UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Campus de São Paulo - Instituto de Artes MESTRADO PROFISSIONAL EM ARTES / PROF-ARTES RICARDO NICOLAU LUCCAS Processos Criativos, Experimentação e Estesia em Educação Musical São Paulo 2020 RICARDO NICOLAU LUCCAS Processos Criativos, Experimentação e Estesia em Educação Musical Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado Profissional em Artes / PROF-ARTES, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Unesp – Campus de São Paulo, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Artes, área Ensino de Artes. Orientadora: Profa. Dra. Iveta Maria Borges Ávila Fernandes. Mestrado do Programa PROF-ARTES, realizado com apoio da Capes, na forma de bolsa e incentivo à qualificação docente. Número do Processo: 5719922 São Paulo 2020 Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp L934p Luccas, Ricardo Nicolau, 1966- Processos criativos, experimentação e estesia em educação musical / Ricardo Nicolau Luccas. - São Paulo, 2020. 154 f. : il. color. Orientadora: Profª. Drª. Iveta Maria Borges Ávila Fernandes Dissertação (Mestrado Profissional em Artes) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes 1. Música – Instrução e estudo. 2. Integração social. 3. Criatividade nas crianças. 4. Educação de crianças. I. Fernandes, Iveta Maria Borges Ávila. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 780.7 (Laura Mariane de Andrade - CRB 8/8666) UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Câmpus de São Paulo Processos Criativos, Experimentação e Estesia em Educação MusicalTÍTULO DA DISSERTAÇÃO: CERTIFICADO DE APROVAÇÃO AUTOR: RICARDO NICOLAU LUCCAS ORIENTADORA: IVETA MARIA BORGES ÁVILA FERNANDES Aprovado como parte das exigências para obtenção do Título de Mestre em ARTES, área: Ensino de Artes pela Comissão Examinadora: Profa. Dra. IVETA MARIA BORGES ÁVILA FERNANDES Pesquisadora / Independente Profa. Dra. RITA LUCIANA BERTI BREDARIOLLI Departamento de Artes / Instituto de Artes da Unesp Profa. Dra. ADRIANA DO NASCIMENTO ARAÚJO MENDES Instituto de Artes / Universidade Estadual de Campinas São Paulo, 03 de setembro de 2020 Instituto de Artes - Câmpus de São Paulo - Rua Doutor Bento Teobaldo Ferraz, 271, 01140070, São Paulo - São Paulo http://www.ia.unesp.br/#!/pos-graduacao/profartes/CNPJ: 48031918001791. Dedico este trabalho às três mulheres que sempre me acompanham: à mãe, Hebe, à esposa e companheira, Marcia, e à filha, Giovanna. E a todos os alunos e alunas com os quais tive o prazer de conviver nestes quase 40 anos lecionando. Agradecimentos Gostaria de agradecer a todos que, de alguma maneira, tornaram possível a realização deste trabalho. À minha orientadora, Profa. Dra. Iveta Maria Borges Ávila Fernandes, pela paciência, atenção, e por disponibilizar o maior acervo de educação musical que vi ao longo de toda a minha formação, do qual pude desfrutar durante esta trajetória. À Profa. Dra. Rita Luciana Berti Bredariolli, pela enorme generosidade e potência de acolhimento, desde a disciplina cursada no programa onde pude ver música nas imagens, e pelas contribuições, indicações de caminhos e fundamentações para a passagem da qualificação à dissertação. À Profa. Dra. Adriana do Nascimento Araújo Mendes, pela leitura cuidadosa e pelos apontamentos ricos e certeiros no processo de qualificação. Às minhas colegas mestrandas de música, Valéria de Sá Correia Reis e Cicera Aparecida Rodrigues Silva pela força e apoio durante todos os momentos desta jornada. A todos os colegas da turma do Mestrado Profissional, ótimos companheiros de viagem e núcleo de suporte nos momentos mais difíceis. À Profa. Dra. Carolina Romano de Andrade e ao Prof. Dr. Sidiney Peterson Ferreira de Lima pela disciplina “Experiência Artística e a Prática do Ensino”, que dialogou diretamente com esta pesquisa gerando inúmeros afetos, incômodos, questionamentos e identificações. Aos Professores das disciplinas cursadas no mestrado. Aos funcionários do Instituto de Artes da UNESP. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), pela bolsa de estudos e incentivo à qualificação docente no Programa de Mestrado Profissional em Artes - PROF-ARTES, para a realização desta pesquisa. À toda equipe da EMEF Jornalista Millôr Fernandes. À minha querida família, pelo carinho e paciência durante este processo. RESUMO Esta dissertação de mestrado trata de vivências e experiências em educação musical com alunos de 6 e 7 anos do 1º ano do ensino fundamental de uma escola pública na periferia da zona sul da cidade de São Paulo. Apresenta propostas de vivências a partir da sala de aula, em uma perspectiva de educação musical criativa, crítica, democrática, cultural e humana, com atenção especial à convivência, olhar sobre a diversidade e às diferenças, em busca de experiências. Parte-se de jogos envolvendo o criar, explorar o movimento, o corpo, os sons e as materialidades sonoras de forma imaginativa. Jogar nos espaços e pelos espaços em busca de transformação das relações e conexões. Apresenta propostas de ações de ocupação criativa do espaço escolar, envolvendo afetos e pertencimento. Relata a prática da sala de aula por meio de um estudo de caso de abordagem qualitativa que inclui a observação participante. Mediante uma construção rizomática, a teia teórica parte de Deleuze e Guattari (2011), revisitados por Gallo na educação. Trata da vivência e da experiência a partir de Dewey (2010) e Larrosa (2004), compreende os aspectos de inclusão social com Sawaia (2001), criatividade a partir de Vigotski (2018), o espaço escolar com Freire (2002, 2001, 1989), Gallo (2017) e Foucault (1987), estesia a partir de Duarte Jr. (2000), Martins e Picosque (2012). Na educação musical, com Brito (2019, 2009a, 2009b, 2007, 2003), Delalande (2019) e Gainza (2002, 1988, 1987). Palavras-chave: Educação musical; Educação básica; Experiência; Estesia; Pertencimento. ABSTRACT This master's dissertation deals with experiences in music education with 6 and 7-year-old students from the 1st grade of a public and elementary school at a school in the suburbs of the south zone of the city of São Paulo. It presents proposals for experiences from the classroom, from a perspective of creative, critical, democratic, cultural, and human musical education, with special attention to coexistence, looking at diversity and differences. It starts with games involving creating, exploring movement, body, sounds, and sonority materialities in an imaginative way. Play in spaces and through spaces in search of the transformation of relationships and connections. It presents proposals for actions of creative occupation of the school space, involving affections and belonging. Reports the classroom practice, in a methodological design with a qualitative approach that includes participant observation. Through a rhizomatic construction, the theoretical web starts from Deleuze and Guattari (2011), revisited by Gallo in education. It deals with the experience from Dewey (2010) and Larrosa (2004), it includes the aspects of social inclusion with Sawaia (2001), creativity from Vigotski (2018), the school space with Freire (2002, 2001, 1989), Gallo (2017) and Foucault (1987), estese from Duarte Jr. (2000), Martins and Picosque (2012). In music education, with Brito (2019, 2009a, 2009b, 2007, 2003), Delalande (2019), and Gainza (2002, 1988, 1987). Keywords: Musical education; Public school; Experience; Esthesia; Belonging. LISTA DE QUADROS QUADRO 1 - Anais da Abem ................................................................................................ 116 QUADRO 2 - Anais da Anppom ............................................................................................ 124 QUADRO 3 - Revista da Abem ............................................................................................. 130 QUADRO 4 - Revista Música na Educação Básica ................................................................ 134 QUADRO 5 - Revista Opus – Anppom .................................................................................. 136 LISTA DE FIGURAS FIGURA 1 – Mapa: processo educador-artista-formador cultural ........................................... 18 FIGURA 2 - Nuvem de Palavras: levantamento bibliográfico e revisão de literatura.............. 26 FIGURA 3 - Nuvem de Palavras: fundamentação teórica ....................................................... 28 FIGURA 4 - Conhecendo o repertório ..................................................................................... 76 FIGURA 5 - Ocupando para cantar 1º Ano B . ........................................................................ 78 FIGURA 6 - Canto 1º ano C em resposta ................................................................................. 78 FIGURA 7 - Cantando na escada ............................................................................................. 80 FIGURA 8 - Projeto Confecção de Brinquedos Sonoros 1 ...................................................... 81 FIGURA 9 - Projeto Confecção de Brinquedos Sonoros 2 ...................................................... 81 FIGURA 10 - Projeto Confecção de Brinquedos Sonoros 3 .................................................... 82 FIGURA 11 - Projeto Confecção de Brinquedos Sonoros 4 .................................................... 82 FIGURA 12 - Ensaio para apresentação no CEU Casa Blanca ................................................ 83 FIGURA 13 - Apresentação CEU Casa Blanca ........................................................................ 84 FIGURA 14 - SARAU do Fundamental I da EMEF Jornalista Millôr Fernandes.................... 85 FIGURA 15 - Ocupação da Lousa ............................................................................................ 86 FIGURA 16 - Conjunto Instrumental e Vocal 1 ....................................................................... 87 FIGURA 17 - Conjunto Instrumental e Vocal 2 ....................................................................... 87 FIGURA 18 - Jogo da Regência 1 ............................................................................................ 90 FIGURA 19 - Jogo da Regência 2 ............................................................................................ 90 FIGURA 20 - Tumbalacatumba ............................................................................................... 91 FIGURA 21 - Cantando com o Divisor .................................................................................... 92 FIGURA 22 - Registro Divisor ................................................................................................ 92 FIGURA 23 - Canto Koi Txangaré na sala dos professores ..................................................... 94 FIGURA 24 – Apreciação: instrumentos indígenas ................................................................. 94 FIGURA 25 - Dançando na teia 1 ............................................................................................. 96 FIGURA 26 - Dançando na teia 2 ............................................................................................. 96 FIGURA 27 - Registrando a teia .............................................................................................. 97 FIGURA 28 - Confeccionando e explorando as aranhas .......................................................... 97 FIGURA 29 – Mapa: palavras que acompanham o jogo da educação musical ...................... 100 FIGURA 30 - Nuvem de palavras: educação musical ............................................................ 103 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS • Abem - Associação Brasileira de Educação Musical • Anpap - Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas • Anppom - Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação de Música • CEU - Centro Educacional Unificado • Confaeb - Congresso Nacional da Federação de Arte Educadores do Brasil • Coped - Coordenadoria Pedagógica • Covid-19 - Corona Virus Disease (Doença do Coronavírus) • DRE-CL - Diretoria Regional de Educação - Campo Limpo • EMEF - Escola Municipal de Ensino Fundamental • IA-Unesp - Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” • ONG - Organizações não Governamentais • PMSP - Prefeitura Municipal de São Paulo • PPP - Projeto Político-Pedagógico • PROF-ARTES - Programa de Mestrado Profissional em Artes • SME - Secretaria Municipal de Educação • SME/SP - Secretaria Municipal de Educação de São Paulo • UBS - Unidade Básica de Saúde • UE - Unidade Escolar SUMÁRIO INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 16 I. Justificativa .................................................................................................................. 16 Como cheguei até aqui.................................................................................................. 16 O que me move e comove............................................................................................. 19 II. Questões da pesquisa ................................................................................................. 23 III. Objetivos ................................................................................................................... 24 IV. Metodologia ............................................................................................................... 24 V. Levantamento Bibliográfico / Revisão de Literatura .............................................. 26 VI. Fundamentação Teórica .......................................................................................... 28 VII. Estrutura do Trabalho ............................................................................................ 33 1. ARRANJO, CONTEXTO DA ESCOLA E EDUCAÇÃO MUSICAL .......................... 35 2. PROFUSÃO DE MOTIVOS OU PROCESSOS CRIATIVOS, EXPERIMENTAÇÃO E ESTESIA EM EDUCAÇÃO MUSICAL .......................................................................... 44 Vivência e Experiência ..................................................................................................... 44 Vivência, Experiência e Estesia ........................................................................................ 48 Vivência, Experiência, Estesia e Corpo ............................................................................ 53 Vivência, Experiência, Estesia, Corpo e Ocupação Criativa ............................................. 58 Vivência, Experiência, Estesia, Corpo, Ocupação Criativa e Pertencimento .................... 69 3. “CAUSOS” DA SALA DE AULA ..................................................................................... 75 Cantando pela Escola ........................................................................................................ 77 Projeto Confecção de Brinquedos Sonoros........................................................................ 81 Primeira Apresentação Fora da Escola .............................................................................. 83 1º SARAU Fundamental I ................................................................................................ 85 Ocupação da Lousa ........................................................................................................... 86 Conjunto Sonoro e Musical ............................................................................................... 87 Jogo da Regência .............................................................................................................. 90 Divisor .............................................................................................................................. 92 Koi Txangaré .................................................................................................................... 94 A Teia ............................................................................................................................... 96 Sobre a Produção .............................................................................................................. 98 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 101 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 108 APÊNDICES ........................................................................................................................ 115 APÊNDICE 1 – Anais da Abem ................................................................................. 116 APÊNDICE 2 – Anais da Anppom ............................................................................. 124 APÊNDICE 3 – Revista da Abem .............................................................................. 130 APÊNDICE 4 – Revista MEB .................................................................................... 134 APÊNDICE 5 – Revista Opus – Anppom .................................................................. 136 APÊNDICE 6 – Variações do motivo ........................................................................ 142 APÊNDICE 6.1 – Publicações da revisão de literatura ................................... 142 APÊNDICE 6.2 – Publicações da fundamentação teórica .............................. 146 ANEXOS ............................................................................................................................... 151 ANEXO 1 - Parecer consubstanciado Plataforma Brasil ............................................ 152 “A educação será tão mais plena quanto mais esteja sendo um ato de conhecimento, um ato político, um compromisso ético e uma experiência estética.” Paulo Freire (2001) 16 INTRODUÇÃO I. Justificativa Como cheguei aqui Trabalho profissionalmente com música desde 1982, lecionando violão e matérias teóricas, em aulas individuais e coletivas na educação. Meu fazer profissional e artístico sempre esteve ligado à educação, inclusive projetos e programas nos quais atuei na área da cultura. No tempo em que atuei como arte-educador no programa de Iniciação Artística realizados nos Centros Educacionais Unificados da Prefeitura Municipal de São Paulo (CEUs/PMSP), tive experiências de formação e trabalho com propostas em interlinguagens artísticas. Esse programa enfatizou a formação do educador, proporcionando encontros e parcerias visando trabalhos que relacionassem música com dança, teatro e artes visuais. Em outro momento atuei como produtor, formador cultural e coordenador artístico pedagógico em programas como CEU/PMSP e Fábricas de Cultura1, onde trabalhei, desenvolvi e criei projetos visando à formação de uma rede cultural que envolvesse aspectos culturais, pedagógicos e artísticos. A importância de destacar essa formação e o trabalho em rede, se justifica nesta dissertação, na medida em que foi disparadora de uma forma de interação e olhar aprofundados no entorno onde estamos inseridos e com quem dialogamos. Travei amplo diálogo com a educação formal e a não formal, com artistas, coletivos de arte e comunidade, em busca do resgate da identidade e memória cultural, difusão, mapeamento e inclusão cultural com crianças, jovens e adultos. Isso ocorreu por meio da produção de shows de artistas locais visando o fomento da cultura da região, do pertencimento2 e da ocupação artística3 do espaço público, coordenação e planejamento das atividades artístico-pedagógicas de cada arte-educador, ações transdisciplinares, verificações, análises e compartilhamento de resultados. Estive à frente da formação continuada de arte-educadores, ampliação da rede de sustentabilidade, fomento da cultura e implantação de novos projetos, mapeamento e diagnóstico das expectativas e necessidades da comunidade quanto às metas culturais e educacionais do programa Fábricas de Cultura, focando a ocupação artística e criação de fórum 1 Programa do Governo do Estado de São Paulo. Disponível em: http://www.fabricasdecultura.sp.gov.br/. Acesso em: 10 jul. 2020. 2 Enquanto fortalecimento da identidade do bairro, e apropriação do espaço público pelos artistas da região, que, muitas vezes se sentem não incluídos e inferiorizados na rede de cultura. 3 Priorizamos, sempre, a ocupação dos espaços de cultura com manifestações artísticas diversas, como atos de resistência cultural e enfrentamento das solicitações de uso para necessidades outras, como a política, por exemplo. 17 permanente de discussão entre alunos, família e funcionários, possibilitando a compreensão das relações, funções, práticas e objetivos de cada um. Tais ações culturais e educacionais influenciaram diretamente o sentimento de pertencimento. A partir dele, as possibilidades de interagir criativamente se desenvolveram, as relações se modificaram, com os participantes mostrando novo grau de autonomia em face dos processos vivenciados, permitindo, assim, novas possibilidades de construções conjuntas e proativas. Todos os projetos, fazeres e saberes adquiridos ao longo do meu percurso foram importantes e fortalecedores do desafio cotidiano das ações em sala de aula. As experiências que trago na bagagem possibilitaram novos olhares acerca do fazer pedagógico, artístico e do lecionar música em escolas de educação formal. Hoje sou professor de artes do ensino fundamental e médio, designação do cargo que ocupo na rede municipal de São Paulo, com a linguagem específica da minha formação em música. Atuo em uma Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) na zona sul da cidade de São Paulo, com alunos do 1º ao 9º ano, sendo o 1º ano o foco desta pesquisa. Nestes passos que já ensaiei, que configuram minha trajetória à prática docente e ao mestrado, encontra-se uma noção própria de que a escola, e cada escola se organiza num tempo e espaço diferenciados, únicos e singulares, envolvendo as esferas política, social e cultural da comunidade, compreendida desde o aluno, o professor, a gestão, a família, as redes de apoio e sustentação (saúde, Organizações não Governamentais - ONGs), terceirizados, até a vizinhança (comércio, parques, campos de futebol, igrejas e demais instituições do entorno). Assim, torna- se importante entender o aluno em seu meio e a relação da escola nesse espaço, afinal, o papel e a função da escola existirão a partir do momento em que ela se integra e se relaciona com o local onde está inserida. Devemos compreender o aluno a partir da sua cultura, sua comunidade e possibilidades de relação com o espaço escolar: [...] o que é significativo para o aluno na sua vida e no mundo imediato e o que é relevante em termos dos objetivos educacionais da escola. Contextualizar o ensino significa incorporar vivências concretas e diversificadas, também incorporar o aprendizado em novas vivências. (MELLO, 2004, p. 62) Na escola municipal onde leciono há diversos casos de vulnerabilidade econômica, social e/ou afetiva, e ao menos um aluno com deficiência em cada turma. No Ensino Fundamental I, a disciplina de Arte tem apenas uma hora aula por semana, com 45 minutos de 18 duração. Como a escola na qual atuo participa do programa São Paulo Integral4, tenho dois encontros semanais com as turmas de 1º ano, público-alvo desta pesquisa. Nos estudos e leituras até aqui feitos, encontrei poucos relatos de professores sobre a prática de ensino com educação pública, periférica e inclusiva. O mesmo se deu em relação ao experienciar em primeiro plano com foco no pertencimento e na ocupação do espaço escolar de forma criativa. A Figura 1 representa meu percurso formativo, artístico e profissional, com as experiências que considero significativas para o ser professor, músico e pesquisador. Figura 1: Mapa: processo de formação, educador-músico-formador cultural.5 Fonte: Elaborada pelo autor (2020) 4 O Programa São Paulo Integral possui entre outras diretrizes, a de garantir às crianças e adolescentes o direito fundamental de circular pelos territórios educativos, apropriando-se deles, como condição de acesso às oportunidades, espaços e recursos existentes e ampliação contínua do repertório sociocultural e da expressão autônoma e crítica. Disponível em: http://portal.sme.prefeitura.sp.gov.br/Portals/1/Files/22501.pdf. Acesso em: 6 mar. 2020 5 A figura 1, criada pelo autor, faz uso do nome do Programa de Mestrado Profissional em Arte, Prof-Artes, com a clave de Fá substituindo a letra “F” e a clave de Sol, substituindo a letra “S”. Representa o percurso formativo de educador, músico e formador cultural até chegar ao mestrado e a influência do mestrado, sobretudo a formação e atuação profissional. 19 O que me move e comove O que me move dentre as vivências e experiências que trago nesta trajetória e que me movimentam em direção à pesquisa e à docência, dou destaque: - à experiência de felicidade como compreendida por Rios (2001), que pressupõe um caminhar acompanhado da convivência. Do ponto de vista ético, significa vida plena em companhia dos outros, ou seja, a possibilidade de exercer direitos, de ser reconhecido pelos outros e de participar da organização da sociedade e da cultura; - à concepção de paixão colocada por Sawaia (2001), que discute a exclusão social como exclusão de identidade, sociabilidade, afetividade, consciência e inconsciência, por meio do entendimento do homem como um todo e de suas relações com os outros, em um contexto em que está sendo privado de pensar, criar e ser um cidadão. Considera a linguagem ou cultura como fenômeno social provocado por estímulos exteriores. A emoção é parte do pensamento, fenômeno objetivo ou subjetivo que constitui matéria prima à condição humana, na qual o psicológico, o social e o político se entrelaçam. A tese de Sawaia (2001) se baseia na paixão, entendida como base da ética e da ação coletiva, que constitui o caminho à compreensão e ao combate da servidão e da tirania. Para a autora, o combate à servidão e à tirania corre por meio de relações construídas com respeito e responsabilidade. Os afetos, como afetamos e somos afetados são parte fundamental da estrutura de relações no ambiente escolar, dentro e fora da sala de aula, nas relações intra e extramuros. Por isso, pensar a educação musical requer a compreensão das maneiras como os afetos são postos, impostos e repostos. Sawaia (2001, p. 101) assim os comenta: Por afetos, entendo as afecções do corpo pelas quais a potência de agir desse Corpo é aumentada ou diminuída, secundada ou reprimida e ao mesmo tempo as ideias dessas afecções. Corpo é matéria biológica, emocional e social, tanto que sua morte não é só biológica, falência dos órgãos, mas social e ética. Morre-se de vergonha, o que significa morrer por decreto da comunidade. O pensamento da complexidade de Morin (2011) consiste na luta pela criação e viabilização de condições para colocar em prática um currículo que esteja integrado ao ser humano e ao mundo em que vive, possibilitando atitudes e resultados transformadores da realidade. Para ser adquirido e ter caráter transformador, o conhecimento deve ser pertinente, multidimensional e entender o homem em suas esferas psíquica, social, biológica, afetiva, 20 racional, histórica e cultural. Deve ser complexo, ligando o que é tecido entre a unidade e a multiplicidade. O educar por meio das linguagens artísticas deve ser pensado de forma a religar e reconectar os alunos aos seus corpos, possibilidades e diversidades. [...] para a educação do futuro, é necessário promover grande remembramento dos conhecimentos oriundos das ciências naturais a fim de situar a condição humana no mundo; dos conhecimentos derivados das ciências humanas, para colocar em evidência a multidimensionalidade e a complexidade humanas, bem como para integrar (na educação do futuro) a contribuição inestimável das humanidades, não somente a filosofia e a história, mas também a literatura, a poesia, as artes [...]. (MORIN, 2011, p. 44) De acordo com Stefani (1997, p. 17): “O homem que não realiza seu potencial criador é um homem mutilado [...]. A escola pode ser um lugar de encontro. Encontro de pessoas consigo mesmas, com o mundo e a cultura”. O entendimento de escola, cultura e mundo abrange o desenvolvimento do pensamento criativo e imaginativo como a capacidade de desenvolver as análises e sínteses, de entender o mundo em que vive e com ele interagir, estabelecendo relações a partir do aprendizado e da vivência com as múltiplas linguagens. Em outro tempo e lugar Benjamin (1987) aborda a arte de narrar como troca de experiências que caminha para um fim, como uma crise nas relações na forma de expressar desejos, sentimentos, fatos e afetos: É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências. Uma das causas desse fenômeno é óbvia: as ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo. (BENJAMIN, 1987, p. 198) A relação da experiência da arte de narrar em baixa pode ser estabelecida com a escola nos dias de hoje, quando a experiência está em crise e se fazem necessárias e urgentes ações que trabalhem com o pensamento criativo e imaginativo como possibilidade de um despertar do pensamento crítico. Desta feita, o pensamento crítico, criativo e imaginativo, necessita estar em evidência para contrapor-se à lógica da sociedade em que vivemos, papel da escola, das ONGs e da arte: Se uma sociedade baseada no mito da produtividade (e na realidade do lucro) precisa de homens pela metade – fiéis executores, diligentes reprodutores, dóceis instrumentos sem vontade própria – é sinal de que está mal feita, é sinal de que é preciso mudá-la. Para mudá-la, são necessários homens criativos, que saibam usar sua imaginação. (RODARI, 1982, p. 163) 21 A imaginação criativa que vem dos jogos e das brincadeiras, enquanto propriedade de reelaboração criativa de vivências, instaura processos criativos e trabalha conjuntamente no desenvolvimento de indivíduos críticos e capazes de refletir como, onde e por que para cada situação vivida, de se perceber afetado e ter parâmetros responsáveis para reagir aos afetos. Viver de forma criativa é contrapor-se a sociedades, famílias e escolas que reprimem. Segundo Rodari (1982, p. 164) criatividade é [...] sinônimo de pensamento divergente, isto é, capacidade de romper continuamente os esquemas da experiência. É criativa uma mente que trabalha, que sempre faz perguntas, que descobre problemas onde os outros encontram respostas satisfatórias (na comodidade das situações onde se deve farejar o perigo), que é capaz de juízos autônomos e independentes (do pai, do professor e da sociedade), que recusa o codificado que remanuseia objetos e conceitos sem se deixar inibir pelo conformismo. Todas essas qualidades manifestam-se no processo criativo. Martins e Picosque refletem sobre o papel da arte na escola, entendendo a mediação como campo e possibilidades de experiências e afetações sempre em processo. Encontros nos quais se desenvolvem relações de troca e aprendizagem: [...] viver experiências novas instigantes são por si só mediadores significativos. Mas, independente das possibilidades físicas e materiais, sempre haverá a necessidade de um educador sensível, capaz de criar situações onde o encontro com a arte possa gerar uma sociedade mais humana [...]. O processo de mediação há de ser provocativo, instigante ao pensar e ao sentir, à percepção e à imaginação. Um ato capaz de abrir diálogos, também internos, ampliados pela socialização dos saberes. (MARTINS; PICOSQUE, 2012, p. 29) Para estas experiências que abrem processos internos, Gainza (1988) traz a relação da prática musical pedagógica com a possibilidade de desenvolvimento pessoal, por ser uma forma de arte que o indivíduo faz e por meio da qual se mostra. Está ligada ao nosso ver com as possibilidades de reconhecer e compreender o ser e estar em comunidade de maneira criativa, visando ao pertencimento e à ocupação criativa do espaço escolar. Toda atividade musical é uma atividade projetiva, algo que o indivíduo faz e mediante a qual se mostra; permite, portanto, que o observador treinado observe tanto os aspectos que funcionam bem no indivíduo, como aqueles aspectos mais incompletos ou em conflito, seus bloqueios, suas dificuldades.Esse dado é de fundamental importância para a educação musical porque, a partir daí, o professor poderá organizar sua estratégia, seu plano de operações. (GAINZA, 1988, p. 43) Dalcroze (1921) é outra referência em música. No início do século XX, discute e questiona métodos e técnicas que dispensavam a percepção e o corpo da aprendizagem musical. Propõe uma metodologia com ênfase na percepção auditiva e na experiência corporal, onde o corpo é o primeiro instrumento musical a ser treinado. 22 Estou ansioso por um sistema de educação musical em que o próprio corpo desempenhe o papel de intermediário entre sons e pensamentos, tornando-se com o tempo o meio direto de nossos sentimentos... Assim, na escola, a criança aprenderia não apenas a cantar e a ouvir com precisão e métrica, mas também a se movimentar e a pensar com precisão e ritmo. Pode-se começar regulando os mecanismos da caminhada e daí prosseguir para aliar os movimentos vocais com gestos de todo o corpo. Isso constituiria ao mesmo tempo instrução em ritmo e educação por ritmo. (DALCROZE, 1921, p. 12, tradução nossa)6 Bomfim (2012) reflete sobre o treino do corpo, parte do ritmo que impulsiona o movimento e o torna importante para a compreensão musical: Nesse sistema, a música não é mais vista como um elemento fora do corpo, mas, sim, como parte integrante deste, fazendo com que o corpo atue como um grande ouvido – unificando música, corpo e movimento. Dalcroze propõe que essa aprendizagem se dê através da audição musical unida a movimentos básicos como caminhar, correr ou mesmo andar em diferentes direções, procurando ouvir e expressar com o corpo as diferentes estruturas musicais. Essa experiência serve de estímulo à criatividade, uma vez que está intimamente ligada à improvisação. (BOMFIM, 2012 p. 82) Dalcroze (1921) estabelece, a partir do ritmo, a conexão entre escuta, corpo e movimento. Para o autor o ouvir e se expressar com o corpo representa um estímulo à criatividade – o que reafirma ainda hoje a importância do movimento corporal na educação musical escolar. Segundo Godinho (2011, p. 360): É, porém, nesta perspectiva de reconhecer o corpo como elemento essencial na nossa compreensão musical, quer na forma como sentimos a música quer na forma como a representamos na mente, que me demarco desta perspectiva de corpo subsidiário para uma perspectiva de corpo central no conhecimento de nós e do mundo, de nós e da música. Tendo o corpo e o movimento como elementos centrais da educação musical, vamos ao fruir corporalmente com vivências e performances proporcionadas por jogos e brincadeiras na escola. A escola me comove, por entendê-la como o lugar historicamente destinado à construção, apropriação e socialização do conhecimento. Lugar onde circulam os mais diferentes saberes em dinâmica interação com o cotidiano das questões culturais, étnicas, regionais e de classe social. Educar é conhecer, é fazer uma leitura de mundo em que conhecer está intrinsecamente baseado na relação com o outro, renovada dia após dia. Pensar nessa 6 Et je me prends à rêver d'une éducation musicale dans laquelle le corps jouerait lui-même le rôle d'intermédiaire entre les sons et notre pensée, et deviendrait l'instrument direct de nos sentiments... A l'école l'enfant apprendrait donc non seulement à chanter et à écouter juste et en mesure, mais à se mouvoir et à penser juste et rythmiquement. L'on commencerait par régler le mécanisme de la marche et l'on allierait les mouvements vocaux aux gestes du corps tout entier. Et ce serait là à la fois une instruction pour le rythme et une éducation par le rythme [...]. 23 relação é “sonhar” com o futuro da educação e da sociedade, e sonhar é um ato de expressão criativa – campo da arte que permite trabalhar, experenciar e vivenciar a criatividade como em nenhuma outra disciplina: É neste sentido que, para mulheres e homens, estar no mundo necessariamente significa estar com o mundo e com os outros. Estar no mundo sem fazer história, sem por ela ser feito, sem fazer cultura, sem “tratar” sua própria presença no mundo, sem sonhar, sem cantar, sem musicar, sem pintar, sem cuidar da terra, das águas, sem usar as mãos, sem esculpir, sem filosofar, sem pontos de vista sobre o mundo, sem fazer ciência, ou teologia, sem assombro em face do mistério, sem aprender, sem ensinar, sem idéias [sic] de formação, sem politizar não é possível. (FREIRE, 2002, p. 64). São mobilizadores da pesquisa e da ação pedagógico musical entender que a escola organiza seus espaços e mobiliários em padrões que podem levar à anestesia corporal, que andam na contramão da criatividade e da expressão criativa. Isso gera um incômodo maior quando tratamos os alunos que chegam ao ensino fundamental advindos da educação infantil, quando brincadeiras e espaços lúdicos dão lugar à carteira e à lousa na maior parte do tempo. No contexto da minha trajetória, na qual o músico e o formador cultural caminham junto com o professor, entendo o fazer musical e artístico também como ação que permite a percepção do local onde nos inserimos de modo diferente, possibilitando o pensamento crítico e reflexivo na constituição de relações sociais que visam ao respeito às diferenças, permitindo aproximações e explorações de práticas criativas que contrabalançam a forma de ser e estar no espaço educativo. A educação musical pode fazer um contraponto ao modo do funcionamento escolar, compondo e arranjando formas de expressão, vivências e experiências significativas para a convivência no espaço e no processo de ensino-aprendizagem musical. II. Questões da pesquisa As questões da pesquisa são: • como proporcionar experiências sonoras e vivências musicais focando a estesia? • é possível estabelecer relação e sentimento de pertencimento e ocupação criativa no espaço escolar? Se sim, como chegar a eles? 24 III. Objetivos Os objetivos da pesquisa são: • proporcionar vivências e experiências musicais por meio de processos voltados para a criatividade e a estesia, em busca do prazer pelo estar e pelo fazer coletivo musical; • potencializar a imaginação e a criatividade dos alunos por meio de processos criativos, visando à ocupação criativa do espaço escolar e o pertencimento. IV. Metodologia A metodologia utilizada nesta pesquisa é um estudo de caso, com abordagem qualitativa e naturalística, como compreendida por Lüdke e André (2018, p. 20). “O estudo qualitativo [...] é o que se desenvolve numa situação natural, é rico em dados descritivos, tem um plano aberto e flexível e focaliza a realidade de forma complexa e contextualizada”. O desenvolvimento da pesquisa naturalística tem na descrição dos fenômenos sua importância, trabalhando “a realidade de forma complexa e contextualizada”, buscando apreender completamente o objeto por meio da contextualização, da compreensão das “ações, as percepções, os comportamentos e as interações” (LÜDKE; ANDRÉ, 2018, p. 18-19). A pesquisa qualitativa ou naturalística, segundo Bogdan e Biklen (1982), envolve a obtenção de dados descritivos, obtidos no contato direto do pesquisador com a situação estudada, enfatiza mais o processo do que o produto e se preocupa em retratar a perspectiva dos participantes. (LÜDKE; ANDRÉ, 2018, p. 14) Esse tipo de pesquisa busca conhecer realidades específicas em profundidade, de modo sistemático e cientificamente controlado. Trata-se de uma pesquisa empírica que investiga e interpreta fenômenos atuais com relações dinâmicas entre o sujeito, o pesquisador e o universo da pesquisa, mostrando-se adequada e produtiva na investigação de fenômenos pedagógicos (PENNA, 2017). “Todo ato de pesquisa é um ato político”, já disse muito bem Rubem Alves (1984). Não há, portanto, possibilidade de se estabelecer uma separação nítida e asséptica entre o pesquisador e o que ele estuda e também os resultados do que ele estuda. Ele não se abriga, como se queria anteriormente, em uma posição de neutralidade científica, pois está implicado necessariamente nos fenômenos que conhece e nas consequências desse conhecimento que ajudou a estabelecer. (LÜDKE; ANDRÉ, 2018, p. 5) Possui, também, a característica de ser situacional e de caráter interpretativo, pois, considera a compreensão e a apreensão de diferentes percepções de um contexto único, de uma 25 dada situação – neste caso, as aulas de música para turmas de 1º ano de uma escola pública de ensino fundamental da zona sul da cidade de São Paulo. A observação participante, registros escritos, fotográficos e audiovisuais foram utilizados como instrumentos metodológicos. Para registro usamos diário de bordo, gravador, máquina fotográfica e filmadora (PENNA, 2017). Enquanto coleta de dados, a observação é um procedimento básico da pesquisa em educação, tornando-se participante quando o pesquisador está envolvido diretamente com a pesquisa. Observar é fazer registros e refletir sobre, unindo a prática à teoria. Prescinde de roteiro e planejamento, de que forma e o que deve ser observado (PENNA, 2017). Nesta pesquisa, a observação participante tratou da percepção do contexto, do que foi olhado e sentido, acompanhada da reflexão sobre o processo. As situações didáticas foram consideradas desde o estabelecimento de rotinas e regras de convivência a fim de valorizar e integrar os alunos, colocando-os como agentes na construção do conhecimento. As aulas contaram com o recurso pedagógico do uso de jogos e brincadeiras musicais. A observação participante é uma modalidade especial de observação na qual você não é apenas um observador passivo. Em vez disso, você pode assumir uma variedade de funções dentro de um estudo de caso e pode, de fato, participar dos eventos que estão sendo estudados. (YIN, 2001, p. 112) O levantamento bibliográfico e a revisão da literatura partiram da análise de artigos publicados em Anais, em revistas específicas da área de música e da leitura de teses e dissertações sobre a temática, visando ao conhecimento de como o tema foi abordado. Conforme Freire (2010, p. 43): “A revisão de literatura se destina a realizar uma leitura crítica da literatura especializada, buscando situar o problema da pesquisa no atual estado de conhecimento da área”. 26 V. Levantamento bibliográfico / Revisão de literatura Figura 2 – Nuvem de Palavras: levantamento bibliográfico e revisão de literatura. Fonte: Elaborada pelo autor7 (2019). Esta “nuvem de palavras” foi construída a partir de palavras que constam do levantamento bibliográfico e da revisão de literatura, evidenciando as que mais chamaram atenção em relação à pesquisa (Figura 2). Na primeira etapa da pesquisa, com o propósito de situar seu tema e compreender como as pesquisas na área se apresentam, foram realizadas buscas e análises de publicações em CD- rom e nos sites da Associação Brasileira de Educação Musical (Abem) e da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música (Anppom). O levantamento de publicações da Abem se deu em Anais, na Revista da Abem e na Revista Música na Educação Básica; o da Anppom, em Anais e na Revista OPUS. No site da Abem foram encontrados dez artigos nos Anais (2001 a 2017), e dois artigos na Revista da Abem (1992 a 2017), Também dois foram encontrados na Revista Música na 7 Elaborada com uso do aplicativo word art (Word Art Creator Application). Disponível em: https://wordart.com/ 27 Educação Básica (2009 a 2017). No site da Anppom foi encontrado um artigo nos Anais (de 1990 a 2018). Dois foram encontrados na Revista OPUS (1989 a 2019). Nos APÊNDICES encontra-se: uma lista mais detalhada da contribuição de cada artigo; uma relação de livros selecionados e comentados (incluindo publicações de outras editoras e instituições); quadros com os levantamentos bibliográficos realizados nos Anais da Abem, da Anppom, nas revistas da Abem, na OPUS e na Música na Educação Básica. Os artigos selecionados expõem percursos, reflexões e questionamentos ligados à educação musical em escolas de ensino fundamental, destacando as classes de 1º ano do ciclo de alfabetização, analisam e trabalham o aspecto criativo da relação ensino-aprendizagem, os processos criativos e experiências na educação pública. Cada um, à sua maneira, com referenciais teóricos próprios, trazem elementos que dialogam com o objeto de investigação desta pesquisa. Arantes (2017); Piekarski e Lüders (2013); Duarte, Carvalho, Fioretti e Luz (2003), pensam a educação musical alinhada à perspectiva histórico-cultural do psicólogo russo Lev Semyonovich Vigotsky8, pela qual o sujeito se desenvolve nas relações tecidas no espaço social. Aqui, esse espaço é a escola, pensada como local de encontros e desencontros, e lugar da educação musical, de propiciar vivências e experiências em música. A importância da ênfase na criatividade encontra-se também na obra de Vygotsky, que compreende a atividade criativa como própria da realização humana, advinda de elaborações de sentimentos, pensamentos e revelada na cultura. Esta como local de conexão em constante processo de criação e reinterpretação de informações, conceitos e significados, produto da imaginação e da criatividade, das emoções e sentimentos do cotidiano, mediando fenômenos sociais e históricos, que se conectam, configuram motivos e afetam ideias (SAWAIA, 2001). De acordo com França (2009), a educação musical escolar, organiza e apresenta uma abordagem integrada dos conteúdos nas modalidades de composição, apreciação e performance, tendo em vista o desenvolvimento integral e psicológico da criança, e para estes sendo fundamentais o prazer e a ludicidade, a imaginação e a fantasia, o vínculo com o cotidiano, o movimento e a expressão corporal. A importância de respeitar o universo das crianças como modo de valorizar e integrar o saber infantil, tornando a criança agente importante na construção do conhecimento – é 8 Seu sobrenome teve, ao longo do tempo, diversas formas de escrita aceita em publicações: Vygotsky, Vigotsky ou Vigotski. 28 ressaltada por Beineke (2015) e Beineke, Flor e Freitas (2004). Para elas a valorização da participação e contribuição do aluno é um dos fatores que viabilizam o ensino criativo. Couto e Santos (2009) aliam o fazer musical à escola ao enfatizar a importância do processo ensino-aprendizagem como manipulação de elementos da música (escuta crítica, execução e criação) significativos para o aluno. O experienciar, para Mársico (1989), antecede o compreender, o sentir é anterior ao pensar, sendo necessário compreender os aspectos perceptivos e emocionais. Daí a importância, para a criança, do aprender por meio do próprio corpo, onde a experiência sensorial se dá. O experienciar também se mostra fundamental para a criatividade, cujo processo de desenvolvimento combina aprendizagem e pensamento, aprendizagem e descoberta, escuta e produção. VI. Fundamentação Teórica Figura 3 - Nuvem de Palavras: fundamentação teórica. Fonte: Elaborada pelo autor9 (2020). 9 Elaborada com uso do aplicativo word art (Word Art Creator Application). Disponível em: https://wordart.com 29 Esta “nuvem de palavras” (Figura 3) contém as principais palavras e os autores da fundamentação teórica que se encontra a seguir. Para a fundamentação foram relacionados os seguintes autores para colaborar com o tecer dessa teia e dialogar com o tema que fundamenta esta pesquisa: Brito (2019, 2009a, 2009b, 2007, 2003), Delalande (2019), Gainza (2002, 1988, 1987), Gallo (2017), Martins e Picosque (2012), Rios (2001), Sawaia (2001). Esses autores trazem pensamentos e reflexões que aqui vão se entrelaçar em meio a diversos atravessamentos não hierarquizados em uma proposta rizomática na construção de uma teia de sentidos. Outros autores também compõem essa teia (ver APÊNDICE 6.2). Gallo (2017) contribuiu para compor o tecido que dá liga a essa teia teórica e aos modos de tecer. Ele recontextualiza as ideias de Deleuze sobre educação, partindo da relação entre literatura menor e educação menor. A literatura menor subverte a realidade, transforma o território, a cultura e a tradição. A educação menor, que desterritorializa e reterritorializa o termo, ocupa trincheiras que promovem uma política no cotidiano, interferindo e atuando nas relações entre os indivíduos. Cria espaços de tensão por meio das suas formas de ocupação, e os ressignifica, atribuindo novos usos e práticas à escola, devido aos agenciamentos e conexões que passam a acontecer, onde o processo educativo está comprometido com transformações. A educação menor surge como rizomática, segmentada, fragmentária, sem interesse por criar modelos, propor caminhos, impor soluções. Não se trata de buscar a complexidade de uma suposta unidade perdida. Não se trata de buscar a integração dos saberes. Importa fazer rizoma. Viabilizar conexões e conexões; conexões sempre novas. Fazer rizoma com os alunos, viabilizar rizomas entre os alunos, fazer rizomas com projetos de outros professores, em um exercício de produção de multiplicidades. Entre as conexões com esta pesquisa tem-se a análise das relações de poder instauradas em uma sala de aula, a percepção de que todo projeto é coletivo, todo valor e todo fracasso são coletivos. Os pensamentos crítico e criativo, focos importantes da educação musical, se constituem em uma forma de resistência, uma arma ante o exercício do controle. As ocupações criativas constituem ações de desterritorialização dos espaços escolares na medida em que passam a ganhar novas dimensões e significados. Compõem a experiência de cada encontro e desencontro, afeto e desafeto que surgem na ação coletiva. Tecendo a teia a partir do campo da educação, Rios (2001) propõe a experiência de felicidade pelo caminhar em convivência – o que, do ponto de vista ético, significa vida plena 30 em companhia dos outros – e apresenta a importância de reconhecer o outro, ser reconhecido, exercer direitos e participar da sociedade. A docência da melhor qualidade, termo utilizado por Rios (2001), diz respeito à presença da sensibilidade e sua orientação em uma perspectiva criadora, tratando dos possíveis caminhos do ensinar fundados no princípio do respeito e da solidariedade, no exercício de direitos e deveres. Tais caminhos são trilhados na convivência com os diferentes, construindo e reconstruindo conceitos, comportamentos e atitudes. Assim, trazem a criatividade e a sensibilidade interligadas com o viver, como dimensão da existência e do agir humano, permeando as relações entre professor e aluno em três dimensões que se intercruzam: a do sentir, a do saber e a do fazer, considerando sempre as esferas técnica, política, estética e moral, que se inter-relacionam. Rios (2001) não traz a definição de criatividade, educação pela sensibilidade ou do que seria uma perspectiva criadora, mas traz toda a base sobre a qual devem ser construídas as relações criativas e sensíveis, entendendo toda ação pedagógica como política, desde a articulação de compromissos e combinados de aula, ordenações e organizações cotidianas até as práticas em si. Alimenta-se da poiesis10 e caminha pela ética, tendo a felicidade como sinônimo de bem comum, de vida em sociedade, de viver plenamente o direito de acesso ao que é construído no espaço da vida coletiva e de participar dessa construção. Compondo a teia, Sawaia (2001) no campo da psicologia social, fala da paixão como caminho à compreensão, base da ética e do agir coletivamente, entendendo o corpo como biológico, emocional e social, e o afeto como potencializador das ações. Para a autora, a afetividade é incorporada de ética, felicidade e torna mais humana as relações entre as pessoas. Afeto como emoção breve e centrada em fenômenos que interrompem o fluxo normal da conduta, ou seja, o afeto que move e comove. A afetividade ou os afetos são vistos como sentimentos de prazer e desprazer, este, como sinônimo de sofrimento. A desigualdade é uma característica das relações pessoais que se instala na medida que em deixamos de reconhecer o outro. A autora também analisa diferentes modos de exclusão e suas múltiplas determinações nos processos sociais contemporâneos, refletindo criticamente sobre a exclusão social, percebendo-a como exclusão da identidade, sociabilidade, afetividade, consciência e 10 Podemos traduzir poiesis como criação, produção... Quando faz a classificação das ciências, visa referir a ciências teóricas, ciências práticas e ciências poéticas [...] as ciências práticas e poéticas visam conhecer para agir. (RIOS, 2001, p.95) 31 inconsciência. Opta pela relação entre afetividade e sofrimento – para a qual utiliza o termo ético-político - ao analisar as questões que levam à exclusão e inclusão, atentando para as formas perversas de inclusão, que geram o individualismo, uma das premissas neoliberalistas que provocam novas formas de exclusão. A exclusão é produzida nas vivências cotidianas que permitem desigualdade social, quando se negam possibilidades de apropriação da produção cultural, material e social, quando não se permite movimento no espaço público nem expressão de desejo e afeto. O corpo, segundo Sawaia (2001), se mostra imaginante e memorioso. Suas afecções têm significação e se ressignificam na interação social com outros corpos, no passado e no presente. Manifestando-se na forma de gestos, sons, imagens, ideias, deixa um fio a ser conectado com a educação musical. No âmbito da educação musical, Gainza (2002, 1988, 1987) trata a prática musical pedagógica aliada à possibilidade de desenvolvimento pessoal. Traz o conceito de mundo sonoro interno, que significa a música própria a cada um, identidade construída pela relação de absorção e conservação do material sonoro. Para a autora, a capacidade de desenvolvimento musical e pessoal se alia ao resultado das experiências advindas da percepção sensorial da audição, da associação com a visão, o tátil, o movimento e o contexto. A educação musical é compreendida como fator que pode contribuir para a humanização das relações entre os sujeitos na escola, refletindo na qualidade do processo educativo como um todo. O jogo musical, e com ele a improvisação, tendo em vista a criatividade e a assimilação de estruturas musicais, como visto por Gainza (2002, 1988, 1987), se apresenta como um facilitador do desenvolvimento da consciência auditiva sensível e criativa, cujo objetivo é a educação do ouvido, a porta de entrada que controla o que se ouve. O processo de desenvolvimento auditivo dependerá, portanto, da qualidade, da profundidade da ação, da expressão musical e da apreciação ativa da música. Fazem parte da educação do ouvido o cantar, tocar, ler, escrever e mover-se com a música. Entre os fios dessa teia que percorrem os trajetos da educação musical, Delalande (2019), por meio da pedagogia do despertar musical, pensa o gosto musical como algo que precisa ser desenvolvido, sendo papel da escola apresentá-lo e sensibilizar os alunos em três dimensões: 1. o gosto pelo som; 2. os sentidos que os sons tomam, como estados afetivos, simbólicos, imagens; 3. o arranjo e a organização, frutos da capacidade de ser sensível ao som. 32 Dialoga com as compreensões educacionais com abordagem nesta pesquisa, como a relação entre música e gesto, o jogo como ferramenta pedagógica e a compreensão de música para além do universo ocidentalizado, isto é, “as práticas extraeuropeias” (DELALANDE, 2019). Importa, para ele, propiciar experiências, e estas precedem a técnica. A experiência é compreendida como risco, pois não se conhece o seu resultado que se dá pelos significados adquiridos e vivenciados no processo. De acordo com o autor, a educação musical se refere à possibilidade de compensar as desigualdades sociais, devendo-se priorizar a aprendizagem musical como “disciplina do corpo e da sensibilidade” em vez da lógica das formalizações intelectuais da linguagem e da matemática: É preciso compensar as desigualdades sociais [...]. Você sabe que as crianças que não têm um bom domínio da língua não têm possibilidades na escola. Se os pequenos imigrantes dos subúrbios das grandes cidades, que são habilidosos com as mãos e que têm muito a expressar, se tornam líderes, tanto melhor! Deixe-os retaliar! A música pode mudar completamente o sociograma de uma classe, desde que não façamos dela uma preparação disfarçada para a matemática e para a linguagem, mas uma disciplina do corpo e da sensibilidade. (DELALANDE, 2019, p. 155) Complementando a teia musical, Brito (2019, 2009a, 2009b, 2007, 2003) considera as crianças no contexto da educação musical e nas relações estabelecidas com e a partir delas para o desenvolvimento de práticas musicais criativas e reflexivas. Entende o fazer musical nas dimensões da escuta e produção integradas, que resultam em pensamento musical. Como um jogo a disparar sensações e percepções que dimensionam expressivamente o viver, em contínuo e dinâmico movimento. Com Deleuze e Guattari (1996) e Gallo (2003), Brito fortalece o espaço do fazer musical com crianças como lugar do jogo de sensações, defendendo a ideia de que elas vivem um modo menor de fazer e significar a atividade musical, territorializando e desterritorializando, criando linhas de fuga, provocando o novo, mergulhando no caos do sensível, das conexões que afetam por sensações, conectando o sonoro e o corpo. O modo menor singulariza a relação das crianças com sons e músicas por meio de uma educação musical menor que é resistência, que milita no cotidiano da sala de aula, na construção desse espaço de convivência e transformação permanentes. A educação musical compartilha do pensamento rizomático, pautada por conexões, heterogeneidade, multiplicidade, pela ruptura assignificante, cartografia e decalcomania com a possibilidade de repetir uma experiência, mas sempre de forma diferente, rompendo a hierarquização. 33 A noção de convivência junto ao fazer musical de Koellreutter (2001) aborda o viver e conviver dando importância à formação humana, valorizando o caráter lúdico do jogo e da experiência musical. Entende a educação musical como essencial para a ampliação da consciência e para a modificação da sociedade, para questionamentos críticos do sistema, aliando-a ao desenvolvimento da criatividade. Martins e Picosque (2012) trazem o conceito de aprendizagem pela estesia como capacidade de perceber o mundo exterior por meio dos sentidos, propondo diferentes formas de organização espacial e espaços diferenciados para realização da aula, percepção e interação de corpos, encontros e desencontros, experiências no âmbito dos afetos e do imaginário. O corpo é visto como porta de entrada e fonte para o conhecimento, e a estesia como dimensão sensível do corpo, da voz - a experiência sensível do corpo. As autoras estabelecem a relação entre o mediador cultural e o professor, a importância da experiência, da reflexão e da troca com os outros como aguçadora dos sentidos. Estesia como o oposto da anestesia; o corpo como algo vibrátil e vivo na aprendizagem pelas sensações. VII. ESTRUTURA DO TRABALHO Este trabalho está dividido em: Introdução que traça o percurso como cheguei até aqui e o que me move e comove; Questões da pesquisa; Objetivos; Metodologia; Levantamento Bibliográfico e Revisão de Literatura (levantamento de artigos nos sites da Abem e Anppom); Fundamentação Teórica; Estrutura do Trabalho; Capítulos; Considerações finais; Referências, Apêndices e Anexo. A Introdução apresenta o percurso da minha formação e atuação profissional até a chegada ao mestrado. Meu caminho, vivências e experiências em música, educação musical, gestão cultural em ambientes educacionais que me moveram e comoveram, e as questões da pesquisa no contexto da educação musical no ensino da cidade de São Paulo. Apresenta, também, os objetivos e a metodologia necessária para a efetivação da pesquisa. O primeiro capítulo aborda o contexto da escola e a compreensão das trilhas e percursos da educação musical. A justificativa da ênfase na estesia e na relação com o corpo, a experiência, a ocupação criativa e o pertencimento constituem o segundo capítulo – que também discorre sobre a compreensão e a importância dos processos criativos, da experimentação e da estesia na educação musical. 34 O terceiro capítulo trata as práticas pedagógicas com relatos, caminhos didáticos e proposições, apresentando as experiências pedagógicas para dialogar com a fundamentação e os referenciais teóricos, tendo em vista os objetivos propostos. Nas considerações finais, apresenta-se a síntese dos caminhos trilhados nesta dissertação, relacionando-as com as questões da pesquisa e suas principais reflexões. Finalizando, são relacionadas as Referências. Os Apêndices de 1 a 5 trazem quadros com levantamento e resumo de artigos nos sites da Abem e Anppom. O Apêndice 6 trata de aspectos relevantes das leituras realizadas durante o processo de estudo do tema da dissertação. Ao final encontra-se Anexo com parecer consubstanciado da plataforma Brasil. 35 1. ARRANJO, CONTEXTO DA ESCOLA E DA EDUCAÇÃO MUSICAL Este capítulo foi produzido a partir das leituras e estudos realizados durante o levantamento bibliográfico e que se conectaram ao tema da pesquisa. Surgiu a necessidade de explorar alguns caminhos do panorama da educação musical escolar. Caminhos que se cruzaram, identificaram e definiram algumas das trilhas que compõem o tecido da educação musical na EMEF Jornalista Millôr Fernandes. Inicialmente, contextualizou-se a região em que a escola está inserida, no município de São Paulo, pertencendo à Diretoria Regional de Educação - Campo Limpo (DRE-CL), na zona sul da cidade, composta por cinco subdistritos: Campo Limpo, Capão Redondo, Vila Andrade, Jardim São Luiz e Jardim Ângela, regiões extremamente carentes da cidade de São Paulo, conforme indicadores de vulnerabilidade11. (SPOSATI, 2013). A escola tem uma história recente. Inaugurada em 2009, a princípio recebeu alunos das escolas do entorno, com vivências e hábitos diversos, que não demonstravam ter construído vínculo pessoal e afetivo com o espaço físico ou com os envolvidos nesses espaços de origem (docentes, alunos, funcionários e equipe gestora). Tanto a convivência, extremamente conflituosa, quanto os indicadores dos níveis de aprendizagem, diagnósticos de dificuldades e defasagens davam indicações do trabalho a ser feito, e da identidade a ser buscada pela escola. Nesse contexto, no que se refere à convivência, a escola passou a focar ações cidadãs, resgate de valores, desenvolvimento da autoestima, conscientização de direitos e deveres, preservação do meio ambiente local, como forma de conservação do patrimônio público, ações respaldadas em princípios como respeito, igualdade e solidariedade, buscando estreitar as relações entre família, escola e comunidade. Neste quadro apresentado desde a inauguração da escola, muitos dos alunos em situação de violência e vulnerabilidade extrema começaram a fazer, de cada momento vivenciado, um espaço novo para adaptação ao meio, construção da identidade e do pertencimento. Muitos alunos, professores e membros das equipes que compõe a gestão saíram, novos chegaram. 11 Indicadores desenvolvidos junto à DRE/CL. Disponível em: https://ceapg.fgv.br/sites/ceapg.fgv.br/files/u60/relatorio_-_mapa_da_exclusao_social_-_sposati.pdf. Acesso em: 4 mai. 2020. 36 A escola possui em suas instalações, conforme o Censo Escolar de 201912, 15 salas de aula; sala de professores; laboratório de informática; laboratório de ciências; quadra de esportes coberta; quadra de esportes descoberta; cozinha; sala de leitura; parque infantil; refeitório; pátio coberto; brinquedoteca; sala de vídeo; pátio descoberto. Repara-se que na lista acima ainda não consta a sala de arte. Nos registros da escola, encontra-se uma sala específica para as aulas de Artes, desfeita no decorrer dos anos pelo não uso. Em 2019, a partir do trabalho de educação musical proposto desde o início de 2018, foi disponibilizado um novo espaço para os trabalhos da disciplina de Arte, com a transformação e adaptação de uma sala de aula. Assim, a disciplina de Arte conquistou um espaço próprio para o desenvolvimento e a sequência das aulas em meados do segundo semestre de 2019. Surgiu como resultado do reconhecimento, pela gestão e equipe escolar, do trabalho desenvolvido, das intervenções e ocupações realizadas em todo o espaço escolar. Sem espaço específico para a aula de Arte, um dos motes para a realização das aulas foi buscar saídas e alternativas, já que, em todas as salas e turmas, nós éramos “visita”, certamente com direito de estar ali, mas a situação colocada era a de um professor convidado a um espaço e organização que não foram escolhas suas. Chegou- se a ouvir “nossa você muda o propósito da sala”, “a sala não fica igual, não é mais a mesma”, incômodos devido ao transformar e dar novas funcionalidades aos espaços, às mobílias, som e movimento, novos usos e permissões. A pesquisa feita no Censo Escolar de 2019, para atualização e entendimento do perfil da comunidade escolar, constatou que pelo menos 25% dos alunos matriculados são beneficiados por Programas Sociais, como Bolsa Família, Renda Mínima, entre outros. Em geral, as EMEFs oferecem aulas para o Ensino Fundamental II no período matutino e o Ensino Fundamental I no período vespertino. A EMEF Jornalista Millôr Fernandes faz oferta no contraturno das escolas da região: no período da manhã, atende à boa parte do ensino fundamental I, com 14 salas distribuídas de 1º a 4º ano; no período da tarde, atende às classes do 5º ao 9º ano, sendo o 5º ano o término do ensino fundamental I e o ensino fundamental II completo. Geograficamente, a escola está localizada em uma rua com características de bairros periféricos. Não tendo sido planejada, quando as peruas escolares chegam, nos horários de 12 Fonte: Censo 2019. Disponível em: https://www.escol.as/215237-millor-fernandes-jornalista. Acesso em: 20 abr. 2020. 37 entrada e saída dos alunos, trava-se nela uma batalha pelo direito de ir e vir. O comércio local se restringe a um mercadinho; um pouco mais distante, encontram-se bares que servem refeições. Não existem farmácias, bancos, padarias ou supermercados no entorno. Há outra EMEF na mesma rua e uma Unidade Básica de Saúde (UBS), separadas da escola por uma praça e um campo comunitário de futebol. Até aqui foram tratados alguns aspectos da identidade da escola, sua comunidade e seu público. A seguir, serão vistos aspectos da educação musical escolar, barreiras e caminhos, arranjos13 realizados com a composição acontecendo em andamentos contrastantes. A chegada de um professor de música para ocupar a cadeira vaga de uma professora de Arte, em um ambiente de ensino fundamental I, em que – com exceção de um professor de educação física e um secretário escolar – toda a equipe de apoio, gestão e professoras são mulheres, causou impacto. Houve uma defasagem entre a expectativa de que tipo de trabalho seria implementado na disciplina, o qual foi diversas vezes cobrado para decorar festas e espaços. Também houve questionamentos sobre o repertório didático que envolve diretamente o campo das artes visuais, como reflexo de uma cultura voltada a um contexto onde até a formação acadêmica ainda privilegia as artes visuais. Infelizmente, vivemos um contexto onde a educação musical em escolas públicas é de fato escassa no Brasil, salvo em poucas regiões e cidades que valorizam esta modalidade de ensino. Mas, enquanto política pública e efetiva, no Brasil ainda não se faz presente, pois o ensino de música na educação básica é considerado uma das linguagens da Arte. Na cidade de São Paulo a licenciatura em música é aceita para regência da disciplina de Arte, para a qual o professor deve desenvolver as linguagens que compõem o campo da Arte (artes visuais, dança, teatro e música). Nesse cenário, como constata Brito (2019, p. 50): [...] é grande o número de educadores e educadoras musicais que atuaram e atuam em nosso país ao longo dos séculos XX e XXI que, de modos diversos, contribuíram e/ou contribuem com o fortalecimento do pensamento pedagógico-musical [...]. No entanto, lamentavelmente, a presença de música como disciplina nos planos oficiais de Educação ainda é um desejo considerando a real situação, especialmente se tratando de escolas públicas brasileiras. 13 São adaptações de uma composição ou partes de uma composição a instrumentos para os quais não foi originalmente projetada ou para algum outro uso para o qual não foi inicialmente escrita. Uma adaptação de uma dada composição para uma forma diferente da originalmente composta. (tradução nossa). Disponível em: https://musicterms.artopium.com/a/Arrangement.htm. Acesso em: 3 jul. 2020. 38 A cultura escolar ainda sofre efeitos da instituição da educação artística como aglutinadora das linguagens artísticas, para a qual a formação de professores privilegiou o campo das artes visuais, fato culturalmente ainda hoje não superado nem equilibrado. Das idas e vindas da educação musical, ressalta-se o focar em processos criativos, vivências, experiências e estesia, as quais passam a dialogar com os métodos tradicionais, desde que devidamente contextualizados: O trabalho com o corpo, o uso da voz, a criação musical, a experiência musical a partir de diferentes vivências, são todos elementos trazidos por eminentes educadores que conceberam a educação musical para todos. Tais elementos são perfeitamente aplicáveis nos dias de hoje, desde que devidamente contextualizados para que continuem cumprindo um papel metodológico relevante na formação musical das futuras gerações. (FIGUEIREDO, 2012 p. 87) Neste contexto, os métodos tradicionais podem ser ainda considerados em face de trabalhos com música na educação básica. Constituem referências que podem contribuir com a elaboração de propostas adequadas para o momento atual da educação musical: Levando em conta os aspectos positivos da utilização de métodos já consagrados pela história da educação musical mundial, é possível ainda propor algumas reflexões. Os métodos não podem ser considerados como “receitas prontas” para serem aplicadas em qualquer contexto educativo musical, sem a devida análise de sua função no processo de formação musical dos indivíduos. (FIGUEIREDO, 2012 p. 87) Como exemplo, destaca-se a questão da consciência corporal no processo ensino- aprendizagem musical baseada em Dalcroze (1921), na primeira metade do século XX, que consiste na compreensão de como o corpo sente e traduz a música: [...] para executar corporalmente e com precisão um ritmo, não basta sabê-lo intelectualmente nem sequer possuir um aparato muscular capaz; há que se saber estabelecer comunicações rápidas entre o cérebro que comanda e o corpo que executa. (DALCROZE, 1921, p. 50) Assim, sentir com o corpo é saber com o corpo, aspecto da educação musical ainda amplamente debatido, que corrobora a ideia de estesia e traz a noção de que o sentir é anterior ao pensar e compreende aspectos perceptivos e emocionais, isto é, o experienciar em música antecede o compreender. Também a expressão e o gesto precedem a escrita musical. (ZAGONEL, 2011). Conforme Mársico (1989, p. 2): A experiência musical necessita estar ligada ao corpo – primeiro instrumento musical da criança – já que esta tem mais facilidade para expressar por meio dele o que percebe e sente. A associação dos sons ao movimento corporal ajuda a multiplicar as sensações e a ligar o fato sonoro à totalidade da pessoa. Também 39 certas noções são antes adquiridas pela ação, e especialmente pela ação corporal, do que pelo intelecto. A criança assimila, através de seu corpo, os conceitos de espaço e tempo que incorpora porque os vivenciou. Concretiza suas percepções sob a forma de gestos, traduzindo desse modo os sons e os ritmos corporalmente, o que não só aguça sua audição, como contribui para sua evolução geral. A relação gestual com o som e com a música significada pela experiência, pode gerar, segundo Delalande (2019), uma dimensão simbólica das formas de representação das estruturas musicais e possibilidades de expressão: A música incita movimentos de forma muito espontânea. Propor situações pedagógicas que liguem o gesto à música, gestos com as mãos, movimentos de todo o corpo e até as expressões faciais, todo o conjunto representa uma partitura viva. Para que uma criança escute a música sem se mover, é necessário amarrá-los física ou moralmente pela disciplina, e como resultado temos a perda do interesse. (DELALANDE, 2019, p. 56-57) É importante compreender o papel da educação musical escolar, o contexto e as relações que estabelece no ambiente de ensino fundamental I, que foca no processo de alfabetização. Esse processo trabalha com as hipóteses de escrita, desenvolve o desejo de comunicação, de compreensão e capacidade de análise das crianças. Na educação musical, parte-se de experiências que envolvam sensações, representações simbólicas, espaciais, uso de grafismos para representar sons ou gestos musicais. Ao criar, desenvolver e inventar códigos próprios, tais experiências enriquecem o trabalho pedagógico e: [...] permitem afirmar que as atividades lúdicas envolvendo música de fato proporcionam à criança um ambiente escolar mais abrangente, no qual não apenas o ler, escrever e contar tenham espaço, mas outros elementos importantes, tais como: a interação com o outro, consigo mesmo, capacidade de criar, experimentar, valorização da auto-estima [sic]. Nesse sentido, a música, além de proporcionar alegria ao ambiente escolar, é capaz de estimular a comunicação, a concentração, a capacidade de trabalhar e se relacionar melhor em grupo, sensibilidade estética e artística, imaginação.(TARGAS e JOLY, 2004, p. 2) Targas e Joly (2004) falam sobre a importância do processo de musicalização e do fazer musical no espaço escolar, compreendendo a musicalização como linguagem que intenciona a expressão de sensações, e/ou sentimentos, em formas sonoras. Estas se vinculam ao tempo e ao espaço. Habitam, então, o tempo e o espaço escolar, podendo ser socialmente construídas e compartilhadas, estudadas e compreendidas. O fazer musical é entendido como manipulação de elementos da música, duração, ritmo, intensidade e timbre, escuta atenta, ativa e crítica, execução e criação em processos que sejam significativos para os alunos, e tem como base referenciais formados a partir das experiências em educação musical. 40 Não é a intenção desta pesquisa realizar um levantamento histórico acerca da educação musical, mas adentrar no século XXI, quando os processos criativos têm destaque na abordagem de alguns autores e as experiências e vivências também abarcam a criatividade, cujo processo de desenvolvimento combina aprendizagem, pensamento, descoberta, escuta e produção. Brito (2009a), baseada em Koellreutter, entende o espaço educacional como um dos agenciadores dos processos de interação com sons e músicas, conforme a noção de convivência pelo fazer musical. Ela pensa a relação das crianças com o fazer musical visando ao desenvolvimento de práticas musicais criativas e reflexivas, nas dimensões de escuta e produção, como jogo que dispara sensações e percepções, sempre em movimento. Koellreutter entendia que os ambientes de educação musical deveriam priorizar o fluxo da criação, da pesquisa e da crítica, ressaltando a necessidade de uma sólida fundamentação filosófica e metodológica dos projetos pedagógicos. Ao mesmo tempo, ele apontava a necessária superação de métodos fechados, sequenciais e lineares nos planos da educação (e isso desde muito tempo, vale lembrar, o que textos produzidos na década de 1950 já confirmam), com vias a oportunizar a fundação de espaços abertos ao emergir dos “acontecimentos que se instauram nos ambientes em que o percurso se constrói ao caminhar” (BRITO, 2009b, p. 3) O ensino da música é visto por Brito (2019) enquanto um contínuo processo de musicalização, em que as relações entre o desenvolvimento da percepção auditiva por meio de criação e improvisação, a apreensão e expressão do fato sonoro mediante voz, ritmo, corpo, e a representação do universo simbólico musical com a leitura e escrita, registro e interpretação, estão sempre em movimento. Com propostas que [...] valorizam o fluxo do pensamento musical, envolvendo escuta, criação, produção, repetição e reflexão em planos que reorganizam continuamente as ideias de música [...] podem abarcar, também, aspectos relacionados ao desenvolvimento humano, já que ideias de música emergem, se estabelecem e se transformam continuamente, em diferentes escalas de tempo. Para cada pessoa, para um grupo, para um período histórico. (BRITO, 2019, p. 22) Delalande (2019) escreve em relação à leitura e à escrita musical, que o objeto e o símbolo só passam a ter valor à medida que representem a experiência. Dessa forma, o registro musical escrito sobre uma sequência inventada ou descoberta pode apresentar um resultado pronto ou apenas o caminho operacionalizado, perceptivo, incitante ou todos combinados. De qualquer forma, agregam substancialmente a experiência. González, Furnó, Lanfranchi e Quadranti (1980) apontam para o papel da educação musical na escola, que esse se fundamenta na educação integral da criança e na proposição de 41 vivências musicais que permitam o desenvolvimento e interesse pelo fenômeno sonoro, ter uma escuta atenta, consciente e crítica, levando a criança a aprender a canalizar sua capacidade criadora, a se expressar vocal e corporalmente e se comunicar socialmente. Isso implica a melhora da percepção auditiva considerando, como sugere Gainza (2002), que o ouvido é a porta de entrada do som – daí partindo o desenvolvimento da memória auditiva, dos sentidos rítmico, melódico, harmônico, e do uso correto da voz. Elencando as trilhas que compõem a educação musical na EMEF Jornalista Millôr Fernandes, – são princípios norteadores os processos criativos, vivências, experiências e a estesia. A aprendizagem sensorial precede a escrita, o fazer precede o refletir criticamente, mas só fazem sentido se for ao encontro de um e de outro, se realimentando. Entre os elementos que navegam por essas trilhas, costurando novos caminhos a cada encontro, tem-se o corpo, a voz, o ouvido, a memória, os sons, a materialidade, a arquitetura e a disponibilidade de cada um a pertencer, viver cada momento e afetar-se: Vivenciar e compartilhar experiências musicais implica em escutar, em pesquisar e produzir, criando, recriando, repetindo (diferente), analisando [...]. Proponho pensar no acontecimento musical em sua condição de “bloco de sensações” que permite ir e vir, criar, construir e desconstruir, brincar com o tempo e o espaço, pensar, conversar, sentir! (BRITO, 2019, p. 26) Uma ferramenta que permeia todas as aproximações se encontra no jogo que é o próprio fazer musical, em suas tantas possibilidades, com seus diversos graus de complexidade. E não é preciso, tampouco adequado, afastarmo-nos da experiência sonoro-musical para ensiná-la, pois mergulhando no sonoro e musical conscientizamos e transformamos (qualitativamente) tais experiências. (BRITO, 2019, p. 39) O jogo como fundador de territórios de práticas criativas, de pesquisas e explorações sonoras diversas compõem-se de: [...] efetivas trocas entre alunos e alunas, educadores e educadoras, escutando e respeitando a diversidade de ideias de música, seja no que se referem ao que dizem, ao que propõem, quanto ao que se refere ao que fazem, ou seja, às produções sonoro- musicais. (BRITO, 2019, p. 171) Na EMEF Millôr Fernandes as regras são construídas coletivamente. Em geral chega- se a uma regra que exige atenção, “a do não tem certo e errado, o que precisa é participar”. Quando este comando é o que importa, coloca-se em primeiro plano o respeito às diferenças, o perceber a si e ao outro na convivência. Surge toda a riqueza das ponderações dos alunos e 42 histórias, que envolvem relatos dos amigos e até dos familiares, sempre mediados com o objetivo de cada um se reconhecer e perceber o outro, em cada situação. A partir desse momento, o grupo media, negocia e propõe caminhos. É interessante observar a importância do reconhecimento pela participação, que precisa e deve ser estimulado positivamente. O certo e o errado excluem, bloqueiam a criatividade nos processos de criação, nos jogos que envolvem esses processos. Os alunos, cada um à sua maneira, já trazem ao grupo receios e vergonhas, que não devem ser reforçados, mas sim percebidos e respeitados. De acordo com Delalande (2019, p. 27), o certo e o errado comportam adestramento e exclusão: [...] é possível deixar as crianças criarem a própria música se não nos importarmos em julgar se elas estão certas ou erradas. Podemos inventar todas as estratégias pedagógicas para impor normas sem adotar um aspecto normativo; o fato é que essa noção do correto e do incorreto obstrui a Educação Musical clássica. Em função dos fatores que envolvem afeto nas relações de aprendizagem musical, o autor reflete que, sem motivação, não há escuta. “E qual é a música que uma criança de seis anos pode ter boas razões para escutar? A dela? A que está fazendo ou acabou de fazer.” (DELALANDE, 2019, p. 126) Sekeff (2001) aborda a dimensão educacional da música com fundamentação teórica sustentada em Koellreutter e Schafer, na convivência, na escuta e exploração de possibilidades sonoras. Processos estes que favorecem o desenvolvimento da aptidão emocional do educando, desde que a atividade esteja ligada à afetividade, lida com emoções e ensina a ser crítico. Educar com música move o aluno [...] à projeção de sentimentos, auxiliando-o no desenvolvimento e equilíbrio de sua vida afetiva, intelectual e social, e contribuindo para a sua condição de ser pensante [...]. Isso porque música não é só pensamento e emoção, mas também atividade, conhecimento, prazer, processo que se completa em nós na escuta, mobilizando-nos de forma única, singular, integrando sentidos, razão, sentimento e imaginação. (SEKEFF, 2001. p. 2) Imensas cadeias de afetos, nas relações entre motivações, criações e seus desdobramentos possibilitam a apreciação musical estabelecendo novas dimensões, realimentando aquilo que afeta. A partir da criação acontecem desdobramentos importantes, que refletem e são refletidos pela produção no e do jogo musical. Identidade e pertencimento, desenvolvimento de protagonismos e do senso crítico. Tornando-se uma imensa cadeia de afetos e motivações. A música se mantém um pouco à parte dos demais sistemas de ensino, posto que, por natureza ela é um jogo [...]. Através do jogo, as fontes sonoras são exploradas, o real é imitado, os sons são organizados. A criação nasce do jogo. E essa atividade de 43 produção determina, por sua vez, uma curiosidade em escutar peças de referência: um fio puxa o outro! Parece-me que uma progressão pedagógica ideal deve estar ligada a essa cadeia de motivações. (DELALANDE, 2019, p. 128) Na aula de música da EMEF Jornalista Millôr Fernandes proporciona-se um momento de reflexão do jogo, que acontece muitas vezes na conversa em roda a partir da proposição “Eu critico, Eu elogio ou Eu sugiro”. Tal hábito que insere no contexto da aula a oportunidade de perceber-se no processo criativo de forma a trabalhar o senso crítico, possibilitando o compartilhar, comparar e criticar pelo próprio grupo. Trata-se de características de trabalhar no coletivo: se escutar, fazer junto e em função do outro. Assim, a análise e a apreciação constituem exercícios de cidadania. Para Delalande (2019) a imitação, no jogo, muitas vezes possibilita a percepção das diferenças. O fazer musical, como observado por Brito (2019), inclui distintos modos de fazer e pensar música: escutando, criando, repetindo (diferente), registrando e refletindo. Depois dessa apresentação dos elementos que atravessam a educação musical escolar, e da breve contextualização da compreensão de educação musical na EMEF Jornalista Millôr Fernandes, a música será pausada, mas não significando silêncio, e sim oportunidade a novas vozes para dar densidade14 ao arranjo. 14 Densidade refere-se ao número de elementos musicais que existem dentro de um determinado segmento da música. Um segmento pode ser denso de várias maneiras: - Ritmicamente denso: quando um ponto no tempo carrega vários ataques de sons simultaneamente. - Melodicamente denso: um segmento que contém várias melodias que ocorrem simultaneamente. - Texturalmente denso: um segmento que combina muitas vozes musicais variadas, fontes sonoras distintas em várias notas diferentes, de maneira que a música não seja facilmente simplificada em um pequeno conjunto de grupos. (tradução nossa). Disponível em: https://rhythmcoglab.coursepress.yale.edu/wiki/glossary/density/. Acesso em: 2 jul. 2020. 44 2. PROFUSÃO DE MOTIVOS OU PROCESSOS CRIATIVOS, EXPERIMENTAÇÃO E ESTESIA EM EDUCAÇÃO MUSICAL Este capítulo surge da necessidade de tratar muitos dos termos utilizados nesta dissertação que formam a base e justificam os caminhos nela traçados. Fez-se uma analogia musical em que cada termo representa um motivo com o receio de que, como em uma composição musical com muitos motivos15, o público não fixe nenhum, uma chance grande. O que pode resolver tal situação está na forma como o compositor ou arranjador trabalha o desenvolvimento, a variação e exploração de cada ideia musical, suas possíveis conexões e interconexões. Ou seja, a variedade de motivos ou ideias pode formar uma grande colcha de retalhos, que se tentará costurar cuidadosamente neste capítulo. Vivência e Experiência Os primeiros termos a serem destacados em seus significados e diferenças são a experiência e a vivência, presentes na questão desta pesquisa. Muitas vezes utilizados como sinônimos, aqui serão compreendidos como complementares. Iniciando a trilha que vai expor a compreensão de vivência e experiência, seus encontros e particularidades, tem-se o “compartilhamento de experiências vividas”, termo utilizado por Brito (2019) como importante para a educação musical. “Vividas” significam o momento da vivência que ocupa um tempo e um espaço de uma ação realizada por um grupo; as experiências referem-se ao que cada pessoa sentiu, entendeu e compreendeu. A autora entende a vivência como aquilo que se vive, e a experiência como a vivência significada no aspecto sensível daquele que vivenciou, das relações e compreensões estabelecidas a partir daí. Dewey (2010) também utiliza o termo experiência vivida, podendo ser singular ou incipiente: A experiência ocorre continuamente, porque a interação do ser vivo com as condições ambientais está envolvida no próprio processo de viver. Nas situações de resistência e conflito, os aspectos e elementos do eu e do mundo implicados nessa interação modificam a experiência com emoções e ideias, de modo que emerge a intenção 15 Motivo é uma pequena ideia musical, seja ela melódica, harmônica, rítmica ou todas as três. Um motivo pode ser de qualquer tamanho, embora seja mais comumente identificado como a menor subdivisão de um tema ou frase que ainda mantém sua identidade como uma ideia. É mais frequentemente imaginado em termos melódicos e é esse aspecto do motivo que é correlacionado com o termo figura. (NATTIEZ, 1990, p. 157, tradução nossa). https://pt.wikipedia.org/wiki/Frase_(m%C3%BAsica) 45 consciente. Muitas vezes, porém, a experiência vivida é incipiente. As coisas são experimentadas, mas não de modo a se comporem em uma experiência singular [...] temos uma experiência singular quando o material vivenciado faz o percurso até sua consecução. (DEWEY, 2010, p. 109) Aqui interessa separar a experiência incipiente e a interação do ser vivo com o ambiente, como elementos constituintes do processo de viver e caracterizá-los como vivência, separando- a da experiência, que se mostra singular e estética. Dessa forma, o trajeto ou percurso trata a vivência como um meio para desenvolver experiências. Envolve prazer e dor, afetos e desafetos, imbricando-se, no cenário, emoções e percepções, como qualidades que conferem sentido à experiência, que é complexa, se movimenta e se transforma: Uma experiência tem padrão e estrutura porque não apenas é uma alternância do fazer e do ficar sujeito a algo, mas também porque consiste nas duas coisas relacionadas [...]. A ação e sua consequência devem estar unidas na percepção. Essa relação é o que confere significado; apreendê-lo é o objetivo de toda compreensão. O âmbito e o conteúdo das relações medem o conteúdo significativo de uma experiência. (DEWEY, 2010, p. 122) LARROSA (2004, p. 163) adiciona também esse componente à experiência: [...] sua capacidade de formação ou de transformação. É experiência aquilo que nos passa, ou nos toca, ou nos acontece, e ao nos passar nos forma e nos transforma. Somente o sujeito da experiência está, portanto, aberto a sua própria transformação. Junto a transformação, existe a abertura, permitindo o movimento na complexidade da experiência. Gagnebin (1987) fala sobre a importância da abertura, que permite caminhar para além do momento vivido, ou seja, a experiência precisa ser algo comum, e este comum se presentifica no processo e nas trocas que acontecem na vivência. Podemos considerar a vivência a leitura, a escuta, o tocar ou cantar, expressar e interpretar em processos que envolvam o prazer pelo fazer e que possibilitem compreensões diferentes, abertos à profusão de sentidos e percepções, dando corpo à experiência. No prefácio à obra de Benjamin, Gagnebin (1987) demonstra que o vivido é característica do indivíduo solitário, algo da esfera individual. A experiência se dá no coletivo, na relação com o outro, na narrativa e suas sensações. Ela transita e passa a ter valor quando envolvida em uma relação de afetos embutida nos processos de reflexão-ação ou ação-reflexão. Esse modo de experiência relaciona-se com a comunicação das vivências, momento que se repete nas aulas de Arte da EMEF Jornalista Millôr Fernandes, nas quais se compartilham sensações e compreensões que contribuem no processo de constituição da experiência. 46 Também é possível distinguir, quando relacionadas ao tempo, a vivência ou experiência vivida da experiência: a primeira se prende ao momento; a segunda se faz na ligação com o passado, trazendo sua história e significados, como na fábula do velho vinhateiro, que exibe uma [...] parábola de um velho que no momento da morte revela a seus filhos a existência de um tesouro enterrado em seus vinhedos. Os filhos cavam, mas não descobrem qualquer vestígio do tesouro. Com a chegada do outono, as vinhas produzem mais que qualquer outra na região. Só então compreenderam que o pai lhes havia transmitido uma certa experiência: a felicidade não está no ouro, mas no trabalho. (BENJAMIN, 1987, p. 114) Larrosa (2004) colabora com esta compreensão de vivência e experiência com a questão temporal. Relaciona a vivência ao que acontece de forma rápida e instantânea. E a experiência como algo que se experimenta, se prova, se relaciona com a memória. Nas experiências, provam-se travessias e perigos que acarretam transformações: [...] é a passagem da existência, a passagem de um ser que não tem essência ou razão ou fundamento, mas que simplesmente existe de uma forma sempre singular, finita, imanente, contingente. Em alemão, experiência é Erfahrung, que contém o fahren de viajar. E do antigo alto-alemão fara também deriva Gefahr, perigo, e gefahrden, pôr em perigo. Tanto nas línguas germânicas como nas latinas, a palavra experiência contém inseparavelmente a dimensão de travessia e perigo. (LARROSA, 2004, p. 162) Presencia-se hoje, no âmbito da vivência, uma aceleração de opiniões, informações de fatos e acontecimentos imediatos, um após o outro. Tudo atravessa as pessoas, mas pouco ou nada fica. Como observa Larrosa (2004), “[...] a falta de silêncio e de memória são inimigas mortais da experiência [...]”. Assim, a proposta de vivências e experiências sugeridas nesta pesquisa faz uma provocação à individualização presente nas sociedades, escolas e comunidades, uma das características da sociedade burguesa moderna refletida por Benjamin (1987). Ou seja, para alcançar a experiência, precisa-se criar o espaço e o tempo para que [...] algo nos passe ou nos aconteça, ou nos toque, requer um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar os outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (LARROSA, 2004, p. 160) Na escola, a vivência é ponto de encontro, partida, chegada e transformação de compreensões e emoções em experiência, presentes nas relações ensino-aprendizagem, significando a incorporação da vivência transformada, ressignificada em algo que tocou. 47 Incorporar como passar pelo corpo, sentir, e a partir deste, ocupar, fazer, expressar, produzir e refletir, elementos que constituem a experiência e se comunicam nesta pesquisa. O jogo e o brincar musical representam o ponto de partida da vivência à experiência, pois carregam em si possibilidades de experiências estéticas, vivas e criativas, sempre em movimento no espaço escolar, mote desta pesquisa. Conforme Brito (2003, p. 2): O brincar musical da criança, sua forma de experienciar, de desenvolver recursos e de construir conhecimento nessa área, encaminha as experiências para níveis mais elaborados, num processo que se enriquece e assume maior significado quando o verdadeiro e efetivo fazer musical infantil está no espaço escolar. (informação verbal)16 As vivências e atividades propostas nas aulas da EMEF Jornalista Millôr Fernandes, partem, muitas vezes, de jogos e brincadeiras nos quais o afeto é um elemento de ligação na teia que possibilita conexões, e desenvolvimentos, propiciando fluidez às experiências. Apenas a experiência é passível de ser transmitida, o vivido é finito, como em um território de passagem. No jogo musical, por exemplo, iniciado com a experimentação de um instrumento musical de outra cultura, do qual não havia ainda referência para o grupo de alunos. O que acontece a partir daí? Têm-se experimentações sonoras, texturas, cores, e todo processo de organização da vivência. Contextualização e produção que, construídas coletivamente, se expressam e se compartilham. De tudo isso, o que fica? O sentido originado da experiência, da compreensão, das percepções, das trocas, do prazer por fazer, que produz afetos e deixa marcas. Marcas possíveis desde o apreciar uma orquestra, tocando com toda a representação cultural que carrega ou uma manifestação cultural indígena, na qual a música também tem seu papel no rito e sua importância. A partir de agora, alguns termos assumirão papeis cumulativos, como em um adensamento musical onde os timbres17 vão se somando, dando corpo e sentido. Como no Bolero18, de Maurice Ravel (1875–1937), no qual duas melodias são sucessivamente apresentadas, cada vez em um instrumento solista, até combinar instrumentos de diferentes 16 Palestra proferida no 6º Encontro da Canção Latino-Americana. Disponível em: https://pt.slideshare.net/joaomaria/educao-musical-territrio-para-a-produo-musical-infantil-por-teca-alencar-de- brito. Acesso em: 14 out. 2019. 17 Timbre. É a característica do som que distingue uma voz ou um instrumento do outro. Resulta da intensidade e da qualidade dos harmônicos que acompanham o som fundamental. Os fatores responsáveis pelo timbre característico de um instrumento são o material de que é feito o instrumento, o modo como os sons são produzidos e como ressoam. (MED, 1996, p. 95) 18 Obra do composit