FLÁVIO RIBEIRO DE OLIVEIRA CARTOGRAFIA DO ACOLHIMENTO DE IDOSOS E IDOSAS EM UMA UNIDADE BÁSICA DE SAÚDE ASSIS 2020 FLÁVIO RIBEIRO DE OLIVEIRA CARTOGRAFIA DO ACOLHIMENTO DE IDOSOS E IDOSAS EM UMA UNIDADE BÁSICA DE SAÚDE Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP) “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências e Letras, Assis, para a obtenção do título de Mestre em Psicologia (Área de Conhecimento: Psicologia e Sociedade). Orientadora: Mariele Rodrigues Correa ASSIS 2020 AGRADECIMENTOS Ao Senhor Jesus, meu Supremo Pastor, que conduziu a minha vida durante todo o período em que tive o privilégio de estudar em uma universidade pública de qualidade e me ampara espiritualmente nos momentos mais difíceis. À minha família, que me possibilitou estar nos lugares de pesquisa contribuindo com incentivo e alegria. À minha esposa Kedma que neste momento passa por um tratamento de câncer de mama e me ensinou o valor de cada minuto da vida. À Ana Carolina e à Ana Clara, filhas maravilhosas que compreenderam esse momento. Aos meus familiares, em especial à D. Genny, minha mãe, que sempre esteve disponível à oração, a fim de que eu chegasse ao final deste percurso, à minha sogra, D. Henriqueta, que foi um dos motivos pelo interesse no tema da pesquisa. À minha orientadora, Prof.ª Dra. Mariele Rodrigues Correa, que abriu imensas possibilidades, com questionamentos feitos de forma tão afetuosa e potente. Agradeço imensamente pela oportunidade de caminhar com uma pessoa com tanta força e ao mesmo tempo tanta sensibilidade. Ao Prof. Dr. Silvio Yasui, pela imensa e valiosa contribuição na qualificação, sendo para mim uma grande inspiração e à Prof.ª Dra. Camila Cuencas Funari Mendes e Silva pela sua colaboração na qualificação. À Segunda Igreja Presbiteriana Independente de Assis, na pessoa do Conselho presidido pelo Rev. Rodney José Paolillo e composto pelos seguintes irmãos e irmã: Presbítera Doralice Ribeiro Cimoneti, Presbítero Robert Rieger e Presbítero Sigmar Alves Barbosa. Obrigado pelo incentivo e compreensão neste tempo de estudo. OLIVEIRA, Flávio Ribeiro. Cartografia do acolhimento de idosos e idosas em uma Unidade Básica de Saúde. 98f. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Psicologia). – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2020. RESUMO O envelhecimento populacional é uma realidade cada vez mais presente na sociedade brasileira. Uma parte significativa desta população procura por atendimento no serviço público de saúde, de maneira mais específica, nas Unidades Básicas de Saúde. Essa pesquisa tem como objetivo mapear o acolhimento que a pessoa idosa recebe desde o momento de sua chegada ao serviço de saúde até a sua dispensa em uma Unidade Básica de Saúde localizada na periferia da cidade de Assis-SP. Os idosos e idosas que buscam o serviço público de saúde são aqueles e aquelas que não têm renda suficiente para arcar com os custos de um plano de saúde particular, cujos valores são elevadíssimos e conforme se avança na idade, mais caro o plano se torna. Para compreender como os idosos e idosas são acolhidos e acolhidas foram realizadas entrevistas com cinco pessoas idosas com idade entre 65 e 71 anos, de forma que pudessem expressar tanto a sua experiência de vida quanto seu contato na Unidade Básica de Saúde. Além disso, foram feitas inserções diárias na Unidade Básica de Saúde pelo período de três meses, a fim de compreender o funcionamento da mesma e, ao mesmo tempo, entrevistar os idosos e idosas que aguardavam seus atendimentos. O referencial metodológico adotado foi a cartografia, com o intuito de mapear o acolhimento que os idosos e idosas recebiam e também como percebiam este acolhimento. Foi possível constatar que muitas histórias relatavam as demandas relativas à saúde própria da pessoa idosa e como este tema é sensível, principalmente porque recai sobre as transformações pelas quais o corpo passa. Nota-se que a população situada acima dos sessenta anos tem aumentado, por um lado, por aspectos preventivos da medicina em relação à saúde dos idosos e das idosas, embora esse não seja o único motivo. Há outros aspectos que envolvem o envelhecimento, inclusive pela maneira como cada pessoa tem a possibilidade de envelhecer. Ao cartografar cada encontro com os idosos e idosas, observou-se o quanto o papel do acolhimento é significativo para a pessoa idosa que encontra na Unidade Básica de Saúde um local que possibilite a sua fala, não somente da dor no seu aspecto físico, mas de outras dores, como a do isolamento familiar e social, pelo fato de que o círculo de amizades já não está mais presente. A possibilidade de escutar o idoso ou a idosa ao longo da realização da pesquisa contribuiu para validar as histórias e dores de cada um e, com isso, viabilizar passagem para sua voz e reconhecer o lugar que ocupam na sociedade como cidadãs e cidadãos de direitos. Nesse sentido, o acolhimento aos idosos e idosas revela-se um instrumento de valorização da vida, da dignidade e da ética. Palavras-Chave: Acolhimento. Envelhecimento. Envelhecimento populacional. Unidade Básica de Saúde. Sistema Único de Saúde. OLIVEIRA, Flávio Ribeiro. Cartography of the reception of elderly men and women in a Basic Health Unit. 2020. 98f. Dissertation (Masters in Psychology). São Paulo State University (UNESP), School of Sciences, Humanities and Languages, Assis, 2020. ABSTRACT Population aging is an increasingly present reality in Brazilian society. A significant part of this population seeks assistance in the public health service, more specifically, in Basic Health Units. This research aims to map the reception that the elderly person receives, from the moment they arrive at the health service until their discharge in a Basic Health Unit located on the outskirts of the city of Assis-SP. The elderly people who look up for the public health service are those who do not have enough income to cover the costs of a private health plan whose values get higher and as one gets older, the plan becomes more expensive. To understand how the elders are welcomed, interviews were carried out with five elderly people aged between 65 and 71 years, so that they could express both their life experience and their contact in the Basic Health Unit. In addition, daily insertions were made in the Basic Health Unit for a period of three months, in order to understand how it works and at the same time interviewing the elderly men and women who waited for their assistance. The methodological referential adopted was cartography, in order to map the reception that the elderly people received and also how they perceived this reception. It was possible to verify that many stories reported the demands related to the health of the elderly people and how sensitive the topic is, mainly because it falls on the transformations that the body goes through. It is noted that the population over sixty has increased, on the one hand, due to preventive aspects of medicine related to the health of the elderly people, although this is not the only reason. There are other aspects that involve aging, including the way each person has the possibility to age. When mapping each meeting with the elderly people, it was observed how much the role of reception is significant for the elderly people who finds in the Basic Health Unit a place that allows their speech, not only of pain in its physical aspect, but other pains, such as family and social isolation by the fact that the circle of friendships is no longer present. The possibility of listening to the elderly people during the research contributed to validate the stories and pains of each one and, with this, enable passage to their voice and recognize the place they occupy in society as rightful citizens. In this sense, the reception of the elderly people is an instrument of valorization of life, dignity and ethics. Keywords: Reception. Aging. Population Aging. Basic Health Unit. Unified Health System. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO .................................................................................................................... 09 CAPÍTULO 1: A CARTOGRAFIA COMO METODOLOGIA PARA MAPEAR O ACOLHIMENTO DE IDOSOS E IDOSAS EM UMA UNIDADE BÁSICA DE SAÚDE DO MUNICÍPIO DE ASSIS-SP...................................................................... 25 CAPÍTULO 2: POLÍTICAS DE ATENÇÃO AO IDOSO ......................................... 2.1. As políticas públicas e sua relevância................................................... 2.2.. Políticas Públicas voltadas para o idoso.............................................. 2.3. A Atenção Básica em saúde.................................................................. 2.3.1. A Estratégia da Saúde da Família...................................................... 2.3.2.A Unidade Básica de Saúde e sua função........................................... 2.4. Escuta e acolhimento............................................................................. 35 36 38 41 43 45 47 CAPÍTULO 3: O ACOLHIMENTO DE IDOSOS E IDOSAS ATENDIDOS E ATENDIDAS NA UBS.................................................................................................... 54 3.1. Entrevistas com idosos e idosas....................................................................... 3.1.1 Jacy .................................................................................................................. 3.1.2 Rosa ................................................................................................................. 3.1.3 Francisco ......................................................................................................... 3.1.4 Frida ................................................................................................................ 3.1.5 Simone ............................................................................................................. 57 59 65 71 76 79 CONCLUSÃO ............................................................................................................................ 84 REFERÊNCIAS .......................................................................................................................... 89 9 APRESENTAÇÃO Ao longo da minha formação no curso de graduação em Psicologia, deparei-me com duas disciplinas que foram significativas para as futuras escolhas que teria como discente, que incluiria uma reflexão intensa sobre o papel da psicologia na sociedade brasileira e, consequentemente, qual lugar gostaria de ocupar como psicólogo. Na primeira disciplina, encontrei o tema do envelhecimento, finitude e processos de subjetivação, que expandiu os olhares para a velhice, suas possibilidades, seus impasses e o seu lugar na sociedade brasileira. Na segunda disciplina, tive contato com o campo da Atenção Psicossocial e a formação do SUS, os processos e lutas para a implantação de uma nova política, a partir da Constituição de 1988, da saúde como um direito de todas e todos. Juntamente com o conhecimento que foi sendo adquirido com o passar das aulas, havia também uma questão doméstica em relação ao envelhecimento. Minha sogra, na época com 83 anos de idade, e hoje com 91 anos, caiu e quebrou o punho. Esse incidente acabou revelando, após uma série de exames, o diagnóstico de uma demência moderada e, como tratamento, um impressionante montante de fármacos para atuar de forma rápida para supostamente combater a doença. O que aconteceu, contudo, foi que minha sogra se desfigurou como pessoa, não conseguia se locomover e se expressar. A quantidade de fármacos era imensa, sem mencionar o custo. Isso me despertou ainda mais para estudar e aprofundar o conhecimento em relação ao envelhecimento, porque compreendi que o aparato médico e farmacológico havia se tornado insuficiente para responder meus questionamentos com relação à qualidade de vida de minha sogra. Todos esses fatores foram fundamentais para as escolhas dos estágios profissionalizantes que desenvolvi em minha formação. Envolvi-me em diversos projetos que atuavam com a população envelhecida, o que trouxe a possibilidade de encontros com diferentes envelheceres, tais como: a) participação e escuta de idosas em um grupo denominado “Encontros com a Terceira Idade” da UNATI (Universidade Aberta à Terceira Idade) na UNESP (Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”) campus Assis; b) trabalho de intergeracionalidade com idosos de uma Instituição de Longa Permanência de Idosos e alunos do ensino fundamental de Escola Estadual de tempo integral da periferia da cidade de Assis e; c) a escuta de um idoso asilado pelo período de dois anos. Neste ambiente envolto de envelhecimento, observamos os preconceitos existentes, os abandonos, os relatos das perdas, e também suas possibilidades conforme afirma Debert (2012): 10 A tendência contemporânea é rever os estereótipos associados ao envelhecimento. A ideia de um processo de perdas tem sido substituída pela consideração de que os estágios mais avançados da vida são momentos propícios para novas conquistas, guiadas pela busca de prazer e de satisfação pessoal. As experiências vividas e os saberes acumulados são ganhos que oferecem oportunidades de realizar projetos abandonados em outras etapas e estabelecer relações mais profícuas com o mundo dos jovens e dos mais velhos (p. 14). Nas atividades desenvolvidas junto ao grupo “Encontros com a Terceira Idade” da UNATI, constatei justamente as possibilidades e a multiplicidade da velhice em um coletivo formado exclusivamente por mulheres acima de 60 anos, de diversas classes sociais e vivências. Percebi o quanto o gênero influencia a velhice feminina ao ouvir relatos que denunciavam as humilhações sofridas ao longo da vida, as possibilidades e também as superações que várias delas conseguiram. Aprendi o quanto a construção social da velhice em relação à mulher oprime e desfigura, e também ouvi mulheres que romperam com os padrões que a sociedade impunha e experimentaram a liberdade de serem o que queriam ser para aproveitar a própria velhice realizando os desejos que tinham. Já no espaço da escola pública de ensino fundamental, desenvolvi uma iniciação científica relacionada à intergeracionalidade e constatei momentos realmente marcantes, tais como a aproximação das crianças com os idosos e idosas asilados e asiladas. A disciplina oferecida pela escola, chamada “Conviver é uma Arte”, proporcionava para os alunos o aprendizado sobre o envelhecimento desenvolvendo a escrita, desenhos e trabalhos manuais em relação ao tema além de encontros de alunos com os idosos nos espaços da escola, da UNESP e de uma instituição asilar da cidade. Para os idosos e idosas havia a possibilidade de entrar em contato com as crianças, contar suas histórias e também as visitas à escola e à Universidade. Alguns encontros realmente foram marcantes e potentes. Como registro das marcas desses encontros, alguns alunos participantes dessa disciplina colocaram em seu projeto de vida que gostariam de se dedicar a alguma profissão relacionada ao cuidado de idosos. Por fim, ainda como parte de meu processo de formação em Psicologia, realizei o atendimento clínico de um idoso institucionalizado. Foi possível compreender o que Goffman (1974) aponta em sua obra, tal qual a experiência de viver em instituição total, que impõe uma série de regras que privilegiam mais o trabalho da equipe e nem sempre os idosos e idosas. Além disso, há uma constante vigilância a fim de que tudo permaneça dentro das regras estabelecidas, o que acaba por destituir o “eu”, com a retirada de pertences. Há cobrança de uma taxa que equivale a 70% do rendimento da pessoa idosa, sem contar que muitos internos ou internas têm pouco contato com o mundo exterior, como observei em relação ao controle do portão, tanto 11 para a entrada quanto para a saída de pessoas e também em relação aos dormitórios predominantemente coletivos, em detrimento da individualidade. Em meu estágio no asilo percebi que, por outro lado, É preciso ficar muito pouco tempo em um asilo para rever suas impressões iniciais. O cotidiano com o qual nos deparamos está longe de ser, quer a manifestação da suposta experiência da solidão, quer um momento de desprendimento dos valores e angústias, tidos como próprios da vida dos mais jovens. Surpreende, nos asilos, a quantidade de conflitos, brigas e desentendimentos entre os residentes e deles com o pessoal técnico e administrativo (DEBERT, 2012, p. 100). Foi nesse espaço que atendi um idoso, proporcionando um tempo de escuta que possibilitou um período de aprendizado único, no qual foi viável criar oportunidades de intervenção que trouxeram para o idoso a abertura para se expressar sobre uma série de fatores que causavam ansiedade. Notei que os idosos residentes no asilo correm o risco de perder a sua dignidade e sua história, porque vários são tratados como incapazes e, por isso, encontrei neste ambiente uma fragmentação do sujeito, que aos poucos perde o poder decisório sobre o corpo, os desejos, a mobilidade e, para alguns, inclusive, sobre os afetos. Em relação às políticas públicas na área da saúde, participei como estagiário do curso de Psicologia do desenvolvimento de grupos psicoterapêuticos e também observei o funcionamento da UBS (Unidade Básica de Saúde), desde a quantidade de trabalhadores e trabalhadoras e como cada profissional desenvolve seu trabalho. Notei como essas pessoas reagem às mais diversas demandas que os usuários e usuárias apresentam quando adentram o serviço de saúde e constatei que muitos estavam ali operando dentro de uma lógica em que foram instruídos, onde há um saber médico dominante. O fato que mais chamou a atenção aconteceu em um dia, no período da tarde, quando um usuário, procurando por atendimento, ouviu do trabalhador que fazia o primeiro contato na recepção, que só haveria disponibilidade para atendê-lo após um período de sessenta dias. O usuário saiu irritado, porque estava com dores intensas. Entendo que faltou ao trabalhador uma escuta para orientar o usuário a que procurasse um serviço de pronto atendimento e, de alguma forma, o acolhesse em sua demanda. Assim, a relação do contato com os estudos sobre o envelhecimento, os estágios no serviço público de saúde, a questão particular da minha sogra e o processo de envelhecimento brasileiro, levaram-me a realizar a presente pesquisa sobre o acolhimento de idosos e idosas no serviço público de saúde, de maneira específica na maior UBS da cidade de Assis, que concentra uma grande faixa de população da periferia que é assistida por esse serviço de saúde. Meu objetivo é, com base na cartografia, mapear: a) o que é o acolhimento; b) se esta prática é 12 realizada pelo SUS; c) se sim, quais são suas diretrizes teóricas e práticas; e d) como é a sua prática junto a idosos e idosas em uma Unidade Básica de Saúde. Pandemia Não poderia deixar de mencionar que, no momento de escrita deste trabalho, ano de 2020, o mundo encontra-se envolto em uma pandemia por causa do Coronavírus ou, conforme o nome científico, COVID-19. Esse foi o nome que a Organização Mundial da Saúde (OMS) oficialmente deu à doença e que significa “Corona Virus Disease” (Doença do Coronavírus), ao passo que “19” refere-se a 2019, o ano em que os primeiros casos surgiram em Wuhan, na China e que foram oficialmente relatados pelo governo daquele país em dezembro. Segundo o Ministério da Saúde, A COVID-19 é uma doença causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, que apresenta um quadro clínico que varia de infecções assintomáticas a quadros respiratórios graves. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a maioria dos pacientes com COVID-19 (cerca de 80%) podem ser assintomáticos e cerca de 20% dos casos podem requerer atendimento hospitalar por apresentarem dificuldade respiratória e desses casos aproximadamente 5% podem necessitar de suporte para o tratamento de insuficiência respiratória (suporte ventilatório) (BRASIL, 2020) Após os primeiros casos da doença que foram registrados e confirmados na China a partir de outubro de 2019, a Organização Mundial da Saúde passou a monitorar a doença que evoluía rapidamente alcançando outros lugares no mundo. A doença espalhou-se de tal forma que no dia 11/03/2020 a Organização Mundial da Saúde elevou a classificação da doença para pandemia. Tedros Adhanom, diretor geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), declarou hoje (11) que a organização elevou o estado da contaminação à pandemia de Covid- 19, doença causada pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2). A mudança de classificação não se deve à gravidade da doença, e sim à disseminação geográfica rápida que o Covid-19 tem apresentado. "A OMS tem tratado da disseminação [do Covid-19] em uma escala de tempo muito curta, e estamos muito preocupados com os níveis alarmantes de contaminação e, também, de falta de ação [dos governos]"... (BRASIL, UNA-SUS, 2020). Há incertezas que rondam a maneira como a doença surgiu e não há ainda uma vacina à disposição. Embora outros métodos com remédios estejam sendo testados, a medida mais eficaz para frear a disseminação e contaminação do Coronavírus é o chamado “distanciamento social” ou “isolamento” ou ainda “quarentena” até que se descubra uma vacina que imunize a 13 população. A chegada da doença causou uma série de transtornos e mudanças que têm marcado profundamente as relações da humanidade. Além do distanciamento social, que por si só já é uma medida intensa que provoca mudança, houve também a proibição do contato nos cumprimentos, a não realização de funerais das vítimas do COVID-19, impossibilitando o ato simbólico de despedida, e que pode intensificar o sofrimento. Todas as aglomerações de pessoas foram proibidas, assim, teatros, cinemas, escolas, shoppings, comércios de rua, eventos esportivos com grande fluxo de pessoas e espetáculos culturais estão cancelados temporariamente. Destaco que, segundo pesquisadores da Fiocruz, existe uma diferença técnica para cada uma destas medidas sendo que “isolamento se refere à separação dos infectados ou daqueles que apresentam sintomas característicos da doença, de indivíduos sadios” (BRASIL, 2020, p. 2), já “distanciamento social, por sua vez, consiste em um esforço consciente para reduzir o contato e aumentar a distância física entre pessoas, a fim de diminuir a velocidade de contágio” (BRASIL, p. 2) e; por sua vez, a “quarentena significa separar e restringir a movimentação de indivíduos já expostos a situações com potencial de contágio” (BRASIL, p. 2). Tanto no Brasil quanto em outros países, a utilização do termo “quarentena” tornou-se mais usual. O que preocupa as autoridades de saúde em relação ao Coronavírus é a sua rápida disseminação e também a sua letalidade para grupos de risco, tais como idosos e pessoas que apresentam comorbidades, segundo o Ministério de Saúde: Pessoas acima de 60 anos se enquadram no grupo de risco, mesmo que não tenham nenhum problema de saúde associado. Além disso, pessoas de qualquer idade que tenham comobirdades, como cardiopatia, diabetes, pneumopatia, doença neurológica ou renal, imunodepressão, obesidade, asma e puérperas, entre outras, também precisam redobrar os cuidados nas medidas de prevenção ao coronavírus (BRASIL, 2020). Nesse sentido, dada a rapidez do contágio, a preocupação das autoridades de saúde é que o sistema hospitalar não suporte o número de pessoas que necessitam de cuidados mais especializados. A pessoa infectada pode apresentar sintomas que “podem variar de um simples resfriado até uma pneumonia severa. Sendo os sintomas mais comuns: tosse, febre, coriza, dor de garganta e dificuldade para respirar” (BRASIL, Ministério da Saúde, 2020). A evolução do quadro da pessoa infectada pelo COVID-19 requer internação e, nos casos mais graves o uso de ventilação mecânica e é justamente a ocupação dos leitos de UTIs que preocupam as autoridades. Por conta da velocidade de transmissão, pode ocorrer que o número de pacientes 14 seja maior do que o número de leitos disponíveis para internação. Assim, a quarentena permanece como a melhor maneira de frear o avanço do vírus. O primeiro caso confirmado oficialmente no Brasil foi no dia 26/02/2020, em um empresário de 61 anos que voltou de viagem da Itália, com escala em Paris. Cada país europeu respondeu à pandemia da forma como seus governantes entendiam que seria a melhor. Uma das cenas mais impressionantes e tristes que vi foi a de um número de caminhões do Exército italiano saindo dos hospitais carregando corpos. Mesmo diante de situações extremas como esta, ainda assim, há líderes de governos que não aceitam as recomendações da Organização Mundial da Saúde para o combate ao vírus. O Brasil, presidido atualmente por Jair Bolsonaro, eleito nas eleições presidenciais de 2018, encontra-se no grupo dos líderes mundiais, juntamente com Daniel Ortega, da Nicarágua; Alexander Lukashenku, presidente da Bielorússia e Gurbanguly Berdymukhamedov, presidente do Turcomenistão, que negam a realidade do contágio e, consequentemente, a gravidade que representa o coronavírus. Segundo a BBC (British Broadcasting Corporation – Corporação Britânica de Radiodifusão), numa reportagem do Financial Times (jornal diário de língua inglesa), estes presidentes formam a “Aliança do Avestruz”, apelido dado pelo professor Oliver Stuenkel, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), como “uma referência ao mito de que o pássaro grande enterra a cabeça na areia quando enfrenta perigo” (BBC, 17 de abril de 2020). No momento da chegada do COVID-19 ao Brasil, o Ministro da Saúde era Luiz Henrique Mandetta, deputado federal eleito pelo Partido Democratas, do Estado do Mato Grosso do Sul, que se licenciou do mandato para assumir o Ministério da Saúde em 1º de janeiro de 2019. O então ministro seguia as recomendações da Organização Mundial da Saúde e algumas medidas seriam previstas em Lei e Portarias, tais como: a Portaria nº 188, de 03 de fevereiro de 2020, que declara Emergência em Saúde Pública de importância Nacional (ESPIN) em decorrência da Infecção Humana pelo novo Coronavírus (2019-nCoV). Logo após, houve a publicação da Lei nº 13.979, de 06 de fevereiro de 2020, que dispõe sobre o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, responsável pelo surto de 2019, elaborada pela Presidência da República e; a Portaria nº 356, de 11 de março de 2020, que dispõe sobre a regulamentação e operacionalização do disposto na Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que estabelece as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (COVID- 19). A Portaria 188, de 03 de fevereiro de 2020, que declara Emergência em Saúde Pública de importância Nacional (ESPIN) em decorrência da Infecção Humana pelo novo Coronavírus 15 (2019-nCoV) estabelece, além de critérios relativos à emergência em todo o território nacional, o Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública (COE-nCOV) a fim de coordenar, em âmbito nacional, as ações necessárias para o enfrentamento da pandemia que, naquele momento, era ainda incipiente. Já a Lei nº 13.979, de 06 de fevereiro de 2020, que dispõe sobre o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, responsável pelo surto de 2019, coloca sobre o Ministro da Saúde a responsabilidade da avaliação sobre a duração da situação de emergência de saúde pública de que trata a referida lei, conforme Art. 1º, Parágrafo 2º “Ato do Ministro de Estado da Saúde disporá sobre a duração da situação de emergência de saúde pública de que trata esta Lei” (BRASIL, 2020) e ainda submete o prazo das medidas a serem tomadas à Organização Mundial da Saúde. Para a aplicabilidade da Lei, foi redigida a Portaria nº 356, de 11 de março de 2020, que dispõe sobre a regulamentação e operacionalização do disposto na Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que estabelece as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (COVID-19). Essa Portaria previa a medida do isolamento social e quarentena de acordo com as recomendações médicas e dos agentes da vigilância epidemiológica, assim como regulamentava como estas ações seriam implementadas à medida da notificação e expansão do número de casos. Os Estados também começaram a tomar medidas baseadas principalmente na questão do isolamento social. Foram publicados decretos fechando estabelecimentos públicos e privados que não eram considerados essenciais, desta forma, somente serviços de saúde, de água, de luz, de segurança e limpeza permaneceram abertos nos primeiros dias. E, mesmo diante das restrições previstas pela ciência, muitos continuavam a negar tanto a existência do vírus quanto as mortes que poderiam acontecer. O aumento do contágio se deu principalmente no Estado de São Paulo, que acabou por tornar-se o chamado “epicentro” do Covid-19 no Brasil. Neste período, após quase um mês em isolamento, o então Ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta começou a sofrer duras críticas por seguir as recomendações da Organização Mundial da Saúde e também pela maneira como estava se portando diante dos boletins diários feitos pelo Ministério da Saúde, que contabilizavam os casos e os números de mortos. Algumas pessoas, dentre elas o Presidente da República, não gostavam da exposição e do ganho da imagem do então ministro à frente das ações contra a pandemia. Outra questão significativa que pesava na relação do Ministro da Saúde com o Presidente Jair Bolsonaro tinha a ver com o desejo do presidente de adotar, a todo custo, um 16 remédio, a Hidroxicloroquina, indicado para: afecções reumáticas e dermatológicas; artrite reumatoide; artrite reumatoide juvenil; lúpus eritematoso sistêmico; lúpus eritematoso discoide; condições dermatológicas provocadas ou agravadas pela luz solar, e que estava sendo testado em outros países para o tratamento do vírus. Não havia, contudo, nenhuma comprovação científica de que o tratamento feito pelo remédio era, de alguma forma, satisfatório a ponto de ser prescrito como tratamento. Registro aqui que, no dia 04/07/2020, a Organização Mundial da Saúde encerrou estudos com a hidroxicloroquina e outro remédio combinado para o tratamento do HIV lopinavir / ritonavir porque os mesmos não reduziram as mortes provocadas pelo COVID-19 em pacientes hospitalizados, conforme anúncio realizado pela própria OMS neste dia (WHO, 2020). Havia uma tensão constante criada pelo presidente, que não seguia as recomendações do seu próprio ministro. Além disso, o empresariado que apoiava o presidente chegou a dizer, inclusive, que a morte de algumas centenas de pessoas, idosas ou idosos, não poderiam parar o país. Somado a isso, uma parte da população ainda permanecia negando as evidências científicas relacionadas ao COVID-19. Com isso, Luiz Henrique Mandetta foi demitido no dia 16/04/2020. Conforme Mazui, 2020, estas foram as últimas palavras do ex-misnistro da saúde ao saber da sua demissão: Acabo de ouvir do presidente Jair Bolsonaro o aviso da minha demissão do Ministério da Saúde. Quero agradecer a oportunidade que me foi dada, de ser gerente do nosso SUS, de pôr de pé o projeto de melhoria da saúde dos brasileiros e de planejar o enfrentamento da pandemia do coronavírus, o grande desafio que o nosso sistema de saúde está por enfrentar... (MAZUI, 2020) Escolhido no mesmo dia para substituir Luiz Henrique Mandetta, o médico Nelson Teich que, segundo o site do Ministério da Saúde é oncologista, assumiu o cargo no dia 17/04/2020 (BRASIL, 2020). Sua gestão foi rápida e durou um mês, conforme noticiou a BBC – Brasil no dia 15 de maio de 2020: “O ministro da saúde Nelson Teich pediu exoneração do ministério nesta sexta-feira, um mês depois de assumir o cargo no governo do presidente Jair Bolsonaro” (BBC, 2020). As informações em torno do pedido de exoneração revelaram que havia um desgaste na relação com o presidente Jair Bolsonaro, que pressionava o ministro para a formalização de um protocolo de utilização da hidroxocloroquina: https://minutosaudavel.com.br/artrite-reumatoide/ https://minutosaudavel.com.br/artrite-reumatoide/ https://consultaremedios.com.br/pele-e-mucosa/lupus/c 17 Na quinta, Bolsonaro havia dito que iria "exigir" do ministério a adoção de um novo protocolo indicando o uso da cloroquina para pacientes em estágio inicial da doença. Bolsonaro vem promovendo a cloroquina como "salvação" contra o coronavírus desde o início da crise, mas diversos estudos nacionais e internacionais mostram que o uso do remédio não diminui o número de mortes ou de internações por covid-19 e pode ter efeitos colaterais muito prejudiciais (BBC, 2020) Logo após a exoneração de Nelson Teich, quem assume interinamente o Ministério da Saúde é o general Eduardo Pazuello, que atuava como secretário-executivo da Saúde desde a saída de Luiz Henrique Mandetta. A escolha feita pelo presidente, que desde a sua campanha eleitoral em 2018, dizia que os seus ministros seriam técnicos, demonstra o quanto o país vive neste momento uma crise profunda em suas estruturas. Enfatizo aqui a notícia da nomeação do general Pazuello: “Formado pela Academia Militar das Agulhas Negras, em 1984, Pazuello foi coordenador da Operação Acolhida, que cuida de refugiados venezuelanos na fronteira com Roraima. Também esteve à frente da 12ª Região Militar, no Amazonas” (ARAÚJO; ANDRADE; OLIVEIRA, 2020). Neste exato momento, dia 26/08/2020, em plena pandemia, com mais de 117 (cento e dezessete) mil óbitos causados pela COVID-19 segundo o Ministério da Saúde e 3,7 milhões de casos acumulados (VALENTE, 2020), uma média diária de cerca de mil mortes por dia, o país tem como seu ministro da saúde um interino, de formação militar, sem o conhecimento técnico que o cargo exige para esse momento e lá se vão quase três meses desde a demissão do último ministro da saúde. Esse fato por si só já poderia exemplificar a questão da crise que se arrasta desde que o coronavírus desembarcou no Brasil. Ademais, há uma crise política, econômica e social que caminha concomitantemente com a crise da saúde e falarei dessa crise política logo abaixo. Crise política Nasci em plena ditadura militar, no ano de 1969, quando o homem pisou na Lua. Meus pais sempre foram muito rígidos e especialmente meu pai admirava a forma como os militares livraram o país do “fantasma do comunismo”. Cresci e já no Ensino Médio comecei a me dar conta da História do Brasil. Minha professora, altamente crítica, nos proporcionou o contato com a produção de textos que valorizavam uma sociedade democrática e foi justamente aí que começaram os embates com meu pai. Ele me repreendia e dizia que “as paredes têm ouvido”, numa clara alusão a pessoas que denunciavam os “comunistas” que queriam destruir a nação. https://www.bbc.com/portuguese/geral-52067244 18 Nos anos que se passaram vi a ditadura militar perder sua força que era baseada tanto nos Atos Institucionais, quanto na truculência das abordagens feitas pelos “agentes de segurança do Estado” que promoviam o medo e a violência. Vi então, o último presidente militar da ditadura, o general João Batista Figueiredo, conceder anistia política às pessoas que estavam exiladas em outros países e, por isso, puderam voltar ao Brasil. A luta pela democracia e pelos direitos humanos crescia e assisti a histórica mobilização do povo em favor das “Diretas Já”, que reivindicava o voto da população após anos de eleição indireta para a escolha do presidente da república. Havia um anseio da população em transformar a sociedade a fim de plantar e fortalecer a democracia participativa nas mais diversas áreas. Se, por um lado, a anistia possibilitou o retorno de vários sujeitos que lutaram contra a ditadura militar, por outro, ela também anistiou os militares a fim de livrá-los de qualquer processo jurídico que os responsabilizasse por torturas, desaparecimentos e mortes. Mesmo assim, o movimento de abertura política foi seguido por um grito intenso nas ruas, traduzido em passeatas, grandes comícios e discursos políticos que canalizavam o desejo por mudanças. Apesar de todo o esforço, o movimento das “Diretas Já” não conseguiu seu objetivo inicial, contudo a mobilização social coletiva foi resgatada e, em 1984, houve a última eleição indireta para presidente da República, sendo eleito Tancredo Neves e seu vice José Sarney. Logo após a eleição, Tancredo Neves adoeceu e veio a falecer, por isso, assume a presidência o seu vice, José Sarney. Lembro com detalhes a comoção que se deu em torno do velório e do enterro de Tancredo Neves que, mesmo sendo eleito de forma indireta, pelo colégio eleitoral formado pelo Congresso Nacional, finalmente era um presidente civil. Os tempos passaram e minha formação continuou a ser crítica e cada vez mais profunda em consequência do ensino de história e da politização que era comum entre os jovens daquela época. As rodas de conversa giravam em torno da formação da constituinte e como os jovens poderiam contribuir com ideias para que a nova constituição fosse elaborada. Ouvi palavras marcantes como representatividade, combate à desigualdade, Sistema Único de Saúde, Previdência Social, Assistência Social e o papel do Estado como mantenedor de direitos e da cidadania. Em 1988, vi o deputado federal Ulisses Guimarães, então presidente do Congresso Constituinte, promulgar a Constituição Cidadã que, apesar de sofrer uma série de críticas, representava um imenso avanço em comparação com anos de atraso sem qualquer possibilidade de haver oposição política ou até mesmo, a criação de partidos políticos. Paralelamente a isso, crescia no país a força de um partido político ligado à esquerda, conhecido como Partido dos 19 Trabalhadores. Seu expoente maior, o líder sindical, Luiz Inácio Lula da Silva, disputaria uma série de eleições presidenciais até ser eleito, cumprindo seus dois mandatos entre 1º de janeiro de 2003 a 1º de janeiro de 2011. A ascensão de um trabalhador ao posto de presidente da República trouxe uma série de indagações por parte da elite e da imprensa que olhavam desconfiadas para o presidente. Os anos que se seguiram no seu governo trouxeram uma expansão econômica jamais vista com uma série de benefícios, entre eles o Bolsa Família, que possibilitou um avanço no combate à desigualdade e à pobreza. Tantos foram os crescimentos, principalmente na área social, que após dois mandatos consecutivos o Partido dos Trabalhadores consegue eleger Dilma Rousseff como a primeira mulher presidente do Brasil. Haveria um segundo mandato para a presidente Dilma Rousseff, caso não sofresse um processo de impeachement, o que para alguns foi orquestrado pela elite e colocado em prática pelo Congresso Nacional. Nesse sentido, setores ligados à esquerda denunciaram esse processo como um golpe político. Aliás, juntamente com o esforço para canalizar o potencial político em favor do impeachement, a operação Lava Jato, que trouxe à tona uma série de escândalos de corrupção, fora denunciada por partidos políticos de esquerda e parte da imprensa porque, a seu ver, agia de forma parcial contra todos os representantes da esquerda, em especial do Partido dos Trabalhadores e, de maneira mais intensa contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Assume a presidência o então vice-presidente, Michel Temer, e nos anos de seu governo o que se viu foi o início de uma série de desmanches de direitos há tempos garantidos pela constituição. Particularmente, na área da saúde, o ataque ao Sistema Único de Saúde foi avassalador cortando estabelecimentos da chamada Farmácia Popular e também investimentos no programa Mais Médicos. As despesas obrigatórias com a saúde foram suspensas. O governo Temer trabalhava com a hipótese de criar um plano de saúde para a população de baixa renda, ou seja, transformar a saúde em um bem e não mais um direito do cidadão. Juntamente com o ataque aos direitos dos cidadãos assegurados pela Constituição Federal, havia uma movimentação e crescimento de grupos de extrema direita que se articulavam para as eleições que se aproximavam no ano de 2018. O uso de plataformas digitais foi o recurso mais utilizado para disseminar ideias chamadas conservadoras e em outros canais, propagar ódio contra as minorias. Esse movimento cresceu de tal maneira que alçou ao posto de presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, até então um deputado federal do chamado “baixo clero”, conhecido pelas suas falas polêmicas voltadas contra as minorias. A eleição de Jair Bolsonaro foi marcada por um discurso majoritariamente de ódio pautado na guerra ideológica, chamada assim porque, segundo seus defensores, combate o 20 “globalismo”, o comunismo e para isso defende o nacionalismo e também os chamados “valores da família tradicional”, com o direito à propriedade. Leia-se aqui o chamado “Liberalismo Econômico”. Além disso, havia o tema do combate à corrupção e que não haveria mais a “velha política”, denominada assim porque, segundo o próprio presidente eleito, a estrutura política nacional estava viciada no famoso “toma lá, dá cá”. Para levar a cabo tais propostas, o governo eleito chamou pessoas que considerava chave para ocupar postos ministeriais. Dentre tais pessoas, convidou o então juiz da Operação Lava Jato, Sérgio Moro, para o posto de Ministro da Justiça com a finalidade de colocar em pauta uma série de leis que se enquadrariam no combate à corrupção. Registro que a pauta do ex-juiz não prevaleceu e após um atrito com o presidente da República, no qual alegou que o presidente queria interferir na Polícia Federal por investigações que envolviam sua família, pediu demissão do governo. Em sua coletiva de imprensa, para anunciar a demissão, pronunciou: “Falei para o presidente que seria uma interferência política. Ele disse que seria mesmo” (G1.GLOBO, 2020). Na área externa o Brasil afastou-se de posições históricas assumidas pelos governos anteriores. Houve uma aproximação com a ala política da extrema direita norte-americana, capitaneada pelo Presidente Donald Trump. Nesse sentido, o Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, distanciou o Brasil de acordos históricos na Organização das Nações Unidas (ONU), principalmente na questão dos direitos humanos. Além de atacar e tentar desmoralizar a ONU a posição brasileira era a mesma assumida pelos norte-americanos que colocavam em dúvida também o papel da Organização Mundial da Saúde (OMS). O primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro foi marcado por uma queda de braço com o Congresso Nacional. Os projetos liberais na área econômica, considerados essenciais pela equipe do Ministro Paulo Guedes para o crescimento do país não saíram do papel. Registro aqui que tais projetos continuam a destruir cada vez mais os direitos do cidadão. O “grande projeto” aprovado foi a Reforma da Previdência, duramente criticada pela oposição e por parte de estudiosos que entendiam que a proposta encaminhada pelo governo desfigurava completamente o sistema previdenciário. Dentre estas propostas, por exemplo, estava a ideia de uma capitalização por parte dos trabalhadores, o que não foi aprovado. A chegada da pandemia do Coronavírus ao Brasil acentuou uma crise que já estava deflagrada tanto na área política quanto nas áreas econômica e social. Acrescento que, politicamente, além das questões levantadas acima, o presidente e sua chamada ala ideológica, promovem um discurso de ódio direcionado contra qualquer pessoa que seja contrária aos posicionamentos que esta ala assume e também contra as minorias. O discurso é embasado no 21 machismo, no racismo, no ageísmo, na homofobia, na xenofobia e também na intolerância religiosa. Como disse acima, os trabalhadores que vinham sofrendo uma série de perdas de direitos, também padecem com o fechamento de postos de trabalho. A informalidade bate recordes e cada vez mais a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) é amputada em algum ponto. Informo que o governo aprovou uma série de medidas como o fim da obrigatoriedade das taxas sindicais. A ideia é que o trabalho seja oferecido sem direito algum, ou seja, está havendo uma precarização nas formas de amparo ao trabalhador a fim de excluí-las por completo. Milhões de trabalhadores e trabalhadoras, sem alternativa, migraram para o chamado mercado informal e isso trouxe sérias consequências para a área social. Com a pandemia, por causa das medidas de isolamento social, muitos trabalhadores e trabalhadoras se viram sem fontes de renda. Outros postos de trabalho foram fechados, principalmente os que estavam atrelados aos pequenos estabelecimentos comerciais, que não sobreviveram porque não conseguiram acessar o crédito que é oferecido pelo governo. Ressalto que no início da pandemia o governo federal abriu os cofres e disponibilizou para os bancos aproximadamente R$ 1,2 trilhões de reais (Um trilhão e duzentos bilhões de reais) (GOVERNO DO BRASIL, 2020). As medidas para as empresas vieram a conta gotas e muitas não conseguiram acesso. (LIS, 2020) Para os trabalhadores e trabalhadoras, o governo havia proposto um auxílio emergencial de R$ 200,00 (duzentos reais) o que o Congresso Nacional elevou para R$ 600,00 (seiscentos reais). Tal auxílio tinha como objetivo oferecer suporte financeiro às famílias de baixa renda e trabalhadores e trabalhadoras consideradas informais, ou seja, os que não possuem registro em carteira. Após uma série de problemas com o cadastro dos participantes, o auxílio foi liberado e constatou-se, após um tempo, que o auxílio foi enviado também para pessoas que não necessitavam, enquanto isso há pessoas que ainda não conseguiram a obtenção do mesmo. O contexto da pandemia revelou a importância das políticas públicas, de maneira mais significativa, nas áreas da saúde. O Sistema Único de Saúde (SUS) absorveu a imensa maioria dos casos e, se não fosse por ele, talvez tivéssemos um número ainda maior de mortos. O Brasil é o segundo país no mundo em número de casos de contaminação e também de mortos pelo COVID-19, atrás somente dos Estados Unidos. Há outros fatores que colaboraram para que a crise que o país passa nesse momento seja ainda mais intensa. O presidente, com sua posição negacionista, juntamente com alguns empresários criaram um embate entre saúde e economia. Para esse grupo não haveria necessidade de um isolamento para toda a sociedade. Bastaria o chamado “isolamento vertical” 22 no qual somente pessoas do grupo de risco ficariam em casa. A FIOCRUZ (Fundação Oswaldo Cruz) tipifica as diferenças entre isolamento vertical, horizontal e lockdown: Vertical: Apenas pessoas do grupo de risco ficam em casa. No caso da Covid-19, é formado por idosos e indivíduos com doenças como diabetes, hipertensão, problemas cardíacos e obesidade, além de problemas que atingem os sistemas respiratório, imunológico ou neurológico. Jovens e saudáveis poderiam, portanto, circular normalmente. A Organização Mundial de Saúde, porém, é contra esta forma de isolamento, uma vez que jovens são importantes vetores da doença e o número de contaminados poderia aumentar rapidamente. Horizontal: Todos devem permanecer em casa. A medida restringe ao máximo o contato entre as pessoas, evitando uma grande propagação da doença. Apesar de causar impactos graves na economia, é essencial para evitar um aumento desenfreado da doença e o colapso no sistema de saúde, o que também causaria danos à economia. Lockdown: O trânsito de pessoas nas ruas é completamente restrito, exceto trabalhadores de áreas essenciais, como Saúde, Segurança, farmácias e supermercados. É adotado para conter de forma mais rápida e eficaz a disseminação do vírus (FIOCRUZ, 01/07/2020). Nota-se que Organização Mundial da Saúde é contra o isolamento vertical, porque esta medida não impede a transmissão do vírus através dos diversos vetores, tais como crianças e jovens. A partir deste posicionamento, surgiu uma linguagem especialmente contra os idosos e idosas. Alguns empresários chegaram a dizer que: “Quem entende mesmo de estatística vê que os números são irrisórios. E quem morre mesmo são os velhinhos. E, mesmo dos velhinhos, só 10%, 15% deles morrem” (LEMOS, 2020). Destaco que a retórica impulsionada pelo ódio do presidente voltou o seu ataque contra o Supremo Tribunal Federal e os juízes da corte e, assim, vive em constante tensão tanto com o Legislativo quanto com o Judiciário. Registro aqui duas questões que eclodiram no Brasil e incluo no momento que escrevo esta dissertação. A primeira delas tem a ver com o surgimento do movimento de extrema-direita em nosso país. Silva et al (2014) discorrem sobre os matizes das diferentes correntes de extrema-direita tanto no Brasil quanto no mundo e acentuam que A extrema-direita, marcadamente associada às trágicas experiências do nazifascismo, continua apresentando muitos traços originais do contexto de sua emergência: irracionalismo, nacionalismo, defesa de valores e instituições tradicionais, intolerância à diversidade — cultural, étnica, sexual — anticomunismo, machismo, violência em nome da defesa de uma comunidade/raça considerada superior. Compartilhando do ideário político vinculado aos interesses de dominação, opressão e apropriação privada da riqueza social, distancia-se da direita tradicional pela intolerância e pela violência de suas ações, embora, quando organizada em partidos ou associações públicas, recuse tais práticas por parte de seus membros (p. 413-414). Para alguém como eu, conforme descrevi acima, que participou ativamente do processo de redemocratização no Brasil e que viu de perto o movimento “Diretas Já” e a grande mobilização popular em torno da volta à democracia, esse tipo de pensamento autoritário é, no 23 mínimo, assustador. É óbvio que a democracia permite diferentes expressões e evidencio aqui que há necessidade de preservá-las, contudo, é indispensável sustentar os valores democráticos previstos na Constituição, nas Leis Brasileiras e nos organismos internacionais. A segunda questão que me deixa atônito tem a ver com a minha formação religiosa. Desde pequeno participei da igreja protestante, portanto herdeira da Reforma e de matriz presbiteriana, mais precisamente a Igreja Presbiteriana Independente do Brasil. No processo de redemocratização brasileiro conheci pessoas que expressavam sua fé de maneira muito prática no convívio com os mais pobres. Acreditavam que o evangelho seria o potencializador de denúncias contra as injustiças e, ao mesmo tempo, serviria para diminuir a brutal desigualdade econômica brasileira. Acontece que, por volta dos anos 1980, chega ao Brasil um movimento impulsionado pela chamada “Teologia da Prosperidade” que inspirava os fiéis a serem ricos. Lemos (2017) descreve da seguinte forma a chegada da Teologia da Prosperidade no Brasil, Esse movimento contou com a importação de teologias, literatura, músicas, intercâmbio de lideranças religiosas, surgimento de novas igrejas e novas lideranças religiosas, que passaram a adotar as novas doutrinas impostas pelo novo modelo de teologia. O país aos poucos adentrou-se na seara de renegação da vertente pentecostal tradicionalista, em defesa de uma teologia que rechaça o sofrimento, a pobreza e a doença como condições inerentes à vida terrena (p. 87). Tal movimento arrebanhou milhões de pessoas o que se viu foi uma busca desenfreada por poder e riqueza a tal ponto de que hoje, infelizmente, grande parte do apoio que o presidente recebe vem de setores denominados evangélicos. Deixo claro que a Igreja Presbiteriana Independente do Brasil, denominação à qual faço parte, assumiu um posicionamento na pandemia a favor da ciência e do isolamento social. É nesse contexto de crise na saúde, na economia, na sociedade e nos poderes que escrevo esta dissertação de mestrado. Foi necessário enumerar e relatar todo o contexto porque, de alguma forma, os acontecimentos atuais dizem respeito a essa pesquisa, que versa sobre envelhecimento, saúde, políticas públicas e fazer científico. Há inúmeros desafios pela frente e, dentre eles a manutenção das políticas públicas, e destaco aqui, a área da saúde que atende a população mais carente e de forma mais acentuada os idosos e idosas que conseguiram sobreviver nestes tempos tão difíceis. Por um lado, convivem com o medo da infecção e o preconceito da sociedade, por outro, são cada vez mais dependentes do sistema de saúde tendo em vista que é uma pequena minoria que consegue pagar planos de saúde privados em função do valor altíssimo a ser desembolsado. 24 Sendo assim, proponho no primeiro capítulo, intitulado “A cartografia como metodologia para mapear o acolhimento de idosos e idosas em uma Unidade Básica de Saúde do Município de Assis-SP”, uma apresentação da metodologia escolhida e o porquê entendo que esse método mostrou-se satisfatório para o levantamento dos dados, a observação do serviço de saúde e também as entrevistas realizadas. Procuro descrever a pertinência da metodologia para as Ciências Humanas e sua relevância para o percurso que me propus a realizar. Nesse sentido, além de justificar teoricamente o método, apresento os passos que foram seguidos para a elaboração da pesquisa. No segundo capítulo intitulado “Políticas de Atenção ao Idoso”, proponho investigar, na legislação vigente, os direitos da pessoa idosa para verificar, tanto o contexto da construção dessas políticas, quanto destacar as que envolvem a área da saúde. A sociedade brasileira construiu uma série de leis no decorrer dos anos a fim de oferecer resposta para uma população cada vez mais idosa. Comentarei sobre o significado delas para os idosos e, de maneira mais profunda, deter-me-ei tanto nas leis específicas relacionadas à saúde quanto naquelas que tangenciam o tema. Além disso, faço uma trajetória do processo histórico do Sistema Único de Saúde e localizo onde a Unidade Básica de Saúde se encontra no organograma de atenção à população. No terceiro capítulo intitulado “O acolhimento de idosos e idosas atendidos e atendidas na UBS”. Proponho-me a cartografar e realizar uma reflexão sobre as questões que evidenciaram a necessidade de construir um processo que se pautasse na produção de cuidado do outro, em consonância, assim, com as diretrizes do Sistema Único de Saúde. Além disso procuro apresentar o resultado da coleta de dados das entrevistas realizadas com idosos e idosas que foram atendidos e atendidas na UBS. Busco compreender as possibilidades que surgem no acolhimento por parte dos trabalhadores e trabalhadoras da UBS em relação aos idosos. Na conclusão, temos como objetivo realizar uma reflexão articulando os capítulos anteriores, a fim de verificar como idosos e idosas compreendem o acolhimento e como esse processo é expressivo dentro da Política Nacional de Humanização, além de potencializar o encontro entre os usuários e os trabalhadores e trabalhadoras. Compreende-se aqui uma forma de cuidado que propicia a valorização do ser humano e a ética. Apresento uma reflexão sobre o que o Sistema Único de Saúde representa para a pessoa idosa, principalmente para as mais vulneráveis, e o quanto as políticas públicas são essenciais para a manutenção da vida e da dignidade humana. 25 CAPÍTULO 1 1. A cartografia como metodologia para mapear o acolhimento de idosos e idosas em uma Unidade Básica de Saúde do Município de Assis-SP A cartografia fundamenta-se nos conceitos postulados por Gilles Deleuze (1925-1995) e Félix Guattari (1930-1992) partindo da obra Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia sendo que nela, logo em seu prefácio, revela que: “as multiplicidades são a própria realidade e, não supõem nenhuma unidade, não entram em nenhuma totalidade e tampouco remetem a um sujeito” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 8). Nota-se que o processo, e, por conseguinte seu movimento, recebe atenção pelo fato de que nele encontram-se elementos concernentes às multiplicidades desvelando encontros, potencialidades, lugares, espaços, sujeitos, o que indica uma diversidade constituída “como linhas que se condensam em estratos mais ou menos duros, mais ou menos segmentados e em constante rearranjo – como os abalos sísmicos pela movimentação das placas tectônicas que compõem a Terra” (PASSOS; BARROS, 2010, p. 9). Assim, faço uso da cartografia como instrumento metodológico, tendo em vista o que anunciam Passos e Barros (2010) ao descrever que não há regras de antemão que norteiem a pesquisa e tão pouco objetivos rigorosos a serem alcançados. Todavia, nem por isso trata-se de um caminhar sem rumo. Ao contrário, o que existe é “uma reversão do sentido tradicional de método – não mais caminhar para alcançar metas pré-fixadas (metá-hodós), mas o primado do caminhar que traça, no percurso, suas metas” (p. 17). Nesse sentido, a cartografia é um método, pois não parte de um modelo pré- estabelecido, mas indaga o objeto de estudo a partir de uma fundamentação própria, afirmando uma diferença, em uma tentativa de reencontrar o conhecimento diante da complexidade (ROMAGNOLI, 2009, p. 169). Com a cartografia, observo os processos que se constituem durante a pesquisa e que afetam diretamente tanto o objeto quanto o pesquisador sendo que “o olhar do cartógrafo é parte da construção daquilo que pretende apresentar” (CORREA, 2010, p. 37). A investigação com base na cartografia se mostra significativa tendo em vista que seu uso como ferramenta serve “para abarcar a complexidade, zona de indeterminação que a acompanha, colocando problemas, investigando o coletivo de forças em cada situação, esforçando-se para não se curvar aos dogmas reducionistas” (ROMAGNOLI, 2009, p. 169). Observo, desta forma, que a análise da pesquisa recai sobre “os processos de produção de subjetividade” (PASSOS; BARROS, 2010, 26 p. 8) o que me impele a compreender o quanto o método utilizado é relevante para a pesquisa em ciências humanas, em especial no seu caráter qualitativo. O método proposto está relacionado ao campo das ciências sociais e humanas porque é “mais que mapeamento físico, trata de movimentos, relações, jogos de poder, enfrentamentos entre forças, lutas, jogos de verdade, enunciações, modos de objetivação, de subjetivação, de estetização de si mesmo, práticas de resistência e de liberdade” (FILHO; TETI, 2013, p. 47). A utilização deste método oferece a produção de conhecimento “a partir das percepções, sensações e afetos vividos no encontro com seu campo, seu estudo, que não é neutro, nem isento de interferências e, tampouco, é centrado nos significados atribuídos por ele” (ROMAGNOLI: 2009, p. 170). O campo é visto a partir de um mapa e, conforme Deleuze e Guatarri (1995), O mapa não reproduz um inconsciente fechado sobre ele mesmo, ele o constrói (...). O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social (...). (p. 22). Encontro na cartografia, então, a possibilidade de mapear questões cuja complexidade está sujeita a modificações constantes e também “às múltiplas entradas e saídas que as expressões dos sujeitos desenham em seus gestos e narrativas. Conectividades. Devires” (MARTINES; MACHADO; COLVERO, 2013, p. 206). Diferentemente de pesquisas que têm como base o positivismo e que colocam um certo distanciamento do pesquisador atribuindo a ele uma certa neutralidade e a separação sujeito/objeto, na cartografia, ao contrário, inexiste um caminho pré-estabelecido rigidamente. Assim, a experiência mostra-se como elemento constituinte do processo conforme Passos e Barros (2010): O ponto de apoio é a experiência entendida como um saber-fazer, isto é, um saber que vem, que emerge do fazer. Tal primado da experiência direciona o trabalho da pesquisa do saber-fazer ao fazer-saber, do saber na experiência à experiência do saber. Eis aí o “caminho” metodológico (p. 18). Ao levar em conta a experiência, proponho aqui, mesmo que brevemente, tratar a questão da intervenção com base no pensamento desenvolvido por Passos e Barros (2010). Para o cartógrafo, existe a necessidade de imergir na experiência, porque nela “conhecer e fazer se tonam inseparáveis, impedindo qualquer pretensão à neutralidade” (PASSOS; BARROS, 2010, p. 30). Há, portanto, uma implicação entre o cartógrafo e o objeto de tal maneira que “ os termos da relação de produção de conhecimento, mais do que articulados, aí se constituem” (PASSOS; BARROS, 2010, p. 30). Nesse sentido conhecer é a possibilidade de um posicionamento 27 político a partir de uma nova realidade tanto para si quanto para o mundo. Avança-se para além da representação do objeto como estático com suas características e dispositivos previamente estabelecidos. “Restam sempre pistas metodológicas e a direção ético-política que avalia os efeitos da experiência (do conhecer, do pesquisar, do clinicar, etc.) para daí extrair os desvios necessários ao processo de criação” (PASSOS; BARROS, 2010, p. 31). Revela-se, desta forma, um acompanhamento da realidade com base no conhecimento mapeando seu processo de constituição e o objeto nela inserido. “Esse é o caminho da pesquisa-intervenção” (PASSOS; BARROS, 2010, p. 31). O trabalho do cartógrafo está para além de constatar situações ou simplesmente validar certos aspectos previamente definidos, conforme citado acima, por isso, ancora-se “numa realidade movente, com valores e normas forjadas na história, desconfiando-se sempre da fixidez da realidade a ser pesquisada” (BARROS; SILVA, 2013, p. 341). Quando inserido no campo depara-se com várias situações que necessitam de sua atenção, e Kastrup (2015) aponta quatro tipos de atenção que pertencem ao trabalho do cartógrafo: “são eles o rastreio, o toque, o pouso e o reconhecimento atento (KASTRUP, 2015, p. 40). O rastreio tem a ver com o acompanhamento que se dá em relação ao objeto, tendo em vista que há possibilidade de alterações constantes, “para o cartógrafo, o importante é a localização de pistas, de signos de processualidade” (KASTRUP, 2015, p. 40). A atenção relacionada ao toque não se prende à forma, mas sim à força que é direcionada subjetivamente ao cartógrafo. O toque pode levar tempo para acontecer e pode ter diferentes graus de intensidade. Sua importância no desenvolvimento de uma pesquisa de campo revela que esta possui múltiplas entradas e não segue um caminho unidirecional para chegar a um fim determinado. Através da atenção ao toque, a cartografia procura assegurar o rigor do método sem abrir mão da imprevisibilidade do processo de produção do conhecimento, que constitui uma exigência positiva do processo de investigação ad hoc (KASTRUP, 2015, p. 43). A atenção pelo pouso proporciona ao cartógrafo um olhar que redimensiona seus sentidos e os amplia reconfigurando seu campo de observação. Permite ao cartógrafo um refinamento em relação ao seu trabalho ampliando a relevância e a potência deste, reduzindo a probabilidade de tornar sua percepção ambígua. É pertinente evidenciar que “em cada momento da dinâmica atencional é todo o território que se reconfigura” (KASTRUP, 2015, p. 44). A última forma de atenção elencada diz respeito ao reconhecimento atento. Tal gesto sinaliza que o trabalho do cartógrafo, como foi descrito acima, não é uma descrição ou representação do objeto, mas sim o acompanhamento de processos que se constituem num campo que não é estático, ao contrário, se mostra móvel e cheio de eventualidades. Ocorre, neste sentido, 28 segundo a autora uma diferenciação entre o reconhecimento automático aos quais estamos habituados e reconhecimento atento. No reconhecimento automático há uma construção de certos hábitos que formam imagens que permanecem, formando assim uma determinada ideia ou pensamento. Já, no reconhecimento atento a ideia é outra, “pois o objetivo é justamente cartografar um território que, em princípio não se habitava” (KASTRUP, 2015, p. 45). Ou seja, como o conhecimento é produzido ao longo de um processo na pesquisa, que envolve atenção, origina-se aí, o próprio território a ser observado. Sendo assim, a cartografia propõe um rompimento com o método natural de ciência que estabelece a separação sujeito – objeto, pois, “valoriza a rede de forças ao qual ele está conectado, no que diz respeito às suas articulações históricas e conexões com o mundo, em um movimento dinâmico e permanente” (MARTINES; MACHADO; COLVERO, 2013, p. 207). Por isso a necessidade de o pesquisador visualizar o horizonte ampliado pela possibilidade de novos aprendizados com flexibilidade para compreender a movimentação do campo, dispondo- se a construir constantemente o processo. Nesse sentido, conforme propõe Souza e Francisco (2016), o pesquisador precisará compreender que: a) é um processo interventivo, no sentido de experiência; b) necessitará acompanhar processos; c) habitará um território; d) acessará o plano coletivo de forças e; e) a atenção flutuante e aberta. Enfatizo o fato de que na cartografia o acompanhar processos proporciona adentrar um campo onde tais processos já estão ocorrendo. O processo dispõe de dois sentidos, conforme apontam Martines, Machado e Colvero (2013), o de “processamento e o de processualidade” (p. 207). A distinção ocorre porque o processamento visa “coletar e analisar informações: são colocados de lado fatores extracognitivos, ou seja, a relação que o fenômeno tem com a história, o socius e o plano de afetos” (MARTINES; MACHADO; COLVERO, 2013, p. 207). Já a processualidade “afina-se com a investigação de processos de produção de subjetividade, de processos em curso, nos quais o cartógrafo começa pelo meio, entre pulsações (MARTINES; MACHADO; COLVERO, 2013, p. 207). Nesse sentido, indicam Barros e Kastrup (2015), que a processualidade é o “coração da cartografia” (p. 58). Minha pesquisa foi qualitativa a fim de perceber no discurso dos idosos e das idosas quais as repercussões do acolhimento que receberam em uma Unidade Básica de Saúde. A pesquisa qualitativa, segundo Ferigato e Carvalho (2011) surge em meio a um “contexto científico marcado pela proximidade com os interesses das políticas hegemônicas e pela abordagem positivista, que condicionava seus conceitos, métodos e técnicas” (p. 664). Com o avanço da pesquisa, surgem novos questionamentos que os métodos tradicionais quantitativos não eram capazes de responder. Os pesquisadores tinham uma preocupação com os fatos 29 observáveis derivados dos trabalhos de campo e queriam que tais fatos tentassem “oferecer uma interpretação válida, confiável e objetiva dos fatos” (FERIGATO; CARVALHO, 2011, p. 664). Assim, “todo trabalho de pesquisa que se define como qualitativo deve levar em conta a complexidade histórica do campo, o contexto do objeto pesquisado e a experiência vivida” (FERIGATO; CARVALHO, 2011, p. 664). Aponta-se, desta forma, que minha escolha pela cartografia como o método para a pesquisa qualitativa no estabelecimento da saúde é relevante porque, pela perspectiva cartográfica, se propõe uma análise a partir de outros campos de visibilidade, abrindo a percepção desse estabelecimento de saúde sob outro ângulo: analisar seus funcionamentos e os que eles produzem (FERIGATO; CARVALHO, 2011, p. 670). O cartógrafo envolve-se com a pesquisa, conforme asseveram Passos e Barros (2010), assim, na cartografia, há uma inseparabilidade entre conhecer e fazer, pois “toda pesquisa é intervenção”, a qual se dá por meio de um “mergulho na experiência” (p. 17). Nesse sentido, “a cartografia como método de pesquisa é o traçado desse plano da experiência, acompanhando os efeitos (sobre o objeto, o pesquisador e a produção de conhecimento) do próprio percurso da investigação” (PASSOS; BARROS, p.18). O pesquisador volta-se para toda a complexidade do campo sem perder de vista os processos e estar atento aos movimentos produzidos a fim de elaborar uma pesquisa que forneça subsídios para propor discussões, “pois possibilita o mapeamento de paisagens psicossociais, o mergulho na geografia dos afetos, dos movimentos, das intensidades” (MARTINES; MACHADO; COLVERO, 2013, p. 204). Por isso, quando o pesquisador fala em coleta de dados, vai além da questão crua do extrativismo, na realidade ele já está implicado com o campo desde o início de seu trabalho, “em conjunto com sujeitos, forças e ritmos” (MARTINES; MACHADO; COLVERO, 2013, p. 207). Meu primeiro passo para viabilizar o mapeamento do acolhimento de idosos e idosas em uma Unidade Básica de Saúde e que contribuísse para problematizar o processo de envelhecimento populacional brasileiro dentro da esfera das Políticas Públicas, foi justamente fazer um levantamento bibliográfico. Para tal utilizei as seguintes bases para procurar artigos relevantes que auxiliassem no desenvolvimento da pesquisa: “Portal de Periódicos CAPES/MEC”, “LILACS – Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde”, “SciELO – Scientific Eletronic Library Online”, “PePsic – Periódicos Eletrônicos em Psicologia”, além de livros na Biblioteca “Acácio José Santa Rosa” – Unesp Assis e acesso ao Repositório Institucional da UNESP. Procurei por palavras que envolvessem os seguintes 30 temas: “Envelhecimento”, “Políticas Públicas para Idosos”, “Cartografia”, “Pesquisas qualitativas”, “Sistema Único de Saúde”, “Acolhimento”, “Unidade Básica de Saúde”, “Política Nacional de Humanização”, “Atenção primária” e “Cadernos do SUS”. Foram utilizados ainda pesquisas sites do governo, no Diário Oficial para buscar Leis e Portarias. Por fim fiz buscas em portais de notícias: UOL – Universo On-Line, G1 – Globo.com e BBC Brasil. A pesquisa contou com a aprovação pelo Comitê de ética – CAAE: 97856918.9.00005401. Neste segundo passo o material pesquisado contribuiu significativamente para a fundamentação teórica desta pesquisa permitindo uma maior compreensão das demandas dos idosos e idosas nas Unidades Básicas de Saúde. Além disso, foram realizados os primeiros contatos com a coordenadora da UBS para a autorização da pesquisa naquele estabelecimento e também o reconhecimento de que havia condições de infraestrutura para a realização da pesquisa. Diante da aprovação realizei a próxima etapa de inserção no campo. Em meu terceiro passo fiz a investigação junto à Unidade Básica de Saúde localizada no bairro mais populoso da periferia da cidade de Assis-SP que, juntamente com outros bairros em seu entorno, formam o chamado “complexo da Prudenciana”, que abriga aproximadamente 30 mil pessoas. Por isso a UBS é a maior dentre as seis Unidades Básicas de Saúde da cidade. Seu espaço físico compreende um amplo estacionamento e um grande corredor de entrada que leva à recepção, que possui um balcão de alvenaria e, em seguida uma parede com um vidro que separa os trabalhadores dos usuários. Conta com salas de atendimento que são usadas pela psicóloga, sala de atendimento odontológico, sala específica para atendimento e exames ginecológicos e demais salas para: atendimento médico e; reuniões de equipe que atuam no combate à dengue. Há também uma sala para a coordenação, uma para vacinação, uma para coleta de exames, outra para a realização de curativos, uma para agendar exames e fazer aferição de pressão. Conta ainda com mais duas salas construídas recentemente, onde atuam os estudantes da Faculdade de Medicina do Município de Assis (FEMA), nas especialidades de cardiologia e ortopedia sob a supervisão de professores. A UBS também conta com uma sala onde se localiza o autoclave, outra para serviços administrativos, há uma cozinha e um espaço de convivência ao ar livre. A UBS oferece, além de sua rotina de consultas, programas como o “Agita Assis”, destinado a idosas e idosos voltado para a prática de exercícios físicos. Existem outros programas voltados para as gestantes, além de campanhas regulares de vacinação. A UBS conta com os seguintes trabalhadores da área da saúde: 05 (cinco) médicos clínicos gerais, que atendem tanto no período da manhã quanto no período da tarde; 02 (dois) médicos ginecologistas, que atendem somente na parte da manhã; 03 (três) médicos pediatras 31 que também atendem somente na parte da manhã, com exceção da terça feira, quando não há atendimento; 02 (dois) dentistas que atendem somente pela manhã, 01 (uma) psicóloga que atende num determinado período; 02 (duas) enfermeiras; sendo que uma delas é a coordenadora do posto; 07 (sete) técnicos e/ou auxiliares nos serviços de cadastro, aferição de pressão, cartão SUS, limpeza, cozinha e demais serviços. Além disso, comporta ainda, um grupo de estudantes que são estagiários do curso de psicologia que realizam um trabalho de pesquisa e de atendimento sob a orientação de uma universidade pública que se localiza no município. “Como cartógrafos, nos aproximamos do campo como estrangeiros visitantes de um território que não habitamos” (BARROS; KASTRUP, 2015, p. 61). Compareci na UBS nos meses de outubro, novembro e dezembro de 2019. Nas primeiras visitas mantive o contato com a coordenadora a fim de compreender, observar e me inserir no campo, o que realmente aconteceu. Fui apresentado num primeiro momento aos espaços físicos que descrevi acima e também aos trabalhadores e trabalhadoras que pertenciam a eles. Observava o que me era apresentado com atenção e amplitude. Foram três longos encontros com a coordenadora que me explicou detalhadamente o funcionamento da UBS, desde a questão de horários até a implicação de cada trabalhador e trabalhadora com o seu setor. Foi em um destes encontros que ela me informou quais os dias e horários que registravam o maior número da presença de idosos e idosas além de me convidar para uma reunião de equipe para apresentar a mim e a pesquisa aos demais trabalhadores e trabalhadoras, o que acabou acontecendo na semana seguinte. A UBS possui quatro horários de consultas médicas aos usuários, sendo que dois são pela manhã, às 8h e às 10h e dois à tarde, um às 14h e outro às 16h todos os dias. Os dias de maior movimento são de segunda-feira à quarta-feira com uma pequena redução na quinta-feira e poucos usuários na sexta-feira. Decidi trabalhar da seguinte forma: em uma semana frequentava a UBS pela manhã, das 7h às 10h e na outra semana às tardes das 13h às 16h a fim de observar a movimentação de idosos e idosas e atentar quais os horários mais frequentados por elas e eles. Informei-me também sobre os horários da programação de idosos e idosas oferecido pela UBS, o “Agita Assis”, que era realizado nos períodos da manhã, mais especificamente, a partir das 8h. Procurei inserir-me a fim de compreender, de forma ampla, os afetos ali envolvidos, principalmente os relacionados ao acolhimento das idosas e idosos. Meu quarto passo foi a coleta de dados que fiz nos horários que antecediam as consultas com idosos e idosas. O primeiro critério para a escolha das entrevistadas e entrevistados era visual: Então, eu me apresentava, falava meu nome e perguntava o nome e a idade da pessoa. Após esse primeiro contato informava o motivo da abordagem e se o idoso ou a idosa queriam participar da pesquisa. Após a confirmação positiva, havia a assinatura do Termo de 32 Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), sendo que após a assinatura iniciávamos as perguntas ali mesmo, na sala de espera, em ambiente aberto, mesmo porque os idosos e idosas esperavam por atendimento médico. Fiz entrevistas com os idosos e idosas porque “são fundamentais quando se precisa/deseja mapear práticas, crenças, valores e sistemas classificatórios de universos sociais específicos, mais ou menos bem delimitados, em que conflitos e contradições não estejam claramente explicitados” (DUARTE, 2004, p. 133). A opção pela entrevista semi-estruturada foi o percurso escolhido tendo em vista o fato de que ela é útil tanto para o entrevistador, porque leva em consideração o embasamento teórico sobre o tema proposto, quanto para o entrevistado porque este tem “a possibilidade de discorrer sobre suas experiências, a partir do foco principal proposto pelo pesquisador” (DUARTE, 2004, p. 133). Perguntei às idosas e aos idosos: “1). Qual a idade?”, “2). Há quanto tempo é usuário ou usuária da Unidade Básica de Saúde?”; “3). Quantas vezes por semana o senhor ou a senhora procura a Unidade Básica de Saúde?”, “4). Como o senhor ou a senhora se sente quando chega na Unidade Básica de Saúde?”; “5). Qual o tempo de espera para ser atendido/atendida na Unidade Básica de Saúde?”, “6). O que o senhor ou a senhora sentiu ao ser atendido na Unidade Básica de Saúde?”, “7). O que o senhor ou a senhora sentiu ao ter um pedido atendido prontamente na Unidade Básica de Saúde?”, “8). O que o senhor ou a senhora sentiu ao ter um pedido negado prontamente na Unidade Básica de Saúde?”. Os relatos foram primeiramente gravados no meu celular e registrados posteriormente em meu diário de campo cuja importância destaca-se porque reúne as experiências, sensações, registros do que foi experienciado no campo, ou seja, é um documento. Segundo Lima, Mioto e Prá (2007) essa “documentação tem um caráter dinâmico e flexível quando se consideram suas finalidades – enquanto base para a investigação...” (p. 96). Nesse sentido o diário de campo para Oliveira, Gerevini e Strohschoen (2017) é um “instrumento” e de “cunho inteiramente pessoal” (p. 123), que é utilizado pelo pesquisador para inserir as impressões que foram captadas durante o trabalho no campo. Conforme Khaoule e Carvalho (2013), Os diários de campo oferecem elementos importantes para o aprofundamento das análises e dos dados coletados. O significado de se escrever um diário, o diálogo consigo mesmo, da racionalização sobre o acontecido durante o dia, também tem seus efeitos terapêuticos e educativos (p. 275). O diário de campo como instrumento ainda possibilita, além de rever as cenas ocorridas no campo, refletir sobre os acontecimentos e formular questionamentos que auxiliam no 33 desenvolvimento da pesquisa. É “um registro das práticas realizadas nos campos de estágio possibilita o mapeamento consciente da experiência, uma visão alargada e sequenciada do que foi realizado. Permite uma leitura densa, profunda e pessoal dos eventos assistidos” (KHAOULE; CARVALHO, 2013, p. 275). Registrei as respostas em detalhes a fim de analisar, juntamente com o território que o equipamento está inserido, as questões relativas à população idosa atendida. A inserção na UBS viabilizou uma série de encontros não somente com idosos e idosas. Havia as pessoas que acompanhavam os idosos e as idosas em suas idas até a Unidade Básica de Saúde e com as quais interagi durante as entrevistas. Além destas pessoas, tive a oportunidade de entrar em contato com os trabalhadores e trabalhadoras que, com o passar do tempo, revelavam o dia a dia do seu trabalho, e quais respostas ofereciam para as demandas surgidas. Como disse acima, participei de uma reunião de equipe onde ouvi quais questões eram as mais relevantes e os encaminhamentos decididos pelos presentes. Uma vez inserido no contexto da UBS passei a percorrer diferentes salas, a fim de compreender e registrar algumas dinâmicas do seu funcionamento, tais como: marcação de consultas, exames, curativos, vacinas, prontuários, etc. Participei de conversas informais que ocorriam no café e escutei inúmeras histórias de trabalhadoras e trabalhadores, tanto daqueles e daquelas que já estavam há um bom tempo neste trabalho quanto daqueles e daquelas que chegaram mais recentemente. Meu passo seguinte foi analisar o que havia registrado em meu diário de campo, com o olhar do cartógrafo amparado no pensamento de Passos e Eirado (2015): É pela desestabilização das formas, pela sua abertura (análise) que um plano de composição da realidade pode ser acessado e acompanhado. Trata-se de um plano genético que a cartografia desenha ao mesmo tempo em que gera, conferindo ao trabalho da pesquisa seu caráter de intervenção (p. 109). Percebi que em meu diário de campo havia a narrativa das idosas e idosos e também material abundante proveniente dos encontros na UBS, por isso escolhi mapear o envelhecimento de acordo com o referencial das Políticas Públicas relativas aos idosos na área da saúde. Destaco o acolhimento como ferramenta indispensável nesse processo. O envelhecimento populacional emerge como uma realidade demográfica cada vez maior, contudo questiono quais velhices estão imersas nessa população, em especial a que frequenta a Unidade Básica de Saúde. Assim, nessa processualidade que a realidade se revela, o cartógrafo busca apresentar alguns destaques sobre o envelhecimento e sua compreensão na sociedade contemporânea baseado em textos de referência e também na experiência de imersão no campo. 34 Como a própria cartografia assinala, farei o reconhecimento dessa processualidade considerando o quanto é móvel e altera-se possibilitando novas cenas. O olhar do cartógrafo constrói uma possibilidade de paisagem, mas o mapa expande- se para além de seus contornos. Por isso, a pesquisa deve comportar espaços vazios de interlocução e de recriação a partir do encontro entre cartógrafo e seu campo de trabalho (CORREA, 2010, p. 41). Busco, nesse sentido, mapear as saliências que o campo produz, sendo sensível nesse encontro e reconhecendo o cuidado que isso exige, tendo em vista que “a pesquisa cartográfica coloca-se entre aquelas que afirmam a importância do interesse da ciência pelo que investiga, aceitando em contrapartida, o interesse próprio do objeto” (KASTRUP; PASSOS, 2013, p. 272). As relevâncias que emergem do campo deixam de ser apresentadas de forma neutra pelo cartógrafo, que se implica a ponto de produzir uma possível cena do processo que ocorre, consciente de que ela continua em movimento. Assim, lanço-me no que Passos e Eirado (2015) assinalam: o trabalho cartográfico consiste em mais do que processar informações oriundas do meio e não apenas em uma idealização a respeito de uma subjetividade que é oferecida. O cartógrafo visa mergulhar ainda mais no sentido ético-político para ir além de dados pré- estabelecidos, por isso, “seu paradigma não é o do conhecer, mas o do cuidar, não sendo também o do conhecer para cuidar, mas o do cuidar como única forma de conhecer, ou ainda, o paradigma da inseparabilidade imediata entre conhecer e cuidar” (PASSOS; EIRADO, 2015, p. 122-123). Pretendo, assim, oferecer aos idosos e idosas acesso para que sejam vistos e ouvidos em seus afetos, tanto em relação ao envelhecimento quanto ao acolhimento que recebem na Unidade Básica de Saúde. Estou de forma inequívoca implicado com a pesquisa, porque “cartografamos com afetos, abrindo nossa atenção e nossa sensibilidade a diversos e imprevisíveis atravessamentos” (KASTRUP; PASSOS, 2013, p. 277), compreendendo que a cartografia proposta revela uma cena de um campo que continua em movimento. 35 CAPÍTULO 2 2. Políticas de atenção ao idoso O envelhecimento populacional pode ser observado no Brasil a partir da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios feita em 2009 e divulgada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (2010), que informa uma significativa “alteração na proporção do contingente dos diversos grupos etários no total da população. Por exemplo, em 1940, a população idosa representava 4,1% da população total brasileira, mas passou a representar 11,4% em 2009” (BRASIL; 2010, p. 3). Este aumento da população idosa está diretamente relacionado ao aumento da “expectativa de vida que em 1940 era de 41,5 anos. Setenta anos depois, esta expectativa saltou para 73 anos, e as projeções do IBGE apontam que, em 2020, a expectativa de vida ultrapassará os 75 anos” (FRANÇA; SILVA; BARRETO: 2016, p. 520). Em 2015 a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) apresentou mais dados que comprovam o crescimento da população acima de 60 anos atingindo 14,3% (IBGE, 2016, p. 37). Diante da realidade demonstrada pelos estudos demográficos sobre o aumento da população idosa, proponho olhar com mais atenção para este fenômeno, a fim de perceber o surgimento de outras questões a serem problematizadas no que diz respeito a vida dos idosos, tais como: “arranjos familiares, saúde e mortalidade e rendimentos” (PASINATO; CAMARO, 2004, p. 2). Nesse sentido o envelhecimento repercute tanto no sujeito quanto nos seus laços sociais revelando a necessidade de examinar acuradamente o impacto nas diversas faixas de envelhecimento, porque “a população ‘mais idosa’, ou seja, a de 80 anos ou mais, também está aumentando, alterando a composição etária dentro do próprio campo (CAMARANO et al, 1999, p. 25). Por este motivo, diversos pesquisadores destacam a necessidade de se promover ainda mais políticas públicas, ou efetivar as já existentes, relacionadas ao processo de envelhecimento, uma vez que, segundo Pasinato e Camaro (2004), muitos idosos e idosas se aposentam, em sua maioria, com apenas um salário mínimo. Nesse sentido, há um marcador econômico que destaca os que possuem condições econômicas como “Terceira Idade”, enquanto aqueles que possuem menos condições financeiras são chamados e chamadas de “velhos” e “velhas”, conforme Peixoto (1998). Acrescento ainda que uma parte dos idosos e idosas acaba tendo como residência as Instituições de Longa Permanência de Idosos (ILPI), devido a uma série de fatores, tais como o impedimento de morarem sozinhos, doenças ou 36 deficiências ou ainda o abandono dos familiares segundo Loureiro (2012). Os termos “velho” ou “terceira idade” não compreendem o total das representações a que estão submetidos, existindo outros marcadores como: “melhor idade”, “idosos” “idade madura”, tudo isso, todavia só reforça a questão de que há uma construção social da velhice, conforme observam Borini e Cintra (2002) As marcas e signos que acompanham cada palavra conferem uma certa identidade a cada "tipo" das pessoas envelhecidas; há com efeito uma construção social da velhice. Ao "velho" são atribuídas as imagens de doença, solidão, inatividade. O termo idoso é utilizado em documentos jurídicos, para efeito de leis e direitos deste grupo da população e para a Terceira Idade são atribuídos signos de saúde e bem estar (p. 569). Alguns motivos colaboraram para o aumento da expectativa de vida, entre eles o avanço da medicina, o desenvolvimento de ações na prevenção de doenças e, notadamente, neste caso específico, campanhas preventivas com a participação mais efetiva das mulheres do que dos homens, resultando numa expectativa de vida mais alta das mulheres do que dos homens, segundo o IBGE: “79,9 anos para as mulheres, enquanto que para os homens 72,8, em 2018”. Diante da constatação de que há em curso um processo de envelhecimento populacional há, então, uma repercussão significativa na sociedade que é derivada de avanços na área da saúde. Espera-se que, na mesma proporção em que o envelhecimento cresce, cresçam também, e com urgência, políticas públicas nesta área, sobretudo para a população de baixa renda, que é a que mais utiliza e depende dos serviços de saúde, de assistência social e outros da rede pública. Sendo assim, para falar das políticas de atenção ao idoso, compreendo a necessidade de trazer à tona o que são políticas públicas e a sua relevância para a população. Por isso, inicialmente, trago aqui o conceito de “política pública” para, então, avançar na direção das políticas públicas para idosos no Brasil. 2. 1. As políticas públicas e sua relevância Historicamente, as políticas públicas possuem várias interpretações que tentam estabelecer uma definição para o tema. Segundo Brasil e Capella (2016), remetem aos anos 50, nos Estados Unidos, as tentativas de elaboração de um termo que confluísse as ideias presentes e chegou-se à definição de Thomas Dye (1975), em que seria uma escolha do governo realizar ou não (BRASIL; CAPELLA, 2016, p. 74). Os autores relatam que houve uma série de questionamentos em relação a essa definição, contudo salientam que para uma política pública, “um elemento central é a ideia de que o agente mais importante do processo de produção de 37 políticas públicas é o governo” (BRASIL; CAPELLA, 2016, p. 74). Nesse sentido Lucchese (2004) corrobora afirmando que, As políticas públicas podem ser definidas como conjuntos de disposições, medidas e procedimentos que traduzem a orientação política do Estado e regulam as atividades governamentais relacionadas às tarefas de interesse público. São também definidas como todas as ações de governo, divididas em atividades diretas de produção de serviços pelo próprio Estado e em atividades de regulação de outros agentes econômicos (p. 3). Teixeira (2002) acrescenta ainda que as políticas públicas “são diretrizes, princípios norteadores de ação do poder público; regras e procedimentos para as relações entre poder público e sociedade, mediações entre atores da sociedade e do Estado” (p. 2). O autor adiciona a esse pensamento a negligência, ou “as omissões, como formas de manifestação de políticas, pois representam opções e orientações dos que ocupam cargos" (TEIXEIRA, 2002, p. 2). Nota- se, assim, que as políticas públicas têm como principal articulador o Estado, que recebe outros atores provenientes da sociedade civil. Silva et al. (2017) afirma que há um ciclo que envolve a política pública, envolvendo “os gestores públicos, juízes, burocratas, políticos e outras instituições do Governo” (p. 27) são os “que de fato podem decidir sobre o encaminhamento das políticas (SILVA et al, 2017, p. 27). Por outro lado, existem os atores que compõem a sociedade civil, tais como “consumidores, empresários, trabalhadores, corporações, centrais sindicais, mídia, entidades do terceiro setor, dentre outros, são aqueles que têm poder para poder direcionar a formatação das políticas e exercer influências sobre os agentes públicos” (SILVA et al. 2017, p. 27). Observo, conforme aponta Teixeira (2002), que há uma diferença entre a política pública e a política governamental. A política pública só pode ser considerada desta forma quando leva em conta “a quem se destinam os resultados ou benefícios, e se o seu processo de elaboração é submetido ao debate público” (p. 2), ou seja, os atores da sociedade civil são elementos fundamentais, tanto na elaboração quanto na destinação da política pública. Nesse sentido, a participação cidadã é vital na articulação da política pública, porque expressa ao Estado as questões que são relevantes para a sociedade de maneira planejada e coletiva. Copatti (2010) aponta que o exercício do estado democrático de direito requer uma sociedade organizada com cidadãos que sabem quais são os seus direitos e busca promover condições que possam beneficiar a todos. Assim, há a necessidade de “inteirar-se dos assuntos, desenvolvendo o capital social da comunidade e o empoderamento da mesma, influenciando decisões que são do seu interesse...” (COPATTI, 2010, p. 87). 38 No Brasil, a questão do exercício da cidadania precisa ser ampliada tendo em vista o recente processo de redemocratização que o país passou. Jacobi (2002) resgata esse processo histórico e acrescenta que, No Brasil, a reflexão sobre a cidadania se centra nos obstáculos à sua extensão, decorrentes da cultura política tradicional, e das perspectivas da sua transformação. A nova dimensão da cidadania inclui, de um lado, a constituição de cidadãos no papel de sujeitos sociais ativos, e, de outro lado, para a sociedade como um todo, um aprendizado de convivência com esses cidadãos emergentes que recusam permanecer nos lugares que lhes foram definidos social e culturalmente (p. 446). 2.2. Políticas Públicas voltadas para os idosos Volto, agora, para a questão relacionada a pesquisa que envolve os idosos e idosas no tocante ao desenvolvimento destas políticas no Brasil. Rodrigues (2001) elabora uma relação historiando o desenvolvimento da Política Nacional do Idoso e menciona algumas ações voltadas para idosas e idosos antes de 1994, ano da implementação da política nacional para pessoas idosas. “O que houve antes, em termos de proteção a esse segmento populacional, consta em alguns artigos do Código Civil (1916), do Código Penal (1940), do Código Eleitoral (1965)” (Idem, 2001, p. 149). Inclui ainda uma série de leis, portarias e decretos. Com base em dados demográficos a autora constata que desde 1970 o envelhecimento tornou-se uma questão que vem “preocupando alguns técnicos da área governamental e do setor privado” (RODRIGUES, 2001, p. 149). Após uma série de trabalhos voltados para o tema do envelhecimento, nos anos 80, surge, então na década de 90 a proposta e a criação de uma lei específica para a pessoa idosa. O momento histórico em que a Política Nacional do Idoso foi implantada é importante porque ao mesmo tempo em que há em curso a criação de políticas públicas, no plano econômico o governo brasileiro adere ao modelo neoliberal o que não impediu, por exemplo, que o SUS (Sistema Único de Saúde) continuasse seu processo de implementação – muito por força da luta de trabalhadores e trabalhadoras da saúde e da comunidade. E com base nos dados demográficos levantados ao longo dos anos percebeu-se a necessidade de responder às crescentes demandas de sua população que envelhece e assegurar os direitos sociais à pessoa idosa, ao criar condições para promover sua autonomia, integração e participação efetiva na sociedade, reafirmando o direito à saúde nos diversos níveis de atendimento do SUS (FERNANDES; SOARES, 2012, p. 1498). 39 Em outubro de 2003, foi instituído pela Lei nº 10.741, o Estatuto do Idoso, que objetiva garantir direitos aos idosos e idosas. Somado à Política Nacional do Idoso, essas legislações proporcionam uma atenção maior para o envelhecimento e favorecem a ampliação de estudos voltados principalmente para a área da saúde, trazendo questões, por exemplo, sobre o acolhimento e de promoção de saúde dos idosos e idosas, dentre outros. Mais do que isso, o Estatuto do Idoso favoreceu a ampliação da discussão sobre os direitos da pessoa idosa, indicando qual implicação que a sociedade, a família e o Estado têm para a manutenção do respeito à dignidade dos idosos e idosas. Para Fernandes e Soares (2012) o Estatuto do Idoso privilegia a atenção tanto para o idoso e idosa que têm a sua autonomia, mas também aqueles e aquelas que apresentam um certo grau de dependência, pois oferece subsídios tanto na atenção quanto na promoção da saúde da pessoa idosa. Nesse sentido, alguns pontos do Estatuto enfatizam o direito à saúde da pessoa idosa, como, por exemplo, o Art. 2 que afirma que “o idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei...” (BRASIL. 2013, p. 7). O Art. 15 trata da integralidade da atenção à saúde e que deve ser garantido pelo SUS: “É assegurada a atenção integral à saúde do idoso, por intermédio do Sistema Único de Saúde - SUS, garantindo-lhe o acesso universal e igualitário...” (BRASIL. 2013, p. 12). Já o artigo 18 prevê ações que qualifiquem os profissionais e orientem os cuidadores e familiares: “As instituições de saúde devem atender aos critérios mínimos para o atendimento às necessidades do idoso, promovendo o treinamento e a capacitação dos profissionais, assim como orientação a cuidadores familiares e grupos de autoajuda” (BRASIL. 2013, p. 15). Os direitos e garantias para os idosos são amplos e buscam oferecer um conjunto de ações articuladas para que a pessoa idosa tenha assegurado um abrangente acesso a serviços que promovam e atentem para a saúde. A atenção prevista para a saúde implica desde o cadastramento, passando ao atendimento, inclusive domiciliar, caso seja necessário e o acesso aos medicamentos com o auxílio do poder público. Os idosos que são deficientes têm direito a atendimento especializado conforme regulamentação da Lei (BRASIL, 2013, p. 14). O Estatuto é um marco significativo porque reconhece o idoso como sujeito, inclusive na possibilidade de escolha do tratamento que lhe for mais favorável, quando for possível (BRASIL, 2013, p. 15) e, além disso, há garantias para um tratamento humanizado. Houve uma ampliação das políticas públicas do Ministério da Saúde em relação à saúde do idoso. Destaco “a Política Nacional da Pessoa Idosa (PNSPI), através da Portaria GM 2. 528, de 19 de outubro de 2006” (BRASIL: 2006, p. 12), sendo esta responsável por definir “as 40 diretrizes norteadoras de todas as ações no setor de saúde e indicadas as responsabilidades institucionais para o alcance da proposta” (FERNANDES; SOARES, 2012, p. 1499). Esta política pretende possibilitar uma velhice autônoma, com qualidade de vida conciliada às diretrizes do SUS (Sistema Único de Saúde), tanto na perspectiva individual quanto coletiva, nos diversos níveis de atenç