� � Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Campus São Paulo Sheila Minatti Hannuch A NASALIDADE NO PORTUGUÊS BRASILEIRO CANTADO: UM ESTUDO SOBRE A ARTICULAÇÃO E REPRESENTAÇÃO FONÉTICA DAS VOGAIS NASAIS NO CANTO EM DIFERENTES CONTEXTOS MUSICAIS. São Paulo 2012 � � Sheila Minatti Hannuch A NASALIDADE NO PORTUGUÊS BRASILEIRO CANTADO: UM ESTUDO SOBRE A ARTICULAÇÃO E REPRESENTAÇÃO FONÉTICA DAS VOGAIS NASAIS NO CANTO EM DIFERENTES CONTEXTOS MUSICAIS Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação – Mestrado em Música – do Departamento de Música da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, sob a orientação da Profa Dra Martha Herr e Co-orientação da Profa Dra Silvia Pinho, como exigência parcial para obtenção do grau de Mestre em Música. São Paulo 2012 � � Sheila Minatti Hannuch A NASALIDADE NO PORTUGUÊS BRASILEIRO CANTADO: UM ESTUDO SOBRE A ARTICULAÇÃO E REPRESENTAÇÃO FONÉTICA DAS VOGAIS NASAIS NO CANTO EM DIFERENTES CONTEXTOS MUSICAIS Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação – Mestrado em Música – do Departamento de Música da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, sob a orientação da Profa Dra Martha Herr e Co-orientação da Profa Dra Silvia Pinho, como exigência parcial para obtenção do grau de Mestre em Música. _______________________________ Profa Dra Martha Herr – UNESP _______________________________ Prof. Dr. Ângelo José Fernandes – UNESP _______________________________ Prof. Dr. Luiz Ricardo Basso Ballestero - USP São Paulo 2012 � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � �������� �� �� ��������������������������������� �������� �������������� ����������� ���������������������������������� ���� ��� �� ���� �������� � � Agradecimentos Agradeço a Deus por todas as oportunidades e pelo cuidado zeloso em toda a minha vida. Ao Natan pelo amor, companheirismo, paciência e dedicação nestes anos todos e nos incontáveis que virão. À Maria Clara, fiel companheira, por trabalhar literalmente ao meu lado durante muitas horas. Ao meu pai por seu exemplo de toda a vida e por ser tornar pai e mãe com tanta dedicação. À minha irmã, companheira eterna de um amor que só cresce. Ao Rafa e ao lindo Benjamin, que me presentearam com mais um amor tão grande. À toda minha família por todo o suporte e por serem a minha vida. À muito mais que professora Martha Herr por todos esses anos de dedicação e orientação, por seus valiosos ensinamentos, pela confiança, carinho, cumplicidade, amor, excelência, determinação, oportunidades e alegria. Muito obrigada. Ao Wlad Mattos por seu companheirismo, confiança, carinho e disposição na participação e discussão de muitos detalhes dessa dissertação, compartilhando seus conhecimentos com tanta generosidade. Aos colegas de pós-graduação Josani Keunecke, Lenine Santos, Joana Mariz, Daniel Motta, Carolina Bergmann, Andrea Mischiatti e Danilo Rossetti pelo apoio e incentivo. As amigas Carla Kuno, Erica Renata e Tarita de Souza pelos anos de amizade e ao Carlos Eduardo por toda paciência e cumplicidade. A Fundação CAPES pela bolsa concedida. Aos meus alunos que me ensinam muito a cada aula. Aos funcionários do Instituto de Artes da UNESP pela alegria do dia-a-dia e pela disponibilidade constante. � � A alegria não chega apenas no encontro do achado, mas faz parte do processo da busca. E ensinar e aprender não pode dar-se fora da procura, fora da boniteza e da alegria. Paulo Freire (1921-1997)� � � Resumo Este trabalho investiga algumas características referentes à nasalidade no canto em português brasileiro, através de um estudo sobre a articulação e representação fonética das vogais nasais neste idioma. O estudo busca auxiliar o intérprete e o professor de canto no reconhecimento e administração destas características de forma a contribuir para uma maior liberdade vocálica e definição do gesto articulatório da nasalidade no canto em português brasileiro. O trabalho consiste na organização de informações coletadas através de referências da área da voz cantada e da linguística, que evidenciam ferramentas para a reflexão sobre uma nova possibilidade de transcrição fonética das vogais nasais para o canto em português brasileiro. Palavras-chave: português brasileiro cantado, vogais nasais, dicção do português brasileiro, fonética, técnica vocal. � � Abstract This research aims to investigate the nasality in brazilian portuguese as sung, through a study about the articulation and phonetic representations of nasal vowels in this language. The study aims to assist the performer and singing teacher in the recognition and management of these features in order to contribute to greater freedom and definition of the nasality articulatory gesture in Brazilian Portuguese. This work organize information collected through referrals from the area of singing voice and linguistic, showing tools for thinking about a new possibility of phonetic transcription of nasal vowels for singing in Brazilian Portuguese. Keywords: Brazilian Portuguese as sung; nasal vowels, phonetics, diction of Brazilian Portuguese; vocal technique. � � Lista de Tabelas Tabela 1 – Tabela comparativa da vogal nasal < a > ...............................................................52 Tabela 2 – Possibilidade de representação da vogal nasal < a > ..............................................65 Tabela 3 – Tabela comparativa da vogal nasal < e > ...............................................................67 Tabela 4 – Possibilidade de representação fonética da vogal nasal < e > ................................75 Tabela 5 – Tabela comparativa da vogal nasal < i > ................................................................76 Tabela 6 – Possibilidade de representação fonética da vogal nasal < i >.................................81 Tabela 7 – Tabela comparativa da vogal nasal < o > ...............................................................82 Tabela 8 – Possibilidade de representação fonética da vogal nasal < o > ................................89 Tabela 9 – Tabela comparativa da vogal nasal < u > ...............................................................90 Tabela 10 – Possibilidade de representação fonética da vogal nasal < u >..............................96 � � Lista de Figuras Figura 1 – Vogais orais da fala brasileira .................................................................................22 Figura 2 – Vogais nasais da fala brasileira ...............................................................................22 Figura 3 – Síntese do padrão articulatório da fala ....................................................................23 Figura 4 – Movimento da fala ..................................................................................................24 Figura 5 – Movimento do canto ...............................................................................................24 Figura 6 – Análise espectral da vogal < a > com e sem nasalidade. ........................................39 Figura 7 – Deslocamento da consoante nasal ...........................................................................45 Figura 8 – Variabilidade de contextos musicais.......................................................................46 Figura 9 – Modificação de vogais (Miller, 1986, p.157)..........................................................48 Figura 10 – Possibilidades de representação fonética ..............................................................49 � � Sumário Introdução ............................................................................................................................13 Capítulo 1 A nasalidade na fala em português brasileiro................................................17 1.1 Descrição Fisiológica .................................................................................................................. 17 1.2 Estudos Linguísticos ................................................................................................................... 18 1.3 Modelos de emissão da fala e do canto ....................................................................................... 20 Capítulo 2 A nasalidade no canto ......................................................................................26 2.1 Mário de Andrade e a nasalidade em português brasileiro.......................................................... 26 2.2 O Canto e as vogais nasais .......................................................................................................... 33 2.3 O Canto e a emissão nasalizada .................................................................................................. 36 Capítulo 3 A sílaba e as variáveis de execução musical ...................................................40 3.1 Considerações sobre a sílaba e as vogais nasais.......................................................................... 40 3.1.1 Sobre a correspondência fonética da vogal oral e da vogal nasal ........................................ 42 3.1.2 Sobre a representação da coda nasal .................................................................................... 42 3.1.3 Contexto silábico.................................................................................................................. 44 3.2 Variáveis de execução musical .................................................................................................. 44 3.2.1 Velocidade de execução ....................................................................................................... 44 3.2.2 Intensidade do acompanhamento ......................................................................................... 46 3.2.3 Tessitura ............................................................................................................................... 47 3.2.4 Estilo Musical....................................................................................................................... 48 Capítulo 4 Propostas de representação fonética das vogais nasais .................................50 4.1 Considerações acerca das referências utilizadas ......................................................................... 50 4.2 Vogal nasal < a >........................................................................................................................ 52 4.2.1 Tabela 1 – Tabela comparativa da vogal nasal < a > ........................................................... 52 4.2.2 Análise da tabela .................................................................................................................. 59 4.2.3 Possibilidade de representação............................................................................................. 62 4.3 Vogal nasal < e >......................................................................................................................... 67 4.3.1 Tabela 3 – Tabela comparativa da vogal nasal < e > ........................................................... 67 4.3.2 Análise da tabela .................................................................................................................. 71 4.3.3 Possibilidade de representação............................................................................................. 73 4.4 Vogal nasal < i > ........................................................................................................................ 76 4.4.1 Tabela 5 – Tabela comparativa da vogal nasal < i > ............................................................ 76 4.4.2 Análise da tabela .................................................................................................................. 78 4.4.3 Possibilidade de representação............................................................................................. 79 � � 4.5 Vogal nasal < o > ........................................................................................................................ 82 4.5.1 Tabela 7 - Tabela comparativa da vogal nasal < o >............................................................ 82 4.5.2 Análise da tabela .................................................................................................................. 85 4.5.3 Possibilidades de representação ........................................................................................... 87 4.6 Vogal nasal < u > ....................................................................................................................... 90 4.6.1 Tabela 9 – Tabela comparativa da vogal nasal < u > ........................................................... 90 4.6.2 Análise da tabela .................................................................................................................. 93 4.6.3 Possibilidades de representação ........................................................................................... 94 Considerações Finais ..............................................................................................................97 Referências…... ............................................................................ Erro! Indicador não definido. � � � � Introdução O presente trabalho busca investigar a nasalidade do português brasileiro e suas características no canto, considerando algumas variáveis de execução musical, com a finalidade de contribuir para a performance do canto erudito neste idioma. Neste trabalho apresentaremos um estudo acerca da articulação e representação fonética das vogais nasais no canto e uma breve descrição de algumas características que envolvem uma emissão nasalizada. A nasalidade da fala reproduzida no canto tem sido estudada por induzir a um gesto vocal que interfere diretamente em elementos trabalhados pela técnica vocal, como o domínio dos articuladores, ajuste de timbre, energia de fluxo aéreo, projeção vocal e interpretação. A representação fonética das vogais nasais em português brasileiro também é alvo de estudos e evidencia as múltiplas possibilidades de compreensão do fenômeno, mas ressalta, indubitavelmente, a necessidade de decodificar e esclarecer esse processo articulatório no canto aos cantores brasileiros e aos estrangeiros. Uma característica deste estudo é a composição de informações emergentes de outras áreas do conhecimento, principalmente a linguística, no traçado de um panorama de descrição e representação destes fonemas aplicados à fala. A representação dos fonemas do português brasileiro cantado, foi discutida inicialmente em 1937, no “Primeiro Congresso da Língua Nacional Cantada”1, que trouxe a necessidade de adotar uma língua padrão como referência para a pronúncia artística, e, nesta ocasião, foram determinadas as “Normas de boa pronúncia da língua nacional no canto erudito” (1938). Esta iniciativa levantou o inventário fonético do português brasileiro cantado, e trouxe diversos problemas na execução do repertório, exemplificados muitas vezes com trechos de canções. No documento publicado em 1938, na Revista Brasileira de Música, volume V, primeiro fascículo, as normas aprovadas pelo congresso estão descritas, porém os símbolos �������������������������������������������������������� ��É importante observamos que a realização do Congresso está imbuída de um forte contexto político no qual “O Congresso da Língua Nacional Cantada será, neste contexto, (re)interpretado como um evento de cunho político que ao tratar da normatização da pronúncia, no canto e em outras manifestações artísticas, fez uso da coerção entendida não como violência física, mas como violência moral ou simbólica. [...] Dessa forma, o político se imiscui naquilo que alguns consideravam como linguagens neutras: a ciência, a técnica e as artes”. (SERPA, 2001, p. 73) ��� � utilizados na representação dos sons são adaptações de símbolos ortográficos, o que dificulta a compreensão das Normas. Alguns textos publicados originalmente nos Anais do Congresso2, trazem informações mais detalhadas sobre a dificuldade de emissão dos sons nasais do português brasileiro. Os capítulos intitulados “Dificuldades Vocais” e “A pronúncia cantada e o problema do nasal brasileiro através dos discos” levantam o problema da falta de uma “escola de canto nacional”, acusando a utilização dos timbres, dicção e constância de entoação do bel canto3 europeu, por desnacionalizar o canto nacional. Andrade conclui que é necessário um estudo experimental sobre os fonemas nasais do português brasileiro cantado, mas que o reconhecimento destes como forte elemento de caracterização do idioma é indiscutível, cabendo aos cantores e professores de canto o estudo e a adequação destes fonemas ao modelo do canto erudito. A iniciativa mais recente, com objetivo de estabelecer uma representação destes fonemas se deu em 2007, com a publicação do “PB Cantado – Normas para a pronúncia do português brasileiro no canto erudito”4 (KAYAMA et al., 2007), fruto de uma série de encontros entre cantores, fonoaudiólogos e linguístas de todo o país com a finalidade de discutir a melhor representação para os mesmos, de forma a evitar interferências da variante de origem e estabelecer uma pronúncia referencial, especialmente aos cantores não conhecedores do idioma. Este documento possibilitou uma nova perspectiva na difusão do repertório brasileiro e levantou inúmeras questões referentes à performance em português brasileiro. Os intérpretes brasileiros passaram a ter acesso à um conhecimento estruturado da pronúncia do canto em sua língua materna, podendo utilizá-lo como ferramenta para melhor rendimento de sua própria performance, em aplicações didáticas, e no auxilio à construção dos inventários fonéticos de outras línguas, através de semelhanças e aproximações dos fonemas dos idiomas estudados. A melhoria desta ferramenta, através do estudo sobre a represetação fonética vogais nasais, consiste em um dos objetivos deste trabalho. �������������������������������������������������������� 2 Disponíveis atualmente no livro Aspectos da Música Brasileira (ANDRADE, 1991). 3 “O termo bel canto ... refere-se a algo específico em estilo e técnica vocal num período anterior à metade do século XVII. A utilização deste termo pode nos causar certa confusão uma vez que qualquer definição de bel canto só fora conhecida a partir do século XIX logo após o término de sua era. Contudo, Duey observa que ‘a presente utilização [do termo], aplica-se aos métodos italianos de canto dos séculos XVII e XVIII, com ênfase na beleza do som [vocal] e na virtuosidade’ (Duey, 1951, p.12)”. (FERNANDES, 2009, p.52) 4 Alguns autores utilizam a nomenclatura “PB” para se referir ao português brasileiro. ��� � Todas as transcrições do “PB Cantado” utilizam os símbolos estabelecidos pela International Phonetic Association - IPA, importante associação de foneticistas fundada em 1886, que tem por objetivo promover estudos científicos sobre os fonemas todas as línguas e suas diversas aplicações práticas, disponibilizando a ferramenta do IPA – International Phonetic Alphabet5, que consiste em um sistema notacional padrão para representação fonética de todas as línguas, que tem sua última versão publicada em 2005. Neste documento os símbolos propostos pelo IPA tem a finalidade de relacionar determinado símbolo fonético a um som e seu respectivo local de articulação. No artigo “PB Cantado”(2007) os símbolos escolhidos para a representação fonética das vogais e ditongos nasais apresentam algumas controvérsias ao serem comparados com as informações complementares que detalham a execução destes sons, apresentadas no próprio documento. Essas controvérsias indicam a complexidade do gesto articulatório destes fonemas e evidenciam a necessidade de um estudo mais específico sobre a adaptação destes sons ao canto para que se tenha uma representação fonética mais eficaz à performance vocal. A metodologia utilizada no desenvolvimento deste estudo, consiste basicamente na organização de parte da literatura existente sobre o assunto nas áreas da voz cantada e da linguística, de forma a apresentar o fenômeno da nasalidade e criar ferramentas para a discussão e criação de um modelo de representação fonética mais eficaz para o canto. A revisão bibliográfica mostrou que a literatura referente à voz cantada muitas vezes tange o assunto, evidenciando sua importância, mas não organiza as informações descritas nem tampouco as relaciona com outras áreas do conhecimento que possam contribuir no processo de elucidação da articulação destes sons. Este fato nos levou a buscar referências sobre as vogais nasais do português brasileiro na linguística, que trouxe informações referentes à descrição articulatória das vogais nasais e sobre a estrutura da sílaba. Como nosso trabalho tem como foco auxiliar o intérprete e o professor de canto, foi necessário tomar certo cuidado para que a linguagem e as informações de outras áreas fossem apresentadas de forma complementar, pois, neste ponto, é delicado o limite de compreensão e reflexão sobre as informações adquiridas de outra área do conhecimento. No primeiro capítulo apresentamos as informações trazidas da linguística, sobre a descrição fisiológica do processo articulatório das vogais nasais e dois estudos da pesquisadora Beatriz Raposo de Medeiros “Vogais Nasais do Português Brasileiro: Um estudo de IRM” (2005) e “O Apêndice Nasal: Dados aerodinâmicos e duracionais” (2008). Esses dois estudos nos trazem dados bastante objetivos que auxiliam no raciocínio de �������������������������������������������������������� 5 A primeira versão do IPA – International Phonetic Alphabet data de 1888. ��� � adaptação destes fonemas ao canto. Ainda neste capítulo apresentamos um estudo do cantor e pesquisador Fernando José Carvalhaes Duarte, “A Fala e o Canto no Brasil: Dois Modelos de Emissão Vocal” (1994) que nos contextualiza sobre uma série de características do português brasileiro em geral e evidencia algumas ferramentas de adaptação entre a fala e o canto, fundamentais na construção de um conhecimento que traz autonomia ao intérprete do repertório em português brasileiro. No segundo capítulo, é apresentada a visão de Mário de Andrade sobre a nasalidade na fala e no canto em português brasileiro, abrindo um leque riquíssimo de observações sobre o nosso idioma. No mesmo capítulo trazemos uma contextualização da problemática que envolve a nasalidade principalmente no francês, ao tratar da execução das vogais nasais no canto. Apresentamos também algumas características acerca de uma emissão nasalizada, evidenciando a necessidade de criar ferramentas conscientes para administrar estes fenômenos que, muitas vezes, não favorecem o canto. No capítulo três é apresentada a estrutura da sílaba segundo a fonologia métrica, que nos auxilia na organização das fases de execução da vogal nasal com a finalidade de auxiliar na definição do gesto vocal no canto e referenciar escolhas para uma nova possibilidade de representação fonética destes fonemas. Em seguida são descritas as variáveis de execução musical que tornam evidente, através de exemplos musicais, a variabilidade de execução e representação destes fonemas, criando as bases para a construção de um modelo de representação fonética com as informações complementares necessárias a compreensão destes fonemas como um todo. No quarto capítulo são apresentadas em forma de tabela as propostas de transcrição fonética das vogais nasais feitas por oito diferentes autores, seguida de uma análise de cada vogal. Por fim apresentamos uma possibilidade de representação fonética proposta por esta autora para a representação das vogais nasais. Nas Considerações Finais, as conclusões sobre o alcance dos objetivos do trabalho e apontamentos para estudos futuros. ��� � Capítulo 1 A nasalidade na fala em português brasileiro 1.1 Descrição Fisiológica Na literatura da área de linguística, encontramos algumas descrições muito elucidativas sobre a caracterização acústico–articulatória da nasalidade vocálica na fala do português brasileiro que, por apresentar uma visão exclusiva do ponto de vista da articulação da fala, cria subsídios para a reflexão do processo de adaptação das vogais nasais ao canto. A pesquisadora Beatriz Raposo de Medeiros, em seu trabalho “Vogais Nasais do Português Brasileiro: Um estudo de IRM”6 (2005) apresenta uma descrição bastante objetiva: Por ação de um articulador do trato oral, ou seja, pelo abaixamento do véu palatino, cria-se um acoplamento de tubos de ressonância, cujo som da fala chega aos nossos ouvidos como som vocálico nasal. Esta qualidade de som nasal ou nasalizado, ou seja, a qualidade da nasalidade, é o resultado da passagem de ar pela cavidade nasal. No caso das vogais nasais, o que ocorre é que parte do ar passa pela cavidade oral e parte pela cavidade nasal, daí o acoplamento de tubos. Este acoplamento significa o seguinte: dado que cada tubo tem um determinado comprimento e é revestido diferentemente – a cavidade oral possuindo paredes “mais duras” e a cavidade nasal sendo revestida pela membrana mucosa – haverá diferentes maneiras de o ar se propagar e gerarem-se as ressonâncias em cada tubo. O resultado serão ressonâncias e anti-ressonâncias ou pólos e zeros ... Souza (1994) realizou medidas acústicas de vogais nasais em PB e verificou e demonstrou em suas análises que o acoplamento causa interrupção do formante, um denso aglomerado de ressonâncias (cluster), bifurcação do formante, junção do formante, queda de instensidade do formante e presença de formantes nasais entre formantes orais. Isso tudo é possível verificar em inspeção visual do espectrograma. Cagliari (1997) explica da seguinte maneira os resultados do acoplamento, ao tratar das propriedades acústicas da cavidade nasal, no caso da vogais: “Quando as cavidades nasais funcionam como câmara de ressonância acoplada, são responsáveis por um amortecimento geral do espectro (principalmente de F1), aumento da largura de banda dos formantes e outros efeitos secundários sobre a envoltória do som sobre qual o efeito do ressoador acoplado se sobrepõe. (Cagliari, 1977, p. 193). (MEDEIROS, 2005, p. 132-133) A complexidade da nasalidade também está relacionada à variabilidade do movimento do véu palatino, que na visão dos pesquisadores Cagliari (1997) e Delvaux (2003) se exemplifica da seguinte maneira: Cagliari (1997) e Delvaux (2003) apontam para diferentes graus de nasalidade, dependendo do grau de abaixamento do véu palatino. O primeiro autor ressalta que a relação oral:nasal, ou seja, as diferenças de dimensão oral e nasal, modificadas pelo maior ou menor abaixamento do véu palatino, é responsável pelo grau de nasalidade �������������������������������������������������������� ��IRM, Imagens por ressonância magnética. ��� � de um som da fala. Cagliari (1997) postula cinco parâmetros envolvidos na produção da nasalidade: abertura nasal, altura do véu, características do fluxo de ar, acoplamento acústico, coordenação do traço oral/nasal. Dado que a nasalidade é fruto das ressonâncias do tubo nasal (da cavidade nasal que se acopla à cavidade oral, ou não, no caso das consoantes), ressaltamos a importância de saber como se realiza o fluxo de ar, quando há abaixamento do véu. (MEDEIROS, 2007, p.5) A informação que o grau de acoplamento das cavidades oral/nasal não é o único fator relacionado à nasalidade, e da importância dada também na linguística ao comportamento do fluxo de ar, abre diferentes perspectivas na construção de ferramentas que auxiliam na adaptação da fala ao canto, visto a importância da administração do fluxo de ar na técnica vocal. 1.2 Estudos Linguísticos Ainda na área da linguística, um outro estudo da pesquisadora Beatriz Raposo de Medeiros “O Apêndice Nasal: Dados Aerodinâmicos e Duracionais” (2008) trata do que chamamos de fases da vogal nasal, que começa a esclarecer algumas características do complexo gesto articulatório destes fonemas. As formas de análise utilizadas pela autora são o espectrograma (descrição de dados acústicos) e análise de forma de onda (medição do fluxo de ar que passa pelas cavidades oral e nasal). Essas formas de análise somam o que muitas vezes pode ser percebido através da audição (espectrograma) e da própriocepção (sensação do fluxo de ar). Segue um breve histórico da descrição das vogais nasais do português brasileiro na fala. A vogal nasal do português brasileiro (doravante, PB) tem sido tradicionalmente descrita como uma sequência bifonêmica composta de uma vogal oral seguida de uma consoante nasal (CÂMARA, 1970; BISOL, 2002; QUÍCOLI, 1990). Estudos experimentais mostraram a presença de duas fases na vogal nasal que precede uma oclusiva, a saber, uma fase oral seguida de uma fase completamente nasal, esta última podendo abrigar um murmúrio vocálico (CAGLIARI, 1977; SOUZA, 1994; SEARA, 2000 JESUS, 2002) chamado aqui de “apêndice nasal”. Exceto Cagliari (1977), que menciona a ausência do apêndice nasal diante de fricativas, os outros trabalhos não tratam da questão dos diferentes contextos à direita da vogal nasal7. (MEDEIROS, 2008, p.123-124) �������������������������������������������������������� �� Entende-se por contexto à direita (ou à esquerda), a vogal ou consoante que se apresenta imediatamente antes ou depois da vogal nasal. � � � A autora infere que “devido à variabilidade e o aspecto gradual da mudança de fases, torna-se difícil uma segmentação precisa entre o fim da vogal nasal e o início do apêndice nasal” (MEDEIROS, 2008, p.124) e acaba por preferir o termo “bifásica” em vez de “bifonêmica” (MEDEIROS, 2007, p.2). O termo “bifásico” escolhido por Medeiros (2007) para a descrição do processo de nasalização da vogal, também nos parece mais adequado à uma compreensão do fenômeno, por intuir a partir da nomenclatura um gesto vocálico contínuo (sem segmentação precisa), o que nos leva a utilizar desta mesma terminologia ao reunir as duas propostas de descrição da vogal nasal apresentadas: Sequência bifásica: VO + CN (VO = Vogal Oral, CN = Consoante Nasal) Sequência trifásica: VO + VN + AN (VN = Vogal Nasal, AN = Apêndice Nasal) A dificuldade de uma segmentação precisa da vogal nasal se relaciona à dificuldade encontrada na escolha de uma representação fonética mais abrangente e eficaz ao canto em português brasileiro, que também envolve a variabilidade dos contextos de execução musical, conforme o item 3.2 deste trabalho. Em outro estudo, “Vogais nasais do português brasileiro: reflexões preliminares de uma revista” (MEDEIROS, 2007) a autora chama a atenção para o fato da análise espectral das vogais nasais, realizada no trabalho em questão, apresentar logo nos primeiros pulsos características acústicas de nasalidade, já por influência do acoplamento dos tubos, o que significaria que a vogal nasal não teria uma fase completamente oral. Acrescenta, ainda, que faltam estudos que identifiquem o quanto a porção oral da vogal é importante como pista da qualidade da vogal para a percepção do falante, mas ressalta que a variabilidade da vogal nasal é muito grande, e que é necessário discuti-la para que não se subdimensione o fenômeno. Com objetivo de esclarecer a dimensão do fenômeno estudado e as múltiplas possibilidades de observação do mesmo, a maioria dos estudos científicos modernos que tratam especificamente da vogal nasal em português brasileiro são de caráter ‘piloto’ (por analisarem um número pequeno de sujeitos), e se servem de metodologias (objetiva-se o controle na obtenção de dados) que necessitam do controle do contexto de todas as vogais. Devido à todas essas exigências, os estudos tratam somente de uma vogal em determinados contextos, ou de algumas vogais em um único contexto, o que gera uma apresentação de dados muito restrita. �� � Desta apresentação, nos utilizaremos como principal ferramenta de adaptação da fala ao canto as descrições da vogal nasal que consistem nas sequências bifásica VO+CN ou trifásica VO+VN+AN, por abrirem a possibilidade de uma representação fonética mais ou menos estrita8 destes sons (que pode vir a ser mais adequada na representação do canto em português brasileiro), e os outros achados referentes a descrição articulatória e aspectos correlatos na emissão da nasalidade. 1.3 Modelos de emissão da fala e do canto Fernando José Carvalhaes Duarte, no artigo “A Fala e o Canto no Brasil: Dois Modelos de Emissão Vocal” (1994) apresenta uma série de características da fala do português brasileiro com objetivo de auxiliar o cantor no processo de expansão desta ao canto. Essas características se referem à identificação de alguns padrões, adquiridos no processo de aquisição da linguagem, que influenciam diretamente este processo de adaptação. Aponta também questões referentes à energia de fluxo aéreo e articulação que exercem influências na sonoridade do idioma, sendo as vogais nasais e a nasalidade em geral do português brasileiro bastante evidenciadas. Para esclarecer estas questões, Duarte traça três padrões distintos de emissão: o da voz da fala, o que chama de modelo de canto “da fala” e o modelo de canto “do canto” (p.92). O que é chamado de modelo de canto “da fala” refere-se à emissão com uso de microfone, especialmente a utilizada no fim da década de 50 com o surgimento da bossa nova representada aqui pela interpretação de João Gilberto, que possibilitou, através do desenvolvimento das técnicas de gravação e amplificação, uma gama enorme de recursos expressivos diretamente relacionados à dicção, articulação e à sonoridade. (1994, p.88) Neste trabalho não temos como objetivo investigar este modelo de emissão, portanto, nos atemos às diferenças entre a emissão de fala e o chamado modelo de emissão “do canto”, que se refere à um canto sem amplificação e que necessita de projeção vocal, reconhecido como canto erudito. Neste trabalho chamaremos este modelo simplesmente de “modelo do canto”. A nasalidade do português brasileiro traz ao idioma traços típicos de articulação e sonoridade que além de serem complexos, conforme apresentado na Descrição Fisiológica no �������������������������������������������������������� 8 Entende-se por transcrição estrita, uma transcrição fonética mais detalhada, em oposição à transcrição larga. �� � item 1.1 deste trabalho, são de complexa adaptação ao canto, especialmente por envolverem um gesto articulatório de posteriorização seguido do acoplamento das cavidades nasais, o que tende a reduzir a intensidade sonora, característica indesejada no canto erudito. Murilo de Carvalho, professor de canto, apresentou durante o Primeiro Congresso da Língua Nacional Cantada (1937) uma descrição bastante objetiva das dificuldades de adaptação destes sons ao canto em português brasileiro, ao avaliar inúmeros cantores executando a tradicional “Modinha” de Carlos Gomes em um concurso de canto. Ele descreve as execuções das vogais nasais da seguinte maneira: “As vogais nasais são posteriorizadas (nasal à francesa): ‘tôn longe de mim distônte...’ ou então são anteriorizadas, com pós consonantização exagerada (nasal à italiana): ‘tan lange de mim distannnnte...’”(ANAIS, 1938, p.647). É importante observarmos que esta descrição tem um valor histórico e que algumas dessas características evidenciadas por Carvalho serão discutidas posteriormente. A partir destas evidências, Duarte (1994) busca esclarecer as características do português brasileiro que acabam por gerar essas dificuldades de adaptação, apontando a energia respiratória e a articulação como principais causas da nasalidade brasileira. Sobre a interação destes dois pontos (energia respiratória e articulação) e suas consequências na fala brasileira, Duarte as descreve da seguinte maneira: notamos que os fatores de energia respiratória e de articulação responderiam, portanto, pela famosa qualidade melíflua da fala brasileira, de sua contínua curva timbrística... Observa-se que há grande ocorrência de paroxítonas, de ditongos decrescentes, de posteriorização, de nasais reduzidas. Esses fatores fazem com que a sonoridade da frase falada seja, em geral, descendente, com que o ritmo geral da fala seja grave. Isso indica que o padrão de energização respiratória da fala do Brasil é, em geral, descendente... (1994, p.94) Quanto à articulação, Duarte utiliza o sistema de Pagliuchi da Silveira (1982), que relaciona o nível de tonicidade de uma vogal à seu local de articulação. Esses níveis de tonicidade estão descritos como graus de acentuação9, apresentados nos quadros a seguir, nos quais o eixo vertical representa a abertura bucal e o eixo horizontal o local de articulação da �������������������������������������������������������� �Os quatro graus de acentuação vocabular podem ser assim resumidos: grau 4 de acentuação: vogais acentuadas tônicas, orais e nasais; ocorrem por exemplo em /vogal/, /consoante/; grau 3 de acentuação: vogais acentuadas não-tônicas; ocorrem em encontros vocálicos [misiu], nasais não acentuadas /bensão/, silabas travadas /impar/, e também em /guardachuva/, /basta/ em ênfase expressiva, e na variante /menino/; grau2 de acentuação: vogais inacentuadas átonas, ou seja, átonas em posição pretônicas, antetônicas e pós-tônicas; ocorrem, por exemplo, em /vagal/, /lâmpada/, /beleza/; grau 1 de acentuação: vogais inacentuadas reduzidas, dependentes de contexto fônico; ocorrem em átona final, /silaba/, [kázu], [viví] para /vive/; também em [istá] para /está/, e [apta] para /apta/. (DUARTE apud SILVEIRA, 1982, p.31) � � vogal (sendo do lado esquerdo os lábios – parte anterior – e do lado direito o fundo da boca – parte posterior). A setas indicam os movimentos articulatórios principais. Nas figuras a seguir Duarte apresenta, separadamente, as vogais orais e as vogais nasais da fala brasileira, com objetivo de compreender sua articulação: Figura 1 – Vogais orais da fala brasileira Figura 2 – Vogais nasais da fala brasileira Sobre a figura 2 há a observação do autor que as vogais nasais (��� � �) sofrem uma tendência à oralização. Ao comparar estas duas figuras podemos observar uma redução da abertura bucal e consequente redução de sonoridade das vogais nasais em relação às vogais orais, e que somente as vogais de pouca e média abertura são nasalizadas (���������� �� ��� ���� � ��� Duarte ainda acrescenta que na definição articulatória das vogais o eixo de abertura bucal está sempre relacionado com os movimentos do eixo horizontal, em prol da manutenção do que denomina “forma triangular” (DUARTE, 1994, p.93). Ainda sobre estas figuras acrescenta que: O /a/ nasal corresponde em timbre e intensidade (nível de acentuação) ao /a/ átono (médio). A baixa energia das vogais nasais parece ser um fator importante na definição de padrões articulatórios gerais na fala brasileira. Devemos acrescentar �� � que a consonantização nasal em final de sílaba (/em/, /não/) é bem posteriorizada, quase velar, o que a correlaciona com as frequentes ditongações posteriorizadas (/eu/). (DUARTE, 1994, p.93) Duarte cria, então, um diagrama que considera uma “síntese do padrão articulatório da fala” (DUARTE, 1994, p.95), sem considerar as variantes de origem, apresentado a seguir: Figura 3 - Síntese do padrão articulatório da fala Na figura acima, o eixo vertical é relacionado à abertura bucal e o eixo horizontal à anteriorização e posteriorização do local de articulação. As setas indicam os movimentos articulatórios principais e setas duplas indicam as maiores tendências articulatórias. Sobre este diagrama Duarte faz a seguinte observação: 1. Energização relativamente baixa, distribuída equilibradamente entre fonemas; relacionada com a nasalação; 2. Movimentos horizontais de articulação: grande posteriorização (ditongação de consoante /l/, velarizações, nasalizações); coordenação dos triângulos vocálicos (ditongação). (DUARTE, 1994, p.95) Podemos perceber que a fala brasileira tem uma grande incidência de vogais nasais (que envolvem sempre posteriorização devido ao gesto articulatório de acoplamento de cavidades oral/nasal) e gestos posteriores, como na maioria dos ditongos. Essas características da fala brasileira apresentam um movimento articulatório e de emissão que não ���������com aquele que é esperado no canto, Duarte sintetiza essa diferença de movimentos da seguinte maneira: �� � Figura 4 - Movimento da fala Figura 5 - Movimento do canto A fala apresenta uma tendência à redução da abertura bucal e um gesto posterior, enquanto o canto necessita de um movimento de abertura bucal e anteriorização da emissão, o que não vai ao encontro do padrão intuitivo da fala brasileira. Observamos aqui que essa descrição é feita de forma generalizada, sem considerar algumas variáveis de execução, como a tessitura a ser cantada e as variantes de origem. Essas hipóteses desenvolvidas por Duarte, aqui observadas sob o ponto de vista das vogais nasais, vão ao encontro de alguns estudos que apontam para uma necessidade de oralização das vogais nasais no canto com a execução da nasalidade na porção final da vogal, o que contribui para uma maior liberdade de emissão e maior projeção. Estas características podem ser observadas como tendências no canto em português brasileiro porém não são de sobremaneira impeditivas. Sabemos que para realizar este processo de oralização é necessário reconhecer qual a vogal oral correspondente a vogal nasal, para que se tenha o menor comprometimento possível do timbre da vogal nasal em questão e a consciência de que o componente nasal não descreve a formação da vogal abaixo do véu palatino. Nesta busca os triângulos apresentados por Duarte (1994) são bastante elucidativos por apontar de forma objetiva essa correspondência. Os estudos que através da prática vocal apontam para a necessidade de oralização destes fonemas, alertam também para o fato dessa oralização ser feita de forma consciente, pois a fala, ao ser expandida em canto, induz à uma nasalidade excessiva. Essa nasalidade excessiva é muitas vezes decorrente do fato da nasalidade ser o elemento mais importante para a compreensão da palavra e apresentar uma tendência de valorização no canto, porém a utilização desta durante toda a vogal (especialmente se sustentada) prejudica a emissão adequada ao canto. O triangulo criado por Duarte que sintetiza o padrão da fala brasileira (fig.3), esclarece muitos movimentos de articulação que são executados no canto de forma intuitiva, e neste gesto intuitivo muitos intérpretes acabam por reproduzir, em linhas gerais, o movimento da �� � fala (nos parâmetros de articulação e emissão) quando deveriam ter a consciência dos dois modelos de emissão e realizar as adaptações necessárias entre eles. Pudemos perceber que o português brasileiro apresenta uma tendência à uma nasalidade constante de fala, por conta da grande incidência de gestos articulatórios posteriores e a uma baixa energia respiratória, porém essas características não são sobremaneira impeditivas para um canto que se adéque as necessidades de projeção sonora, pois são passíveis de recondicionamento. Sabemos também que os estudos apresentados por Duarte são muito valiosos em suas descrições, por fazerem uma conexão prática e objetiva entre a fala e o canto, porém apontam para uma necessidade atual de sistematizar esses conhecimentos e investir em pesquisas que sustentem essas hipóteses. �� � Capítulo 2 A nasalidade no canto 2.1 Mário de Andrade e a nasalidade em português brasileiro Mário de Andrade, importante pesquisador da cultura brasileira, dedicou parte de seus estudos à música brasileira. Dentre os muitos trabalhos realizados por ele, em sua maioria motivados pela busca de uma identidade nacional, dedicou sua atenção ao canto em língua vernácula, evidenciando uma série de características sobre a fala e canto em português brasileiro. Essas características se referem, inúmeras vezes, à falta de padronização da pronúncia no canto em português brasileiro, que se apresentava artisticamente em muitos “timbres”10 decorrentes de variantes de origem, o que acabava por não caracterizar uma unidade nacional. Essa falta de padronização e a inexistência de uma escola de canto na qual o estudo do canto em português brasileiro pudesse ser estruturado, unificado e amplamente divulgado, fez com que muitos cantores absorvessem características de emissão e dicção vindos de outras escolas de canto (principalmente da escola italiana), denominadas por ele de estrangeirismos e repudiados por descaracterizar o idioma nacional. Essas dificuldades observadas por Mário de Andrade o motivaram a escrever uma série de estudos e organizar o Primeiro Congresso da Língua Nacional Cantada, realizado em julho de 1937, que adotou uma pronúncia artística padrão publicada no documento “Normas de boa pronúncia da língua nacional no canto erudito”, de 1938. Grande parte das informações referentes à nasalidade do canto em português brasileiro estão nos trabalhos publicados nos Anais do Congresso, parcialmente disponíveis no livro Aspectos da Música Brasileira (1991). Mário de Andrade apresenta inicialmente uma descrição histórica referente à impressão de estrangeiros no que se refere à sonoridade da língua portuguesa européia falada. As seguintes passagens atribuídas a Ludwig Tiek e ao Imperador Maximiliano do México, respectivamente, ilustram o estranhamento sonoro do português ao passarem por Portugal: �������������������������������������������������������� 10 Mário de Andrade utiliza a palavra “timbre” ao longo de seus trabalhos, com significados distintos, neste caso o significado adequado é definido por “sotaque”. �� � ... Mais ocupado, porém, é ainda o nariz; muito mais mesmo do que em francês. Isso dá ares com efeito do porco ou do leitão”, e, “Quem não ouviu o português, não sabe como o diabo fala de sua avó, pois um tal pronunciar roufenho, sibilante, escabroso, composto de gruninhos, um tal nasalar lingual e palatal...”. (apud ANDRADE, 1991, p. 104). Segundo Andrade, o português europeu ao ser trazido para o Brasil, acrescido da miscigenação racial de forte sonoridade nasal, como aquela presente no tupi-guarani, nos idiomas de alguns povos da América do Sul e nos idiomas africanos, nos dá uma idéia do impacto e da identidade sonora que os sons nasais destas línguas imprimiram no português brasileiro, e da consequente dificuldade de descrição e execução dos mesmos de maneira precisa na busca por um padrão de emissão sonora. Ele aponta também os povos primitivos, o nasal caipira, os negros, o nasal português, o nordestino rural e a nasalação carioca, como influências na nasalidade do português brasileiro, trazendo algumas descrições que apontam para características que ainda hoje são reconhecíveis em nosso idioma. Quanto à sonoridade dos povos primitivos, é relatada como “Vive anasalado, vive no falsete (o som), pouco evidente no meio de portamentos arrastados”, (ANDRADE, 1991, p.105) Teodoro Sampaio, por sua vez, a descreve da seguinte maneira: Na língua primitiva do país, a voz nasal gozava de certa preponderância nos vocábulos. O prestígio desta voz, num vocábulo tupi, dava-lhe para modificar as vozes vizinhas, antecedentes e subseqüentes (...). Pela mesma razão pronunciava o indígena “Cançãçã”, nome da conhecida urticácea, em vez de “Caá-çã-çã”, que é o verdadeiro, com todos os seus elementos glóticos, nome donde procede o nosso “cançanção”, já de feição aportuguesada... (SAMPAIO apud ANDRADE, 1991, p.105) Através dessas observações podemos compreender um pouco da origem da sonoridade nasal do português brasileiro, do caráter que imprime tanto nas sílabas anteriores quanto posteriores ao elemento nasal, e da sua importância como sonoridade na construção do nosso idioma. Ao se referir ao canto em português brasileiro, através de inúmeras gravações principalmente de cunho folclórico presentes na Discoteca Pública, descritas no capítulo “A Pronúncia Cantada e o Problema do Nasal Brasileiro Através dos Discos” (1991), Mário de Andrade aponta as distorções de dicção provenientes do que ele chama “maneira racial de cantar” (p.99) que acabam por afetar o timbre nacional. Como maneira racial de cantar entende-se tanto a nasalidade típica do francês e a sonoridade do belcanto europeu, como a influência dos negros, do tupi-guarani e dos regionalismos nacionais. Por acreditar que através da fonografia pode-se obter uma análise �� � legítima do fenômeno nasal, apresenta alguns cantores como exemplos de particularidades de determinados povos ou regiões, abordando características que se refere como pertencentes ao nasal do francês, ao nasal caipira, ao nasal afrocaipira, ao nasal afrocarioca, aos negros, ao nasal nordestino e a nasalidade carioca. É importante esclarecer que nas descrições feitas através da análise fonográfica e também nas Normas publicadas em 1938, Mário de Andrade não utiliza símbolos fonéticos para representar as sonoridades descritas. Ele cria um sistema de representação, baseado em símbolos ortográficos, que acaba sendo pouco eficaz na compreensão das sonoridades descritas, mesmo para os brasileiros. Neste trabalho, ao nos referirmos a Mário de Andrade, utilizaremos o sistema de representação criado por ele por se tratar de uma descrição histórica do fenômeno nasal. Voltando às descrições sobre a nasalidade apresentadas no capítulo “A Pronúncia Cantada e o Problema do Nasal Brasileiro Através dos Discos” (1991), a cantora Elsie Houston é considerada a mais brasileira dentre as vozes eruditas por ter a maior perfeição na prolação dos fonemas nacionais. Já a cantora Lea Azeredo Silveira é descrita com um acentuado e constante nasal, diferente do nasal brasileiro e mais próximo ao francês. Sobre o nasal caipira, o autor traz como referência os cantadores Olegário e Lourenço e o piracicabano Zico Dias, com a característica do < n > nasalizar as duas vogais que o cercam, como em ��������. Há, ainda, a menção de uma conversão do nasal caipira em uma “timbração” mais urbana, sem nenhuma descrição ou referência adicional.(p.106) Acrescentamos que a metodologia utilizada por Andrade nesta coleta de dados, é uma metodologia impressionista. O nasal chamado “afrocaipira” se aproxima do “afrocarioca”, o qual a descrição aponta para a ocorrência das vogais abertas mesmo próximas aos nasais, como em bànanêra e cumpànhero (p.106). A sonoridade vinda dos negros é bastante nasal, especialmente nas vozes masculinas na qual a figura do “típico preto velho” é utilizada como referência (p.107). As vozes femininas acabam por trazer um som “de admirável pureza e tenuidade, bem menos nasal, porém. O som mais agudo em an, surge, [...] entoando quase a claro terminado em leve nasalização” (p.107). Mário denomina este som, trazido ao português brasileiro, de < a > nasal aberto. A descrição deste fonema é de um < a > claro terminado em leve nasalização, ou um < a > aberto quase nasal. O cantor Francisco Senna, embora considerado menos africanizado, é utilizado como referência auditiva. (p.107) � � Quanto ao nasal nordestino, Mário de Andrade o descreve como “bastante claro” (p.108), chamando atenção para o fonema < an >, executado com án, sendo representado pelo cantor Calazans e por Stefana de Macedo. (p. 108) O nasal carioca é descrito como “um nasal quente, sensual, bem de ‘morro’ ” (p. 138), e “leve nasal de acariciante doçura” (p. 109). Um exemplo musical traz a variabilidade da pronúncia da palavra não cantada por Araci de Almeida, na canção “Triste Cuíca”, na qual em um momento mais vagaroso da canção, ela pronuncia claramente a palavra não como nãum, e em outro momento, mais ágil, como num. (p. 109) Essas descrições, além de muito enriquecedoras na descrição de variantes de origem históricas, nos apontam para soluções individuais criadas pelos cantores, a partir de suas próprias referências, para a adaptação da nasalidade da fala ao canto em português brasileiro. Também é importante observar que, de todos os cantores citados, Elsie Houston (considerada com a melhor dicção) é a única cantora erudita, o que talvez explique uma maior preocupação em uma dicção mais isenta de regionalismos. Todos os outros cantores são de caráter popular o que pode justificar outras soluções quanto à dicção. Sobre essas adaptações dos sons nasais, Mário de Andrade dedica toda uma seção no mesmo capítulo, intitulada “Dificuldades Vocais” (1991), na qual apresenta uma série de discussões sobre a emissão dos sons nasais em contextos musicais específicos, que podem afetar a sonoridade pertencente ao português brasileiro em geral. Nesta mesma seção aponta algumas propostas para administrar essa característica responsável por uma “timbração nasal” tão específica da língua. As dificuldades apresentadas se referem principalmente à emissão sustentada de vogais nasais nas extremidades da tessitura do canto erudito, trazendo inúmeros exemplos de composições com tratamento inadequado destes fonemas. O autor também chama a atenção ao fato de que os compositores devem ter o conhecimento das características do idioma para comporem em português brasileiro, de forma a possibilitar ao intérprete uma adaptação destes fonemas sem a descaracterização de timbre inevitável em determinados contextos musicais, que acabam por afetar a compreensão do texto. Dentre os exemplos citados de emissão sustentada do nasal, a nota fá4 já é considerada aguda (p.39). A utilização das vogais nasais < i > e < e > em notas agudas, em intensidade adequada ao canto erudito, geram um aumento do brilho natural das mesmas que soam de forma estridente ao ouvinte, perdendo sua sonoridade original (p. 41). Chama a atenção também aos grupos consonantais que podem vir após o fonema nasal, dificultando ainda mais a execução, como no caso da palavra planta (p.39). ��� � Andrade sugere, pois, que se evite a utilização dos fonemas nasais especialmente em notas longas. Na ocorrência desta dificuldade, se for seguida de uma nota mais grave, ele sugere um portamento da vogal nasal até a próxima nota, para que se possa obter o timbre exato do fonema (p.39). Quanto às vogais nasais < o > e < u >, quando utilizadas no registro agudo, também geram a impossibilidade de uma “timbração” adequada, por seu local natural de articulação (p.43). O compositor deve, portanto, no processo composicional, estar atento à essas dificuldades vocais para que a escrita musical esteja a favor de uma boa dicção no canto. Nem todos os estudos de Mário de Andrade chegaram a ser apresentados no Congresso, porém, a sua publicação através dos Anais nos possibilitou compreender bastante do contexto e dos objetivos do Congresso na elaboração do documento sobre as normas de pronúncia. O Congresso trouxe a necessidade de adotar uma língua padrão como referência para a pronúncia artística e, nesta ocasião, foram determinadas as “Normas de boa pronúncia da língua nacional no canto erudito”(1938). Esta iniciativa levantou o inventário fonético do português brasileiro cantado, e trouxe problemáticas diversas quanto à execução do repertório camerístico, muitas vezes ilustradas com exemplos musicais. Uma grande preocupação que buscava solução com a publicação das Normas, era a conscientização do repúdio aos estrangeirismos de dicção e emissão e, por conta disso, são utilizadas inúmeras vezes comparações com o português europeu que objetivam esclarecer diferenças significativas entre as duas versões do idioma e evitar influências consideradas indesejáveis no repertório nacional. Exemplificando essas comparações, o autor se refere à presença de vogais nasais fechadas e a ausência de vogais nasais abertas no português brasileiro. O português europeu, no pretérito perfeito simples, apresenta a vogal nasal tônica aberta, amámos, enquanto no português brasileiro diz-se amâmos (p.9). ele complementa com a observação de que a execução deste som nasal fechado contribui para uma “caracterização nacional do timbre e maior facilidade de emissão vocal” (ANDRADE, 1938, p. 9). Antes de apresentar as resoluções sobre as vogais nasais do documento “Normas de boa pronúncia da língua nacional no canto erudito” (1938), Andrade faz algumas observações em relação às vogais em geral, que também se aplicam às vogais nasais. Em primeiro lugar, os casos apresentados nas normas são fenômenos de nasalização, nos quais a presença do elemento nasal é fundamental para a inteligibilidade da palavra, ao contrário dos casos de nasalidade, nos quais a presença deste elemento é consequência de uma variante de origem e presente em toda a fala. ��� � Dentre as dezenove vogais da língua padrão, sete são consideradas nasais, sendo estas classificadas por ele de três maneiras distintas: nasal, nasal fechada ou nasal surda. Esta terminologia é descrita no início do documento, esclarecendo questões referentes à sonoridade e contextos silábicos. O documento traz informações sobre estes fonemas em diversos momentos. Apresentaremos aqui uma descrição condensada dos fenômenos nasais. Todos os exemplos utilizados foram retirados do próprio texto. O nasal surdo consiste na aproximação das vogais < e > e < o > para < i > e < u >, respectivamente, em determinados contextos silábicos, como em então ou camondongo .(p.8) Quanto ao nasal fechado, esta nomenclatura está presente nas vogais < a >, < e > e < o >, tendo como exemplo as palavras rã, vem e som. (p.7,8) Ao nasal sem nenhuma observação complementar, as vogais < i > e < u > são representadas pelas palavras, vim e rum.(p.8) Quanto às consoantes nasais < m, n >, responsáveis pela nasalização das palavras, são consideradas: < m > oclusiva nasal bilabial sonora, mamãe; < n > oclusiva nasal velar sonora, angú, banco; < n > oclusiva nasal alveolar sonora, ninar; < nh > oclusiva nasal palatal sonora, Nhãnhã. (p.8) É interessante observar que não há distinção gráfica entre a oclusiva nasal alveolar e a oclusiva nasal velar, e, posteriormente, não há maiores esclarecimentos sobre as diferenças de articulação dos dois fonemas. Porém, existe a observação sobre a necessidade de estudos experimentais a respeito destes. Quanto aos ditongos nasais e a representação da nasalização final de palavras, temos no ditongo < em > uma informação bastante relevante na compreensão do fenômeno no período em questão. O caso do ditongo nasal, sempre soa como �� (também, tamb��/ jovem, jov��). Este exemplo traz duas informações bastante relevantes. A primeira refere-se a uma modificação no anteprojeto das normas, na qual “Tendo adotado o CONGRESSO, a grafia ãu em vez de ãum, por coerência foi adotada, na redação definitiva, a grafia �� , por ��m11” (ANDRADE, 1938, p. 3), e a segunda refere-se a uma diferença significativa quanto a vogal nasal < e > em português brasileiro e português europeu. �������������������������������������������������������� 11 Devido à um provável erro de edição, na Revista Brasileira de Música (1938), estes fonemas estão grafados como “ei” e “eim” (sem o til sobre o < ei >). Em consulta aos Anais do Primeiro Congresso da Língua Nacional Cantada pudemos encontrar esta outra transcrição, mais adequada ao fenômeno em questão. � � � A primeira informação, sem nenhum complemento, deixa em aberto a razão pela qual esta representação (supressão do m final) foi escolhida, evidenciando a dificuldade da escolha da grafia adequada para a representação deste som. É importante observar que essa supressão do m pode indicar que a articulação era muito sutil, não sendo significativa de representação. A segunda informação trazida é a evidência da diferenciação na execução dos ditongos nasais < �� >, entre o português brasileiro e o português europeu. No português europeu a vogal nasal < e > é executada como < a > surdo, como na palavra também/tambâi. (p.13) Quanto à vogal nasal < e > apresenta as seguintes informações: 1) No português brasileiro, o < e > nasal tônico, em todos os seus casos, conserva a pronúncia de vogal nasal fechada, como em também. (p.13); 2) O < e > final de palavras graves12 ou esdrúxulas13 quando nasal, soa sempre como ditongo nasal < ei > (receb�� , jov�i �). (p.13); 3) O < e > nasal surdo ocorre nas sílabas iniciais (encanto/incanto), e deve ser executado como uma vogal de compromisso, entre o < e > e o < i >; exceções à palavras derivadas de entre e outras eruditas como êmpola, ênfiteuse, ênlevo, ênsancha, e aquelas cujo primeiro elemento é êntero ou ênto. (p.14) Sobre a vogal nasal < i > a única observação presente é que a nasalização do < i > oral é repudiada (ilustre/ inlustre); exceção à palavra muito, na qual o ditongo soa nasal. (p.15, 16) Sobre a vogal < o >, em sílabas pretônicas quando inicia a palavra, é fechado ou nasal (ômitir, ôstentaçào, ôndina) e, quando precede a consoante nasal (letras m ou n), também se apresenta fechado (ôntem, hômem, Antônio) aplicando esta norma às flexões verbais de idêntica construção fonética (tômo, tômas, tôma) (p.16). É interessante observar que aqui apresenta a vogal nasal acompanhada do acento circunflexo, o que sugere a aproximação das vogais nasais à suas correspondentes orais no canto. O < o > nasal surdo aparece como exceção (cumpadre, lumbriga) e segue as regras gerais de utilização das vogais de compromisso. (p.16) A vogal < u > nasal se apresenta sempre fechada. É repudiada qualquer tendência a nasalizá-la quando oral, característica observada em cantores populares. (p.17) Por essas descrições percebemos que a apresentação das Normas de 1938 oferecem informações detalhadas quanto ao timbre das vogais, porém a apresentação do conteúdo é muitas vezes feita de forma não sistematizada e subjetiva, o que condiz com uma forma de escrita do período, e a acaba por não esclarecer de forma objetiva a utilização dos sons nasais. �������������������������������������������������������� 12 Ou “paroxítonas, quando a sílaba tônica é a penúltima. Ex: apele” (HOUAISS, 2010). 13 Ou “proparoxítonas, quando a silaba tônica é a antepenúltima. Ex: síntese” (HOUAISS, 2010). ��� � 2.2 O Canto e as vogais nasais Cantar pode ser visto muitas das vezes como o ato de expansão da fala nos parâmetros de duração, intensidade e extensão. Expandir a fala através do canto implica na responsabilidade de somar as competências dessas duas habilidades transformando-as em arte musical. Para que essa expansão aconteça de forma consciente, sem afetar a comunicação (função primordial da fala), aqui representada pelo texto, é necessário que o intérprete possua uma série de conhecimentos referentes às duas habilidades. O repertório apresenta uma série de desafios que exigem do intérprete escolhas que envolvem muitas vezes a busca pelo equilíbrio entre as habilidades do canto e da fala. Um dos objetivos de uma boa técnica vocal é a busca por uma emissão livre e confortável no canto. Sabemos que essa busca é constante e exige do intérprete ferramentas que administrem possíveis dificuldades vindas do repertório. Aqui apresentaremos dificuldades que tangem o domínio do idioma a ser cantado, no que se refere à nasalidade. Miller (1997) reconhece que o processo de adaptação da fala ao canto exige algumas adaptações fonéticas em prol de uma emissão livre da vogal. Podemos citar entre essas adaptações os sons nasais e o agrupamento de consoantes. Essas adaptações fonéticas evidenciadas pelo autor são muitas vezes reconhecidas como italianizações, uma vez que o canto italiano tem a premissa de uma emissão da vogal oral em favor de maior projeção vocal. Sobre isso Miller afirma que: É possível cantar os vários sons dos idiomas ocidentais com os mesmos princípios fonéticos que o idioma italiano é administrado. A alta incidência de agrupamentos de consoantes, em alguns idiomas, especialmente o alemão, o inglês e alguns idiomas da Europa Oriental, não podem interferir na correta definição de vogais, e mesmo os sons de transição decorrentes desses eventos consonantais são evitados. (Os bons cantores já aprenderam a eliminar hábitos regionais de fala no seu canto14). (MILLER, 1997, p.20) �������������������������������������������������������� 14 It is possible to sing the many sounds of all Western languages with the same phonetic principles by which the Italian language can be managed. The high incidence of consonant clustering in some languages specifically German, English, and some eastern European languages, need not interfere with good vowel definition so long as transitions sounds stemming from those consonantal events are avoided. (Good singers have already learned to eliminate regional speech habits from their singing). (Tradução nossa) ��� � Miller considera que as adaptações necessárias referentes às nasalizações, em prol da definição e liberdade vocálica no canto, são bem menos impeditivas que as adaptações necessárias para esta mesma emissão nos agrupamentos consonantais. Santos (2011) ao abordar este mesmo assunto utiliza o termo “italianização” para se referir exclusivamente a esse processo fonético de adaptação, sem implicações técnicas relativas a estilos interpretativos, afirmando que “é possível com a experiência realizar tais adaptações sem prejuízo da pronúncia própria e autêntica do idioma original”, propondo uma maneira construtiva na abordagem das influências de outras escolas de canto. (SANTOS, 2011, p.41) O cantor Nicolai Gedda ao se referir ao canto em francês e suas nasalizações sugere que “o francês seja levemente italianizado”15 (HINES, 1982, p. 124) e que esse procedimento consiste na emissão de uma vogal clara e pura articulando qualquer desinência que a ela se siga no fim da emissão, seja um som nasal, outra vogal, uma consoante ou um grupo delas, de forma a favorecer uma maior projeção ou volume vocal. O cantor português Nico Castel, referência no ensino de dicção para cantores, em conversa com o baixo norte – americano Jerome Hines, traz uma descrição destas adaptações dos fonemas da fala ao canto bastante objetiva, o que mostra a tradição destas adaptações na prática vocal: Nico Castel – Quando você canta uma vogal nasal, você não canta realmente pelo nariz. Você basicamente canta sobre a vogal, sem nasalização. “Ton amour”... você está basicamente cantando “O”. (...) Você não pode cantar ton, que seria demais. Jerome Hines – Você só fornece a nasalização ao final da vogal “O”, como corte, eu observei. Nico Castel – Sim! No final. Jerome Hines – Como se fosse um ditongo. Nico Castel – Assim você não tem que cantar pelo nariz16. (HINES, 1982, p.46) Ainda sobre o canto em francês, Miller (1996) traz outra descrição que evidencia tanto a maneira de se executar os sons nasais em francês como os erros mais comuns feitos por cantores em geral (franceses ou não-franceses) ao cantarem o repertório: �������������������������������������������������������� 15 French should be slightly Italianized. (Tradução nossa) 16 Nico Castel – when you sing a nasal vowel, you don’t really sing through your nose. You basically sing on the vowel, without nasalization. ‘Ton amour’... you’re basically singing oh. (...) You can’t sing ton, that would be too much. Jerome Hines – You only supplied the nasalization at the end of the oh vowel as a cutoff. Nico Castel – Yes! At the end. Jerome Hines – Like a diphtong. Nico Castel –Then you don’t have to sing through your nose. (Tradução nossa) ��� � Muitos cantores, especialmente cantores que não têm o francês como língua materna, (mas incluindo alguns que têm), cometem o erro, imitando o procedimento próprio da sua fala, de introduzir a nasalidade de uma vogal nasal muito cedo, quando a vogal tem duração longa. O canto elegante do francês pede que a nasalidade da vogal em uma nota longa e sustentada não ocorra no seu ataque, mas seja gradualmente introduzida perto de sua conclusão.17 (MILLER, 1996, p. 21) Neste trecho é importante observar a clareza na identificação do problema que envolve a execução das vogais nasais no canto e a objetividade na orientação da execução destes sons, que devem ser executados de forma oralizada, diferentemente da fala, e inserida a nasalização somente perto da conclusão. Aponta também a dificuldade desse controle por intérpretes franceses e não franceses, o que indica como essa adaptação muitas vezes não é feita intuitivamente e necessita de estudo. No tradicional método de canto italiano, Vaccaj – Método Pratico di Canto, publicado em 1848, a cada aula o autor faz uma observação sobre quais os objetivos a serem atingidos, e logo na primeira lição a orientação dada é a seguinte: Nesta primeira lição a divisão das sílabas é fora do comum, de modo a dar, o mais possível, a idéia do modo de pronunciar cantando; como consumar com a vogal o valor de uma ou mais notas, e unir a consoante com a sílaba seguinte. Isto servirá como ajuda também para aprender o canto com legato, coisa que não se pode ensinar bem senão com a voz de um bom professor.18 (VACCAJ, 1997, p.8) E ele demonstra sua forma de execução através de uma alteração, de finalidade didática, na divisão das sílabas da seguinte maneira: Ma – nca so – lle – ci – ta quando a divisão silábica tradicional correta, em italiano, é a seguinte: �������������������������������������������������������� 17 (...) many singers, especially non-native French-language singers (but including some native French-speaking singers), make the mistake, in imitation of speech, of too early an introduction of nasality into a nasal vowel that has a long duration. Elegant French singing dictates that the nasality of the vowel on a long sustained note not occur at its inception, but gradually introduced near its conclusion. (Tradução nossa) 18 In questa prima lezione la divisione delle sillabe si stacca dall’ordinario onde dare, il più possibile, Idea del modo di pronunciare cantando; come consumare con la vocale il valore di una o pìu note, ed unire la consonante con la sillaba seguente. Questo servirà di facilità anche per imparare il Canto legato, ciò che non si può ben insegnare se non che con la sola voce di un buon maestro. (Tradução nossa) ��� � Man – ca sol - le – ci - ta O procedimento de deslocar a consoante nasal < n > para a sílaba seguinte, é apresentado somente na primeira aula, o que mostra como na técnica italiana a adaptação das consoantes nasais é ensinada logo no início do estudo do canto e pode-se relacionar essa execução às descrições feitas por Gedda, Miller e Castel, nas quais a sustentação da vogal deve ser oralizada e a nasalidade articulada perto da sílaba seguinte ou na terminação da sílaba. Essas descrições vão ao encontro das características apresentadas no início do capítulo na revisão bibliográfica da área de linguística, se especialmente considerado o processo de expansão da fala ao canto. 2.3 O Canto e a emissão nasalizada Apresentaremos uma outra visão sobre a nasalidade que, apesar de seguir por uma linha um pouco diferente da abordada pelos autores anteriores, não pode ser deixada de lado. Além da ocorrência pontual das vogais nasais, que geram uma série de consequências acústicas e fisiológicas, existe a descrição de uma nasalidade de emissão constante no canto, relacionada à técnica vocal, que apresenta características acústicas muito semelhantes as das vogais nasais e interferem no rendimento vocal. McCoy (2008) no artigo “The Seduction of Nasality” realiza um estudo sobre a nasalidade de emissão do canto pela necessidade de compreender de forma mais adequada uma característica identificada em sua própria voz. O autor relata que no início de sua carreira como profissional mudou de professor de canto (sendo o segundo muito renomado) e a análise de sua voz apresentada por este apontava para uma necessidade de ajuste de ressonância. O ajuste proposto trazia mudanças referentes principalmente ao posicionamento do palato, que se mostrou, em suas palavras, bastante complexo: Todos os meus professores me encorajaram a cantar com suporte respiratório equilibrado, garganta aberta, laringe baixa e palato mole elevado. Meu novo professor acreditava em três destes preceitos pedagógicos, mas me informou que eu fui enganado em referência ao meu palato. O segredo de uma bela ressonância, ele dizia, residia em um palato mole baixo e relaxado. Seu mantra era: cante com o nariz aberto, mas sem nasalidade. O som deveria ficar no nariz, mas não passar através dele. Isso me parecia paradoxo; se eu abaixasse o meu palato para deixar o ��� � som entrar no meu nariz, eu não conseguia entender o que o impediria de passar pelo nariz. (...) – ele devia saber do que estava falando19. ( McCoy, 2008, p. 579) Sobre a propriocepção deste novo ajuste ele relata que em primeiro lugar, foi muito positiva, pois sentia sua cabeça vibrar enquanto cantava e acreditou ter finalmente entendido o que significava o som “na máscara”. As notas de passagem ficaram muito mais fáceis (como sol e lab) porém as notas pós passagem se tornaram mais difíceis (sib e do). Ao fazer novas audições, McCoy teve um retorno da banca avaliadora que estaria cantando o repertório errado, deveria trabalhar como tenor cômico, não como tenor lírico pois sua voz era muito nasal. Isso o fez chegar à conclusão de que sua nova técnica havia substituído controle de ressonância por nasalidade. Apesar da sensação boa que tinha com esse ajuste, passou a trabalhar para voltar a ter controle do movimento do palato. Observou, posteriormente, que esse ajuste é um recurso pontual e expressivo de timbre em cantores profissionais bem sucedidos, porém é visto com constância em potenciais jovens cantores (o que poderia ser visto como uma etapa do desenvolvimento vocal), apesar de pessoalmente não acreditar ser este o melhor caminho para o desenvolvimento da técnica do canto. A partir desta experiência desenvolveu um estudo utilizando análise espectral, que evidenciou as características da voz nasal no canto, enumerando três consequências diretas: a nasalidade prejudica a dicção, reduz a projeção vocal e reduz a beleza vocal. Sobre essas características: Nasalidade prejudica a dicção A integridade da vogal e da consoante soa comprometida através da incorreta nasalidade. Por exemplo, a projeção de consoantes plosivas, sibilantes, e fricativas é dramaticamente reduzida, especialmente em suas formas não-vozeadas (/t/, /p/, /s/, /f/). Todos esses sons são produzidos pela passagem de ar direta através da cavidade oral. Se um pouco, ou grande parte do ar escapa através do nariz, a intensidade da consoante será muito diminuída. Consoantes plosivas bilabiais vozeadas (ex: /b/, /d/) requerem um fechamento firme do véu20contra a faringe, que desvia todo o fluxo de ar para a boca. Se o véu esta abaixado, como no caso de uma nasalidade crônica, �������������������������������������������������������� 19 All of my previous teachers had encouraged me to sing with balanced breath support, an open throat, low larynx, and elevated soft palate. The new master agreed with three of these four pedagogic precepts, but informed me that I’d been led astray with regard to my palate. The secret to beautiful resonance, he said, larynx a relaxed, low soft palate. His mantra was: sing with an open nose, but without nasality. The sound was to be placed in the nose, but not go through the nose. This seemed paradoxic to me; if I lowered my palate to let the sound into my nose, I didn’t understand what would stop it from passing through my nose (...) – He had to know what he was talking about. 20 Véu palatino. ��� � essas consoantes se convertem em suas contrapartidas não plosivas /m/ e /n/21. (MCCOY, 2008, p.580) Essa observação se faz bastante importante, pois muitas vezes observa-se a característica de uma nasalidade constante na voz acompanhada de uma dicção não eficaz. O autor ainda esclarece que por mais que o idioma tenha grande ocorrência de vogais nasais, como o francês ou o português, que requerem um controle articulatório fino na distinção de vogais orais e nasais, é necessário estudar o ajuste articulatório para que a nasalidade não seja excessiva e passe a prejudicar a inteligibilidade. A segunda consequência apresentada é sobre a redução de projeção vocal durante a emissão de um som nasal comparado a uma emissão não nasal. A comparação da análise espectral da vogal /a/, cantada por um cantor, nos dois contextos (não nasal e nasal) mostra que a nasalidade diminui a intensidade sonora do formante do cantor, que, como se sabe, é responsável por acentuar a projeção vocal através da amplificação das altas frequências dos harmônicos agudos. (figura 6) Na figura 6 o eixo vertical é responsável pela intensidade (dB) e o eixo horizontal pela frequência (Hz). A nota emitida é um Fa2 (174Hz) emitida por um cantor no contexto não nasal (gráfico A) e nasal (gráfico B). Podemos observar algumas diferenças entre os dois gráficos. A primeira (e neste contexto mais importante) é na perda de intensidade entre o gráfico A e B. O formante do cantor, que aparece nos dois gráficos, no gráfico A está indicado exatamente na junção dos dois eixos. Em ambos os casos o formante acontece na mesma freqüência (por volta de 2830 Hz) porém a intensidade deste no gráfico A é de -21dB, enquanto no gráfico B surge uma queda para -30dB, o que evidencia, mais uma vez, a percepção de inúmeros pesquisadores quanto à nasalidade ser caracterizada por um enfraquecimento do formante do cantor. A segunda observação é que no gráfico A, o primeiro harmônico (H1) tem a mesma intensidade do harmônico dezesseis (H16 - no qual o formante do cantor aparece neste exemplo), mostrando como na vogal oral a intensidade do formante do cantor é realmente superior. �������������������������������������������������������� 21 Integrity of vowel and consonant sounds is compromised through incorrect nasality. For example, projection of plosive, sibilant, and fricative consonants are dramatically reduced, especially in their unvoiced forms (e.g., /t/, /p/, /s/, /f/). All of these sounds are produced by the airflow directed through the oral cavity. If some or most of the air escapes through the nose, consonant intensity will be greatly diminished. Voice stopped consonants (e.g., /b/, /d/) require firm closure of the velum against the pharynx, which diverts all airflow into the mouth. If the velum is low, as is the case in a chronically nasalized voice, these consonants are converted into their unstopped counterparts /m/ and /n/. (Tradução nossa) � � � Figura 6 - Análise espectral da vogal < a > com e sem nasalidade. ������������������ ����������������������������������� �!��"�����������������������#���������$����� �������������������%&�'(����"�����)���#�����������������*���"������*��������)���+�����%,�'��������-$�� ������������������� �%.� �/�� �����* ���'22� A última consequência apresentada, sobre a nasalidade reduzir a beleza vocal, trata de um aspecto estético em que o autor, especialmente no repertório operístico ou do canto clássico em geral, não considera bonita a nasalidade que não seja exclusivamente de finalidade linguística. Conclui seu estudo apresentando algumas sugestões de exercícios que estimulam o controle da nasalidade na voz cantada, e aponta a nasalidade crônica como um dos problemas vocais mais difíceis de serem administrados. �������������������������������������������������������� 22 Male singing F3 (174 Hz) on /a/, with and without nasality. Vertical cursor is placed within the singer’s formant (Fs); horizontal cursor shows the amplitude of the first harmonic (H1) in relaton to the remainder of the sample. (Tradução nossa) ��� � Capítulo 3 A sílaba e as variáveis de execução musical 3.1 Considerações sobre a sílaba e as vogais nasais Neste capítulo iniciamos o processo de organização dos conteúdos apresentados anteriormente, com a finalidade de discutir a execução das vogais nasais no canto em português brasileiro em diferentes contextos musicais e estudar como a representação fonética pode ser utilizada como ferramenta que auxilia essa execução, evidenciando suas contribuições e limitações. Ao nos focalizarmos no estudo sobre as vogais nasais devemos contextualizar que este fenômeno acontece majoritariamente dentro da sílaba, e que o reconhecimento da estrutura da mesma é de extrema importância para uma organização sistematizada do complexo gesto articulatório/vocal que envolve a nasalidade em português brasileiro e suas possibilidades de representação fonética para o canto (em fase de elaboração)23. Assumiremos aqui a proposta da fonologia em sua teoria métrica (Selkirk, 1982) na qual “Uma sílaba consiste em um ataque (A) e uma rima (R); a rima por sua vez, consiste em um núcleo (Nu) e em uma Coda (Co). Qualquer categoria, exceto Nu, pode ser vazia” (Collischon, 2005, p.102) essa organização contempla a descrição da vogal nasal apresentada pela linguística na qual esta é representada por uma sequência de três fases, vogal oral (VO) + vogal nasal (VN) + apêndice nasal (AN). Sendo assim, ao traçarmos um paralelo entre essas duas descrições temos: Estrutura da sílaba: A + R (Nu + Co) Descrição da vogal nasal: VO+VN+AN, na qual a sequência VO + VN pertence ao núcleo e o AN à coda. O fato de podermos organizar as vogais nasais em três fases distintas nos permite ampliar as possibilidades de execução e transcrição fonética destes sons. Para que possamos efetivamente refletir sobre as múltiplas possibilidades de execução e representação destes fonemas, consideramos aqui três importantes aspectos: o nível de estritura da transcrição fonética, a representação da coda nasal, e a vogal oral correspondente à vogal nasal no ataque �������������������������������������������������������� ��“Dentro da sílaba”, de autoria de Wladimir Mattos e Sheila Minatti. ��� � da sílaba. Essas questões permeiam todas as vogais nasais tanto na ocorrência de monotongos como nos ditongos. Sobre o nível de detalhamento da transcrição fonética, Maia (1986) faz uma série de observações bastante pertinentes: A transcrição fonética é, antes de tudo, um meio que deve se ajustar a um fim. Não existem transcrições perfeitas, pois mesmo foneticistas treinados dotados de ouvido absoluto discordam, às vezes, sobre um mesmo estímulo. O que pode existir é uma transcrição cuidadosa e flexível, que não só evite símbolos incomuns para não sobrecarregar a leitura mas também permita a adição de detalhes na medida da necessidade. Isso ocorre porque o numero de detalhes que se podem ouvir e, portanto, grafar é praticamente indeterminado. (MAIA, 1986, p.18) Essas observações são bastante úteis no processo de escolha da representação fonética para o canto, por apontar alguns pontos que podem nortear escolhas a cerca do nível de estritura da representação, como o cuidado para não sobrecarregar a leitura e a clareza do objetivo da transcrição, neste caso a voz cantada. Veremos que o contexto musical, especialmente no que se refere à velocidade de execução do fonema, é a variável que exerce maior influência sobre o nível de detalhamento da transcrição, e é justamente em uma transcrição fonética com mais detalhes, chamada “estreita” (MAIA, 1986, p.19) que deve-se equilibrar os pontos expostos anteriormente, sobre a finalidade da transcrição – o canto em português brasileiro – e a facilidade de leitura. Sobre a representação da coda nasal, esta envolve uma série de elementos a serem discutidos, como: 1) A importância ortográfica dada a consoante nasal e ao til < ~ >, que é responsável pela distinção de palavras, como em canta/cata; 2) A importância de sua definição em prol de uma maior liberdade vocálica no canto; 3) Sua utilização como recurso expressivo; 4) Possibilidade de uma manifestação referente às variantes de origem. Neste trabalho estas variantes não serão abordadas por buscarmos respeitar os padrões estabelecidos pelo “PB Cantado”. (KAYAMA et al, 2007) Sobre a vogal oral correspondente à vogal nasal, característica esta evidenciada na descrição do núcleo da sílaba, devemos estar atentos às características acústicas apresentadas nos capítulos anteriores, que evidenciaram o enfraquecimento do formante do cantor e a consequente perda de projeção vocal, além de uma redução de liberdade vocal na emissão de uma vogal nasal em contrapartida à uma vogal oral. � � � Ao assumir essas características, especialmente no contexto de uma vogal sustentada, situação esta que caracteriza uma das diferenças entre o canto e a fala, devemos observar se o símbolo fonético utilizado para representar a vogal nasal também está de acordo com a sonoridade esperada para a execução desta mesma vogal de forma oralizada. Com o objetivo de ilustrar a complexidade destes três pontos, tomaremos como exemplo a palavra canta e faremos um exercício sobre as possibilidades de representação fonética, levando em consideração a representação dos elementos pertencentes à estrutura da sílaba, para que nos próximos capítulos tenhamos maior domínio sobre os prós e os contras de determinadas representações. Transcrevendo foneticamente a sílaba na qual o fonema nasal se encontra < can >, de acordo com essa estruturação podemos ter a seguinte representação: �����������a qual [k] representa o ataque, [���] o núcleo e [n] a coda da sílaba. 3.1.1 Sobre a correspondência fonética da vogal oral e da vogal nasal Sobre a correspondência fonética da vogal oral e da vogal nasal, a palavra canta ilustra de forma bastante objetiva esta questão por apresentar a vogal < a > em dois contextos distintos, nasal tônico (can) e oral átono (ta). Transcrevendo-a da seguinte maneira ��������]24, utilizamos na representação da vogal nasal o símbolo da vogal < a > átona acrescido do diacrítico que indica a nasalização [ ˜ ], porém ao assumir a sustentação da vogal nasal de forma oralizada, com objetivo de favorecer o canto, temos como correspondente oral o símbolo utilizado para a representação da vogal < a > átona, como na segunda sílaba de canta. Deve-se observar se o timbre desta vogal é o mesmo da vogal nasal < a > para então avaliar o símbolo fonético utilizado para ambas representações. 3.1.2 Sobre a representação da coda nasal Sobre a representação da coda nasal, sabemos que a consoante final da sílaba < n > neste caso não se comporta da mesma maneira como em posição inicial, na qual é representada pelo símbolo [n] – vozeada dental, porém estudos linguísticos afirmam que “a �������������������������������������������������������� ��De acordo com o documento “PB Cantado – Normas para a pronúncia do português brasileiro no canto erudito”. (KAYAMA et al., 2007)� ��� � consoante que segue a vogal nasal adota o ponto de articulação da consoante seguinte” (MEDEIROS, 2008, p.135). Com objetivo de esclarecer essa possibilidade de transcrição, segundo o IPA, as consoantes nasais mesmo em coda antes de [p, b] devem ser representadas por [m], antes de [t, d] por [n] e antes de [k, g] por [��. Esse raciocínio apesar de funcional não contempla a representação da coda em ditongos finais, como nas palavras mãe, pão e em nasais tônicos finais, como em irmã. Ainda nas informações trazidas pela linguística sobre a fala do português brasileiro, sabemos que a coda nasal e a consoante nasal de ataque diferem em termos acústicos em sua duração (a coda tem menor duração que a consoante de ataque), e que o fluxo de ar nasal na coda é superior ao fluxo nasal de uma consoante nasal inicial (MEDEIROS, 2008, p.135) o que evidencia algumas diferenças entre os dois contextos que podem justificar representações fonéticas distintas. A coda é muitas vezes suprimida na fala em português brasileiro por sua curta duração e pela perda de energia do fim da sílaba, porém sabemos que na expansão da fala ao canto é muito importante sua valorização por diversos motivos, como pela definição do gesto articulatório que contribui para uma maior liberdade vocálica, por sua importância como recurso expressivo e pela importância na valorização deste som para a compreensão do significado da palavra. A representação fonética da coda nasal, baseada no ponto de articulação da consoante seguinte a consoante nasal, nos direciona para a mesma solução encontrada no idioma italiano, porém a prática vocal evidencia diferenças entre esses dois idiomas e são necessários estudos que investiguem essas diferenças, se estas acontecem no âmbito da vogal ou da consoante nasal. A busca por uma representação fonética mais ampla da coda nasal, que envolva uma descrição articulatória que aborde não somente a descrição do véu palatino mas também o posicionamento da língua é necessária, pois existem possibilidades de representação como [�] ou � �� que trazem outros pontos de articulação que podem constituir uma descrição mais eficaz desses fonemas para o português brasileiro cantado. A escolha da representação da coda nasal de forma não sobrescrita se dá pela evidência desta mesmo na fala, por sua importância na definição articulatória no canto e pela falta de indícios na literatura da utilização desta representação, o que pode caracterizar um estranhamento e uma dificuldade na abordagem destes sons especialmente a cantores não brasileiros. ��� � 3.1.3 Contexto silábico Outra variável que influencia a nasalidade no português brasileiro é o contexto silábico, neste contexto buscamos chamar a atenção para a tonicidade da sílaba. No contexto de vogal seguida de consoante nasal em sílabas diferentes, temos descrições distintas a cerca do processo de nasalização desta vogal no canto, como no caso das palavras pena, cama e sinal. O comportamento deste fenômeno no canto carece de estudos mais específicos, visto que a literatura referente à voz cantada não apresenta consenso sobre essa nasalização, como será evidenciado nas tabelas do capítulo 4. Essas questões apresentam de forma objetiva a complexidade do fenômeno da nasalidade em português brasileiro, e a dificuldade na escolha de uma representação fonética padrão, mostrando que apesar da necessidade desta escolha, é necessário indicar a variabilidade do fenômeno, seja na própria transcrição ou nas informações complementares. 3.2 Variáveis de execução musical Apresentamos a seguir as variáveis de execução musical. Neste trabalho abordaremos a velocidade de execução, intensidade do acompanhamento, tessitura e estilo musical, que influenciam de forma prática a execução destes fonemas e podem sugerir representações fonéticas distintas. Após essa seção apresentamos algumas tabelas comparativas que mostram as soluções encontradas por 7 autores diferentes para a representação fonética das vogais nasais no canto. 3.2.1 Velocidade de execução Um dos principais elementos que gera grande variabilidade na execução das vogais nasais e em sua consequente representação fonética, é a velocidade de execução destes fonemas no canto. Essa variabilidade se dá na duração de cada fase da vogal nasal dentro da sílaba. Quanto mais rápida sua execução, mais próxima à divisão descrita pela fala, que consiste em um possível ataque consonantal, seguido de uma rápida vogal oral e uma vogal nasal no núcleo da sílaba e uma coda nasal. ��� � Encontramos na literatura referente às vogais nasais no canto em português brasileiro, uma distinção entre a transcrição fonética e a execução destes fonemas, visto que na maior parte das vezes a transcrição fonética aponta para um descrição mais próxima à fala, e uma grande diferença entre a fala e o canto se dá justamente na execução das vogais com maior duração. Santos (2011) ao falar sobre a execução das vogais nasais do português brasileiro cantado as descreve da seguinte maneira “a nasalização sucederia depois da vogal oral correspondente, mais próximo ao momento do corte” (SANTOS, 2011, p.44) e sugere sua resolução, no caso dos monotongos com a execução de uma vogal oral seguida da mesma vogal nasalizada, e nos ditongos com a nasalidade presente somente na segunda vogal. Exemplos: irmã [ir�!�"���� câimbra �������#��]$% pão ��&�'�]$( (p.44) Andrade, nas Normas (1938) também sugere que na execução da vogal nasal sustentada se prolongue a primeira vogal e a articulação da consoante nasal aconteça no fim da sílaba, deslocando-a para a sílaba seguinte. (p.24) Texto: ...en _ tre _ ga _ te ���ao mar Execução: ... ������_ �����_�������_ tiô mar Figura 7 – Deslocamento da consoante nasal Nesta representação Andrade não indica a oralidade da vogal sustentada, porém aponta que o maior erro cometido pelos cantores é imitar o hábito da fala e nasalizar de forma excessiva a vogal sustentada. (p.43) �������������������������������������������������������� 25 Indicamos que a transcrição proposta pelo autor utilizava o [.] entre as duas vogais, porém este símbolo é utilizado na separação de sílabas. 26 Idem 2. ��� � Na “Seresta no 13” de Heitor Villa Lobos, temos um exemplo bastante claro dessa variabilidade de execução. A indicação de andamento da canção é “Moderato”, porém no compasso 27 temos uma frase musical sob o texto “E a canção vem vindo de longe” acompanhada da indicação stringendo, que sugere a execução da frase de forma acelerada, aproximando-a da velocidade de execução da fala. Nesse contexto não é esperado que se execute os fonemas nasais dando maior duração à porção oral da vogal nasal em questão, visto que sabemos que na fala a duração desta fase da vogal nasal é pequena. Nesse contexto, sugerimos uma transcrição fonética que valorize a nasalidade como: � Ea can_ção vem vindo de lon _ ge [�����)��"*���+�����+������*��,���-�"�����������������������,.�� � Figura 8 - Variabilidade de contextos musicais Na palavra longe, temos a situação oposta, uma vogal nasal sustentada por quatro tempos na qual é de grande importância para o canto sua sustentação executada de forma oral, com a articulação da coda nasal no fim do som, próximo a sílaba seguinte.� É importante observarmos que a velocidade de execução independe do andamento da canção, e que em uma mesma frase pode-se ter diversos fonemas nasais que se comportam de maneiras distintas. 3.2.2 Intensidade do acompanhamento Outra variável relacionada ao contexto musical é a intensidade do acompanhamento vocal, por estar diretamente relacionado a uma maior ou menor necessidade de projeção vocal. Se o acompanhamento vocal é de forte intensidade, este fator é determinante na administração do tempo entre as três fases da vogal nasal, por indicar maior duração à porção oral da vogal especialmente em notas sustentadas, favorecendo sua projeção. Nestas mesmas circunstâncias, os fonemas nasais executados de forma rápida também podem ter sua porção ��� � oral intensificada, apesar de poder afastar a execução musical da fluência da fala. A consciência deste recurso é muito útil e suficiente para a orientação do intérprete. A situação oposta, de um acompanhamento vocal de média ou pouca intensidade, oferece ao intérprete maior liberdade na execução destes fonemas especialmente como recurso interpretativo, no qual a nasalidade é utilizada também a favor da expressividade vocal. 3.2.3 Tessitura Outra variável que influencia a execução das vogais nasais é a tessitura do canto, e neste tópico podemos diferenciar a questão técnica pertinente à emissão de vogais em regiões agudas da tessitura vocal e as possíveis dificuldades de articulação da consoante nasal em coda. Quanto à emissão de vogais nasais em regiões agudas, o mesmo princípio utilizado para as vogais orais chamado de vowel modification27 se aplica às vogais nasais, o qual segundo Miller consiste em uma leve modificação na articulação da vogal em direção a um arredondamento da mesma no registro agudo, pela necessidade de maior abertura bucal, sem a perda de sua integridade sonora.(1996, p.11) Em notas ascendentes trata-se do “direcionamento de uma vogal lateral para uma vogal arredondada28” (p.13) A figura abaixo organiza as vogais em “frente” e “fundo” de acordo com seu local natural de articulação, e indica os ajustes necessários em direção ao agudo e ao grave, relacionando o símbolo fonético que representa essas modificações. �������������������������������������������������������� 27 Modificação de vogal (Tradução nossa) 28 in the direction of a lateral to rounded vowel (Tradução nossa) ��� � Figura 9 - Modificação de vogais (Miller, 1986, p.157) Quanto à articulação das consoantes nasais em coda em regiões agudas, tendo o conhecimento da complexidade do gesto articulatório na execução das vogais nasais, estas devem ser executadas com o menor nível de tensão necessário, de forma a favorecer a oralidade da emissão em prol de uma maior liberdade do gesto vocal. Andrade (1991, p.39) relata a dificuldade de execução destes fonemas em notas agudas trazendo como exemplo a palavra planta, e indicando a dificuldade de execução deste fonemas se seguidos por determinados grupos consonantais em determinados contextos musicais. 3.2.4 Estilo Musical Sabemos que a administração do tempo de execução entre as três fases da vogal nasal é um recurso importante e que a sustentação da porção oral da vogal traz muitos benefícios ao canto, especialmente relacionados a projeção vocal. Porém essa sustentação causa um distanciamento da fluência da fala, pelo fato de manter em suspensão o elemento que agrega significado à palavra - a nasalidade. Temos na nasalidade um recurso expressivo no qual podemos distribuir em porções fora do esperado a relação oral/nasal de determinada vogal, principalmente ao aumentar a porção nasal de determinada vogal sustentada, desde que a