UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – UNESP FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS DE ARARAQUARA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA MANDONISMO E CULTURA POLÍTICA PÓS-1985 ARARAQUARA, 2006 FRANCISCO JOSÉ ARAUJO MANDONISMO E CULTURA POLÍTICA PÓS-1985 Tese apresentada à banca examinadora como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor no Curso de Pós- graduação em Sociologia da Universidade Estadual Paulista – UNESP, Faculdade de Ciências e Letras/ Araraquara. Orientador: Prof. Dr. Marco Aurélio Nogueira ________________________________ Prof. Dr. ________________________________ Prof. Dr. ________________________________ Prof. Dr. ________________________________ Prof. Dr. ________________________________ ARARAQUARA, 2006 À Izaura Nogueira Araújo (minha mãe, in memória), José Ribamar Caldeira (professor e amigo, in memória), Marcos Lenso de Souza (amigo e colaborador), Joana Nogueira Araújo (Zizi), Cosme Rafael C. Araújo (meu filho), Silene do Socorro Nogueira Araújo (minha irmã), Mary Elizabeth Araújo (minha irmã), Giselle Araújo Frazão (sobrinha), Thais Araújo Frazão (sobrinha) pelo o Amor, pela graça da existência, pela graça da proteção e pela graça da confiança. Dedico. AGRADECIMENTOS O ATO DE AGRADECER, aqui posto, não é uma desobrigação, mas a confirmação da continuidade do meu sentimento de MUITO GRATO. • A DEUS (fiel e verdadeiro) por ter me permitido sonhos, por ter me permitido lutar, por ter me permitido saber vencer. E mais profundamente a permissão dessa passagem no planeta. • Ao Professor e orientador Marco Aurélio Nogueira por sua estrutural ironia, pela sua confiança, pela sua orientação, pela atenção e amizade. Obrigado; • À minha doce família ARAUJO... Não dá nem para definir; • Ao Prof. Norton e à profª. Isabel, pela amizade, pelo apoio e incentivo constantes; • Ao Prof. Ramiro Azevedo pela atenção, pela amizade e respeito. Uma competência ímpar; • Aos colegas do Departamento de Ciências Sócias da Universidade Estadual do Maranhão, especialmente ao Prof. Antônio José; • Aos compadres Clóvis Santa Fé (parceiro) e Renata, grandes almas, gosto muito de vocês; • À Marivânia, parceira de viagens - cumplicidade de náufragos; • Aos parceiros inomináveis: Nelson Robert, Jorge Branco, Roberto Frota, Rodrigo Rocha, Cristiano Maia, Érico, Bartô Acioli, Fred, Armando e demais anti-heróis do cotidiano; • À amiga e debatedora profª. Zulene; • Aos amigos Jean e Ana Paula; • A Pedro Celestino, parceiro de várias sagas; • Aos amigos do Povoado Moreira; • À Rosimar Querino, amiga desde as primeiras horas de UNESP. Obrigado por ter agüentado minhas viagens. Você é figura maravilhosa; • À Natália Morato pelas risadas, ironia, troca de idéias. Sucesso, sempre; • À família: Zannoni, Mirtes e Maíra; • À Fabiana pela atenção, pelo carinho e amizade. Você é especial; • A Gisele Simões pela força e trocas de idéias constantes. Todo carinho. • À Isolina Januária pelo apoio, acolhimento e carinho; • À Socorro Vasquez pelo carinho e amizade, pela colaboração voluntária na coletas de dados. Obrigado de coração; • À Ana Silvina pelos estudos, apoios e confiança; • À Ilza pela atenção, apoio e amizade; • À Universidade Federal do Maranhão, especialmente aos que fazem DS /Prefeitura de Campus. • Ao Prof. Edson Diniz Ferreira Filho meu muito obrigado. Valeu! • Às estantes que acolhem esses escritos (feitos para serem lidos só por alguns). • Aos que se sentem e/ou desejam ser parte dessa história. Poeminha do Contra Todos esses que aí estão Atravancando meu caminho, Eles passarão... Eu passarinho! (Mário Quintana) SUMÁRIO INTRODUÇÃO 11 1 ARQUEOLOGIA MINIMALISTA DO MANDONISMO 23 1.1 Das raízes à República 23 1.2 A cadeia sucessória do mandonismo no Maranhão 31 1.3 O Maranhão de hoje é outro Maranhão? 35 2. A OCASIÃO PARA O PRÍNCIPE 37 2.1 Fortuna ou virtù? 37 2.2 A cabeça da serpente: diálogo com o mito 42 2.3 Homilia do juízo final 57 2.4 O poder da inércia 63 2.5 O rabo da serpente: mise em siène de cisão sarneísta 71 2.6 Esboço do eleitorado maranhense 76 3 TRANSIÇÃO DE CONCILIAÇÃO 86 3.1 Transição política: uma conciliação de projetos 86 4 DO CAOS À LAMA 103 4.1 Descendo pela tocado do coelho 103 4.2 Tão globais e tão mandões 111 4.3 O velho do novo: Federação, federalismo fiscal 125 5 VANGUARDA DO ATRASO E SOCIEDADE CIVIL 135 5.1 Sociedade Civil frente à configuração da Globalização 135 5.2 O Brasil do Brasil: sociedade civil e participação 147 5.3 Cultura política: a persistência da memória 155 5.4 A lama: démarche 171 CONCLUSÃO 183 REFERÊNCIAS 191 LISTA DE TABELAS E GRÁFICOS Tabela 01 Rotatividade – fidelidade partidária e posição política 73 Tabela 02 Estratificação e categorias dos colégios eleitorais 77 Tabela 03 Indicadores Econômicos – Gov. Sarney 107 Tabela 04 Indicadores Econômicos – Gov. F. Collor e Itamar Franco 107 Tabela 05 Indicadores Econômicos – Gov. Fernando Henrique Cardoso 107 Gráfico 01Indicadores Sociais do Maranhão 78 RESUMO Este trabalho volta-se para a análise do mandonismo no Brasil contemporâneo. Tem como objetivo dar conta das suas formas de reprodução e atualização, portanto, da sua sobrevivência. Para tanto, examina o conteúdo da Cultura Política brasileira no que tange às tradições republicana, liberal e democrática, o tipo de Estado federativo que se organizou no Brasil e as condições de existência da accountability horizontal e vertical. O enfoque tem como recorte histórico o período que se inicia no pós-1985, quando são restaurados o regime democrático e o Estado de Direito. Toma-se como caso- exemplo o ex-presidente José Sarney, tendo-se em vista que ele obteve, nos últimos 40 anos, destaque tanto no âmbito regional como nacional, além de ter participado diretamente de todos os grandes acontecimentos políticos no período abordado. Foi, inclusive, o primeiro presidente civil depois de 1964. A tese parte do suposto de que o mandonismo é um fenômeno que não se restringe ao Nordeste ou a regiões mais pobres, como costuma ser afirmado no Brasil. Está presente também nos centros mais ricos, manifestando-se sob formas mais sofisticadas, menos caricaturais. Os mandões das regiões brasileiras econômica e politicamente hegemônicas agem de forma sincronizada em defesa dos seus interesses harmonizados, o que lhes confere grande eficiência, não se diferenciando dos demais mandões do Norte e Nordeste quanto à prática de governo privado. Assim como estes, buscam controlar a alocação dos recursos e manter influência sobre diversos agentes estatais da accountability horizontal, a fim de garantir vantagens na utilização dos recursos e bens públicos e ficar na impunidade. Palavras-chave: Mandonismo; Cultura Política; Redemocratização; Reforma do Estado. ABSTRACT This work is directed towards the analyses of mandonismo in contemporary Brazil. Its aim is to list its reproductive forms and actualizations, and therefore, its survival. To accomplish such work, it examines the contents of the Brazilian political culture in its republican, liberal and democratic tradition, the type of federal State that was developed in Brazil and the conditions of existence for horizontal and vertical accountability. This approach has as its historical background the period beginning after 1985, when the democratic system and the State of Law were restored. The former president José Sarney was used as a case-example. In the last 40 years, he obtained success both in regional and national scopes. Moreover, he took direct part in all major political events during the period of time studied. Apart from that he was the first civilian president after 1964. This thesis begins with the assumption that mandonismo is a phenomenon that is not restricted to the Northeast or to the poorer areas of Brazil, as it is commonly affirmed. It is also present in the rich centers, being revealed under more sophisticated forms, less caricatured. The bosses of the Brazilian economical and hegemonic political regions act in a synchronized way to defend their own harmonized interests, which gives them great efficiency. They do not differ themselves from the bosses of the North and Northeast regions who the practice their own private government. In the same way, they aim to control resource allocations and maintain influence over many horizontal accountability state agents, in order to guarantee advantages in using resources and public property and remaining under impunity. Keywords: Mandonismo; Political Culture; Re-democratization; State Reformation. 11 INTRODUÇÃO Em que pese as profundas transformações do país nos últimos anos, o mandonismo ainda é uma forma de exercício de poder político vigente no país. No entanto, não recebeu a atenção durante todo o período de autoritarismo instaurado com o Golpe de 1964, como também no período que se abriu pós 1985. O que se assistiu na literatura acadêmica pós 1964 foi a predominância da discussão em torno de como seria o desfecho da Ditadura “Militar” e as vias de superação dos impasses, produzidos pelos pólos em maior freqüência de tensão. Logo em seguida, a atenção da academia e da imprensa volta-se para a transição e para o processo de redemocratização. A Redemocratização e a Constituição de 1988 passaram a dividir espaço com a questão econômica, que gradativamente foi tomando o cenário das discussões acadêmicas. A política passou a ser pensada a partir de desempenho econômica, nível inflação e planos de estabilização. Essa tendência só sofreu uma parada, porém momentânea, devido ao processo de impeachment do presidente Fernando Collor. Em seguida, não só o desempenho econômico retorna, mas também volta embalado pela Globalização e pelo ideário do Neoliberalismo. O mandonismo foi tirado de todas as agendas de pesquisa, a literatura ficou estagnada, sem nenhuma produção recente. Essa ausência de produção sobre esse fenômeno, em tempos atuais, ocorreu, de um lado, por modismo conceituais e de temas e, por outro, devido a uma interpretação equivocada que confunde mandonismo com outras formas e práticas de política tradicional. Além da suposição de que isso está restrito aos espaços definidos como arcaicos. Observando-se os acontecimentos políticos no Brasil, é fácil constatar que práticas nitidamente de governo privado, relações personalizadas e apropriações de recursos e bens públicos são constantes. Constata-se a forma proliferada do nepotismo e da ausência da universalização de direitos. É constante a tentativa de subjugar os interesses coletivos a vontades particulares e de alcance restrito. Por isso, cabe perguntar-se: Como e através de que essa forma de prática política tradicional (mandonista) ainda encontra meios de se reproduzir e se atualizar, mesmo diante de processos de grande envergadura como a Redemocratização e a Globalização? 12 Este trabalho volta-se à análise do mandonismo na vida política brasileira contemporânea. Tem como objetivo dar conta das suas formas de reprodução e atualização. Para tanto, será examinado o conteúdo da nossa Cultura Política, no que tange às tradições republicana, liberal e democrática, o nosso tipo de estado federativo e as condições de existência da accountability horizontal e vertical. Nosso enfoque tem como recorte histórico o período que se inicia após 1985, quando é restaurado o regime democrático e o Estado de Direito. Toma-se como caso-exemplo o ex-presidente José Sarney, tendo-se em vista que ele obteve, nos últimos 40 anos, destaque tanto no âmbito regional como nacional e esteve participando diretamente de todos os grandes acontecimentos políticos no período abordado. Inclusive sendo o primeiro presidente civil pós 1964. Colhem-se as hipóteses de que o mandonismo ainda é um forte componente na política brasileira como um todo; ele tem-se reproduzido tanto realimentado pela forma de estruturação formal-legal das instituições (encarnado nas leis) como também pelos elementos constitutivos de nossa cultura (um ethos); os grandes momentos da nossa História, a exemplo dos mais recentes: redemocratização, a inserção na Globalização e o avanço neoliberal, não desencadearam, até o momento, processos substantivos de desagregação desse elemento; o mandonismo no Maranhão tem sobrevivido sustentado tanto por fatores endógenos como exógenos e todos os momentos de alteração na política do Maranhão até o presente foram marcados sobremaneira por incidência de fatores exógenos. A existência do mandonismo, como forma de exercício do poder político, em diversos Estados da Federação, chega a ser gritante. Não raro, defrontamo-nos com denúncias sobre prática de nepotismo, perseguições políticas, favorecimento de particulares, tráfego de influência, impunidade, ameaças etc. Além disso, são inúmeras as verbas públicas gastas com exaltações e propagandas pessoais, alimentando as mais diversas vaidades dos mandões, sendo impedido que os recursos públicos sejam destinados à construção e implementação de melhorias que atendam à coletividade, inviabilizando que a atividade de distribuição e redistribuição do Estado tenha efetividade, assim como a de gerenciador da coisa pública. Tais fatos têm contribuído para a manutenção da indigência de uma parte significativa da população. 13 Embora o Nordeste seja tomado emblematicamente como o locus do mandonismo no Brasil, este fenômeno nunca se restringiu somente a essa região, nem no passado nem no presente. Na verdade, essa visão é uma grotesca trivialização da questão, porque não leva em consideração as variantes regionais e a multifaces do poder. Mesmo nos centros com maior concentração de riquezas e índices de crescimento econômico, o mandonismo encontra-se lá presente, em formas mais sofisticadas, menos caricatural. Pois nessas regiões ele toma efetividade através de uma constelação de mandões, uma multiplicidade que somada a uma rotatividade regular, entre esses pares cria uma sensação de descontinuidade no controle do poder, dando certa invisibilidade aos mandões. Por sua vez, os mandões das regiões econômica e politicamente hegemônicas agem de forma sincronizada em defesa dos seus interesses harmonizados, o que lhes confere grande eficiência, não se diferenciando dos demais mandões do norte e nordeste quanto à prática de governo privado. Assim como estes, buscam controlar a alocação dos recursos e manter influência sobre diversos agentes estatais da accountability horizontal, a fim de garantir vantagens na utilização dos recursos e bens públicos e ficar na impunidade. A fragilidade da accountability1 horizontal é marcante na estrutura política do Estado brasileiro. Por cooptações sucessivas dos agentes estatais, encarregados pelo funcionamento desses órgãos, a accountability horizontal fica aquém do nível regular de satisfação quanto à prestação dos seus serviços. Isto dá pouca eficiência no tocante ao autocontrole dos poderes e à mútua fiscalização entre poderes, além de comprometer a garantia e a defesa dos direitos dos cidadãos. Outro elemento importante para se pensar essa configuração mandonista nacional, é a própria relação existente entre esses centros “avançados” e “desenvolvidos” com as demais regiões da Federação. Essa relação acentuadamente assimétrica mostra a existência de um exercício de poder mandonista entre os entes federados, cujos reflexos se fazem na constituição da agenda de políticas governamentais, na forma de planejar e direcionar os diversos projetos de desenvolvimento econômico e social. Por que é mandonista? Porque se pauta em princípios que fogem à lógica racional-legal, 1 Do inglês, significado “responsabilidade”. 14 suplanta os estatutos em prol de casuísmos e clientelismo2. As emendas a projetos para atenderem exclusivamente a desejos e interesses meramente eleitorais de bancadas parlamentar. Além da liberação de verbas em troca de voto3, negócio comum entre executivo e legislativo. Isto acentua a reprodução da política mandonista, pois a diferença de tamanho de bancada faz com que a distribuição de recursos seja desigual e favoreça as bancadas maiores. Essa forma de distribuição de recursos para garantir adesões nunca leva em considerações o que é mais prioritário e o que é mais necessário. Não se pauta nem em critérios técnicos nem no princípio do interesse público como elemento primeiro dos atos de governo. Reforça disparidades regionais, garantindo a assimetria federativa. A República não rompeu com certos privilégios existentes entre as províncias que se tornaram Estados membros. A vitória do golpe republicano é antes de tudo a vitória de um projeto político paulista. O controle paulista sobre a nascente República se refletia do tipo de Estado federativo. O pacto federativo nascia, assim, no bojo de graves distorções. Esse arranjo vai ter vigência até 30, quando o pacto passa por uma nova atualização. Além disso, os centros irradiadores do modelo de desenvolvimento, ao desencadearem o processo de homogeneização da Economia, em patamares mais capitalistas, com o processo que se inicia em 1930, em boa medida não integraram diversas ilhas do “arquipélago de economias regionais” (OLIVEIRA, 1981, p. 74), a exemplo do Nordeste açucareiro, algodoeiro-pecuário. A nosso ver, esse processo, mais que uma integração, provocou, nessas regiões, uma colonização e subalternização, pondo-as numa condição de periferia. Isso redundou numa gritante assimetria de poder e de condições entre as unidades federativas, ficando o Centro- Sul com o privilégio de ser o modelo e o locus irradiador do desenvolvimento do país e direcionador de toda a pauta política nacional. Portanto, essas regiões desenvolvidas se estruturaram e se mantiveram em tal patamar por força do modelo de desenvolvimento implantado, que aprofundou as desigualdades regionais e sociais, provocando uma grande concentração geográfica e populacional da riqueza. 2 Compreende-se que ele é sempre um meio, um instrumento. As clientelas são formadas para servir a algum objetivo. Pode emergir em qualquer setor. Outras especificidades ver Carvalho ( 1997). 3 Para uma boa visão da estruturação do sufrágio universal nas democracias representativas confira- se Canêdo (2005). 15 Cabe lembrar que os elementos tipicamente republicanos foram implantados de maneira formal (por um estatuto legal), sem ter uma existência prévia no seio da sociedade. Fruto de um movimento de elites, a República nunca completou sua total institucionalização porque sempre careceu de um vínculo orgânico com a sociedade. Os princípios republicanos não existem de forma efetiva como um valor nem gozam de universalismo na maior parte da nossa sociedade. Na verdade, é um conceito sem definição até mesmo na sua face formal. Consideremos a Constituição Federal: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. O texto invoca mais os elementos federativos (com inovação, pois inclui os municípios, mas repete a tradição dos Estados Unidos de adotar a separação dos poderes inspirada em Montesquieu), constitucionalistas, democráticos e liberais do que propriamente republicanos. O próprio Manifesto Republicano de 1870 volta-se muito mais para as questões federativas. Deixa em segundo plano o ideário tipicamente republicano. O que se destaca nesse manifesto é uma constatação, logo no seu início, sinalizando que o Federalismo chegou entre nós antes da Democracia. 16 Assim, a descentralização de poder que tem lugar então surge como um claro intento de melhor adequar o poder público aos interesses econômicos dominantes. Nesse sentido, vê-se claramente que da perspectiva das elites econômicas do período, o liberalismo econômico era perfeitamente compatível com a idéia de que a descentralização federalista deveria contribuir para tornar o poder público, a nível dos estados-membros, mais eficiente na provisão de ‘bens infra-estruturais’. Assim, por exemplo, os cafeicultores paulistas pretendiam, e efetivamente lograram, colocar a máquina estadual a serviço a serviço da promoção da imigração estrangeira, fornecendo subsídios ao transporte dos imigrantes, provendo alojamento inicial e saneamento básico. (REIS, 1991, p.50-51) É certo que, nas ditas poliarquias, esses elementos das três grandes tradições: Democracia, Liberalismo e República, já estejam arranjados, mas aqui só se pretende destacar a ausência de instâncias que pontuem os princípios republicanos na sua real dimensão. Ora, não é a ausência de uma definição exaustiva um problema, nem se está ingenuamente ignorando o ideal e o factual, quer-se tão-somente expressar que o que efetivamente existe está aquém do mínimo desejado. É a ausência dessa tradição na vida, no cotidiano dos cidadãos. De fato, o Republicanismo funda-se no ideário de criar-se o homem novo, uma nova moral, que seja cívica, pois prega a condição laica do Estado. Onde há uma organização especializada das funções para que se exige a excelência para os cargos. A finalidade é o bem-comum, a defesa desse patrimônio, diante de qualquer ataque ou uso indevido por indivíduos ou grupos, contudo, ao mesmo tempo em que se busca garantir os direitos dos cidadãos, estes sempre devem estar submetidos (em suas vontades) ao interesse maior que é bem-comum. A República é supremacia do público sobre o privado (devidamente demarcados) e com finalidade ao bem-comum. Falta o que Fernando Catroga (1991) chama (ao analisar a República Portuguesa) de a interiorização da nova racionalidade4 e de um novo sentimento coletivo que se funda com a vivência ritual de uma nova simbologia comunitária. Existem diversos estudos, com enfoques diferentes, a respeito do tema, particularmente sobre as virtudes cívicas. Cf. Pisier (2004). 4 Sobre a racionalidade na política confira-se Jasmin (1998). 17 Isso que este autor pontua nada mais é que a tradição republicana; pauta- se numa cultura cívica. A esmagadora maioria da população brasileira desconhece o sentido da “cara” que está cunhada em nossas moedas. Esse arremedo francês não tem nenhum significado para o demos. Por sua vez, no Brasil há um desconhecimento grandioso desses princípios e a falta de uma valoração social do civismo republicano. A Moral e a Ética, defendidas pela grande massa dos cidadãos, é de origem cristã e não por força na crença dos princípios republicanos, pois se desconhece por completo o que é República. Portanto, a nossa moral e, por conseqüência, a nossa ética não é uma nova moral laica que deu origem às Repúblicas modernas, mas o caminho mesmo da salvação cristã. O elemento de fundo dessa moral é “não roubarás”, é “não farás ao teu próximo aquilo que não queres para ti mesmo”. A religião não foi e não é um entrave para esse civismo, mas a ausência de uma cultura política que dê vida, entre os nossos “usos” e “costumes” e os redefina, a bem da universalização do “Poder Político puro”. Sem isso, parece que continuará a reprodução de uma ficção jurídica normativa descolada dos elementos reais de nossa sociabilidade cotidiana. Tal desencontro e inobservância, desses nossos elementos culturais, na vida política brasileira, já foram assinalados por Oliveira Viana na sua obra Instituições Políticas Brasileiras (1974, p. 217-218): Entretanto – frise-se bem esta observação – estes usos, estes costumes, estes tipos, estas instituições, formando o complexo de nossa culturologia política5, “penetram” – para empregar a expressão de Frobenius – a psique dos nossos “cidadãos”, principalmente nos campos, e constituem-se em motivos determinantes da sua conduta quotidiana na vida pública, não só no povo-massa, como mesmo nas elites dirigentes6. Não são criações improvisadas e individualizadas, saídas das cabeças de alguns homens, ou sábios, têm uma história social e coletiva, uma gênese cientificamente determinável e, na sua maioria, buscam a sua origem num passado remoto: muitos deles vêm do período colonial; mesmo alguns têm uma existência assinalável desde o I século, desde a época dos Donatários. Em “Coronelismo, enxada e voto”, Victor Nunes Leal (1975) ressaltou que o mandonismo é característico da política tradicional e inversamente proporcional aos direitos civis; portanto, na medida em que são assegurados e garantidos os 5 Negrito nosso. 6 Negrito nosso. 18 direitos do cidadão, o mandonismo vai desaparecendo. Florestan Fernandes (1975) assinala que muitas instituições existem (no Brasil) apenas de forma alegórica e que muito do que é público é tomado e mantido como bem privado. A nossa concepção de governo forte é, assim, sem nenhum transição nem disfarce, a própria noção do governo de força, do governo pessoal. Pessoal tem sido todo ele, como pessoalmente poderosa a figura do governante, porque à falta de uma abstração impessoal do que seja governo, acabamos por admitir como regular a anormalidade de um Estado que é só o governante, de uma ação governamental que é só o poder pessoal do chefe do governo. Mas, é que o chefe do Estado, como pessoa e pelos seus caracteres pessoais, é a única concretização do `Poder Político numa organização política sem conteúdo histórico nem espírito institucional para viver e nutrir-se de princípios e de fórmulas objetivas, como a nossa. (DUARTE,1966, p. 223) Diante dessa ausência e ignorância firmaram-se hegemonicamente as relações e sentimentos tipicamente particularizados da família e do compadrio, de clientelismo e personalismo que dão vida ao patrimonialismo, ao privatismo e derrubam a supremacia do público sobre o privado e sua necessária separação, inviabilizando a constituição do civismo típico da res publica. Certamente, as causas do mandonismo não se reduzem somente aos fatores aqui enfocados, mas através deles é possível perceber-se, minimamente, como ainda é pertinente falar de mandonismo na vida política brasileira. Referências teóricas Esta tese se pauta do ponto de vista teórico na concepção de poliarquia e accountability horizontal e vertical, respectivamente em Robert Dahl e Guillermo O’Donnell. Aliado a esses conceitos também se trabalha o de cultura política. São adotadas também de forma seletiva e crítica as contribuições das interpretações clássicas sobre a vida política brasileira, a exemplo de Nestor Duarte, Oliveira Viana, Maria Isaura Pereira de Queiroz, Victor Nunes Leal, Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro7. A percepção do coronelismo como um momento histórico do mandonismo, e portanto perceptível em vários contextos e configurações históricas, 7 Sobre essas clássicas interpretações da Realidade Brasileira, assim como suas aproximações confira-se Oliveira (2003). 19 é uma contribuição particularmente da Maria Isaura Pereira de Queiroz, que se toma como referência norteadora para esta pesquisa. Contudo, a essa percepção também é somada a contribuição de Victor Nunes Leal ao particularizar o coronelismo como típico da Velha República e chamar a atenção para que a falta de garantia da cidadania pôde propiciar-lhe a existência. Ambos viam na urbanização e nas mudanças econômicas a decadência do coronelismo. O conceito de poliarquia aqui utilizado parte dos critérios estabelecidos por Robert A. Dahl. Segundo este autor, são sete os critérios de existência de uma poliarquia. Trata-se de um conceito bastante operativo, portanto útil para verificação das condições de existência de nossa democracia. No entanto, o conceito de poliarquia será sempre utilizado articulado com o de accountability proposto por Guillermo O’Donnell. Também se levam em consideração os acréscimos que ele faz ao conceito de poliarquia ao juntar mais três elementos a sua composição, a saber: a tradição liberal, a democrática e a republicana, além da ênfase que dá à constituição do Estado Moderno como condição de existência das poliarquias. Através do conceito de accountability horizontal e vertical ganha operacionalidade a verificação do grau de democratização que a poliarquia atingiu. A primeira se constitui pelas instituições formais-legais, que atuam na proteção de direitos, na prestação de serviços e controle mútuo. A segunda, é ela constituída pela sociedade civil organizada e pelas forças políticas e de reivindicação, tendo como grandes mecanismos de efetivação da participação o voto e a ação livre dos meios de comunicação. Portanto, o conceito de accountability será utilizado para analisar as formas de funcionamento das instituições no que implica os elementos normativos e operacionais. A prestação será tomada como noção de responsabilização e transparência, pautadas na garantia mútua e controle recíproco. A contribuição teórica de Raymundo Faoro é utilizada neste trabalho particularmente no que tange ao fenômeno do patrimonialismo, cuja obra de referência é Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. Já Nestor Duarte tem contribuição importante na percepção da presença de elementos culturais nos modelos institucionais, dando-lhes especificidades e particularidades. Não adotamos integralmente suas concepções em torno do privatismo. Constitui-se importante referência e fonte de reflexão a obra de Francisco José de Oliveira Viana por oferecer uma análise sobre a configuração sócio-política brasileira que revela marcas de uma psicologia de subalternidade que impedem a 20 vigência, entre nós, de valores proclamados pela Revolução Liberal-Burguesa. Sobre a falda de consistência de determinados valores postos pela modernidade e consolidados através do Estado Moderno, também a pesquisa se apóia na obra de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, de onde é tomado o conceito de “homem cordial”. Aspectos de metodologia A pesquisa alternou-se entre uma investigação com fontes tanto de campo como bibliográfica. Quanto aos procedimentos de coleta de dados houve momentos em que se recorreu ao levantamento, como também à pesquisa bibliográfica e, à pesquisa documental. Quanto às fontes documentais, relatórios e boletins do TRE e do TSE sobre as eleições brasileiras, assim como Jornais e Revistas. Para o levantamento foi ele efetivado no uso de técnicas como formulário e questionário. A outra face da pesquisa compreende a pesquisa bibliográfica, visando apreender os principais conceitos e idéias em torno do tema central. Têm sido também utilizados como fonte de coleta de dados os noticiários de televisão e os sites de notícias e de bancos de dados, a exemplo do CIS e Scielo. Nas entrevistas e nos questionários buscou-se captar os elementos que fazem parte da nossa cultura política, além de informações que possam dar significado e ser evidências para as escolhas e ações assumidas no espaço político que envolva o mandonismo. Na parte documental são importantes os processos por crimes eleitorais. Os anuários estatísticos e também relatórios sobre indicadores sociais têm também significativa importância. A caracterização dessa pesquisa é eminentemente explicativa. Busca-se analisar e explicar os processos envoltos com o fenômeno do mandonismo. Enfocam-se os porquês da existência de tal fenômeno na realidade brasileira e buscam-se identificar os fatores substantivos que possibilitam a existência e a maneira de ocorrer. Outrossim, buscou-se a partir desses procedimentos metodológicos concretizar a pesquisa numa perspectiva do entrelaçamento teórico- prático. Isto é, o esforço intelectual intencional buscando contribuir para o aprimoramento das condições práticas da existência sócio-histórica. 21 Quanto à construção textual houve a opção por um estilo que fugisse um tanto da fórmula-padrão dissertativa que se vem repetindo nas monografias, dissertações e teses. A forma mais flexibilizada aqui adotada busca tão somente criar um texto que possa ser mais facilmente lido e compreendido pelos não especialistas. Não chega a ser inteiramente um ensaio, já que elementos centrais do modelo dissertativo permanecem. O primeiro capítulo destina-se a reconstituir a trajetória mandonista na História Política brasileira. Identificam-se os momentos e os elementos de sua constituição e suas formas atualizações no interior de grandes acontecimentos e na vida política brasileira. Visa-se, assim, pontuar-lhe o caráter processual e significativo na constituição da vida política brasileira. O segundo capítulo retrata a trajetória de José Sarney enquanto homem público e o fato de ter sido o primeiro presidente civil depois de 1964. Busca-se demonstrar que sua condição de político está para além de um arranjo meramente local, tendo ele total encaixe no plano nacional. Desta maneira quer-se ressaltar não só sua inclusão no bojo desse fenômeno mandonista como também a existência do mandonismo como um fenômeno nacional ao mostrar que sua inserção não é um acaso nem algo de excepcional, mas algo comum na vida política brasileira. Mais que uma sobrevivência: um forte elemento constitutivo até o momento. A terceira seção volta-se ao processo multifacetado da Transição ocorrida com o fim do regime autoritário iniciado com o Golpe de 1964. Tenta-se mostrar os aspectos diferenciados da transição tanto em termos de avanço e de incompletude em algumas esferas. O quarto capítulo volta-se para a nossa última Reforma do Estado e as condições sob a quais ela ocorreu. Destacam-se suas características e implicações para o campo político e para a sociedade em geral. Tem como cenário a inserção na Globalização através dos princípios do neoliberalismo. Para tanto é dada atenção maior ao período do governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC) e a chegada de Luiz Inácio Lula da Silva (LULA) à Presidência. A quinta parte trata da sociedade civil sob os impulsos transformadores da Globalização. Destacando os elementos significativos de sua interação no campo político, principalmente com o Estado, tem-se o ensejo de identificar o porte e o teor 22 de seu protagonismo. Em seguida, busca-se assinalar as marcas dessas transformações na sociedade brasileira, destacando os elementos culturais que perpassam a vida política brasileira e sua capacidade participativa. Finalizando o capítulo, aborda-se a chegada do Partido dos Trabalhadores (PT) ao poder, o significado e resultado dessa sua ascensão no quadro político brasileiro. 23 1. ARQUEOLOGIA MINIMALISTA DO MANDONISMO 1.1 Das raízes à República Um dos caminhos possíveis para se pensar as raízes do mandonismo no Brasil nos conduz ao início da colonização. Quando a Coroa Portuguesa deixou o processo de colonização, em grande parte, aos encargos da iniciativa particular, mantendo-se relativamente afastada, os proprietários viram-se na situação de senhores, forjando as leis que estabeleciam a ordem dentro e ao redor das benfeitorias. Nesses espaços soberanos, exigiam ser chamados de “Dom”. Forjando ao seu talante as leis não escritas dos domínios que lhes cabiam pelos alvarás do rei, ou pela força de suas armas, os primeiros povoadores e seus sucessores se constituíram em verdadeiros vice-reis, sem maiores vínculos com o Reino. (LINS, 1988). Tais proprietários gozavam de grande autonomia e seu poder era quase absoluto, pois quando feriam os interesses portugueses ou contra eles se levantavam, a metrópole agia com violência e incisivamente, como comprova a Revolta de Beckman, em 1684, que se caracterizou como uma revolta de proprietários e de natureza reformista, visando apenas a extinção do monopólio da Cia. de Comércio e proibição da exploração da mão-de-obra indígena. Contudo, fora isso, o que valia era a hierarquia forjada por eles. Não havia ainda um governo direto aos moldes do que foi implantado pelo Estado Moderno a partir do século XVII. Portanto, esses senhores atuavam como intermediários, já que a grande maioria da população não mantinha uma relação jurídica e/ou política com a autoridade do Estado. Sobre esse etapa Leal (1975, p. 251) “ o sistema peculiar a esse estádio, já superado no Brasil, é o patriarcalismo, com a concentração do poder econômico, social e político no grupo parental”. Com a Regência de 1831, cria-se a Guarda Nacional e os “mandões” começam a receber o tratamento de “coronel”. Porém, é com o advento da República que esse termo vai significar a versão mais expressiva do mandonismo 24 nacional: o coronelismo. Não era só uma nova nomenclatura em cena, mas um sistema de poder político que tinha efetividade em todo território nacional. A instauração da forma republicana de governo no Brasil aconteceu na forma de um golpe. Seu trajeto é nitidamente marcado pelo seu elitismo e, acima de tudo, para concretizar o processo de modernização que o Estado unitário e monárquico tornara-se incapaz de dá continuidade. A crise foi inevitável, agudizando-se sobremaneira ao logo dos anos 80. a modernização conservadora, no entanto, encontraria na República meios de continuar a se reproduzir. Não se alteraria o caráter de nossa evolução social – permaneceu ela elitista e marginalizadora da participação popular, conciliadora e autoritária - , mas o capitalismo em gestação ganharia uma forma mais adequada aos seu prosseguimento. A República foi o caminho através do qual o Estado realizou sua auto-reforma. (NOGUEIRA, 1984, p. 22). Em virtude disso, o novo ordenamento político e jurídico de caráter federalista e republicano, para se consolidar, teve de apoiar-se nos coronéis. A Política dos Governadores, implantada por Campos Sales, em 1902, conservou as redes de vínculos que teciam o coronelismo, mas manteve os coronéis cada vez mais como forças locais, isto é, nos municípios, baixando a sua influência junto ao governo federal e incorporando-os, de forma gradativa, ao jogo político institucionalizado. Um dos elementos dinâmicos dessa teia era os favores que surgiam com os compromissos assumidos entre coronéis e governadores e governadores e presidente. Como a autonomia dos municípios era mínima, os coronéis obrigavam-se a negociar com os governadores, visando ganhos para seu controle político, como a distribuição dos cargos públicos. Por mais esdrúxula que possa parecer a política de Campos Sales foi uma obra engenharia política de importante significado real, no estabelecimento de uma hegemonia e na consagração da concentração e da centralização dos meios de gestão e da soberania do Estado, em particular o poder da União. A Revolução de Trinta foi bastante danosa para os coronéis, pois os perseguiu, desarmou-os, e pôs muitos deles na cadeia. Segundo Lins (1988), o prestígio popular dos coronéis não foi destruído por essas ações. Isto revela que não só eles exerciam poder como também gozavam, nesse exercício, de autoridade, 25 configurando tipos de dominação. Tomando-se a idealtipologia weberiana, essas dominações variavam da tradicional patrimonial ou patriarcal até a carismática, tendo em vista que os coronéis não eram de um só tipo. Apesar de tais danos, logo em seguida, foram restabelecidos na cena política, sendo úteis, inclusive, à sustentação do PSD de Vargas, na Constituinte de 1934. Para Maria Isaura Pereira de Queiroz (1969, p. 127) [...] a Revolução de Outubro não fora produto de nenhuma mudança na estrutura social e econômica e sim de uma evolução, guardava no seu seio, coexistentes, tendências mais novas entremeadas de velhas tendências sobreviventes da Colônia. Assim, a passagem da solidariedade familial à solidariedade de dependência, de elaboração mútua, não foi brusca e não acabou com o coronel, mas se processou graças à gradual adaptação deste as novas condições de vida. Conforme Nogueira (1998), no efervescente cenário dos anos 30, ainda não estava efetivada a derrota completa do setor agrário-exportador da burguesia nacional: a Revolução de 30 foi a vitória parcial de outras classes, o que as obrigava a pactuar com os oligarcas. Tanto entre os vencedores como entre os vencidos havia oligarquias. Florestan Fernandes (1974), observando que tanto no fim do Império como no início da República só existiam os germes do poder e da dominação burguesa, considera uma impropriedade falar em crise do poder oligárquico, já que não se trata de um colapso, mas de uma recomposição (sob a hegemonia oligárquica) da estrutura de poder, que vai configurar, historicamente, o poder e a dominação burguesa, iniciando assim a modernidade no Brasil. Separa deste modo (com um quarto de século de atraso) a era senhorial da era burguesa. A caracterização do desencadeamento dessa era é sugerida, pelo autor supracitado, como constituída de um tom cinzento e morno, um todo vacilante e por uma frouxidão com que o país se entrega, mesmo com a ausência de profundas transformações iniciais em extensão e em profundidade, ao que ele chamou de “império do poder e da dominação”, especificamente nascidos do dinheiro. A utilização desse recurso de natureza literária (a imagem como forma explicativa) possibilita ao leitor, via descrição, a visualização de uma obra de arte: um quadro. Nesta obra, o tom cinza revela um ambiente mórbido, sonolento, de baixo 26 entusiasmo, enquanto a temperatura morna vai significar o balanceamento, o meio termo, bem característico das composições e das reestruturações que se iam efetivando. A frouxidão e o todo vacilante conotam a falta de rigor e a imprecisão em efetivar a modernização em toda a sua amplitude e ao mesmo tempo a comodidade por ela se efetivar de forma restrita, dando persistência às velhas formas que reservavam privilégios. Não obstante, essa mesma burguesia — como sucedera com a aristocracia na época da Independência — foi condicionada pelos requisitos ideais e legais da ordem social competitiva. Ela se define, em face de seus papéis econômicos, sociais e políticos, como se fosse a equivalente de uma burguesia revolucionária, democrática e nacionalista. Propõe-se, mesmo, o grandioso modelo francês da Revolução Burguesa nacional e democrática. Essa simulação não podia ser desmascarada: a Primeira República preservou as condições que permitiam, sob o Império, a coexistência de ‘duas Nações’, a que se incorporava à ordem civil (a rala minoria, que realmente constituía uma ‘nação de mais iguais’), e a que estava dela excluída, de modo parcial ou total (a grande maioria, de quatro quintos ou mais, que constituía a ‘nação real’). (FERNANDES, 1974, p. 205-206). Tratava-se de uma burguesia dotada de um moderado espírito modernizador, que tendia a limitar a modernização no âmbito empresarial e econômico. E esses limites só eram ultrapassados quando servissem de meio (não como fim) para demonstrar sua civilidade. Portanto, não buscava envolver toda a nação, tão-pouco revolucioná-la em sua totalidade. Como na “Persistência da Memória”, de Salvador Dalí: os relógios aparecem como se estivessem se derretendo; assumindo diversas formas, num ajustamento às superfícies das estruturas sobre as quais estão pousados. Se Dalí teve tal idéia pensando sobre a estrutura do queijo Camembert, para representar a irrelevância do tempo, Florestan Fernandes (1974), por sua vez, concebeu tal cena, refletindo como antigas estruturas de poder se flexionam, no Brasil, para se perpetuarem no poder, tornando quase irrelevante a passagem modernizadora do tempo. Ele também chama atenção para o fato das diversas burguesias terem efetivado uma situação mais de justaposição do que de fusão, tanto as que se formaram nas plantações, como as que se formaram nas cidades. O comércio será o lócus de encontro e de definição dos seus interesses comuns. O que seria uma debilidade e que teria possibilitado o nascimento do poder da burguesia, que impôs, desde o início, estabeleceu-se o pacto tácito de dominação de classe no terreno 27 político. Passou a constituir uma especificidade da burguesia brasileira em relação às outras burguesias. Ao contrário de outras burguesias, que forjaram instituições próprias de poder especificamente social e só usaram o Estado para arranjos mais complicados e específicos, a nossa burguesia converge para o Estado e faz sua unificação no plano político, antes de converter a dominação sócio- econômica no que Weber entendia como ‘poder político indireto’. As próprias ‘associações de classe’, acima dos interesses imediatos das categorias econômicas envolvidas, visavam a exercer pressão e influência sobre o Estado e, de modo mais concreto, orientar e controlar a aplicação do poder político estatal, de acordo com seus fins particulares. (FERNANDES, 1974, p. 204). A chegada do Estado Novo8 garantiu a permanência dos coronéis no jogo político. Logo que o Golpe foi deflagrado, os interventores varguistas preferiram buscar o apoio dos coronéis ao das lideranças integralistas municipais, que tiveram participação importante na preparação do Golpe. Para alguns autores, como Carvalho (1997), o coronelismo morre em mil novecentos e trinta. Para outros, ele ultrapassa os anos trinta e apenas adquire uma outra face com a diversificação econômica e social que se desenvolveu no país. Na análise de Lins (1988), o coronelismo teria desencarnado das pessoas e se reencarnado nas leis, cujo espírito seria repressivo, e que o mesmo estaria subsistindo nas práticas do mandonismo. Concordamos com Lins no sentido de que há uma sobrevivência reencarnada nas leis. Diríamos que em toda a burocracia, mas no nosso entender quem reencarna é o mandonismo (o espírito) e não o coronelismo (o corpo) que é uma experiência historicamente datada. Cabe lembrar que Lins não faz uma diferenciação conceitual entre o primeiro e o segundo, tal como fez Victor Nunes Leal (1975), e mais detidamente Carvalho (1997), para os quais o mandonismo é anterior ao coronelismo e constitui-se em uma característica da política tradicional. Desta forma, o coronelismo é um sistema e configura um momento específico do mandonismo. A política tradicional aqui referida é a política marcada pelo autoritarismo, personalismo, cooptação, abuso de poder econômico, nepotismo etc. 8 Sobre o autoritarismo no período de 1920 a 1940. Ver Fausto (2001). 28 O coronelismo se integra, pois como um aspecto específico e datado dentro do conjunto formado pelos chefes que compõem o mandonismo local - datado porque, embora aparecendo a apelação de coronel desde a segunda metade do Império, é na Primeira República que o coronelismo atinge sua plena expansão e a plenitude de suas características. O coronelismo é, então a forma assumida pelo mandonismo local a partir da proclamação da República; o mandonismo local teve várias formas desde a Colônia, e assim se apresenta como o conceito mais amplo com relação aos tipos de poder político-econômico que historicamente marcaram o Brasil9 (QUEIROZ, 1977, p. 160). Tal interpretação nos parece mais adequada por tornar mais operativo o conceito de mandonismo, já que o toma como um fenômeno mais amplo que recobre toda uma cadeia de práticas e de exercício de controle político de forma autoritária que se vem manifestando no decorrer da nossa História. O mandão, para Carvalho (1997), pode expressar-se ou se personificar de diversas formas, mas todas elas trazem consigo algumas características em comum. O mandão, o potentado, o chefe, ou mesmo o coronel como indivíduo, é aquele que, em função do controle de algum recurso estratégico, em geral, a posse da terra, exerce sobre a população um domínio pessoal e arbitrário que a impede de ter livre acesso ao mercado e à sociedade política10. (CARVALHO, 1997) O mandonismo, enquanto exercício de controle político, tem também como particularidade a perseguição e hostilidade aos adversários políticos. Vincula- se às formas oligárquicas, pois se estrutura e se organiza através da combinação de interesses particulares e em proveito de grupos pequenos. Essa articulação tem, entre outras finalidades, que obter benefícios a partir do uso da estrutura burocrática do Estado e dos seus recursos e meios de gestão, o que vem impossibilitando o restante da sociedade de usufruir vários direitos, mesmo que formalmente já estabelecidos. Desta maneira, ele opera a partir de uma disjunção entre direitos civis, políticos e sociais. Às vezes, revelando que muitos agentes estatais da accountability horizontal são figuras alegóricas ou meramente ilustrativas. Deste modo ficando o exercício da cidadania e da soberania popular minimizados por uma forma de compromisso pessoal. 9 Negrito nosso. 10 Negrito nosso. 29 Revigoramento pelo Golpe de 64 Em 1964, momento do golpe militar, o sistema que sustentava e pelo qual ganha existência o coronelismo já estava diluído, mas os mandões ainda continuavam existindo em todo o Brasil. Contudo, atuando através de outros mecanismos e assumindo outras faces diante do novo tempo que se abria. Os mandões tiveram assento no regime autoritário como arautos, adotando e defendendo o discurso da modernização, do crescimento, da reestruturação etc. Isto é, garantiram os seus mandos e negócios baseados nos novos recursos tanto dos meios de comunicação como da gestão administrativa. Esses mandões que se aliaram ao regime autoritário iniciado em 64, não mais recorriam, de forma constante, à violência dos jagunços, nem à inobservância declarada à lei, como muitos chegaram a fazer na época do coronelismo, na República Velha. Isso porque os espaços para a contestação pública e para a expressão da divergência já estavam estreitados e policiados pelo regime. Ao lado disso, buscar dar aparência de legalidade aos seus atos era de fundamental importância para o apoio dado ao regime autoritário, tendo em vista que o mesmo buscava garantir para si alguma legitimidade (mantendo o funcionamento do Poder Judiciário, a existência de partidos e algumas eleições). Era necessário, nesse contexto, que cada mandão assumisse a imagem de um indivíduo de um novo tempo. Esses mandões passaram a ser os parceiros preferenciais do regime militar. Muitos ascenderam e consolidaram seu mando nessa época. Devido à “ditadura militar”, muitas foram as “personalidades que se projetaram à sua sombra, e que devem a ela a Sorte, o poder e a riqueza que possuem” (REIS, 2000, p.07). O Golpe de 64 e o autoritarismo por ele implantado abriram ainda mais a possibilidade de continuidade da cadeia sucessória do mandonismo. Com a montagem, pelo regime, de uma estrutura tecnocrata-burocrático-autoritária o mandonismo conseguiu alargar sua forma de sobreviver e de se reproduzir operando por dentro das instituições (sua reencarnação na lei). Esse período de auto-instituinte do autoritarismo no Brasil. 30 Para Florestan Fernandes o Golpe de 1964 se materializou na confluência de três pressões sobre os setores dominantes. De um lado, encontrava-se uma pressão de fora para dentro e, do outro, dois tipos distintos de pressão interna. A dinâmica daí originada pôde possibilitar, pela primeira vez, que a dominação burguesa no país apareça em toda a sua plenitude. A pressão externa (de fora para dentro) era fruto das estruturas e dinamismo do Capitalismo monopolista global. Estabelecendo a sua própria forma de pressão. Essa pressão continha um elemento político explícito: condições precisas de ‘desenvolvimento com segurança’, que conferissem garantias econômicas, sociais e políticas ao capital estrangeiro, às suas empresas e ao seu crescimento. Mas tal pressão em sua dupla polarização, não só era compatível com a idéia da ‘continuidade do sistema’. Ela parecia engendrar, pelo menos nos chamados ‘círculos conservadores influentes’, novas esperanças de aceleração da história. (FERNANDES, 1974, p. 216). As pressões internas eram compostas de tipos distintos, uma tendo origem no proletariado e a outra decorrente da intervenção estatal na economia. Isto aponta para um processo multifacetado, onde forças diferenciadas atuam em conformidade com seus interesses e interferindo na política de Estado. Uma, procedente do proletariado e das massas populares, que expunha a burguesia à iminência de aceitar um novo pacto social. Tal ameaça não era propriamente incompatível com a ‘revolução dentro da ordem’, que a dominação burguesa devia (e também prometera) ao Brasil republicano. Não obstante, ela colocou aqueles ‘círculos conservadores influentes’ em pânico. Outra, procedente das proporções assumidas pela intervenção direta do Estado na esfera econômica. Essa intervenção nasceu e cresceu da própria ‘continuidade do sistema’, nas condições de um capitalismo dependente e subdesenvolvido. Todavia, ela atingiu tal peso relativo, que atemorizou a iniciativa privada interna e externa. (Idem) Essas três pressões, de maneiras diversas, afetavam não só as bases materiais, como também a própria eficácia política do poder burguês, o que exigiu dos setores dominantes, das classes altas e médias, uma aglutinação em prol de uma contra-revolução defensiva, que, por sua vez, efetivou significativas alterações na forma e nas funções da dominação burguesa. O Golpe de 64 nasce com a composição de forças dos setores mais privilegiados da sociedade amplamente apoiados por pelos setores médios urbanos aterrorizados por um “nivelamento por baixo”. As manifestações de rua nos principais centros urbanos, particularmente em 31 São Paulo, a exemplo da Marcha com a Família (500 mil pessoas). O que mostra o caráter urbano da deflagração do golpe. O processo culminou na conquista de uma nova posição de força e de barganha, que garantiu, de um golpe, a continuidade do status quo ante as condições materiais ou políticas para encetar a penosa fase de modernização tecnológica, de aceleração do crescimento econômico e de aprofundamento da acumulação capitalista que se inaugurava. A burguesia ganhava, assim, as condições mais vantajosas possíveis (em vista da situação interna): 1) para estabelecer uma associação mais íntima com o capitalismo financeiro internacional; 2) para reprimir, pela violência ou intimidação, qualquer ameaça operária ou popular de subversão da ordem (mesmo como uma ‘revolução democrático-burguesa’); 3) para transformar o Estado em instrumento exclusivo do poder burguês, tanto no plano econômico quanto nos planos social e político. (p.217) Para Fernandes (1974), essa nova vitória não foi capaz de suplantar todas as fraquezas decorrentes de uma dominação heterogênea e compósita. Tiveram de se acomodar a interesses dos setores arcaicos da burguesia, que desfrutam da capacidade de interferir nos ritmos e nas conseqüências da modernização controlada de fora, o que não só diminuiu a eficácia, como os próprios efeitos de demonstração da nova ordem. Mas o saldo foi por demais positivo. O Golpe de 1964 alimentou o estado de exceção minimizando as garantias individuais dos cidadãos, além de afetar os mecanismos capazes de reter a promoção de interesses particulares que atentassem contra o interesse público. Período em que o mandonismo passa por um aperfeiçoamento atrelando-se aos mecanismos tecno-burocráticos dos governos militares. Esse aprendizado vai ser fundamental para sua chegada ao processo de redemocratização, em 1984, como um significativo elemento de interferência. Contribuiu para o mandonismo atuar em cenários mais complexos e transpondo assim mais uma etapa histórica. O Golpe 64 não só os alimentou como os colocou em todos os pontos da tecno-burocracia estatal e lhes deu apoio e suporte para os momentos seguintes na vida política brasileira. 1.2 A cadeia sucessória do mandonismo no Maranhão O mandonismo republicano no Maranhão inicia-se com Benedito Leite (1899), que manda até 1909. O mandão seguinte foi Humberto de Campos, cujo 32 mando vai de 1909 a 1924. Ambos ainda na vigência do coronelismo. Benedito Leite é um expressivo exemplo de um coronel, pois além de não poupar os adversários não deixou de recorrer à violência e à fraude. A Revolução de Trinta abre um momento ímpar no Maranhão, quando a chefia do executivo passa a ser ocupada por interventores varguistas. Promoveu também a substituição da oligarquia magalhãesista pela marcelenista, grupos rivais tradicionais que polarizavam a política da época, portanto, não se tratava de projetos políticos ideologicamente distintos, como observa Caldeira (1981). Durante o Estado Novo, a política maranhense foi marcada principalmente pela atuação do interventor Paulo Ramos, cujo posto ocupou de 1937 a 1945. Quando o Estado Novo terminou (1945), contando com o enfraquecimento dos antigos coronéis locais (do pré-30) e com o prestígio que gozava junto ao presidente Dutra, Vitorino Freire chega ao controle político do Maranhão (Caldeira, 1978), passando a ser o grande mandão do Maranhão até 1965. O período em que ele esteve à frente do controle político do Maranhão, passou a ser denominado popularmente como Vitorinismo. Segundo Caldeira (1978), o vitorinismo foi uma modalidade peculiar de coronelismo. Entendemos que essa “modalidade peculiar” trata na verdade de um fenômeno de transição, pois a conjuntura, principalmente a nacional, não fornecia mais os elementos suficientes para a existência do coronelismo, mesmo que tardio. O evento que eclodiu em 1964 era uma articulação de diversos setores da sociedade sob fluxos tensivos internos11 e que se somaram aos que emanavam do cenário internacional, balizado pela Guerra Fria. O golpe de 64 abortou diversas formas de atuação e participação política, impondo novos parâmetros para que elas fossem exercidas ou não. Tomemos como exemplo as ações que extinguiram o pluripartidarismo, fecharam sindicatos, cassaram parlamentares, censuraram a imprensa etc., formalizadas por Atos Institucionais (AI’s). 11 Destacamos a econômica, resultado da falência do modelo nacional-desenvolvimentista. A instabilidade e pressão social, decorrentes do baixo índice de emprego, salários sem poder real. Tornaram as greves freqüentes, atingindo o interior do próprio Exército, com a greve dos sargentos. A partir de 1963 o Exército se posicionou totalmente contra essas manifestações, algo até então tolerado por eles. 33 É nesse contexto de fechamento à participação e suspensão de diversos direitos e garantias individuais e coletivas que o novo regime montou sua estrutura de controle e gestão do Estado, em patamar propriamente burocrático e autoritário. No Maranhão, algumas candidaturas ao Governo do Estado já estavam lançadas desde 1963, isto é, antes da ruptura democrática encabeçada pelos militares. Alguns fatos que podem ter motivado as pré-candidaturas são o rompimento da UDN (de Sarney) com o PSD (governista e do qual fazia parte Vitorino Freire)12 em 1962; a crise no interior da facção vitorinista em 1963, que culminou com um racha. Antecipadamente já eram pré-candidatos: José Sarney (UDN); Neiva Moreira (PSP); Cid Carvalho (PTB) e Renato Archer (PSD). Em 1964, José Sarney era deputado federal reeleito pela UDN, legenda do bloco anti-goulart e de apoio aos militares. Como deputado federal, participou da votação que referendou o candidato do Comando Revolucionário, General Humberto de Alencar Castelo Branco, votando a favor do mesmo (BUZAR,1998). Participou da ala bossa nova da UDN, que apoiou Jânio Quadros nas eleições de 1960, ao conjunto de reformas anunciadas por ele, também foi dado apoio à posse de João Goulart. Os adversários dessa ala o definiam como filocomunistas. Tal designação tanto pode ser interpretada como inclinação ao comunismo como também uma linhagem. Mas na verdade tinha um impulso irônico, por se tratar da UDN, que no quadro de suas figuras expressivas militavam nada menos que Carlos Lacerda e Magalhães Pinto, conspiradores por vocação. Ambos tentaram impedir a posse de Goulart. Com o slogan “Maranhão Novo”, Sarney deflagrou sua campanha eleitoral propondo a modernização do Maranhão, afinado com o projeto militar de desenvolvimento. Atacou o atraso e o arcaico, cuja representação ele atribuía ao vitorinismo. No seu discurso de posse, deu ênfase ao combate ao analfabetismo, à miséria e ressaltou a necessidade de romper-se com a falta de renovação política no Maranhão. Segundo Caldeira (1978, p. 66): 12 Cabe ressaltar que José Sarney ingressou na política com o aval de Vitorino, que lhe agraciou com um cargo de assessor no governo de Eugênio Barros (cuja eleição foi contestada pela população, cujo acontecimento ficou conhecido como a Greve de 51). Em seguida, foi lançado candidato a deputado federal pela legenda do PSD em 1954, ficando na suplência, mas ainda chegou a exercer o mandato por alguns meses, já que o titular se afastou, sob ordem de Vitorino, para que ele pudesse assumir. 34 A eleição de José Sarney para o Governo do Estado em 1965 representa, para a história política contemporânea do Maranhão, apenas o referendum da sociedade civil do Estado para a consecução dos objetivos do Governo Central, o que permite concluir que, para a sociedade do Maranhão, os resultados daquela eleição se constituíram em uma “vitória outorgada”. Prova disso pode ser revelada pelo empenho despendido pelo Governo Central para a eleição do candidato por ele ostensivamente apoiado, no caso, José Sarney. Apoiado nos militares, José Sarney deu efetividade ao seu programa de governo construindo estradas (asfaltamento da São Luís/Teresina), criando as companhias de água e de energia, implantando o projeto de alfabetização João-de- Barro, ampliando o curso ginasial com as Unidades Bandeirantes, além de programa de habitação. Essas realizações ainda hoje são apontadas pelo ex-presidente José Sarney como um marco e um avanço em relação aos seus antecessores. O Golpe de 1964 contribuiu para o surgimento do sarneísmo. Essa contribuição pode ser esquematizada nos seguintes termos. No primeiro momento: a) com as cassações promovidas com o AI-1 (dentre elas a de Neiva Moreira PSP) restaram em 65 apenas três candidatos ao Governo do Estado, a saber: Renato Archer (PSD-PTB, apoiado por Vitorino), Costa Rodrigues (PDC-PL, apoiado por Newton Belo, dissidente do vitorinismo) e José Sarney (UDN-PSP-PR, coligação “Oposições Coligadas”); b) os militares, nacionalmente apoiados pela UDN, que buscaram desarticular as lideranças do PSD e do PTB em todo Brasil; no Maranhão, neste caso, a liderança a ser desarticulada era a de Vitorino Freire. As medidas imediatamente tomadas pelos militares para enfraquecer o vitorinismo foram o saneamento eleitoral (eliminando-se mais de 206.206 mil eleitores irregulares) e o envio de tropas do exército para evitar que os vitorinistas recorressem ao uso da força e da violência, dando viabilidade real de vitória para a candidatura de José Sarney. No segundo momento: a) o governo Castelo Branco liberou recursos para o governo de José Sarney, que implantou e desenvolveu alguns projetos; b) o AI-2 criou o bipartidarismo colocando Vitorino Freire em uma mesma legenda com Sarney, a ARENA, o que forjava formalmente uma unidade, que de certa forma 35 atenuou os embates entre as duas facções; c) o governo de Costa e Silva não emitiu grandes preocupações com o Maranhão, o que possibilitou ao grupo de José Sarney agir mais livremente diante dos seus adversários. Em palestra proferida na Mackenzie (1968), o governador José Sarney, em tom de denúncia ao seu antecessor, apresentou aos presentes os seguintes números sobre as condições do Maranhão: renda per capita menor que 100 dólares, 50% das crianças em idade escolar fora das escolas, mortalidade infantil 212/1000, setor industrial apenas 8% do PIB. Nota-se, depois de quatro décadas, que tais medidas implantadas no seu governo não foram suficientes para romper o atraso que ele denunciara no seu discurso de posse e muito menos significou o rompimento com a falta de renovação política no Maranhão. 1.3 O Maranhão de hoje é outro Maranhão?13 Segundo o IBGE (Censo 2000) o Maranhão tem o menor PIB per capita do Brasil; somente 5,4% das pessoas com alguma ocupação têm carteira assinada; a mortalidade infantil chega a 54,2 (a cada 1.000); 34,5% são analfabetos; a rede coletora de esgotamento sanitário atinge apenas 4,9% da população. Em 2005 a Unicef apresentou outra taxa de mortalidade infantil: 48 para cada 1000, índice ainda considerado alto. A maior parte da população encontra-se no patamar de miséria, com rendimentos que não chegam a cem reais (R$ 100,00) por mês. Pelo índice de Desenvolvimento Humano (IDH) - ONU, o Maranhão equipara-se aos índices negativos dos países pobres da África. No Atlas da Exclusão Social no Brasil (vol.1) (POCHMANN e AMORIM, 2003) o Maranhão aparece, em 1960, como o segundo colocado em exclusão social com 0,219 e em 2000 como o primeiro colocado com 0,197; era o segundo em índice de pobreza em 1960 com 0,010 e em 2000 aparece como o primeiro colocado com 0,001; era o menor índice de emprego formal em 1960 com 0,070 e em 2000 continua liderando, sendo esse índice de 0,001; em termos de alfabetização, em 1960, ocupava o terceiro pior índice, 0,142, em 2000 se 13 Frase do Governador José Sarney. A interrogação é nossa. 36 mantém em terceiro, 0,172, em 1960 era o líder em exclusão social, 0,037, e permaneceu na liderança em 2000 com 0,003. Em 2005 o Maranhão aparece no IDH com 0,647, sendo que os dez municípios mais pobres do Brasil são do Maranhão. Em 1966 o eleitorado maranhense sofreu um encolhimento, por força da revisão eleitoral (ação moralizadora dos militares), eliminando 206.206 eleitores, 58,55% do eleitorado. A população do Estado, nessa mesma época, era de 3.173.000, mas em 1970, final do governo Sarney, era somente de 2.992.68614. A população do Maranhão sofreu um decréscimo de 180.314 habitantes. Por outro lado, o eleitorado passa para 470.731, um acréscimo de 178.288. Apenas 2.026 indivíduos a menos dos que deixaram de existir no Estado. Lembra-se que nessa época não havia o voto facultativo aos 16 anos. O que será que houve? 14 Anuário estatístico do IBGE. 37 2. A OCASIÃO PARA O PRÍNCIPE 2.1 Fortuna ou virtù? A chegada de José Sarney ao Governo do Maranhão significou a quebra do controle político encabeçado pelo então senador Vitorino Freire. Eleito Sarney, governo que se intitulou de Maranhão Novo, teve pleno apoio do governo central para implementar diversos projetos que o colocassem em sintonia com o discurso de modernização proclamado pelo regime autoritário. Portanto, para a ação ser ‘moralizante’ e modernizadora deveria haver remanejo no quadro governamental. E Sarney se enquadrava ao esquema: ‘seria o elemento responsável pela integração da socieadade maranhense no contexto ‘revolucionário” de 64. (BONFIM, 1985, p. 23) Por outro lado, mais do que um discurso ilustrado, Sarney teve competência de trazer para si a representação do descontentamento popular frente ao prolongado mando de Vitorino. Não só isso: também incorporava a regeneração do Maranhão e “colocá-lo na trilha dos seus altos destinos”, com a razão e o intelecto. O que ele anunciava eram anseios, em parte, defendidos por toda a oposição e parte da esquerda da época. Seu programa sensibilizou grandes contigentes da população que viam em Sarney uma alternativa para romper com o velho esquema político vigente no Estado, tanto que as lideranças camponesas mais representativas, como Manuel da Conceição, tornaram-se cabos eleitorais de Sarney, nas eleições de 65. (Idem, p. 22) Se os militares viram em Sarney seu aliado ideal, é provável que Sarney tenha visto neles os parceiros úteis. Precisava a um só tempo sobreviver politicamente frente ao fechamento político e ao mesmo tempo consolidar sua liderança no Maranhão além de ganhar espaço no plano nacional, sem o qual não teria como permanecer no controle político. E examinando suas obras e suas vidas, constata-se que da sorte só receberam a oportunidade que lhes proporcionou a matéria em que puderam introduzir a forma que lhes agradava. Sem tal valor a oportunidade teria surgido em vão. (MAQUIAVEL, 1996, p.67) 38 Muitas das opções assumidas por Sarney podem ser pensadas através da teoria dos jogos, quando privilegia os aspectos racionais da escolha. Não se pode querer que alguém, que se encontra em um campo competitivo, em disputa, não tente escolher as opções que lhe são mais favoráveis. Por outro lado, a virtuosidade proposta por Maquiavel para a política, em sua obra O Príncipe, é claramente a definida como a capacidade de identificar as oportunidades, saber ler o contexto e escolher as ações adequadas para o momento, para agir certo na hora certa. É uma virtude diferente da virtude cristã. O Maranhão Novo era um governo que reivindicava para si a condição de moderno, de uma ruptura com o atraso, com o arcaico, com a miséria, com a falta de liberdade e pluralismo, com o mando oligárquico. Elementos sempre recorrentes nos discursos do recém eleito governador. O seu discurso de posse é marcado por esses elementos distintivos e caracterizadores do passado e do presente. Nele o presente é definido como uma volta ao curso glorioso de um passado remoto, interrompido pelas forças negativas do estado de coisas do passado recente. É uma imagem de re-conexão com a glória, sendo esta pensada como uma marca característica da própria identidade histórica do estado. O desejo era que o Maranhão entrasse no mesmo ritmo e compasso do desenvolvimento do país. O discurso desenvolvimentista afirmado pelos militares dá abrigo ao discurso sarneísta de rompimento com o atraso. Há no jovem Sarney (de 35 anos), que assume o Governo do Maranhão, em 1966, uma hibridação iluminista e desenvolvimentista. O vitorinismo não era só o arcaico e o atraso, mas também as trevas. A posse de Sarney tem uma dimensão cênica e estética muito grande. Olhando o documentário produzido por Glauber Rocha, Maranhão 66, vê-se que Sarney encenou uma Tomada da Bastilha Tropicalista. Em meio ao realismo da miséria, exemplificado na imagem de um tuberculoso, as lentes do cinema novo registraram os nítidos contornos antropofágicos da peça: igualdade, fraternidade e liberdade somadas ao movimento e as cores15 do circo. 15 O documentário é em preto e branco. Essas são referidas porque sabemos que os tipos de grupos de manifestações populares que se faziam presentes possuem indumentárias coloridas. A exemplo do bumba-meu-boi. 39 Os elementos cênicos, o décor, em síntese, sempre acompanharam o poder político e nisso Sarney não constitui nenhuma excepcionalidade, mas apenas pela originalidade antropofágica de sua posse. Sobre os elementos cênicos do poder político é bastante significante a fala de Georges Balandier (1982, p.68) quando diz que Convém reiterar que qualquer universo político é um cenário ou mais genericamente um lugar dramático em que são produzidos efeitos. O que mudou substancialmente, há algumas décadas, foram as técnicas que podem ser utilizadas para tal finalidade, cujo emprego se modofica segundo os tipos de sociedades. Sarney montou um governo pautado por essa ótica tecno-burocrática (administração orientada por especialistas) e desenvolvimentista, presa à visão dualista. Contudo isso não pode ser concebido como mais um ato excepcional de sua “astúcia”, como sentenciam alguns estudiosos anti-sarneístas. Pelo contrário: é um ato típico da mentalidade da época. O gesto de governo que bem representa essa mentalidade foi a criação do Grupo de Trabalho de Assessoria e Planejamento (GTAP). Inclusive convém frisar que a atuação da GTAP, refletia o comprometimento da equipe com a ideologia desenvolvimentista adotada pelo Chefe do Governo. Também passaria a adquirir valor especial o planejamento em si, como se o fato de ser possível a montagem de planos, programas e diretrizes para o desenvolvimento do Maranhão fosse suficiente para promover mudanças significativas e o bem-estar da sociedade. (BONFIM, 1985, p. 38) Sarney, como qualquer pessoa, traz as marcas do seu tempo, tem sua formação escrita na suas ações (a favor ou contra). Nascido em 1930, passou toda sua juventude sob a égide do ideário desenvolvimentista, principalmente no período de Juscelino Kubitschek de Oliveira (JK). Seu governo acabou direcionando-se para grandes obras de infra- estrutura: porto, estradas, rede de transmissão elétrica etc., fazendo com que o próprio José Sarney reivindicasse para si o crédito de ter sido o modernizador do Maranhão. Levando em consideração o legado desenvolvimentista que se implantara no Brasil e as condições em que se encontrava o Maranhão, torna-se evidente o caráter modernizador do seu governo. Buscava-se introdução do Maranhão no ritmo de desenvolvimento já em andamento no Brasil. Nem no período 40 de Getúlio Vargas nem de Juscelino Kubitschek o Maranhão receberá qualquer grande impulso desenvolvimentista. Parecia às forças políticas do Maranhão que se opunham ao vitorinismo que o Estado tinha perdido o passo junto à História do Brasil. Havia esse anseio desenvolvimentista perpassando diversos segmentos sociais organizado, inclusive a esquerda maranhense, não era e não foi uma invenção sarneísta “mirabolante”, José Sarney foi o que melhor se aproveitou dessa demanda com o quadro político que se abriu em 1964. A modernização do Maranhão desencadeada a partir do governo de José Sarney não destoa da matriz nacional, apenas é agravada pelas peculiaridades de ser periferia da periferia. Já que o Estado não só é periferia do país, mas também da região nordeste. Assim como todo o modelo de desenvolvimento implantado no Brasil, a modernização no Maranhão promoveu benefícios restritos, resultando em melhoria para os segmentos sociais que já gozavam das melhores condições de vida. Portanto, não logrou êxito de elevar minimamente as condições de vida todos os segmentos sociais. Principalmente os segmentos sociais mais pobres e residentes no campo (rural). As populações pobres do Maranhão, particularmente as residente na hinterlândia, até hoje estão sem os benefícios dos serviços de saneamento, água encanada e tratada, energia elétrica, pronto-socorro e postos de empregos formais. O Maranhão é hoje o maior exportador de mão-de-obra escrava do país e um dos Estados com maior índice de sub-registro. O neto dos retirantes16 As ações ou medidas oriundas dessa crença desenvolvimentista foi, em muitos casos, inadequada, porque desconsiderou aspectos importantes da realidade maranhense, fazendo projeções equivocadas quanto à forma de promover o crescimento e a modernização da economia do estado. Com os rumos tomados pelo Golpe de 64, reproduziram-se também os elementos autoritários do regime em vigor. Nesse momento, Sarney também abandona totalmente o combate ao latifúndio (Sarney foi um dos signatários do abaixo assinado em apoio à II Conferência Agrária do Maranhão) segundo informa Bofim (1985, p. 46), estabelece uma política agrária nos moldes do Estatuto da Terra 16 Sarney é neto de retirantes nordestinos que fugiram da seca, buscando no Maranhão a Terra Prometida. 41 do Presidente Castelo Branco. O instrumento formal foi denominado de a Lei de Terras de 1969. Um caso de exemplo dessa mentalidade foi a política agrária, que visava levar o desenvolvimento para o campo. Entregou terras já ocupadas por lavradores a grandes empresas. Não considerou o regime de posse e as declarou devolutas, possibilitando a expulsão desses trabalhadores. O repasse de terras para grandes empresas serviu, em grande parte, à especulação imobiliária e à propagação de latifúndios improdutivos, aumentando a concentração da terra. Isto provocou, em cadeia, desalojamento de milhares e milhares de famílias, destruição de inúmeras unidades de produção familiar (a pequena produção) e aumentou a massa da população sem-terra, acentuando a pobreza entre as populações de lavradores, contribuindo para a formação de inúmeras palafitas e invasões nas periferias das cidades. Desde então o Maranhão tem registrado altos índices de violência no campo envolvendo a disputa de terras. Lidera na exportação de sem-terras. Houve uma significativa redução populacional do Maranhão entre 1966 a 1970. No início do Governo Sarney a população do Maranhão era de 3.173.000 e no final de seu governo, de 2.992.68617. A população do Maranhão sofreu um decréscimo de 180.314 habitantes. Por outro lado, essa visão de modernidade teve o mérito de aproveitar o momento e criou uma infra-estrutura mínima no Estado. Havia uma total carência de estradas e asfaltamento, de porto e de energia elétrica. Essas obras foram da administração Sarney e até hoje encontram eco no imaginário popular. A própria capital do Estado não dispunha de energia suficiente, iluminada precariamente à custa de usina termoelétrica; o fornecimento de energia era precário, sendo interrompido todos os dias a zero hora. A ausência de estradas e a precariedade das existentes prejudicavam o abastecimento de alimento da capital, pois muito do que chegava lá carecia do transporte marítimo em pequenas naus, de fabricação artesanal. Sarney ganhou fama com o “ouro negro18”, asfaltando a estrada São Luís – Teresina (BR 135). O Governo Sarney centrou-se em dotar o Maranhão de infra-estrutura e aplicar novas técnicas de administração (uma máquina burocrática em moldes mais 17 Anuário estatístico do IBGE (1970). 18 Expressão colhida junto a testemunhas da época. 42 modernos). No entanto, programas sociais que revertessem o quadro de miséria e analfabetismo foram insignificantes diante da realidade. A formalização de uma estrutura do Estado em moldes racional/legal não fez com que o universalismo de procedimentos enfraquecesse ou substituísse significativamente as formas de intermediação de interesses (clientelismo, apadrinhamento, nepotismo, corporativismo19 etc), dando continuidade a elementos típicos da dominação tradicional. E, em grande escala, alimentando as formas de dominação carismática. Sarney ambicionou, no início de sua carreira política, constituir-se numa versão maranhense de Juscelino, a quem nunca deixou de prestar homenagens mesmo no período da ditadura. 2.2 A cabeça da serpente: diálogo com o mito20 O chamado sarneísmo tem-se caracterizado pelo exercício e controle do Poder político na forma de governo privado, personalista e oligárquico, articulado a partir do controle de diversos setores estratégicos, tais como os meios de comunicação, construtoras, agroindústria, rede de lojas, dentre outros, e na influência direta junto a agentes de estatais e de importantes instituições como o Judiciário, Legislativo e Ministério Público, tanto no plano estadual quanto no nacional. Esse mando político está associado a uma composição de interesses pertencentes a segmentos sociais restritos (elites); é uma organização sistêmica que se estende por diversos campos de atividade e espaços institucionais. Essa forma de mandonismo sarneísta pode ser esquematizado via as tipologias de culturas organizacionais21 da seguinte maneira: a) a teia mandonista é sempre orientada para o poder. Busca dominar pontos estratégicos, a fim de ficar em posição privilegiada dentro do contexto, adaptando cada entidade à conjuntura e a utilizando como meio para ir freando, eliminando, neutralizando e cooptando as 19 Para um maior aprofundamento sobre as origens do corporativismo no Brasil confira-se Costa (1991). 20 Referência ao mito da serpente existente em São Luís. Nesse mito a ilha será encoberta pelas águas quando a grande serpente, que vive na ilha, encontrar a ponta do seu rabo. Isto é, quando a cobra crescer e circundar toda a ilha. Em termos políticos pensa-se que o encontro da cabeça com a calda simboliza a totalização e fim de um percurso de poder e mando. 21 Sobre tipologia de cultura organizacional confira-se DIAS (2001). 43 forças e sujeitos opositores; em grande parte ela se encontra disfarçada. Primeiro, na forma suave: onde aparece como “gentileza”, “reconhecimento” e “homenagens”. Segundo, na forma menos suave: como paternalismo, clientelismo e nepotismo; b) prioridade na execução da tarefa – pois importa mais alcançar os objetivos que as formas de consegui-los. A rede se flexiona conforme as exigências das tarefas (objetivos). Exaltação às colaborações e ao trabalho de equipe; c) prioriza o atendimento e a proteção dos seus membros, mesmo que em detrimento dos direitos dos demais membros da sociedade. Na verdade, é uma cultura organizacional híbrida, o que mostra sua força de adaptação ao meio e de integração diversificada de seus integrantes. Todos esses elementos se articulam de forma integrada com a função de dar efetividade à dominação. Essa cultura organizacional tem um clima organizacional híbrido correspondente. Ela diz respeito às expectativas e ao grau de satisfação dos membros que compõem a teia mandonista. O clima organizacional22 conjuga os princípios abaixo: 1. Intimidade – relações amistosas: satisfazem suas necessidades sociais de relacionamento e a realização da tarefa não está necessariamente ligada ao local de trabalho. Atua como elemento de integração do grupo. 2. Espírito de equipe – os membros reconhecem que suas necessidades sociais (e políticas) são atendidas, ao mesmo tempo em que compartilham da sensação de terem cumprindo a tarefa. 3. Cordialidade – predomina, na atmosfera do grupo, o sentimento de camaradagem, há ênfase nos interesses de cada pessoa e segmento. A coabitação dos segmentos e dos grupos é predominantemente amistosa, cúmplice e cordial. 4. Tolerância – há uma postura comportamental diferenciada diante de “erros para fora” e “erros para dentro”. Quando é erro para fora o fato é visto como motivo para apoio e aprendizagem, não é tido como uma ameaça, muito menos há inclinação a culpar. Mas quando é erro para dentro o 22 Sobre clima organizacional confira-se DIAS (2001). 44 tratamento é punitivo, pois se constitui em uma ameaça, deve o elemento culpado ser penalizado de forma exemplar, a fim de servir de exemplo e desestimular novas ocorrências. Não há espaço para infiéis e ingratos, por isso, as traições são punidas com rigor. Desta forma o mandonismo atua diante da burocracia como um instrumento de alívio ao peso dos procedimentos e rigor dos critérios ao criar clientelas que são isentas da efetividade deles, jogando os princípios burocráticos no campo da mera formalidade, sem nenhum efeito. Por outro lado, mostra-se bastante adaptável ao modelo gerencial, principalmente quanto aos seus aspectos flexibilização, maior discricionariedade e simplificação dos procedimentos. No interior desse clima organizacional e dessa cultura organizacional, ao invés de imperar o par: formalidade e impessoalidade, emerge um outro par, uma espécie de par alter , constituído pela informalidade e pela pessoalidade. Fazendo uma síntese desses elementos da organização mandonista chega-se a traços que nos remetem a uma outra perspectiva sociológica, a do homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda (1995, p. 17), que, ultrapassando a noção de cordialidade restrita à gentileza e à polidez, nos leva à ações de tipo não racionais e visivelmente passionais. O cordial buarqueniano é “visceralmente inadequado às relações impessoais que decorrem da posição e da função do indivíduo”. Buarque nos dá a tipificação de um ethos que acaba avançando sobre todos os outros espaços da vida coletiva, principalmente o da política. Avesso à frieza da impessoalidade e às formalidades dos procedimentos, busca eliminar distância instaurando relações pessoais e informais, subjugando a racionalidade às variações afetivas. É nesse ambiente que emerge o mandão. Ele aparece como o pai-herói. Este, diante da frieza da impessoalidade e formalismo, se insurge assumindo o papel da anti-burocracia. Significativas também são as observações que faz Raymundo Faoro sobre o que se processa nesse encontro lusitano com os outros grupos sociais. A dinâmica e o seu resultado são assim descritos pelo autor: Em lugar de renovação, o abraço lusitano produziu uma social enormity, segundo a qual velhos quadros e instituições anacrônicas frustaram o florescimento do mundo virgem. Deitou-se remendo de pano novo em 45 vestido velho, vinho novo em odres velhos, sem que o vestido se rompesse nem o odre rebentasse. O fermento contido, a rasgadura evitada gerou uma civilização marcada pela veleidade, a fada que presidiu ao nascimento de certa personagem de Machado de Assis, claridade opaca, luz coada por um vidro fosco, figura vaga e transparente, trajada de névoas, toucada de reflexos, sem contornos, sombra que ambula entre as sombras, ser e não ser, ir e não ir, a indefinição das formas e da vontade criadora. Cobrindo-a, sobre o esqueleto de ar, a túnica rígida do passado inexaurível, pesado, sufocante. (FAORO,2001, p. 837-838) Ao que parece, a razão cartesiana nunca teve assento completo em nosso meio, pois desde as nossas origens implementamos um processo de desconstrução dessa unicidade raciológica. A razão chegou aqui na forma de colonização. O colonizador era o homem racional. Sobreviver para os grupos índios e de origem afro acabou-se constituindo também numa não-adesão integral a sua razão. A razão acabou sendo inscrita como dor. O homem cordial na sua recusa defensiva acaba inviabilizando a universalização de procedimentos com base em princípios racionais, prevalecendo o grau de amizade ou parentesco frente ao mérito por competência. Isto se tornou o terreno fértil para a proliferação do personalismo, ao familismo, ao clientelismo e ao mandonismo. Esse fenômeno bem enfatiza Maria Isaura Pereira de Queiroz na sua obra O mandonismo local na vida política brasileira (1969, p.17): O grupo familial não se limitava então aos pais, filhos, agregados e escravos; era muito maior, pois devido aos casamentos entre parentes, os troncos das famílias eram geralmente primos entre si, e, relacionados, formavam um sistema poderoso para a dominação política e econômica, para a aquisição e manutenção de prestígio e status. O indivíduo que não se achava prêso [sic] e integrado numa família, muito dificilmente podia prosperar e adquirir seu lugar ao sol. No Maranhão, são raros os casos em que uma grande família (rica e/ou com poder político) não tem um de seus membros casados com alguém de uma família também desse tipo. Na verdade, quase todos têm parentes em outras famílias. Há forte marca de endogamia, que faz o vínculo familiar interferir nas opções políticas, provocando muito mais uma solidariedade afetiva do que racional e legal. Essa situação de privilégios e as atividades que desempenham os membros desse clã lembram o que Thorstein Veblen definiu de classe ociosa. “As ocupações são diferentes dentro da classe ociosa, mas todas elas têm uma característica comum – não são ocupações industriais. Estas ocupações não-industriais das 46 classes altas são em linhas gerais de quatro espécies – ocupações governamentais, guerreiras, religiosas e esportivas. (VEBLEN,1965, p. 20) De forma combinada, tais agentes atuam em diversos espaços sociais para inviabilizar a renovação política, diminuindo os espaços para as expressões divergentes, como também agem para minimizar ou extinguir toda e qualquer concorrência aos seus negócios. Essa teia comunga, a um só tempo, negócio empresarial e domínio político, associação do patrimônio público ao patrimônio privado, cujo campo relacional é marcado pela intermediação de interesses. Tal exercício fere os princípios da res publica e da tradição democrática e do Estado de Direito de forma recorrente e continuada, pois suprime, por esse pacto restrito e não público, os princípios da meritocracia, da impessoalidade, do bem público separado do privado, da supremacia do bem-comum frente aos interesses exclusivamente particulares e pessoais. Além disso, a intermediação de interesses fere a universalização das regras e a despersonificação do poder. Não esqueçamos que o continuísmo leva ao descrédito na democracia como regime da alternância no poder. O jornal O Estado de São Paulo (26/03/00) informa que a família Sarney é dona de diversos negócios, a saber: emissoras de rádio e de televisão, jornais etc. A revista Veja (edição 1742, ano 35, nº 10, 13 de março de 2002) publicou que “o patrimônio visível dos Sarney chega aos 125 milhões de reais”. O clã teria quatro emissoras de televisão, o jornal O Estado do Maranhão, 14 emissoras de rádio, mais os seguintes imóveis: uma mansão no bairro do Calhau, em São Luís; duas mansões e um sítio no Lago Sul em Brasília; a Ilha de Curupu, no Maranhão; um apartamento no Leblon, Rio de Janeiro; e uma casa em Búzios (RJ). Ligadas à família também encontra-se a Bel-Sul Administrações e Participações, a Lunus Serviços e Participações e a Pousada do Lençóis. No legislativo estadual, até 2002, 30 das 42 vagas existentes eram ocupadas por aliados da família. Na Câmara Federal, no mesmo período, 13 das 18 cadeiras pertencentes ao Maranhão foram ocupadas também por aliados. No Senado, todas as três vagas pertencentes ao Maranhão foram ocupadas por membros do grupo Sarney. A grande maioria desses aliados políticos estava ligada às legendas do PFL e do PMDB. Para José Ribamar Caldeira (Caros Amigos, fevereiro de 2002, p. 21) “Através de um controle exacerbado de todos os aparatos de poder: o Judiciário, o Legislativo e o Executivo. [...] o mandão se estrutura sobre 47 partidos que são do grupo dirigente nacional para formar bancadas e levá-las ao Congresso”. Em matéria intitulada Parentes, o jornal O Estado de São Paulo de 09 de outubro de 2002, aparece uma lista de nomes e seus laços familiares, formando uma teia de política com significativas marcas de parentesco. Tanto situacionistas como oposicionistas aparecem na mesma condição de herdeiros políticos de uma mesma velha elite. Não menos inusitada é a situação de seis dos 18 deputados federais eleitos pelo Maranhão e de alguns deputados estaduais. Independente da filiação partidária, eles têm em comum laços de família com expoentes da política maranhense. É o caso do deputado reeleito José Sarney Filho (PFL), filho do senador José Sarney (PMDB-AP) e irmão da senadora eleita Roseana Sarney (PFL), cujo genro, Carlos Filho (PFL), elegeu-se deputado estadual. O deputado Pedro Fernandes (PFL) também tem um irmão na Assembléia Legislativa, o presidente da Casa, Manoel Ribeiro (PSD), que é pai do vereador de São Luís, Haroldo Ribeiro (PSD). A deputada reeleita Nice Lobão (PFL) é mulher do senador reeleito Edison Lobão (PFL), cujo primeiro suplente é Edison Lobão Filho (PFL). A oposição também tem seus parentes, como a deputada eleita do PT, Terezinha Fernandes, mulher de uma das principais lideranças do partido, o prefeito de Imperatriz, Jomar Fernandes, e o irmão de Jackson Lago, candidato a governador pelo PDT, Wagner Lago (PDT), ou Luciano Leitoa, filho do prefeito de Timon, Chico Leitoa. Também há vários parentes até entre os suplentes. O primeiro suplente de Roseana Sarney, atual deputado federal Mauro Fecury, que substituiu o senador Bello Parga no final da campanha, deixou concorrendo em seu lugar o filho Clóvis Fecury, que, sem nunca ter concorrido a cargo eletivo, conseguiu 83.078 votos. Além desses nomes listados pelo supracitado jornal, ainda fazem parte desse lastro familial a deputada estadual Maria Teresa Trovão Murad, esposa de Ricardo Murad, cunhado de Roseana Sarney. Além da deputada estadual Cristina Archer, comadre de Roseana Sarney. No entanto, esse traço hereditário não é uma exclusividade da política maranhense. Esse fenômeno também é observado na política nacional, como informa Dória (1995) em Os herdeiros do poder. Nessa obra, através de significativos exemplos, o autor ilustra como o controle do poder político no Brasil está vinculado às famílias de longa tradição, particularmente, na sucessão do cargo presidencial. No Maranhão, os clãs ligados à disputa e ao controle político com maior tradição: os Sarney, os Lagos, os Neivas de Santana e os Archers. Atualmente, o clã Sarney (e agregados) é o mais forte de todos (O Imparcial, 09/09/2001). 48 Constata-se, desde logo, que o sarneísmo não diz respeito somente aos membros da família Sarney, nem o parentesco é o elemento único na composição dessa vasta teia. Mas a rede familiar que se estende sobre diversos interesses é significativa, pois é de grande monta o número de parentes estabelecidos em diversos setores e ocupando postos nos mais variados segmentos da accountability horizontal. Isto acaba imprimindo uma marca familiar a esse controle. E não é só o fato de o parente estar ocupando o cargo, mas é o parente sobrepor os laços afetivos familiares aos princípios do Estado Democrático de Direito, atendendo a interesses não públicos e nem publicizados. Passados 40 anos após a chegada de José Sarney ao controle político do Maranhão (1965), é indiscutível a vitalidade que ainda tem essa teia mandonista. No entanto, se por um lado há um eficiente desempenho de mando; por outro, é lamentável que os índices, denunciados pelo jovem governador de apenas 35 anos de idade no auditório da Universidade Mackenzie (SP), não foram alterados para patamares mais aceitáveis. Pois após seu governo (1966-1969) o Executivo quase em sua totalidade esteve ocupado por um político indicado e/ou apoiado pelos Sarneys. Depois de 1965 apenas os governos de Pedro Neiva (de 15/03/1971 a 31/03/1975 - porque rompeu com Sarney logo após sua indicação) e de Nunes Freire (de 31/03/1975 a 15/03/1979 - indicação ainda sob a influência de Vitorino Freire, tendo em vista que Sarney almejava voltar ao governo do Estado do Maranhão) não podem ser associados diretamente ao mando sarneísta. A mão esquerda da mona lisa Longe de ser o tal “enigmático sorriso” o centro de nossa atenção sempre se voltaram para as mãos. Para as mãos da Mona Lisa, pois parece que o sorriso atraía para deixar oculta a forma e as ações das mãos, o que elas seguram. Os braços totalmente encobertos por um tecido repleto de dobras e contornos enigmáticos, as mãos aparecem como um par antagônico com os elementos sobrepostos, onde a mão direita, mais visível, mais iluminada, repousa suavemente, como uma nobre donzela, sobre a mão esquerda. Enquanto isso a mão esquerda, na penumbra, de feitio tosco e rude segura firme o braço do trono, como se fosse a garra de uma fera. A imagem doce e frágil recobrindo o espírito 49 obstinado pelo poder. Recorremos a essa metáfora para ilustrar a Roseana Sarney enquanto pessoa pública23. A primeira ocupação de viés político de Roseana Sarney foi o cargo de assessora do Presidente da República, no governo de José Sarney, seu pai. A partir daí começou a ter participação mais efetiva dentro da política. Roseana Sarney, em 1985, teve participação direta nas eleições municipais de São Luís apoiando a candidatura de Jaime Santana. Em uma das mais caras e massivas campanhas já feitas na capital maranhense. Contudo teve como vencedora Gardênia Gonçalves. Vitória totalmente indesejada pelo grupo Sarney, já que o marido da candidata, João Castelo, rompera com o grupo e buscava retornar ao Governo do Estado. Em manchete intitulada “Ministros envolvidos em corrupção no Maranhão”, o Jornal Pequeno noticiou, no dia 30 de outubro de 1985 (edição de nº 12.133), a denúncia do deputado Celso Coutinho, que acusava os ministros Antônio Carlos Magalhães, Paulo Lustosa e Marco Maciel de estarem usando os jatinhos dos seus ministérios na campanha de Jaime Santana (PFL). Na mesma denúncia acusava-se também Roseana Sarney