode ou não pode fazer e que dessa forma delimitam-se os espaços que se espera que cada um ocupe. As marcas se fazem presente na estrutura da escola e assim vão “sutilmente” mostrando quem deve ser seguido e como. A escola atua no sentido de fixar as formas de ser, estar e agir nos estudantes, enquadrando e delimitando o que é considerado normal seguindo a lógica do que se espera enquanto carga cultural que se circunscreve na sociedade como um todo. Para tanto ela se utiliza de um leque de artefatos seja materiais/concretos ou psicológicos de inculcação de valores. Ainda nos dias de hoje, a instituição escolar é a responsável pela conformação nos estudantes e pelo preparo para adultos que se enquadrem na forma. Apple (2001): O currículo, então, não pode ser apresentado como ‘objetivo’. Em vez disto, ele deve constantemente subjetivar a si próprio. Isto é, ele deve ‘reconhecer suas próprias raízes’ na cultura, na história e nos interesses sociais a partir dos quais ele surge. Da mesma forma, ele não homogeneizará nem essa cultura, essa história e esse interesse social, nem os alunos. O ‘mesmo tratamento’, conforme o sexo, a raça, a etnia ou a classe, não é absolutamente o mesmo. Um currículo e uma pedagogia democráticos devem começar com o reconhecimento dos ‘diferentes posicionamentos sociais e repertórios culturais nas salas de aula, e das relações de poder entre eles. (p. 68). Diante desta situação, como afirma (McLaren, 1997, p.35) “Mas parece que as condições deste presente momento conferem certa urgência a esta luta entre as pessoas que trabalham na educação”. Os profissionais da educação têm um importante papel neste contexto de supremacia do capital, que rejeita relações humanas mais igualitárias – no sentido de direitos iguais para todos, inclusive de ser diferente –, para a construção de uma sociedade mais justa e desvinculada de preconceitos que estigmatizam, inferiorizam, oprimem e condicionam diversos grupos a seguirem uma lógica que se espera que seja seguida por eles. O universo de preconceitos e discriminações que estão presentes nas relações sociais vivenciadas na sociedade precisa ser desconstruído de forma que qualquer tipo de naturalização seja questionada e superada, e formas mais igualitárias, no sentido de direitos iguais para todos e não homogeneização, se solidifiquem. Devemos questionar e resistir à tradição escolar que idealiza a cultura europeia (ocidental), brancos, homens, cristãos, classe média, jovens, fisicamente capacitados, heterossexual etc. e que faz com que os que destoam deste padrão sejam considerados piores e inferiores. Compreender que os preconceitos de todos os tipos têm raiz histórica e cultural e que a sua superação passa inevitavelmente pelo domínio da informação. Segundo Apple (1995): Essas ideias têm a ver com algumas pressuposições muito profundamente arraigadas, mas frequentemente inconscientes, sobre a ciência, a natureza dos homens e das mulheres, e a ética e política de nossas teorias e práticas curriculares e pedagógicas cotidianas. Acreditava firmemente naquela época, e ainda hoje acredito, que a forma mais séria de realizar esse exame crítico é resituar nossas instituições de educação formal na sociedade mais ampla e cheia de iniquidades da qual elas fazem parte. (p. 44). A dinâmica escolar, por exemplo, deve ser repensada pelos profissionais da educação de forma a reconhecer e desconstruir as tendências homogeneizadoras que impregnam, dentre outras coisas, o currículo formal e as práticas escolares que são empregadas na instituição. Se a sociedade tem vivenciado uma conscientização maior na compreensão dos mecanismos de impressão do caráter monocultural produzido pela educação escolar, não se pode deixar de atribuir tal transformação às lutas empreendidas por alguns movimentos críticos que questionam a ordem social vigente. Tais lutas, empreendidas por movimentos contestadores, se faz presente na formulação de políticas públicas em educação e traz consigo a temática do respeito à diversidade como um projeto a ser colocado em prática pelos profissionais da educação. Ao refletirmos sobre como a formação de professores pode atuar diante de toda esta problemática esbarramos em outra questão preocupante que é o próprio currículo dos cursos de formação. Como já explicitado, currículo está imerso nas teias de poder e não seria diferente quando se trata dos cursos que formam os futuros educadores; estes continuam a dedicar uma carga maior para as disciplinas de fundamentos e menor para as metodologias. Os professores se sentem muitas vezes despreparados para assumir uma sala de aula por achar que não sabem o suficiente para assumir a prática docente. Devemos levar em conta que muitas mudanças ocorreram ao longo da história e que a educação não se coloca como acabada e estática o que pode nos motivar e nos