unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP LUÍS ANTÔNIO CORRÊA DOS REIS ARARAQUARA – S.P. 2024 LUÍS ANTÔNIO CORRÊA DOS REIS Dissertação de Mestrado, apresentada ao Conselho, Programa da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Estudos Literários. Linha de pesquisa: Relações intersemióticas. Orientador: Prof. Dr. Alexandre Silveira Campos. ARARAQUARA – S.P. 2024 IMPACTO POTENCIAL DESTA PESQUISA Este trabalho propõe uma análise da obra brasileira contemporânea K. – Relato de uma busca (2011), de Bernardo Kucinski, para demonstrar como o autor aborda temática e esteticamente a violência praticada durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985) e as reverberações desse autoritarismo na experiência social brasileira. Para isso, também são consideradas as relações entre literatura, memória e História acionadas sob uma perspectiva semiótica, segundo os parâmetros teóricos de linhagem francesa, formulados por A. J. Greimas. (1917-1992). POTENTIAL IMPACT OF THIS RESEARCH This work proposes an analysis of the contemporary Brazilian book K. – Relato de uma busca (2011), by Bernardo Kucinski, to demonstrate how the author thematically and aesthetically approaches the violence practiced during the military dictatorship in Brazil (1964-1985) and the reverberations of this authoritarianism in the Brazilian social experience. To this end, the relationships between literature, memory and History are also considered from a semiotic perspective, according to theoretical parameters of French lineage, formulated by A. J. Greimas. (1917-1992). LUÍS ANTÔNIO CORRÊA DOS REIS Dissertação de Mestrado apresentada ao Conselho, Programa da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Estudos Literários. Linha de pesquisa: Relações intersemióticas. Orientador: Prof. Dr. Alexandre Silveira Campos. Data da defesa: 23/05/2024 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Prof. Dr. Alexandre Silveira Campos Universidade Estadual Paulista (UNESP) Membro Titular: Profa. Dra. Silvia Beatriz Adoue Universidade Estadual Paulista (UNESP) Membro Titular: Profa. Dra. Maria Zilda Ferreira Cury Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Local: Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Letras. UNESP – Campus de Araraquara. Para Bruna e Davi AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus. “Não fui eu que lhe ordenei? Seja forte e corajoso! Não se apavore, nem se desanime, pois o Senhor, o seu Deus, estará com você por onde você andar.” Agradeço a minha mãe Sueli e ao meu pai Mário (in memoriam), a base do que me tornei, por tanto amor e zelo dedicados ao longo de uma vida. À Eliana, minha companheira de caminhada, amor em forma de dedicação, a quem devo muito da motivação para seguir até aqui. Você sonhou comigo e fez esse sonho se tornar possível. Obrigado! Aos meus filhos, Bruna e Davi, a quem já dediquei este trabalho, mas os referencio em agradecimento. Fontes infindáveis de amor e alegria. Ao meu orientador, professor Alexandre Silveira Campos, por todo apoio, atenção e confiança. Às professoras Silvia Beatriz Adoue e Maria Zilda Ferreira Cury, membros da banca que me honraram com as respectivas presenças, cujas contribuições recebidas foram fundamentais para o percurso deste trabalho. Aos docentes da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara por tantos saberes compartilhados desde que, há mais de 20 anos, por aqui aportei com entusiasmo e obtive, entre os cursos de Ciências Sociais e Letras, muito mais do que imaginei. À universidade pública, geradora de tantas oportunidades. “Brasil, meu nego Deixa eu te contar A história que a história não conta O avesso do mesmo lugar Na luta é que a gente se encontra” (Deivid Domênico; Tomaz Miranda; Mama; Marcio Bola; Ronie Oliveira; Danilo Firmino, 2019) “Pede perdão pela duração Dessa temporada, mas não diga nada Que me viu chorando E pros da pesada diz que vou levando” (Chico Buarque; Toquinho, 1971) RESUMO O romance K. - Relato de Uma Busca (2011), escrito por Bernardo Kucinski, apresenta uma perspectiva sobre eventos ocorridos no Brasil a partir do golpe militar de 1964, com a instalação do regime que perduraria até 1985. A narrativa polifônica gira em torno do desaparecimento de uma professora de química da Universidade de São Paulo (USP) e acompanha a busca e enfrentamento do pai para descobrir o paradeiro da filha em meio aos mecanismos do regime, assim como revela a permanência desse sistema repressor na sociedade brasileira pós Comissão Nacional da Verdade (CNV). O objetivo da pesquisa consiste em contextualizar a obra no romance contemporâneo brasileiro, especialmente no que se refere às múltiplas abordagens da ditadura militar, assim como compreender em que medida a obra contribui para o debate sobre a memória política nacional. As especificidades estéticas do autor e sua obra serão levantadas tendo por base conceitos da semiótica de linha francesa, segundo apresentados por A. J. Greimas (1984; 2014), especialmente o percurso gerativo de sentido e seus três níveis de leitura, que partem do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto. A leitura deverá considerar também os elementos da enunciação e os mecanismos de instauração de pessoa, espaço e tempo no enunciado que, no caso da obra de Kucinski, alternam traços de objetividade histórica, instância que situa a obra e instaura a veridicção, e efeitos subjetivos do processo político retratado. Também serão considerados os elementos intertextuais que estabelecem um diálogo entre K. – Relato de uma busca e outras obras do mesmo autor, quase todas atravessadas pela experiência da ditadura militar. O texto ainda se nutre de um diálogo com a literatura de Franz Kafka, referência explicitada por meio da denominação do personagem K. Para cumprir com essa proposta, serão considerados autores que trataram das relações entre literatura, história e memória, como Antonio Candido (1992, 2010), Seligmann-Silva (2008), Maurice Halbwachs (2006), Regina Dalcastagnè (1996) e Eurídice Figueiredo (2017, 2020). Os conceitos semióticos serão considerados a partir das abordagens de Greimas e Courtés (1984), José Luiz Fiorin (1999, 2006, 2016, 2018, 2019), Diana Luz Pessoa de Barros (1994, 2004, 2007), entre outros. Palavras-chave: Literatura; Semiótica; Ditadura. ABSTRACT The novel K. - Relato de Uma Busca (2011), written by Bernardo Kucinski, presents a perspective on events that occurred in Brazil after the military coup of 1964, with the installation of the regime that would last until 1985. The polyphonic narrative revolves around of the disappearance of a chemistry professor from the Universidade de São Paulo (USP), told through her father, the main narrative voice, and allows us to glimpse part of the individual and collective experience manipulated by the mechanisms of the regime, as well as the permanence of this system repressive in Brazilian society after the Comissão Nacional da Verdade (CNV). The objective of the research is to place the work in the tradition of Brazilian historical novels about the military dictatorship, as well as to understand to what extent the work contributes to the debate on national political memory. The aesthetic specificities of the author and his work will be raised based on concepts of French semiotics, as presented by A. J. Greimas (1984; 2014), especially the sense-generating route and its three levels of reading, which start from the simplest and abstract to the most complex and concrete. The reading should also consider the elements of the enunciation and the mechanisms for establishing person, space and time in the enunciation which, in the case of Kucinski's work, alternate traces of historical objectivity, an instance that situates the work and establishes veridiction, and subjective effects of the political process portrayed. Intertextual elements that establish a dialogue between K. - Relato de Uma Busca and other works by the same author will also be considered, almost all of which are permeated by the experience of the military dictatorship. The text is also based on a dialogue with the literature of Franz Kafka, a reference made explicit through the name of the character K. To fulfill this proposal, authors who dealt with the relationships between literature, history and memory will be considered, such as Antonio Candido (1992, 2010), Seligmann-Silva (2008), Maurice Halbwachs (2006), Regina Dalcastagnè (1996) and Eurídice Figueiredo (2017, 2020). Semiotic concepts will be considered based on the approaches of Greimas and Courtés (1984), José Luiz Fiorin (1999, 2006, 2016, 2018, 2019), Diana Luz Pessoa de Barros (1994, 2004, 2007), among others. Keywords: Literature; Semiotics; Dictatorship. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ALN Aliança Libertadora Nacional CIE Centro de Informações do Exército CNV Comissão Nacional da Verdade CPC Centro Popular de Cultura DOI-Codi Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna ECA Escola de Comunicações e Artes MR-8 Movimento Revolucionário Oito de outubro NILS Núcleo Interdisciplinas Literatura e Sociedade SECOM Secretaria de Comunicação UFSCar Universidade Federal de São Carlos USP Universidade de São Paulo SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO 12 2. PRIMEIRA PARTE – HISTÓRIA, MEMÓRIA E LITERATURA 2.1 – Memória e testemunho 18 2.2– Literatura e ditadura 31 3. SEGUNDA PARTE – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 3.1 – Ler o mundo pela linguagem 45 3.2 – O percurso gerativo de sentido 48 3.3 – Recursos de leitura do plano de expressão 49 3.4 – Veridicção e enunciação 52 4. TERCEIRA PARTE – PERSPECTIVAS DE LEITURA 4.1 – Inventário de perdas 58 4.2 – Conto e circularidade 60 4.3 – Pessoa, espaço e tempo: a instalação de sentidos 66 4.4 – Uma narrativa polifônica 71 4.5 – Entre a dor e o medo 73 5. QUARTA PARTE – OS PERCURSOS ISOTÓPICOS DO TEXTO KUCINSKIANO 5.1 – A impossibilidade do luto 78 5.2 – A culpa paterna 84 5.3 – Registros da memória 87 5.4 – O passado e a reincidência 89 5.5 – A desumanidade como trauma 94 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS 104 REFERÊNCIAS 108 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 113 12 1. INTRODUÇÃO A Lei Nº 12.528, de 18 de novembro de 2011, que criou a Comissão Nacional da Verdade (CNV), em seu Artigo 1º, estabeleceu a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticados no Brasil entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988, período que contempla a interrupção democrática imposta pelo golpe militar que perdurou no país entre 1964 e 1985, além de “efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional” (Brasil, 2011). Trata-se, portanto, de mais uma tentativa de reconhecer a violência praticada ao longo dos 21 anos de um regime autoritário que, segundo o próprio relatório, dizimou a vida de 434 pessoas, mortas e desaparecidas pelos aparelhos repressores do estado brasileiro. Situada num momento de aparente estabilidade democrática, vinte e três anos após a promulgação da Constituição Cidadã, de 1988, a CNV foi um marco que se almejava definitivo na reparação às vítimas e recuperação da memória desse período. Antes dela, pelo menos outros dois movimentos de leitura, denúncia e reconhecimento das atrocidades praticadas pelo regime militar de 64 já haviam sido deliberados. Eurídice Figueiredo (2017) lembra a criação do grupo “Brasil: nunca mais”, no âmbito da sociedade civil, que reuniu religiosos, advogados e jornalistas num exercício de localizar e preservar processos nos tribunais militares; ao final, depois de fotocopiar 710 processos, o desengavetamento dos documentos oficiais, em que constavam, inclusive, depoimento de torturados, resultou no livro homônimo ao movimento, publicado em 1985. Outro movimento, dessa vez por ação governamental, data de 1995, anterior, portanto, à CNV, com a criação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, que listou 362 nomes de pessoas mortas ou desaparecidas durante os 21 anos de vigência do regime. A repercussão prática da lei foi a possibilidade, ao final, de obtenção do atestado de óbito e indenização por parte das famílias dos desaparecidos, derrubando, em muitos casos, a tese de suicídio defendida estrategicamente pelos operadores do sistema autoritário militar. A segunda etapa do processo, a investigação sobre os crimes e sua autoria, não chegou, no entanto, a ser contemplada. Observada mais de uma década depois, a Comissão Nacional da Verdade trouxe novos avanços quanto ao esclarecimento público das violações dos direitos humanos no Brasil. Segundo Figueiredo (2017), os comandantes do Exército, da Aeronáutica e da Marinha afirmaram não dispor de elementos que possibilitassem qualquer contestação aos atos jurídicos relatados, mas a comissão julgou a manifestação “insuficiente na medida em que não contemplou, de forma clara e inequívoca, o expresso reconhecimento do envolvimento das 13 Forças Armadas nos casos de tortura, morte e desaparecimento relatados pela comissão e já reconhecidos pelo Estado brasileiro (Figueiredo, 2017, p. 19). A CNV também pode ser encarada como uma nova raia temporal de recrudescimento de parte das tensões políticas presentes durante os “anos de chumbo”1. Tão logo ela finalizara seus trabalhos, o Brasil seria acometido por uma nova turbulência antidemocrática, em 2016, com o impeachment de Dilma Rousseff, a ex-presa política que, na condição de Presidente da República, sancionou a lei que criou essa tentativa de lançar luz sobre aquilo que a oficialidade negara desde então. Os governos que sucederam a derrubada da presidente serviram para reconduzir militares para o centro do tabuleiro político, acentuadamente a partir de 2019, com a posse de Jair Messias Bolsonaro, vitorioso nas eleições de 2018, um ex-capitão do Exército cuja trajetória política fora marcada por manifestações explícitas de apoio ao golpe militar de 64 e aos métodos violentos praticados pelos militares durante o regime2. Entre os anos de 2019 e 2022, o governo Bolsonaro teve representantes das Forças Armadas em papéis de destaque da administração federal3. Historiadores, cientistas políticos e especialistas afins seguirão debruçados na tentativa de explicar os percursos históricos e políticos brasileiros. Por ora, os desdobramentos dessa teia de acontecimentos servem para situar uma vasta produção literária engajada sobre o mesmo objeto: o golpe militar de 64 e suas implicações para a vida nacional, desde a sua instalação até os dias atuais. Mais especificamente, o romance a partir do qual se constitui esse estudo, K. – Relato de Uma Busca (2011), de Bernardo Kucinski, lança uma visão sobre acontecimentos 1 A expressão se refere, especialmente, ao período de maior repressão por parte dos militares que comandavam o Poder Executivo no Brasil. Cronologicamente, a fase contempla os últimos anos da década de 60 e início dos anos 70, quando vigorou o mais cruel sistema repressor que o país já viveu, com a intensificação das perseguições, prisões, torturas e mortes. Com o passar do tempo, a expressão passou a ser utilizada para se referir ao período da ditadura militar brasileira, entre 1964 e 1985. (Fonte: https://www.camara.leg.br/radio/programas/279778-periodo-da-historia-do-brasil-conhecido-como-os-anos-de- chumbo/. Aces: 16 out 2023. 2 Entre os inúmeros exemplos registrados oficialmente pela Câmara Federal ou em entrevistas ao longo dos seus mandatos como deputado federal, cargo que exerceu entre os anos de 1991 e 2018, o ex-presidente da República, Jair Bolsonaro, afirmou, no dia 17 de abril de 2016, ao declarar o voto sobre a abertura do processo de impeachment contra Dilma Rousseff: "Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de tudo, o meu voto é sim". A menção refere-se ao ex-chefe do DOI-Codi do Exército de São Paulo, órgão de repressão política do governo militar, entre 1970 e 1974. 3 Segundo reportagem assinada por Laís Lis e publicada pelo G1, o Tribunal de Contas da União (TCU) identificou 6.157 militares da ativa e da reserva em cargos civis no governo do presidente Jair Bolsonaro. Os números referem-se ao ano de 2020, 12 meses após a posse. (Fonte: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/07/17/governo-bolsonaro-tem-6157-militares-em-cargos-civis-diz- tcu.ghtml. Aces: 04 abril 2023) https://www.camara.leg.br/radio/programas/279778-periodo-da-historia-do-brasil-conhecido-como-os-anos-de-chumbo/ https://www.camara.leg.br/radio/programas/279778-periodo-da-historia-do-brasil-conhecido-como-os-anos-de-chumbo/ https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/07/17/governo-bolsonaro-tem-6157-militares-em-cargos-civis-diz-tcu.ghtml https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/07/17/governo-bolsonaro-tem-6157-militares-em-cargos-civis-diz-tcu.ghtml 14 registrados durante o regime, narrando fatos outrora ocultados e revelando atores que moveram as engrenagens do autoritarismo, assim como aqueles que estabeleceram canais de resistência. Em suma, a obra literária de Kucinski se alimenta de um tempo histórico marcado pela busca por justiça em nome dos que foram subjugados. Por meio da construção narrativa, o autor busca denunciar um passado que se faz presente como ameaça de futuro. Com esse passado colocado como trauma, a literatura é, novamente, chamada a prestar seus serviços, tendo a História como alicerce, a memória como recurso e o compromisso inescusável de retratar a condição humana e dar-lhe uma expressão estética. Para Antoine Compagnon, o valor da literatura está na captação do particular, já que ela é o único meio de “preservar e transmitir a experiência dos outros, aqueles que estão distantes de nós no espaço e no tempo, ou que diferem de nós por suas condições de vida” (Compagnon, 2009, p. 47, apud Figueiredo, 2017, p. 45). K. – Relato de Uma Busca é, nesse caso, um romance fulcral, uma cicatriz, conforme a expressão de Vecchi e Di Eugenio (2020), que “absorve a memória do trauma e, pelo corpo, a projeta no espaço público” (p. 2). Para além de um exercício de memória, a literatura, ao trabalhar com vestígios de uma história rasurada, promove um rearranjo dos dados pretéritos por meio da escrita, tal como faz o jornalismo ou a historiografia, como “um palimpsesto a ser decifrado, a ser recomposto, ressignificado” (Figueiredo, 2017, p. 29). Essa noção remete ao conceito de arquivo, conforme formulado por Jacques Derrida. De acordo com o filósofo, o arquivo “tem lugar em lugar da falta originária e estrutural da chamada memória” (Derrida, 2001, p. 22, apud Figueiredo, 2017, p. 29) e se ajusta entre o esquecimento, iminente perante a finitude da memória, e a “pulsão arquiviolítica”, resultado do ímpeto de destruir registros documentais. “A obsessão pelo arquivo é o corolário da perda da memória; arquiva-se para se resguardar do esquecimento. Como não existe mais memória, vivemos numa cultura dos vestígios, vestígios esses que são preservados em arquivos” (Figueiredo, 2017, p. 28). Figueiredo (2017) complementa que a literatura sobre a ditadura “cumpre o papel de suplemento aos arquivos que, ainda quando abertos à população para consulta, são áridos e de difícil leitura. Ao criar personagens, ao simular situações, o escritor é capaz de levar o leitor a imaginar aquilo que foi efetivamente vivido por homens e mulheres” (p. 29). Uma das características dos escritos sobre a ditadura militar é que eles são constituídos das lembranças pessoais e familiares que se somam às informações já levantadas em diferentes arquivos – como as já citadas experiências do movimento Brasil – Nunca Mais, da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos e da Comissão Nacional da Verdade. Um estudo do Observatório do romance pós-ditatorial brasileiro contemporâneo mostra que a publicação de 15 obras que tematizam a ditadura militar brasileira se acentua na década de 2010, período de vigência e publicação do relatório da CNV, conforme veremos adiante, o que nos leva a agregar à noção de arquivo o entendimento de Michael Foucault, para quem os textos surgem através de jogos de relações que caracterizam o nível discursivo; que eles surgem não por acaso, mas segundo regularidades específicas (Figueiredo, 2017, p. 31). Nesse caso, o que se diz e a maneira como se diz sobre a ditatura militar acompanha as perspectivas históricas e as demandas sociais acerca do tema, “a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares” (Foucault, 2009, p. 147, apud Figueiredo, 2017, p. 31). A recusa de Walter Benjamin, em Sobre o conceito da história, ao ideal do historicismo burguês, que almeja pretensamente fornecer uma descrição “a mais exata e exaustiva possível do passado, também cabe aqui. “Articular historicamente o passado não significa conhece-lo ‘tal como ele propriamente foi’. Significa apoderar-se de uma lembrança tal como ela cintila num instante de perigo” (Walter Benjamin, 1974, p. 695 e 701, apud Gagnebin, 2006, p. 40). Essa premissa carrega consigo a ideia de que o passado não pode ser descrito, tal como a um objeto físico, mas articulado. Sendo assim, a introdução deste trabalho pelo contexto histórico aponta para uma forma singular de enunciar o tema. Essa opção não aponta, no entanto, a primazia do externo sobre a elaboração estética. Antonio Candido (2010), ao tratar da impossibilidade de dissociação entre a obra e o meio, destaca que só é possível alcançar a integridade da primeira “fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra” (p. 13). Para o crítico, depois de compreender que tanto a explicação enviesada exclusivamente pelos fatores externos, quanto a convicção acerca da independência estrutural não abarcam plenamente o processo interpretativo, o que interessa é fundir os fatores que atuam na organização interna de modo a assegurar determinada peculiaridade. Sendo assim, Quando fazemos uma análise deste tipo, podemos dizer que levamos em conta o elemento social, não exteriormente, como referência que permite identificar, na matéria do livro, a expressão de uma certa época ou de uma sociedade determinada; nem como enquadramento, que permite situá-lo historicamente; mas como fator da própria construção artística, estudado no nível explicativo e não ilustrativo (Candido, 2010, p. 16-17). Para Gobbi (2013), a relação entre literatura e sociedade não é artificial e nem pode ser localizada posteriormente como exercício investigativo a respeito dos fatos sociais que influenciaram o texto. Sendo assim, “toda a criação artística é produto de um tempo e de um lugar específicos, e corresponde a uma determinada atuação do homem em interação com o seu universo” (p. 113). Isso está posto a partir do próprio exercício de definir o que é literatura e 16 qual a natureza desse tipo de manifestação. Conforme Antoine Compagnon (2010), essa aporia “resulta, sem dúvida, da contradição entre dois pontos de vista possíveis e igualmente legítimos” (p. 30), entendidos como o ponto de vista contextual, que leva em conta, por exemplo, caracteres históricos, psicológicos e sociológicos, e o ponto de vista textual, referente às características linguísticas, imanentes ao objeto. Sendo assim, “a literatura, ou o estudo literário, está sempre imprensada entre duas abordagens irredutíveis: uma abordagem histórica, no sentido amplo (o texto como documento), e uma abordagem linguística (o texto como fato da língua, a literatura como arte da linguagem)” (Compagnon, 2010, p. 30). Tendo tais considerações como premissa, a obra de Kucinski se apresenta como resultado do acúmulo de experiência pessoal e familiar do próprio autor, conforme será explicitado a seguir, projetada no âmbito ficcional por meio das elaborações narrativas que emulam o trauma coletivo de enfrentamento cíclico do autoritarismo, no Brasil e fora dele. Apesar dos traços testemunhais ou, por aproximação, autobiográficos discerníveis a priori, K. – Relato de Uma Busca é, simultânea e consistentemente, um exercício de linguagem, concebido sob preceitos do gênero literário e, como tal, passível de análise segundo as opções teóricas determinadas para esse fim. O percurso desta análise começa considerando as relações entre literatura, história e memória, a partir dos conceitos de autores como Márcio Seligmann-Silva (2008, 2014), Maurice Halbwachs (2006), Antônio Roberto Esteves (2010), Regina Dalcastagnè (1996), Eurídice Figueiredo (2017, 2020), entre outros. No segundo capítulo, a dissertação se ocupa do desenvolvimento de princípios da semiótica de linhagem francesa, conforme postulados por J. Greimas (1974), com o objetivo de analisar os meandros do texto e suas significações, especialmente a partir dos elementos da enunciação (pessoa, espaço e tempo) e os constituintes do percurso gerativo de sentido, segundo postulado pelo mesmo autor e abordado criticamente por José Luiz Fiorin (1999, 2006, 2016, 2018, 2019) e Diana Luz Pessoa de Barros (1994, 2004, 2007). Por fim, no terceiro capítulo, interpretações acerca do romance K. – Relato de Uma Busca, de Bernardo Kucinski, analisando as escolhas narrativas, a intertextualidade e características que fazem desse um romance singular na literatura contemporânea brasileira. A escolha pelo suporte teórico da semiótica se coloca como uma possibilidade de estabelecer uma maneira singular de interpretar o corpus deste trabalho como complemento às abordagens, bastante utilizadas aqui, que alcançam os conceitos de memória, história e testemunho no âmbito da literatura. Tais escolhas não culminam na propalada contradição entre a imanência e a transcendência do texto, ou seja, a impossibilidade de equivalência muitas vezes apontada entre os aspectos internos e externos do objeto textual, que tenta limitar 17 epistemologicamente a semiótica como um exercício isolado de imanência. Contra esse argumento, recupera-se a reflexão de Schwartzmann (2018), que explana sobre as duas possibilidades de leitura da frase célebre de A. J. Greimas: “Fora do texto, não há salvação”. Defende o autor que, num primeiro momento, pode-se ler que a preocupação de Greimas tenha sido, de fato, tão somente o texto. Sendo assim, “tudo o que não é texto, ou não é pertinente ao texto, não é de interesse da semiótica” (Schwartzmann, 2018, p. 1). No entanto, o autor aponta para uma segunda interpretação, por meio do qual o adágio greimasiano alarga as fronteiras do objeto a tal ponto que todas as dimensões que o envolvem são passíveis de leitura, ou seja, tudo é texto. “Não se pode levar a cabo uma análise sem que se tome uma dada grandeza semiótica como um texto” (Schwartzmann, 2018, p. 2), o que conduz a uma ultrapassagem “no redirecionamento das análises e pesquisas na direção dos objetos semióticos, de sua relação com os sujeitos, ou ainda, com os corpos dos sujeitos e com práticas e usos sociais” (Schwartzmann, 2018, p. 4). É a partir dessa perspectiva que passaremos, a seguir, a compreender o texto de Kucinski e extrair, sob determinados princípios teóricos, sua relevância na contemporaneidade da literatura brasileira, a partir de um certo nível de engajamento histórico que permite novos olhares sobre a realidade social e política do Brasil, de ontem e de hoje. 18 2. PARTE 1 – HISTÓRIA, MEMÓRIA E LITERATURA 2.1 - MEMÓRIA E TESTEMUNHO Bernardo Kucinski nasceu em São Paulo, no ano de 1937. Filho de imigrantes poloneses, teve a ascendência familiar marcada pelos horrores da Primeira Guerra e pela perseguição política, que os obrigou a fugir da Europa e buscar refúgio em terras tropicais. Kucinski desenvolveu carreira profissional no jornalismo, ainda na década de 60. Após o golpe militar, mudou-se para a Inglaterra, onde atuou em órgãos da imprensa local e como correspondente estrangeiro de veículos brasileiros. Voltou ao Brasil em 1974, logo após o desaparecimento da irmã, Ana Rosa Kucinski, quando teve participação efetiva na fundação e produção de jornais alternativos, como Movimento e Em Tempo. Em 1986, entrou para os quadros da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), onde ministrou aulas no curso de jornalismo até a aposentadoria, em 2007. Entre os anos de 2003 e 2006, no primeiro governo Lula, foi Assessor Especial da Secretaria de Comunicação Social (SECOM) da Presidência da República Federativa do Brasil. A ruptura democrática brasileira de 1964 e o consequente desaparecimento da irmã dez anos depois pelas mãos dos órgãos de repressão são fatos catalisadores tanto da biografia do autor, que colocam o sobrenome Kucinski como um símbolo da denúncia à opressão e da busca por justiça, quanto do projeto literário de Bernardo, uma vez que atravessam tematicamente seu romance de estreia, K. – Relato de Uma Busca, de 2011, e outras obras da sua produção ficcional, como Você Vai Voltar Pra Mim (2014), Os Visitantes (2016) e Júlia: nos campos conflagrados do Senhor (2020), sobre os quais também discutiremos, ainda que de modo acessório, adiante. Sua obra ficcional ainda inclui Alice não mais que de repente (2014), A nova ordem (2019), A cicatriz e outras histórias: (quase) todos os contos de B. Kucinski (2021), O colapso da Nova Ordem (2022), sendo A nova ordem e O colapso da Nova Ordem um díptico construído como narrativa distópica para debater problemas vigentes nas sociedades a partir de uma representação alegórica do discurso e da prática política no século XXI. Em 2023, Bernardo Kucinski ainda publicou O congresso dos desaparecidos. Sendo assim, rememorar o drama da família Kucinski é situar o trauma do autoritarismo do estado brasileiro no centro da experiência histórica nacional. Mais do que isso, é estabelecer novos parâmetros de denúncia sobre um extermínio político praticado e ocultado pelo aparato estatal brasileiro e buscar, por meio da memória dos acontecimentos, ainda que recriados com recursos ficcionais, o reestabelecimento da justiça e da memória histórica. 19 Kucinski elabora aquilo que Seligmann-Silva (2008) define como “necessidade absoluta do testemunho” (p. 66), entendido como uma modalidade da memória. Sendo assim, para além do sentido religioso ou jurídico que o termo também se associa, há uma acepção estabelecida ao longo do século XX que se relaciona com a tentativa de se ler na cultura as marcas das catástrofes. “Nesta virada a memória passou a ocupar um lugar de destaque, submetendo a quase onipresença da historiografia no que tange à escritura de nosso passado” (Seligmann- Silva, 2008, p. 73). Testemunhar, baseado no que Primo Levi registrou no prefácio de É isto um homem (1947), é um imperativo dialógico, “a necessidade de contar ‘aos outros’, de tornar ‘os outros’ participantes” (1988, p. 8) de uma catástrofe histórica. Por essa razão, o químico e escritor (que não se reconhecia como tal) italiano, sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz, é tratado por Giorgio Agamben (2008) como “um tipo perfeito de testemunha”, pois “quando volta pra casa, entre os homens, conta sem parar a todos o que lhe coube viver” (p. 26). Maria Rita Kehl (2014) lembra que a previsão fatalista de Adorno, de que não seria possível escrever poesia/literatura depois de Auschwitz, se mostrou equivocada, já que incontáveis romances, poemas e memórias de todo o tipo registraram o trauma da vida e da morte nos Lager desde que eles foram desfeitos. “Não é um capricho: é uma necessidade. É preciso compartilhar o acontecido com o outro, os outros” (Kehl, 2014, p. 15). Afirma ela que “as vítimas de todas as experiências de terror sentem necessidade de incluir cada terrível fragmento do Real no campo coletivo da linguagem, como forma de diluir a dor individual na cadeia de sentido que recobre a vida social” (Kehl, 2014, p. 16). Primo Levi, que relatou de modo contundente a experiência de sobrevivente dos campos de concentração nazistas, defende que o testemunho, no seu caso, abarca uma experiência parcial sobre as atrocidades do holocausto. Está instalada, portanto, uma contradição: o que Primo Levi alerta é a impossibilidade do testemunho absoluto desse trauma histórico, uma vez que quem sobreviveu não experimentou os limites daquela condição. Nas palavras do autor italiano, “a história dos Lager foi escrita quase exclusivamente por aqueles que, como eu próprio, não tatearam seu fundo. Quem o fez não voltou, ou então sua capacidade de observação ficou paralisada pelo sofrimento e pela incompreensão” (Levi, 2004, p. 13-14). Em contraposição à ideia de Levi, Ricardo Piglia (2009) refuta a tese de que há limites na linguagem para representar o trauma e defende o papel do intelectual – no qual se inclui a atividade literária. Para o escritor argentino, a manifestação do testemunho por meio da literatura funciona como um contraponto às narrativas formuladas pelo Estado, visto que este também está, de certa forma, construindo ficções. A partir da investigação, a função do 20 escritor/intelectual é mostrar como essa história (oficial) oculta, manipula e falsifica, fazer com que a verdade dessas execuções apareça e buscar, então, um ponto a partir do qual seja possível transformar a situação (Piglia, 2009). Dessa formulação surge a “verdade”, a primeira das propostas que Ricardo Piglia (2009) apresenta como complemento àquelas elaboradas por Italo Calvino para a literatura do novo milênio. Nesse sentido, o esforço do intelectual resulta não numa verdade dogmática e autoritária, mas na construção de um novo campo de investigação por meio da experiência e da linguagem. O autor contesta a crença de que a linguagem tem um limite, tal como formulou Primo Levi, na representação do trauma, como se a linguagem tivesse uma borda da qual fosse impossível a transposição. A superação desse princípio está na busca pela verdade, na necessidade de se reconhecer o percurso para alcançá-la. Outro apontamento para que a linguagem alcance a totalidade da experiência passa pelo deslocamento, por se colocar à margem e estabelecer um movimento em direção a outra enunciação. Piglia defende, portanto, que as experiências podem ser contadas a partir dessas propostas: A verdade tem a estrutura de uma ficção onde o outro fala. Há de se fazer da linguagem um lugar para que o outro possa falar. A literatura deve ser um o espaço em que sempre é o outro que fala. Então, podemos imaginar essa como a segunda proposta. A proposta que eu chamaria, então, de deslocamento, de distância. Sair do centro, deixar a linguagem se manifestar pela borda, lugar em que se ouve e se chega ao outro. (Piglia, 2009, p. 91, tradução nossa) Kucinski também coloca os termos desse debate e reflete, no contexto da sua narrativa, sobre o dilema de contar a parcialidade do que viveu, sob o efeito da melancolia de ter sobrevivido para contar, enquanto outros sucumbiram na totalidade da violência praticada e fazem, do silêncio da ausência, um testemunho completo. Embora cada história de vida seja única, todo sobrevivente sofre em algum grau o mal da melancolia. Por isso, não fala de suas perdas a filhos e netos; quer evitar que contraiam esse mal antes mesmo de começarem a construir suas vidas. Também aos amigos não gosta de mencionar suas perdas e, se são eles que as lembram, a reação é de desconforto. [...] O sobrevivente só vive o presente por algum tempo; vencido o espanto de ter sobrevivido, superada a tarefa da retomada da vida normal, ressurgem com força inaudita os demônios do passado. Por que eu sobrevivi e eles não? É comum esse transtorno tardio do sobrevivente, décadas depois dos fatos. (Kucinski, 2014a, p. 166) Em K. – Relato de uma busca, há indícios da opção do autor pelas recomendações de Piglia. Ao longo dos capítulos, há um exercício de construção de uma verdade por meio do 21 deslocamento em oposição ao discurso oficial. A narrativa se desloca com o pai, que persegue uma realidade que escapa ao mundo aparente e que só se permite compreensível na medida em que a barreira da normalidade é transposta. “Além do mundo que se vê e nos acalma com seus bons-dias boas-tardes, como vai tudo bem, há um outro que não se deixa ver, um mundo de obscenidades e vilanias” (Kucinski, 2014a, p. 29). O narrador reconhece, em seguida, que “não fosse o sequestro da filha, K. nunca teria percebido esse outro mundo tão perto de si” (Kucinski, 2014a, p. 29). Ainda como recurso de “deslocamento”, a narrativa se utiliza de múltiplas vozes que se apartam temporal e espacialmente e alteram o foco sobre os incidentes em torno do casal desaparecido para que outra enunciação se estabeleça sobre os fatos. Por meio dessa história, estabelece-se uma nova forma de narrar a História brasileira. Dessa forma, o drama dos personagens K., A. e o marido mimetizam a condição dos desaparecidos políticos do período, nos termos que Maurice Halbwachs (2006) propõe, de que toda memória individual é necessariamente atravessada pela memória coletiva. Quando algo do indivíduo emerge, leva consigo inevitavelmente várias faces do coletivo. O autor considera que o homem está sozinho apenas em aparência, pois seus atos e pensamentos são explicados por sua natureza de ser social, sem deixar de estar inserido em alguma sociedade nenhum instante sequer. Tal pressuposto não resulta, no entanto, numa homogeneidade da memória, inseridos que estamos no mesmo tempo histórico. Para Halbwachs (2006) “cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda segundo o lugar que ali ocupo e que esse mesmo lugar muda segundo as relações que mantenho com outros ambientes” (p. 69). É por isso que alcançar a verdade histórica é um exercício inglório por natureza, conforme considera Jeanne Marie Gagnebin (2006), para quem o trabalho do historiador é, por definição, viver no relativo. “Sua luta não pode ter por fim o estabelecimento de uma verdade indiscutível e exaustiva” pois “a verdade histórica não é da ordem da verificação factual” (p. 42). Gagnebin arremata o argumento acionando Paul Ricoeur, para quem a história está mais próxima da poiesis que da descrição positivista: O pensamento de Ricoeur também nos lembra, que a história é sempre, simultaneamente, narrativa (as histórias inumeráveis que a compõem; Erzàblung, em alemão) e processo real (sequência das ações humanas em particular; Geschichte), que a história como disciplina remete sempre às dimensões humanas da ação e da linguagem e, sobretudo, da narração. (Gagnebin, 2006, p. 43). 22 Pensar historicamente é, mesmo para o historiador, um exercício ambíguo, cuja paradoxalidade se insere no próprio conceito de história, indissociável do agir e do falar humanos. Há, portanto, criatividade narrativa e inventividade prática na reconstrução do passado que, para evitar que seja enxarcada pela ficção, deva ser cadenciada pelo discurso histórico que se orienta a partir de rastros deixados por quem produz e por quem acessa essa experiência remodelada. Tais rastros são evocados pela memória (Gagnebin, 2006). Gagnebin (2006) atesta em uma de suas conclusões algo que é inescapável a quem escreve sobre a história, que é o dever ético e político existente feito de narrar. É possível afirmar que esse princípio se acentua quando essa memória se coloca em confronto com sistemas que se organizam para impedir a transmissão de memória, como foi a Shoah, no fim da primeira metade do século XX, ou os aparelhos de tortura e morte do regime militar brasileiro. Diz a autora: Enquanto Homero escrevia para cantar a glória e o nome dos heróis e Heródoto, para não esquecer os grandes feitos deles, o historiador atual se vê confrontado com uma tarefa também essencial, mas sem glória: ele precisa transmitir o inenarrável, manter viva a memória dos sem-nome, ser fiel aos mortos que não puderam ser enterrados. Sua "narrativa afirma que o inesquecível existe" mesmo se nós não podemos descrevê-lo. Tarefa altamente política: lutar contra o esquecimento e a denegação é também lutar contra a repetição do horror (que, infelizmente, se reproduz constantemente). Tarefa igualmente ética e, num sentido amplo, especificamente psíquica: as palavras do historiador ajudam a enterrar os mortos do passado e a cavar um túmulo para aqueles que dele foram privados. Trabalho de luto que nos deve ajudar, nós, os vivos, a nos lembrarmos dos mortos para melhor viver hoje. (Gagnebin, 2006, p. 47) Na literatura brasileira contemporânea, o tema da memória se faz presente com especial distinção. Marchezan (2017) analisou a disposição do ideário ficcional que perpassa os contos premiados e finalistas do Prêmio Jabuti no período de 1999 a 2008. Ao todo, o pesquisador observou 33 obras premiadas, que resultaram na leitura de 610 contos. Desse escopo, foram destacados três conjuntos narrativos: o encolerizado, o humorado e o memorialista. Este último, em especial, agrega 16 autores, a maioria dentre aqueles analisados, o que dimensiona como a ficção contemporânea faz da memória um substrato, já que, afinal: Somos, o tempo todo, memória e consciência; representamos o que somos, o que vivemos, o que imaginamos, compartilhado com a experiência vivenciada; representamos experiências de vida, desdobradas a partir de fatos biográficos. Vemo-nos, desse modo, o tempo todo, pela linguagem; somos ou não convencidos pela linguagem; podemos, assim, substituir, com a linguagem, o que aconteceu pelo que poderia ter acontecido. (Marchezan, 2017, p. 528) 23 A trajetória de Kucinski e a abordagem ficcional que ele propõe recriam a experiência coletiva do Brasil das últimas décadas. O que os personagens protagonizam vão além dos dramas pessoais, desenhados sob determinações de espaço e tempo. Eles evocam a instalação de um projeto autoritário de país capaz de atravessar as esferas humanas e sociais. Assim, ao recriar os dias subsequentes ao desaparecimento da professora de química, Kucinski provoca o que Hélène Piralan (2000, apud Seligmann-Silva, 2008) definiu como a “(re)construção de um espaço simbólico de vida”, por meio de uma simbolização que gera um deslocamento temporal do fato antes embalsamado. Weverson Dadalto (2023) lembra que o conjunto da obra de Bernardo Kucinski, em que se pode incluir um farto material acadêmico e jornalístico anterior à entrada no campo da ficção literária, é atravessado pela tematização da persistência da violência e do autoritarismo na sociedade brasileira4. Muitos textos de Kucinski são dedicados à difícil apresentação da tortura, dos assassinatos, dos desaparecimentos, da censura e do ambiente de medo generalizado durante os anos da ditadura, assim como dos efeitos nefastos que o autoritarismo legou à sociedade contemporânea, supostamente democrática. (Dadalto, 2023, p. 9) Para além dos anos de chumbo, Kucinski também se volta ao genocídio de judeus e outros grupos minorizados durante a Segunda Guerra Mundial. Dadalto (2023) defende a tese de que “a literatura kucinskiana apresenta a ditadura como uma manifestação paradigmática da barbárie persistente que atravessa a história da sociedade brasileira, a qual é continuamente marcada pelo autoritarismo violento que a funda e a sustenta” (p. 10). Além disso, há uma conexão estabelecida em sua obra entre a ditadura brasileira e outras grandes catástrofes do mundo moderno, especialmente ao longo do século XX, como o Holocausto. Em K. – Relato de uma busca, esse é um dos fatos que, inicialmente, provoca no personagem K. um distanciamento dos acontecimentos políticos do Brasil, fatigado que está da sua condição de refugiado, assim como sua posterior entrega a uma espécie de destino trágico, num processo cíclico de violência que se estabelece em diferentes contextos sociais mas que, inevitavelmente, deixa cicatrizes profundas na sociedade em que se instala, marcas essas que o autor Bernardo Kucinski se atém como forma de denúncia. Ainda segundo Dadalto (2023): 4 O primeiro livro publicado por Bernardo Kucinski data de 1971. Escrito em coautoria com Ítalo Tronca, Pau de arara: a violência militar no Brasil reúne um farto material jornalístico, que originou uma série de reportagens publicadas pela Revista Veja em 1969, para denunciar internacionalmente a tortura institucionalizada pela ditadura militar no Brasil. O detalhe é que o livro foi publicado antes do desaparecimento, em 1974, de Ana Rosa Kucinski, irmã de Bernardo, e Wilson Silva, cunhado do autor. 24 muitos textos de Kucinski remetem à discussão de formas difusas de violência, contínuas na sociedade brasileira, que incluem a exploração econômica, a exposição de milhares de pessoas à miséria, a brutalidade de ações policiais contra grupos sociais fragilizados, o aparelhamento ideológico da grande imprensa em favor de elites detentoras de poder, o machismo, o racismo, o preconceito e outros variados modos de permanência do autoritarismo na sociedade brasileira, que determinam desde as ordenações político- econômicas até as relações sociais cotidianas. (Dadalto, 2023, p. 10) Antes de avançarmos na relação entre história, memória e literatura, relações necessárias nas considerações sobre K. – Relato de Uma Busca, há ainda outras camadas sobre a questão do testemunho necessárias nessa tratativa. A obra é escrita pelo irmão da professora levada para os porões dos aparelhos de repressão, dos quais ela nunca mais saiu. A experiência, no entanto, é narrada sob a perspectiva do pai. Sendo assim, o autor, Bernardo Kucinski, não assistiu ao que se passou com a irmã na intensidade, por exemplo, que Primo Levi presenciou em Auschwitz, mesmo estando entre os sobreviventes dessa engenharia de extermínio. A voz que acompanha a trajetória do pai naqueles dias é a recriação narrativa de fatos históricos sobre os quais o autor ouviu inúmeras vezes, inserido que estava nesse ambiente familiar, conhecendo aqueles protagonistas em seus percursos, especificidades, tempos e espaços posteriormente revelados no livro. É demasiadamente adjacente, mas não é, no limite, a sua experiência, na concepção do que se pode considerar como “escrita sobre si”, ou seja, uma autobiografia ou uma autoficção, outra vertente marcante da literatura brasileira produzida nas últimas décadas. A proliferação de escritas biográficas e autobiográficas é um fenômeno notado desde os anos 1980. Segundo Figueiredo (2013), o crescimento desse tipo de registro literário ocorre em meio à diluição das fronteiras entre romance e relato, considerando o romance como o gênero impuro por excelência, dotado da capacidade de assimilar características e procedimentos oriundos de outras formas de manifestação. Dessa drenagem praticada pelo romance não escapa a chamada escrita de si. “O surgimento do termo ‘autoficção’ contribui para embaralhar ainda mais a questão, ao juntar, de maneira paradoxal, numa mesma palavra, duas formas de escrita que, em princípio, deveriam se opor” (p. 13). Figueiredo (2013) considera ainda que o romance se transforma ao utilizar procedimentos das chamadas escritas de si. “Em romances recentes, de jovens escritores (sobretudo), mesmo quando se trata de puras ficções, alguns elementos biográficos presentes no paratexto (quarta capa, orelha) e/ou no próprio texto, indiciam uma escrita de cunho autobiográfico ou uma autoficção” (p. 13). É o que ocorre em K. – Relato de 25 uma busca, cercado de elementos de uma autoficção, sem, contudo, formatar-se plenamente dentro do gênero. A questão da leitura do romance a partir da vida do autor é um debate carregado de tensões na crítica literária. Sobre essa mesma inquietação, afirma Compagnon (2010) que “o ponto mais controvertido dos estudos literários é o lugar que cabe ao autor” (p. 47). O movimento estruturalista afastou os aspectos biográficos para a compreensão de uma obra literária, conforme foi defendido por Roland Barthes e Michel Foucault, autores, respectivamente, dos artigos “A morte do autor”, de 1968, e “O que é um autor”, de 1969. Tais proposituras surgiram como contraponto à visão predominante na primeira metade do século XX, na França, que enfatizava o peso da biografia na compreensão da obra de um autor, como consequência de uma postura que vinha desde o século XIX. Barthes (1988, apud Figueiredo, 2013, p. 16) defende que “a partir do momento em que o narrado se torna texto e é dado ao público, começa a morte do autor”. Essa visão estruturalista escora-se no desenvolvimento da linguística, “para a qual só existia sujeito da enunciação enquanto pessoa verbal: o eu que escreve é vazio, só existe enquanto enunciador” (Figueiredo, 2013, p. 16). É de Barthes também o conceito de biografema, que remete à presença de objetos parciais, elementos dispersos presentes num texto que aludem ao universo do autor, como uma assinatura. O que tais vertentes buscam esclarecer, na verdade, é o próprio fenômeno da fragmentação do romance, que também passa a se valer de elementos da autoficção e da biografia com contornos mais ou menos intensos, retomando o paradigma da subjetividade na autoria em detrimento do rigor estruturalista. Essa inflexão é um advento da chamada pós- modernidade e do fim dos ideais iluministas, quando as esperanças de um devir utópico se rendem pela entrada em cena de um individualismo concentrado no presente. “Se na Antiguidade, e durante todo o período clássico, o ideal estético estava no passado [...], a partir do final do século XVIII, com os ideais iluministas, o polo de atração muda: as esperanças passam a estar depositadas no futuro” (Figueiredo, 2013, p. 25). Já na pós-modernidade, com o futuro fora do campo de visão e o sujeito atolado no presente, há uma projeção sobre o passado, “o que explica a proliferação das escritas da memória e da história” (Figueiredo, 2013, p. 25). A emergência da memória é, portanto, um fenômeno político e cultural do nosso tempo. A autobiografia constitui um gênero em que a experiência da memória individual é substância essencial, mas que se formata sob características específicas. Autor de uma obra que busca discutir as implicações desse modelo, Philippe Lejeune (2008) assim definiu a autobiografia: “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria 26 existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade” (Lejeune, 2008, p. 14). Para ele, uma obra pode ser definida como autobiografia quando preenche simultaneamente as condições de linguagem (narrativa, em prosa), assunto tratado (vida individual, história de uma personalidade), situação do autor (identidade do autor e do narrador) e posição do narrador (identidade do narrador e do personagem principal a partir de uma perspectiva retrospectiva). Lejeune (2008) elenca gêneros vizinhos da autobiografia aqueles que não preenchem todas essas condições, como a biografia, memórias, romance pessoal, poema autobiográfico, diário, ensaio (p. 14-15). Se as categorias não são absolutamente rigorosas, defende Lejeune que pelo menos no quesito identidade do autor e do narrador, quanto a sua posição e situação, não há transição nem latitude. “Uma identidade existe ou não existe. Não há gradação possível e toda e qualquer dúvida leva a uma conclusão negativa” (2008, p. 15). Sendo assim, para que haja autobiografia “é preciso que haja relação de identidade entre o autor, o narrador e o personagem” (Lejeune, 2008, p. 15). É nesse aspecto que K. – Relato de uma busca se afasta desse rigor proposto por Lejeune. A narrativa fragmentada, que se apresenta a partir de uma variedade de vozes e personagens, mesmo diante do predomínio da narrativa em terceira pessoa sobre o personagem K, se desapega da vida pessoal enquanto substância narrativa plena. Além disso, as funções de autor, narrador e personagem não convergem, como determina Lejeune, e as identidades são muito mais sugeridas pelas iniciais (K., A.) do que pela afirmação, ao passo que o narrador oscila entre a primeira pessoa do capítulo de abertura, que se aproxima do que seria uma marcação do autor enquanto narrador, e a narrativa em terceira pessoa que acompanha os desdobramento de K., cuja situação em que se encontra na história dá a forte sugestão de referir- se a Meir Kucinski – um pai, portanto, ficcionalizado. “Ao exibir as fraturas do passado pela escrita, Kucinski, em K. – Relato de uma busca, pode transformar seu pai em personagem, dando-lhe uma dimensão e uma profundidade que a simples descrição de fatos ou de opiniões a respeito de seu caráter não poderia realizar” (Silva, 2020, p. 39). Para findar a questão, extrai-se o que Lejeune (2008) aponta como maneiras de marcar a identidade de nome entre autor, narrador e personagem quando esta não está explicitada no enunciado. Uma das alternativas é utilizar a seção inicial do texto, que pode esclarecer ou afirmar a relação entre as partes e firmar, assim, um acordo com o leitor. Por meio desse recurso, “o narrador assume compromissos junto ao leitor, comportando-se como se fosse o autor, de tal forma que o leitor não tenha nenhuma dúvida quanto ao fato de que o ‘eu’ remete ao nome escrito na capa do livro, embora o nome não seja repetido no texto”. Bernardo Kucinski, ao 27 contrário, promove uma ruptura desse pacto ao afirmar que “tudo nesse livro é invenção, mas quase tudo aconteceu” (Kucinski, 2014a, s/n). Ainda sob esse escopo, K. – Relato de uma busca escapa também da “autoficção”, segundo definido por Serge Doubrovsky. Conforme recupera Figueiredo (2013), “a autoficção seria um romance autobiográfico pós-moderno, com formatos inovadores: são narrativas descentradas, fragmentadas, com sujeitos instáveis que dizem ‘eu’ sem que se saiba exatamente a qual instância enunciativa ele corresponde” (p. 61). Em alguma medida, as considerações de Doubrovsky atendem às perspectivas da fragmentação do romance contemporâneo, já que para o autor, quem faz autoficção hoje não narra tão somente o desenrolar dos fatos, mas opta por deformar e/ou reformar tais acontecimentos por meio de artifícios da linguagem (Figueiredo, 2013). Contudo, nem mesmo essa aproximação geral enquadra o romance em questão, pois, para Doubrovsky, assim como para Lejeune, a definição nominal – identidade de nome de autor-narrador-personagem – é um dos critérios fundamentais do gênero. Se tais apontamentos servem para situar a obra em termos de delimitações de gênero, não servem, no entanto, para desconstruir a legitimidade histórica do relato. Se não é “sobre si”, ele é, pelo menos, resultante da condição de observador privilegiado, conforme alerta na primeira epígrafe do romance, extraída do clássico Grande Serão: veredas, de Guimarães Rosa: Conto ao senhor é o que sei e o senhor não sabe; mas principal quero contar é o que eu não sei se sei, e que pode ser que o senhor saiba. (Kucinski, 2014a, s/n) Os termos iniciais remetem a um pacto entre autor e leitor, um compromisso em revelar aquilo que é desconhecido pela falta de registros oficiais, numa recusa insistente de acesso e distorção dos fatos, mas está contido de modo sui generis, tal como uma digital, na experiência do autor, transformada em um narrador principal e assessorada por outros enunciadores ao longo do livro. Ao mesmo tempo, o livro propõe um mosaico de reconstituição histórica ainda em andamento e potencialmente constituído daquilo que se registra em outras memórias e experiências, como um trauma coletivo. A complementação da citação extraída de Grande Sertão: veredas, “mas principal quero contar é o que eu não sei se sei, e que pode ser que o senhor saiba”, é também um convite a uma construção dialógica de sentido do romance nos termos bakhtinianos explicados por Barros (1994), em que “o dialogismo decorre da interação verbal que se estabelece entre o enunciador e o enunciatário, no espaço do texto” (p. 2) e se configura “como espaço interacional entre o eu e o tu ou entre o eu e o outro, no texto” (p. 3). Barros lembra ainda que, para Bakhtin, 28 “nenhuma palavra é nossa, mas traz em si a perspectiva de outra voz” (p. 3). Ao elencar os conceitos fundamentais dessa teoria, como polifonia, intertextualidade e, especialmente, o dialogismo, Beth Brait (1994, p. 14) destaca o caráter dialético da linguagem que, sob a forma de interação, atravessa o indivíduo. Diz a especialista que Tanto as palavras quanto as ideias que vêm de outrem, como condição discursiva, tecem o discurso individual de forma que as vozes – elaboradas, citadas, assimiladas ou simplesmente mascaradas – interpenetram-se de maneira a fazer-se ouvir ou a ficar nas sombras autoritárias de um discurso monologizado. (Brait, 1994, p. 14) A voz que enuncia em K. – Relato de uma busca também resulta e se complementa de múltiplos silêncios e perpetuações, que confirmam ou contrariam as perspectivas historiográficas estabelecidas, delas se apropriando ou contestando. É um discurso inacabado, ainda em termos bakhtinianos, “que se movimenta constantemente nas águas revoltas de outros discursos, passados e presentes” (Brait, 1994, p. 16), e marcado por uma tensão dialética, que, por sua arquitetura, torna multidimensional a representação. Isso ocorre porque “a compreensão de um enunciado é sempre dialógica, pois implica a participação de um terceiro que acaba penetrando o enunciado na medida em que a compreensão é um momento constitutivo do enunciado” (Brait, 1994, p. 25). Tudo opera no sentido apresentando inicialmente, de que texto e contexto se fundem num todo de significado. K. – Relato de uma busca é, assim, a reconstrução de um passado nacional, uma tentativa de justiça histórica em memória dos desaparecidos políticos cujo distanciamento histórico escancara e denuncia os fatos numa tentativa de aproximar do que realmente aconteceu. Tais circunstâncias colocam a todos como coparticipantes da História, ora como cúmplices ou vítimas, ora como testemunhas de um grande esquecimento coletivo. As imbricações entre enunciador e enunciatário, assim como os recursos polifônicos do texto serão analisados adiante. Por ora, o interesse fixa-se nas especificidades propostas por Kucinski em K., obra que, dentro dos limites já expostos, alcança relevância testemunhal. Conforme nos lembra Antelme, sempre que uma crise do testemunho se instala, a imaginação é meio para o seu enfrentamento. Na definição de Seligmann-Silva, O trauma encontra na imaginação um meio para sua narração. A literatura é chamada diante do trauma para prestar-lhe serviço. Et pour cause, se dermos uma pequena olhada sobre a história da literatura e das artes veremos que os serviços que elas têm prestado à humanidade e seus complexos traumáticos não é desprezível. Da Ilíada a Os sertões, de Édipo Rei (Sófocles, [500 BC.] 1982) à Guernica (Picasso, 1937), de Hamlet (Shakespeare, [1602] 1936) ao teatro pós-Shoah de um Beckett, podemos ver que o trabalho de (tentativa) 29 introjeção da cena traumática praticamente se confunde com a história da arte e da literatura (Seligmann-Silva, 2008, p. 70). Seligmann-Silva (2008) discute esse dilema e defende que mesmo a criação literária sustenta um compromisso com o real e, sob o ponto de vista do testemunho, passa a ser vista como indissociável da vida, uma vez que “todo produto da cultura pode ser lido no seu teor testemunhal” (Seligmann-Silva, 2008, p. 71). Em A memória da ditadura na ficção pós-CNV, Berttoni Licarião (2023) escreve que a ficção retoma o trauma e resgata “uma parcela do inconsciente coletivo do campo da experiência impronunciável” (p. 46). Ao transcender a barreira da vivência temporal do período ou fato retratado, reforça-se uma cadeia de transmissão de memórias para que o terro e a arbitrariedade, no caso da experiência do regime ditatorial, não seja esquecido. Ratifica o autor que: Ainda que o passado deixe rastros, no sentido de ruínas tanto materiais quanto simbólicas, esses traços só passam a integrar memórias quando são articulados dentro de um contexto social, que lhes dê sentido e possa ser comunicado. Por meio desse processo, um trauma coletivo começa a ganhar contornos no imaginário social, permitindo que a sociedade não apenas identifique cognitivamente a existência e a fonte do sofrimento humano, mas também assuma responsabilidade pelo mesmo e abra caminhos para novas formas de apropriação da cultura histórica. (Licarião, 2023, p. 46) Isso remete à questão fundamental que é a definição do que é ficção. Entre as acepções consideradas, está a da criação artística, defendida por Magaly Trindade Gonçalves, Zélia Thomaz de Aquino e Zina C. Bellodi (2012) como uma leitura pessoal e original da realidade. Porém, defendem as autoras, que Essa acepção não anula, de forma alguma, o aspecto inventivo, o aspecto de “criação” que envolve toda literatura. Apenas traz à nossa mente que não é do nada que surge a obra, por mais fantástica que ela possa parecer, pois, até mesmo sem que o autor disso tenha consciência, ela é um produto de sua experiência vital, ainda que aparentemente com ela nada tenha a ver (Gonçalves; Aquino; Bellodi, 2012, p. 18) Eurídice Figueiredo (2020), ao analisar os romances que tematizam o exílio e a relação entre escritores e seus países de origem, como A resistência (2015), de Julián Fuks, contextualizado na ditadura argentina, discute como a literatura alcança uma nova consistência quando se posta em diálogo com os acontecimentos históricos. Mais do que criação, a literatura, nesse caso, é uma representação estética. O que a autora considera sobre as obras de Fuks e outros autores se aplica também ao romance de Kucinski. São exemplos em que “a ficção consiste muito mais no arranjo da linguagem a fim de dar uma forma estética que possa entrar 30 em comunicação com o leitor que, propriamente, como fantasia, imaginação ou fabulação” (Figueiredo, 2020, p. 3). A ambivalência entre história e ficção é muito mais aparente do que real. Antonio Candido (1992) buscou na literatura brasileira dos anos 1930 o objeto que permitiu aprofundar essa investigação. Tendo a obra de Graciliano Ramos como corpus, o crítico teorizou sobre as dificuldades do artista de se colocar em contato com a vida sem recriá-la, ao mesmo tempo em que sua criação tem muito da sua trajetória pessoal. Conforme afirma o autor, há “sempre um certo esqueleto de realidade escorando os arrancos da fantasia” (p. 50). Se o autor, tal como Kucinski faria quase um século depois, busca no campo da literatura uma forma de abordar a história (a sua e a dos outros), não o faz para fugir da realidade, mas para encontrar um jeito peculiar de estar inserido nela. O escritor que se realiza integralmente no terreno da confissão vê o mundo, sem disfarce, através de si mesmo. Por outro lado, o escritor que consegue realizar-se na criação fictícia constrói por meio dela um sistema expressional igualmente bastante às suas necessidades de expansão e conhecimento, sem recorrer a outro. Há ainda o caso dos que trabalham nas duas frentes, elaborando, paralelamente, a expressão pessoal e a fictícia, autônomas, embora às vezes complementares; Há também os que têm vocação marcada para a confissão e usam o romance como apêndice memorial ou diário íntimo (Candido, 1992, p. 69) Kucinski está, sem dúvida, entre os que optam por modelos híbridos. K.- Relato de Uma Busca inaugura seu projeto literário, depois de várias décadas tratando a história brasileira como fonte jornalística. No entanto, ela segue presente em sua elaboração narrativa, que agora surge como uma nova forma de expressão detentora de todas as suas experiências e visões de mundo. História e literatura, novamente, se complementam. Novamente voltamos para a epígrafe de K., que aparece como fundamental enquanto perspectiva de análise do texto. “Tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu”5 5 Na primeira edição da obra, publicada pela editora Expressão Popular, em 2011, a advertência era sucedida por um texto maior que foi suprimido nas edições posteriores, feitas pela Cosac Naif, em 2014 (edição utilizada como referência deste trabalho), e pela Companhia das Letras. O texto completo da primeira edição foi: Caro leitor: Tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu. Deixei que lembranças fluíssem diretamente da memória, na forma como lá estavam, há décadas soterradas, sem confrontá-las com pesquisas, sem tentar completá-las ou lapidá-las com registros da época. Há referências a documentos em apenas duas histórias e somente como recurso narrativo. Depois, valendo-me da fabulação, levei essas recordações a cenários imaginados; juntei situações ocorridas em tempos diferentes, algumas idealizei do quase nada e preenchi com lacunas de esquecimento e os bloqueios do subconsciente com soluções inventadas. Cada fragmento ganhou forma independente dos demais, não na ordem cronológica 31 (Kucinski 2014a, s/n). O inventado está no campo da linguagem, das elaborações narrativas, ou seja, na originalidade ficcional da obra. Entretanto, tematicamente o livro está pautado pela história, um drama familiar real, inserido no contexto nacional de prisões, torturas e mortes, com personagens, tempos e espaços reconhecíveis historicamente que remetem ao “quase tudo” que efetivamente aconteceu. Se há outros caminhos interpretativos apontados pela epígrafe, essa primeira leitura contextualiza a obra dentro do moderno romance histórico brasileiro, sobre a qual falaremos a seguir. 2.2 LITERATURA E DITADURA Ao refletir sobre as relações entre história e literatura, Antônio Roberto Esteves (2010) lembra que Aristóteles estabelecera uma distinção clara entre os dois campos. Segundo concebeu o filósofo clássico, o historiador se ocuparia daquilo que aconteceu, enquanto o literato daquilo que poderia ter acontecido. Trata-se, portanto, na concepção aristotélica, de uma distinção entre o que é relativo à verdade e aquilo que está circunscrito à verossimilhança. O fato é que as fronteiras entre os dois campos nem sempre foram claras e um movimento de sucessivas aproximações e distanciamentos epistemológicos marcou as relações entre literatura e história ao longo do tempo. Até o século XIX, a historiografia era considerada uma arte narrativa e reconhecia-se, portanto, sua natureza literária. Após as primeiras décadas do século XIX, a história foi elevada à categoria de ciência e afastada da narrativa ficcional. Essa perspectiva colocou a ciência no âmbito da verdade e a ficção no papel de fantasia ou recriação. Coube ao século XX, sob a égide da relatividade, provocar uma nova reaproximação entre os dois campos, “partindo do princípio de que ambos são construtos narrativos” (Esteves, 2010, p. 25). Nessa dialética conceitual, nasce, por exemplo, o romance histórico, gênero narrativo híbrido que combina singularmente a história e a ficção. Sabe-se que fatos ou personagens históricos sempre permearam as narrativas fictícias. Porém, Esteves aponta que o romance histórico data início do século XIX, pelas mãos de Walter Scott, durante o romantismo, e Foi resultado de uma série de eventos históricos, como a Revolução Francesa e as consequentes campanhas napoleônicas, que levou o homem da época ao dos fatos e sim na exumação imprevisível desses despojos de memória, o que de novo obrigou-me a tratar os fatos como literatura, e não como História. A unidade se deu através de K. Por isso, o fragmento que introduz inicia o conjunto, logo após a abertura. E o que encerra suas atribulações está quase no final. A ordem dos demais fragmentos é arbitrária, apenas uma entre as várias possibilidades de ordenamento dos textos (Kucinski, 2011, p. 13, apud Dadalto, 2023, p. 45). 32 despertar de certa consciência de sua condição histórica. E coube a Scot, no processo de afirmação do romance como epopeia da burguesia, criar essa nova variante narrativa, cujos personagens, ao mesmo tempo que estão profundamente inseridos no fluxo da história, atuam de modo que seu comportamento explicite as peculiaridades da época apresentada (Esteves, 2010, p. 31) Desse tipo de romance criado por Scott e adotado como modelo, Esteves (2010) destaca, por exemplo, a elaboração de um ambiente reconstruído, onde algumas figuras históricas também serão reconhecíveis pelo leitor. A trama fictícia se passa num passado anterior ao presente do escritor e também costuma envolver um episódio amoroso geralmente problemático. Esse padrão revela que o romance histórico romântico se preocupou em manter um equilíbrio entre a fantasia e a realidade, cujas composições ofereciam aos leitores “ilusão de realismo e oportunidade de escapar de uma realidade insatisfatória” (Esteves, 2010, p. 32). Coube ao romance histórico produzido na segunda metade do século XX, especialmente na América Latina, o desenvolvimento de características que se distinguem do modelo formulado por Scott. Entre elas está o deslocamento do material histórico enquanto pano de fundo para uma posição central nos romances produzidos no período. Dessa forma, os fatos, os acontecimentos e os personagens passam a ser reconstruídos e/ou reinterpretados, “independentemente dos julgamentos anteriormente a eles atribuídos pelos assim chamados historiadores oficiais” (Esteves, 2010, p. 35). Em suma, o novo romance histórico se destaca por propor uma releitura crítica da história, que, consequentemente, contraria as versões oficiais, especialmente no ambiente repressivo dos regimes militares que se estabeleceram na América do Sul. No entanto, para além da categoria de romance histórico, a contemporaneidade produziu uma multiplicidade de perspectivas que tem como resultado a diluição daquilo que se propunha a ser a verdade única dos fatos. Mais do que isso, “contestando as convenções da historiografia e da composição romanesca tradicional, o romance contemporâneo ultrapassa as fronteiras entre teoria e prática, produzindo uma espécie de simbiose entre uma e outra” (Esteves, 2010, p. 40-41). Se ao historiador está delegado o ofício de buscar as fontes primárias e extrair desses registros as camadas oficiais das leis, da ordem e dos fatos, “o romancista escapa às verdades oficiais e trabalha os fatos com a maleabilidade necessária para o seu desenvolvimento, da história dos vencidos, daqueles que sonharam, que planejaram, mas que não fizeram os fatos” (Dalcastagnè, 1996, p. 48). Essa nova modalidade narrativa, que derruba os alicerces da história hegemônica, se constitui num modo crítico de repensar o passado, apontando, ainda, para uma crítica ao tempo 33 presente. K. – Relato de Uma Busca, se encaixa nessa perspectiva: coloca novos termos à história, ao mesmo tempo em que alerta a recorrente incapacidade brasileira, ontem e hoje, de confrontar sua memória. Sob essa perspectiva, as obras literárias passam a ser “documentos imprescindíveis de um tempo que ainda não nos foi revelado por inteiro, de uma história que se tem de continuar fazendo, múltipla e indefinidamente” (Dalcastagnè, 1996, p. 17). No Brasil, assim como em outros países sul-americanos, a produção literária que aborda a ditadura militar pode ser categorizada como um tópico específico dentro da literatura produzida a partir da segunda metade do século passado. O autoritarismo político que marcou o continente cassou opositores, censurou a imprensa, restringiu as liberdades, cooptou segmentos sociais e econômicos e se impôs como projeto político hegemônico. Contudo, encontrou na cultura um grande campo de resistência. Cronologicamente, no Brasil, conforme mostra Renato Franco (1998), o momento imediatamente após o golpe (1964-1968) foi marcado por duas vertentes opostas da vida cultural brasileira. A primeira, por sua conexão às organizações populares, como o Centro Popular de Cultura (CPC), foi alvo da repressão política. A segunda vertente engloba setores mais distantes da agitação política, ligados ao entretenimento e à cultura de massa, que puderam continuar produzindo. Com isso, conforme afirma Roberto Schwarz (1978, apud Franco 1998), foi gerada uma espécie de anomalia na vida do país, uma vez que a esquerda passou a deter a hegemonia da vida cultural enquanto a direita detinha a da vida política. Esta politização da cultura privilegiou as formas de expressão mais adequadas ao consumo coletivo, como a música popular – cuja divulgação começava a ser feita por quase todo o país pela televisão -, o cinema, e o teatro. À literatura, dada sua fruição quase que estritamente individual e solitária, restou um papel de menor destaque – todavia, ainda significativo. (Franco, 1998, p. 27 e 28). Marcelo Ridenti lança oposição ao argumento de Schwarz e questiona o suposto uso impreciso do termo hegemonia. Ridenti “opta por apontar o poder esmagador, em todo o país, da ‘ideologia da classe dominante’, para concluir que a natureza da produção cultural desse período logrou, no máximo, constituir uma ‘contraideologia’” (Franco, 1998, p. 42). De qualquer forma, independentemente do papel da literatura (e das artes) nesse processo, é inegável que as condições histórias são deflagradoras de novos arranjos estéticos que surgem atrelados aos desafios de responder aos dilemas impostos à sociedade brasileira pelo autoritarismo, pela formatação das classes e pela disputa política. Entre os anos 60 e 70, surgem movimentos como o Cinema Novo, a Tropicália e a música de protesto, que denunciam, direta 34 ou alegoricamente, o regime militar. Na literatura, tais temas aparecem de diferentes formas e segmentações que dialogam entre si e orientam o estabelecimento de um mosaico de representação do país. São diversas as possibilidades de agrupamento das obras literárias produzidas no período ou que retratam as condições brasileiras daquele momento. Em O espaço da dor, Regina Dalcastagnè (1996) considera três blocos de romances representativos, separados por afinidades temáticas e estilísticas. O primeiro bloco agrega os romances marcados pela fragmentação, atributo herdado do diálogo entre literatura e jornalismo, que abordam a luta armada e a violência nas cidades e nos salões da alta sociedade como reflexo da turbulência do período. Essas características aparecem em A festa (1976), de Ivan Ângelo, Zero (1974), de Ignácio de Loyola Brandão, e Reflexos do baile (1976), de Antônio Callado. Para a pesquisadora, isso ocorre, entre outros motivos, pela aproximação entre os dois gêneros, recorrente desde o século XIX, que se intensifica à medida em que os “homens de letras” passam a ocupar as redações de jornais como atuação profissional. “Com isso, o jornalismo ia tomando uma forma mais literária, e a literatura, consequentemente, contaminando-se com o estilo direto e objetivo dos jornais, sem perder a própria originalidade (Dalcastagnè, 1996, p. 45 e 46). Ambientadas no espaço público, obras como Os tambores silenciosos (1977), de Josué Guimarães, Sombras de reis barbudos (1972), de José J. Veiga, e Incidente em Antares (1971), de Érico Veríssimo, formam um segundo grupo de romances produzidos durante a ditadura militar brasileira. Em comum, essas obras se utilizam do riso e da carnavalização, conceituação de Mikhail Bakhtin, para contestar o poder vigente. A opressão é alegorizada e se instala em pacatas cidades do interior, microcosmos para encenar a opressão e denunciar as arbitrariedades. A literatura carnavalesca é desenvolvida por Bakhtin na descrição das festas medievais, consideradas por ele como “segunda via” do povo, pois por meio delas o mundo era colocado do avesso, vivia-se uma vida ao contrário, pela suspensão das leis, das proibições e das restrições da vida normal, invertia-se a ordem hierárquica e desaparecia o medo resultante das desigualdades sociais, acabava-se a veneração, a piedade, a etiqueta, aboliam-se as distâncias entre os homens, instalava-se uma nova forma de relações humanas, renovava- se o mundo. (Barros, in Barros e Fiorin, 1994, p. 7) No terceiro bloco, Dalcastagnè (1996) lista romances memorialísticos, como As meninas (1973), de Lygia Fagundes Telles, A voz submersa (1984), de Salim Miguel, e Tropical sol da liberdade (1988), de Ana Maria Machado. Enquanto nos dois grupos anteriores prevalecem a estilização e a paródia, nesse o que predomina é a narração. Aqui, ocupam função 35 central a individualidade, resgatada por meio da memória de centenas de pessoas atingidas diretamente pelos aparelhos do regime, representadas por personagens envolvidos pelas perseguições e forçados ao silêncio. Ao invés da praça carnavalizada, esses romances voltam- se para a casa, espaço doméstico por excelência, cercado de memórias afetadas pelas circunstâncias políticas do país. Karl Erik Schollhammer (2009) aponta ainda outro conjunto eloquente composto por livros escritos por presos e exilados políticos. Mesclando feição jornalística e afeição memorialística, são obras escritas nos estertores da ditadura militar, notadamente a partir do processo de anistia, datado de 1979, quando se permitiu o retorno de quem manteve-se ou foi mantido forçosamente fora do país no período mais crítico da repressão. É uma literatura de atores políticos da resistência democrática, da luta armada e outros movimentos contrários ao regime, como Fernando Gabeira, que publicou O que é isso companheiro (1979), e Renato Tapajós, Em câmara lenta (1977). Com uma linguagem próxima do documental, tais obras compõem uma vertente própria em que, pela primeira vez, são retratadas abertamente as ações organizadas contra os militares, numa postura até de revisão sobre esse engajamento político, ao mesmo tempo em que são denunciados sem recursos alegóricos os mecanismos repressivos. Com o fim do regime, a redemocratização e as contínuas tentativas de reparação histórica, essa vertente continuou nas décadas seguintes, até os dias atuais, bebendo na fonte do jornalismo e da biografia para gerar novas obras, publicadas mais recentemente, como Ainda estou aqui, de Marcelo Rubens Paiva, lançado em 2015. Eurídice Figueiredo (2017) também se debruçou sobre o arquivo literário acumulado desde 1964. Em A literatura como arquivo da ditadura brasileira, ela confirma que há diferenças significativas no que foi escrito sobre a ditadura nos anos 1960, nos anos 1980 e no momento atual “porque a experiência se transforma com o passar do tempo” (p. 47). A partir dessa segmentação, a autora distingue um primeiro momento, entre 1969 e 1979, outro período entre as décadas de 1980 e o ano 2000, e um terceiro segmento que contempla os anos mais recentes. O primeiro agrupamento destacado por Figueiredo (2017) oscila entre a utopia prospectiva e a distopia frente ao fracasso do projeto revolucionário. São considerados sob essas perspectivas autores como Antônio Callado, com Quarup (1967) e Pessach: a travessia, publicado no mesmo ano, de Carlos Heitor Cony, por exemplo, enquanto o já citado Zero (1974), de Loyola Brandão, é expressivo dentre as visões distópicas da sociedade brasileira, e A Festa (1976), de Ivan Ângelo, se apresenta como um romance que se aprofunda na fragmentação da forma. Zero teve a publicação censurada no Brasil e, por isso, ganhou uma 36 primeira versão em italiano, até ser liberado no país, em 1979. Renato Tapajós, autor de Em câmara lenta (1977), apresenta em fundo autobiográfico e aborda a prática da tortura sofrida por Aurora Maria Nascimento Furtado, da ALN (Aliança Libertadora Nacional), cujo nome não é mencionado diretamente no livro. O romance, obviamente, foi proibido. Desse primeiro grupo elencado por Figueiredo (2017), K – Relato de uma busca guarda semelhanças temáticas e formais com a obra de Tapajós. Há um inescapável fundo autobiográfico ao retratar, com o mesmo subterfúgio de sugerir a veracidade do relato ao invés de explicitar nominalmente que se trata de um relato sobre a irmã, uma figura real que pereceu nos aparelhos de repressão do regime. A voz narrativa oscila entre a primeira e a terceira pessoa e a história não é contada de modo linear – características também presentes no romance de Kucinski, escrito mais de trinta anos depois. Lidos sob a mesma perspectiva, as duas obras remetem a uma crítica à luta armada, ou uma autocrítica, como escreveu Antonio Candido na peça de defesa de Renato Tapajós para tirá-lo da prisão, distante, portanto, da apologia ao método. Sobre esse conjunto de obras, o que se extrai é que todos eles mostram os impasses a que levou a luta armada, a tortura e a morte de militantes, o despreparo das organizações de esquerda que não ofereceram a infraestrutura necessária para realizar a revolução e, sobretudo, não ofereceram rotas de fuga nem avaliações mais sensatas para se evitar a culpabilização que acarretou tanta morte inutilmente. (Figueiredo, 2017, p. 63) Sob esse aspecto, Bernardo Kucinski dedica um capítulo inteiro da obra para uma crítica explícita à luta armada. Intitulado “Mensagem do companheiro Klemente”, escrito como uma epístola e assinada por Rodriguez, mostra uma comunicação ficcional entre membros da resistência organizada à ditadura militar brasileira. O texto apresenta diversas referências a fatos e figuras do contexto para situar o leitor sobre o seu conteúdo. Entre outras, notam-se, por exemplo: “Desde o sequestro do Elbrick só perdas e nenhuma reavaliação” (Kucinski, 2014a, p. 176); “Você sabe, o Mariga foi o grande líder, quem dava a linha [...]” (Kucinski, 2014a, p. 178); “O Zaratini expôs isso no documento que a direção nacional recebeu, assim como muitos de nós” (Kucinski, 2014a, p. 178). Respectivamente, os trechos destacados fazem referência ao embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Charles Burke Elbrick, sequestrado em 1969 por membros do Movimento Revolucionário Oito de outubro (MR-8) e da Aliança Libertadora Nacional (ALN), Carlos Marighella, líder revolucionário e co-fundador da ALN, e possivelmente Ricardo Zarattini, membro de grupos de resistência e um dos 15 presos políticos soltos em troca da liberação de Elbrick. 37 “Mensagem ao companheiro Klemente" traz uma sequência de críticas e constatações sobre inviabilidade da estratégia de combater o regime pela via da luta armada e serve como uma evocação de culpabilidade sobre as consequências do movimento para a vida dos militantes. “Está mais do que na hora de reavaliar tudo” (Kucinski, 2014a, p. 176); “Tínhamos que ter analisado; feito a autocrítica, reconhecido que estávamos isolados” (Kucinski, 2014a, p. 177); “No fundo, entramos no jogo da ditadura de nos liquidar a todos” (Kucinski, 2014a, p. 177); “O que mais me impressiona hoje é a nossa perda gradativa da noção de totalidade” (Kucinski, 2014a, p. 178); “Ficamos cegos; totalmente alienados da realidade, obcecados pela luta armada” (Kucinski, 2014a, p. 176). Os excertos são autoexplicativos e frisam uma contundente discordância ao movimento por meio da semântica que se utiliza de termos “estávamos isolados”, “perda gradativa da noção”, “alienados da realidade” para adjetivar ações e comportamentos. Colocado como último capítulo da obra, sucedido apenas por um Post Scriptum, funciona como uma atribuição tardia de responsabilidade ao que fora narrado até ali. Quando o narrador afirma que “Está mais do que na hora de reavaliar tudo” (Kucinski, 2014a, p. 176), há uma dupla enunciação: no âmbito da carta, datada de algum momento grave do período de repressão, e nos dias atuais, onde as fissuras do trauma histórico seguem abertas na sociedade, especialmente para quem viveu a experiência traumática. A partir de 1979, com a volta de muitos militantes provocada pela lei da anistia, proliferaram os relatos testemunhais e essa passa a ser a principal característica da literatura sobre a ditadura produzida no período. É o caso de Fernando Gabeira, Alfredo Sirkis e Frei Beto, autores de O que é isso, companheiro (1979), Os carbonários (1980) e Batismo de Sangue (1983), respectivamente, alguns dos mais conhecidos do período. Figueiredo (2017) estende esse segundo período de livros sobre a ditadura até o ano 2000 e abarca produções que também tematizaram os desmandos da ditadura, porém sem a dicção autobiográfica ou jornalística, como os casos citados. Assim, estão contemplados livros como Uma varanda sobre o silêncio (1981), de Josué Montello, O estandarte da agonia (1981), de Heloneida Studart, Tropical sol da liberdade (1988), de Ana Maria Machado, e Amores exilados (1997), de Godofredo de Oliveira Neto, publicado com o título de Pedaço de santo e renomeado posteriormente, entre outros. Figueiredo (2017) lembra que “cada livro tem um formato, mas deve-se reconhecer a qualidade da escrita de todos eles” (p. 86). A partir dos anos 2000, acentuadamente no período mais próximo a 2014, quando o golpe militar completou 50 anos, a literatura sobre o período vive uma fase de decantação e reelaboração. Além de um grande volume de produções que tematizam a ditadura brasileira, destaca-se o fato de que em boa parte dessa produção ficcional, embora conservem um lado 38 testemunhal, os autores deixam de ser vítimas diretas da ditadura. “São romances que transfiguram as experiências, considerando que, em sua maioria, os autores eram jovens durante os anos da ditadura, conheceram-na de perto e podem reelaborar o vivido no modo ficcional, inspirando-se de casos verídicos, porém já transmutados” (Figueiredo, 2017, p. 87). São desse período obras como Qualquer maneira de amar (2014), de Marcus Veras, Vidas provisórias (2013), de Edney Silvestre, Palavras Cruzadas (2015), de Guiomar de Grammont, Azul-corvo (2010), de Adriana Lisboa, e K. – Relato de uma busca, de Bernardo Kucinski, corpus principal desse trabalho. Licarião (2023) aprofunda a proposta panorâmica que Figueiredo (2017) propôs para as abordagens mais recentes da ditadura militar na literatura brasileira, especialmente a partir da segunda década do século XXI, período que coincide com a instalação da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Para o autor, o que se destaca nesse recorte é que, apesar das exceções, quem escreve não é um sobrevivente direto da ditadura, no sentido proposto por Agamben (2008) de superstes, termo que remete àqueles que não atravessaram até o final a experiência traumática a qual foram submetidos, mas indivíduos (filhos, netos, irmãos, etc) que adotam para si as histórias familiares, “tornando mais ampla, a cada nova publicação, a arena onde a dor do outro se recusa a calar” (Licarião, 2023, p. 49). Nesse sentido, Licarião (2023) divide esse recorte temático e temporal em três categorias. A primeira é classificada como narrativas de busca. Nela, a trama se baseia na procura por uma ou mais pessoas “desaparecidas” pelos aparelhos de repressão. “Essa investigação pode ser empreendida por qualquer personagem, sem que sejam necessários laços familiares que a justifiquem, por mais que estes sejam recorrentes” (Licarião, 2023, p. 51). A busca consiste, essencialmente, na reconstituição dos últimos dias de vida do desaparecido político, sendo comum o confronto com aspectos desconhecidos da personalidade retratada. Embora tais características estejam presentes em K. - Relato de uma busca, o romance de Bernardo Kucinski não é listado, enquanto destacam-se obras como Estive lá fora (2012), de Ronaldo Correia de Brito, Depois da rua Tutoia (2016), de Eduardo Reina, Cova 312 (2015), de Daniela Arbex, e Palavras Cruzadas (2015), de Guiomar de Grammont, livro sobre o qual o autor tece uma análise mais apurada. O segundo grupo agrega as narrativas de retorno, cuja chave de leitura se abre a partir de um aspecto formal ou, mais especificamente, de como o discurso ficcional se estrutura. São marcantes em tais obras as temporalidades múltiplas e fragmentadas, além de desencadeamentos narrativos marcados por saltos ou recortes em que passado e presente. É o caso de Azul corvo (2010), de Adriana Lisboa, Mar azul (2012), de Paloma Vidal, A resistência 39 (2015), de Júlian Fuks, Noite dentro da noite (2017), de Joca Reiners Terron, entre outros. Afirma o autor que, a descontinuidade estrutural que marca essas narrativas desafia o impulso meramente investigativo do encadeamento cronológico, ora reforçando a natureza associativa da memória (uma lembrança puxa a outra), ora revelando sua plasticidade e caráter transmissor (ainda que às vezes manipulado para efeitos narrativos). (Licarião, 2023, p. 59) O terceiro agrupamento reúne as narrativas de trauma. Entendendo o trauma como o “excesso de estímulo que o indivíduo não consegue elaborar conscientemente” (p. 64), Licarião (2023) reconhece que esse é um elemento comum a todas as narrativas dos dois agrupamentos anteriores, mas especifica nessa categoria “as obras cujos enredos e personagens estão confinados ao momento em que os inúmeros traumas provocados pela ditadura tiveram lugar e são, por isso, histórias condenadas à repetição” (p. 64), ou seja, ficções que que se desdobram numa violência do tempo presente, emulando a forma do perpétuo retorno. Nesse grupo, estão elencados Vidas provisórias (2013), de Edney Silvestre, Rio-Paris-Rio (2016), de Luciana Hidalgo, e pelo menos duas obras da trilogia O lugar mais sombrio, de Milton Hatoum, A noite da espera (2016) e Pontos de fuga (2019). É importante frisar que as três categorias criadas pelo autor não são absolutamente estanques e, por isso, uma obra pode ser lida de forma interseccional. No plano mais geral, o golpe de 1964 decretou um novo alinhamento temático na literatura brasileira. Em Poder e Alegria. A literatura brasileira pós-64 – reflexões, Silviano Santiago (2002) afirma que o eixo dominante da exploração do homem pelo homem, dramatizados por personagens pertencentes ao campesinato e ao operariado, deixa de existir e cede às reflexões sobre o funcionamento do poder em países cujos governantes aderiram acriticamente ao capitalismo selvagem. Afirma o crítico que essa escolha temática provoca novas possibilidades estéticas e inaugura uma nova abordagem sem, contudo, ignorar o que se produziu de relevante nas décadas anteriores, Refletindo sobre a maneira como funciona e atua o poder, a literatura brasileira pós-64 abriu campo para uma crítica radical e fulminante de toda e qualquer forma de autoritarismo, principalmente aquela que, na América Latina, tem sido pregada pelas forças militares quando ocupam o poder, em teses que se camuflam pelas leis de segurança nacional. Estilisticamente, a literatura brasileira pós-64 pôde, por um lado, retomar uma lição do passado, ajustando-se – após a obra genial Guimarães Rosa e o esforço universalista dos vários concretismos – a princípios estéticos fundamentados pelo realismo dos anos 30. Pôde também, por outro lado, aproximar-se da literatura hispano- americana que lhe é contemporânea, abrindo mão do naturalismo na 40 representação, em virtude de problemas graves de censura artística. Neste segundo caso, adentra-se o texto literário por uma escrita metafórica ou fantástica, até então praticamente inédita entre nós. Valendo-se, pois, de uma escrita realista ainda comprometida com os anos 30 ou de uma outra comum aos latino-americanos, a literatura pós-64 guarda sempre a obsessão temática a que nos referimos (Santiago, 2002, p. 14). Santiago (2002) ainda defende que a produção literária pós-64 seguiu signatária à compreensão do processo de modernização e industrialização do Brasil, tão cara aos modernistas e aos projetos políticos desde então. Porém, após o golpe militar escancarou-se a dimensão violenta da implantação desse projeto, levado adiante “à custa de tiros de metralhadora e golpes de cassetete, espancamentos e mortes, numa escalada de violência militar e policial sem precedentes na história deste país” (Santiago, 2002, p. 20). O que está posto pelo crítico é o dilema de uma literatura na encruzilhada entre a corrente latino-americana de feições mágico-realistas e, portanto, alegóricas, ou uma crítica social nos moldes dos modernistas dos anos 30. Acrescente-se a essas duas escolas as ambições criativas pós-modernistas, erguidas por autores da estatura de Guimarães Rosa. Frente às possibilidades, afirma Schollhammer (2009), o que se seguiu foi a busca de um denominador comum, alcançado por meio de um “compromisso temático com uma crítica social e política contra qualquer tipo de autoritarismo” (p. 23). Silviano Santiago não estabelece agrupamentos formais ou temáticos, tal como Dalcastagnè e Figueiredo, mas enumera características da literatura brasileira dos anos 60 e 70, algumas das quais se aproximam ou coincidem com aquelas destacadas pelas duas autoras. Considerando as obras produzidas no período, especialmente àquelas relacionadas tematicamente à ditadura militar, é possível remeter a um novo realismo urbano, assim como identificar certa anarquia formal que, “apesar do engajamento, permitia uma inovação de opções estilísticas” (Schollhammer, 2009, p. 24) e a emergência de uma narrativa autobiográfica e memorialística. O romance-reportagem também catalisou esses anseios, influenciado ainda pelo new jornalism, que nos Estados Unidos lançou-se numa linguagem híbrida entre o jornalismo e a literatura. O tema da ditadura militar brasileira atravessou as décadas seguintes ao golpe e permanece presente na literatura produzida em anos mais recentes. Se classificar a produção contemporânea é sempre um desafio para pesquisadores, uma vez que certo afastamento histórico é indicado como ferramenta de decantação, torna-se imperativo distinguir algumas características dessa produção recente. O estabelecimento da Comissão Nacional da Verdade (CNV) marca, quase trinta anos após o fim do regime militar, mais uma tentativa de 41 esclarecimento da violência praticada pelos órgãos do Estado, uma busca pela identificação das vítimas e o reconhecimento oficial sobre as atrocidades cometidas, ainda que o processo de punição dos responsáveis não tenha se concretizado no caso brasileiro, diferentemente de outros países sul-americanos. O radicalismo político que, desde as manifestações de 2013, flerta com uma intervenção militar, alcançou o ápice recente nos anos de governo Bolsonaro. Consequentemente, a literatura assimila essa urgência e pauta a problemática autoritária focando especialmente na questão dos sobreviventes –pessoas que testemunharam ou que enfrentaram o drama na esfera familiar – e as sequelas dessa fratura nas relações sociais e institucionais dos anos subsequentes. O Núcleo Interdisciplinas Literatura e Sociedade (NILS) do Centro de Educação e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), lançou o Observatório do romance pós-ditatorial brasileiro contemporâneo, uma base de dados que caracteriza o atual cenário do mercado editorial dos romances publicados dos anos 2000 em diante que tematizam a ditadura militar de 1964 no centro de seus enredos. Além do recorte temporal específico, o critério fundamental do levantamento foi a centralidade da representação do período militar, como ocorre com K. - Relato de uma busca, de Bernardo Kucinski, ou, ainda que não esteja constantemente explicitado na narrativa, esteja pelo menos na “engrenagem narrativa”. Descartam-se na contagem apenas os romances que têm a ditadura militar como mero pano de fundo, sem que o período seja determinante para o transcorrer dos fatos. O Observatório revela que, no início dos anos 2000, a produção literária referente a temática pesquisada se limitava a reduzidas publicações, oscilando entre 0 em 2001 e 3 em 2004 e 2007. O quadro se alterará na década seguinte, com 5 lançamentos no ano de 2010 (anterior a oficialização da CNV), num quadro crescente a partir de 2014, coincidindo o maior número de lançamentos em 2017 e 2020, este último período já com o governo Bolsonaro vigente, com 10 produções, respectivamente. Para Berttoni Licarião (2023), o período iniciado na década de 2010, simultaneamente à CNV, corresponde a um ciclo de memória, já que não pode ser compreendido de forma dissociada dos embates entre as forças que definem o tempo presente. “Cada ciclo é único e responde de maneira sui generis ao espírito do tempo” (p. 39). Diferentemente dos marcos anteriores, quando da instalação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, e a Comissão de Anistia, criada no governo de Fernando Henrique Cardoso, em 2001, a Comissão Nacional da Verdade galvanizou um clima de reciprocidade entre os mecanismos ins