Unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP GRAZIELA DO NASCIMENTO GODOY ARARAQUARA – S.P. 2019 GRAZIELA DO NASCIMENTO GODOY Dissertação de Mestrado apresentada ao Conselho, Programa de Pós-graduação em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Educação Escolar. Linha de pesquisa: Teorias Pedagógicas, trabalho educativo e sociedade Orientador: Prof.ª Dra. Eliza Maria Barbosa Bolsa: CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior ARARAQUARA – S.P. 2019 Ficha catalográfica elaborada pelo sistema automatizado com os dados fornecidos pelo(a) autor(a). GODOY, Graziela do Nascimento As práticas pedagógicas dos professores pré- escolares na promoção dos jogos de papéis sociais à luz da Psicologia Histórico-Cultural / Graziela do Nascimento GODOY — 2019 110 f. Dissertação (Mestrado em Educação Escolar) — Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Faculdade de Ciências e Letras (Campus Araraquara) Orientador: Eliza Maria Barbosa 1. Jogos de Papéis Sociais. 2. Psicologia Histórico Cultural. 3. Pré-escola. 4. Desenvolvimento infantil. I. Título. GRAZIELA DO NASCIMENTO GODOY Dissertação de Mestrado apresentada ao Conselho, Programa de Pós-graduação em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Educação Escolar. Linha de pesquisa: Teorias Pedagógicas, trabalho educativo e sociedade Orientador: Prof.ª Dra. Eliza Maria Barbosa Bolsa: CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior Data da defesa: 28/02/2019 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Prof.ª Dra. Eliza Maria Barbosa UNESP – Faculdade de Ciências e Letras – Campus de Araraquara Membro Titular: Prof.º Dr. Francisco José Carvalho Mazzeu UNESP – Faculdade de Ciências e Letras – Campus de Araraquara Membro Titular: Prof.ª Dra. Janaina Cassiano Silva Universidade Federal de Goiás – Regional Catação Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara À minha mãe Maria José, a quem devo tudo que sou e por me apresentar a importância da família e o caminho da persistência. Ao meu esposo Josias, pessoa com quem amo partilhar a vida e que de uma forma especial e carinhosa sempre me apoiou e incentivou nessa conquista. Em especial, ao meu filho Henrique e à minha afilhada Lavínia, em nome de todas as crianças por quem trabalho, na luta por uma educação verdadeiramente humanizadora. AGRADECIMENTOS Agradeço em primeiro lugar a Deus, por seu meu porto seguro, pelo presente da vida e pelas pessoas que colocou em meu caminho e hoje se tornaram pessoas especiais e essenciais em minha vida, inclusive na construção do sonho de cursar o Mestrado. Registro aqui então meu agradecimento eterno a algumas pessoas que tornaram esse momento possível. À minha mãe Maria José, que foi pai e mãe, agradeço pela capacidade de acreditar е investir em mim. Seu cuidado me faz sentir segura e sua presença é a segurança е certeza de que não estou sozinha nessa caminhada. Obrigada, amo você. Ao meu amor, Josias, pelo apoio e paciência, pelas conversas е por sua capacidade de me trazer paz na correria do dia a dia. Te amo de forma incondicional. À minha sogra Rosana e meu sogro Mauro pelo exemplo de vida, pelo amor, carinho e dedicação comigo, com seu filho e com nosso tesouro. A vida não me deu apenas um amor, mas toda uma família para eu amar. Wilian e Tamires, além de cunhados e compadres, tornaram-se meus amigos, agradeço pelo incentivo, pela força е principalmente pelo carinho. Ao meu filho Henrique que deu um sentido especial à minha existência e tem me proporcionado grandes momentos de alegria. À Prof.ª Dra. Eliza Maria Barbosa, minha orientadora, sempre disposta a me ouvir, agradeço pelo convívio, apoio, compreensão e pelo respeito, comigo, com meu filho e em especial com esse trabalho. Obrigada pela confiança, pelas conversas e pelos estudos propostos que moldaram a presente pesquisa, fazendo com que eu me apaixonasse ainda mais pelo trabalho a que nos propomos. A você, meu respeito e admiração. Aos professores do Programa de Mestrado em Educação Escolar da Unesp de Araraquara, em especial àqueles com os quais pude dialogar mais de perto e que contribuíram significativamente para minha vida acadêmica: Prof. Dr. Newton Duarte, Prof.ª Juliana C. Pasqualini e Prof. Dr. Francisco C. Mazzeu. Aos integrantes da Banca Examinadora de qualificação dessa dissertação, pela disponibilidade representativa e pelo compromisso com a educação. Às amigas, Daniele, Jéssica G., Lorrana e Natália, presentes que a Graduação me deu e que levarei por toda vida, e que também fizeram parte dessa jornada, ajudando-me na busca dos meus objetivos e na superação das dificuldades enfrentadas, dispondo os seus ouvidos às minhas idealizações, mas também aos meus desabafos e angústias. À minha amiga Roberta, meu agradecimento especial, a quem considero como irmã, que sempre esteve ao meu lado torcendo, e nesses últimos anos em especial me apoiando e participando do crescimento do meu filho, meu bem maior. Às minhas amigas Jessica M. e Tatiane, agradeço pela amizade e companhia que às vezes mesmo de longe não deixam de estar por perto. Às minhas amigas e parceiras de trabalho, Julia, Suelen, Deise, Manuela, Camila e Juliana, agradeço a riqueza de experiências vividas e a companhia do dia a dia, tornando nossa caminhada mais serena, confiante e comprometida com a educação. Meu agradecimento especial à minha parceira de etapa Juliana, por comigo comungar, na prática e na teoria, do sonho de provocar nas crianças o prazer em aprender, e para além disso, agradeço a amizade que criamos, pelos momentos de aprendizado como mãe e pelo carinho que tem com nossa família. Minha gratidão em especial também à minha amiga Manuela, que é uma das responsáveis por eu ter chegado até aqui, agradeço seu carinho e os momentos de cumplicidade em que pudemos trocar ideias e desafogar as ansiedades mútuas, além de seu apoio fraternal, pude também contar com seu apoio técnico, muito obrigada. É um imenso prazer tê-las comigo neste momento especial. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Agradeço enfim, à minha família e a todos aqueles que de alguma forma estiveram е estão próximos, e que apesar de todas as adversidades sempre acreditaram que eu seria capaz de atingir meus objetivos. “A criança deve ser educada no mais alto respeito à realidade, mas não se deve entender por realidade o mundinho que rodeia a criança. Temos de vê-lo como a grande realidade que nos cerca se não quisermos criar um ser pequeno-burguês e mesquinho. Devemos reconhecer que o fechamento no círculo estreito dos interesses imediatos cria nas crianças e nos adultos um voo curto, uma concepção miúda de vida, limitações e presunção.” (VIGOTSKY, 2001, p. 210) RESUMO A Educação Infantil assume um papel essencial no desenvolvimento das crianças pequenas e a brincadeira é um elemento importante na promoção desse desenvolvimento. Assentir o jogo de papéis sociais como atividade principal da criança pré-escolar e compreender a importância de um planejamento sistemático ao promover a atividade de brincadeira é imprescindível. Neste trabalho buscamos compreender como esses jogos ou as brincadeiras de faz de conta estão estruturados pelos professores pré-escolares no cotidiano de suas práticas e como eles compreendem a relação dos jogos com o processo de representação simbólica e o desenvolvimento da imaginação e da linguagem. Observamos ainda como essas atividades são condicionadas pelo espaço, tempo, artefatos culturais disponíveis e especialmente pelos conteúdos culturais oferecidos ou não pelos educadores, para assim evidenciar em que medida eles reforçam experiências cotidianas ou promovem o domínio e contato com experiências não cotidianas. Trata-se de uma pesquisa de campo apoiada nos pressupostos teóricos metodológicos da Psicologia Histórico-Cultural do que nos permite apreender a realidade estudada como resultado da relação entre o singular e os liames da totalidade. Os sujeitos da pesquisa são doze professores que atuam nas turmas de 4 e 5 anos de três escolas da Educação Infantil da rede municipal de Araraquara/SP, e para coleta dos dados utilizamos o instrumento da entrevista que era composta por questões objetivas e subjetivas, em que as respostas eram gravadas e depois transcritas. As perguntas objetivas nos ajudaram a caracterizar o universo pesquisado e compreender o tempo diário destinado às atividades de brincadeiras de faz de conta nas instituições de educação infantil e as subjetivas foram categorizadas, com o intuito de revelar a emancipação das ações das crianças em relação ao uso dos objetos e espaços disponibilizados pelo professor, a trajetória de desenvolvimento das crianças nos jogos de papéis por meio das práticas educativas e a compreensão dos professores quanto à relação entre a atividade de jogos de papéis e o desenvolvimento do pensamento simbólico, da linguagem e da imaginação. Os resultados indicam que a organização e os materiais dos espaços condicionam as atividades de brincadeira, e quanto ao trabalho educativo, é possível verificar um planejamento e reconhecimento acerca da importância dos jogos de papéis, porém sem promoção dos elementos referentes a ações não cotidianas. Predomina o uso das brincadeiras como meio para atingir o ensino de conteúdos de diversas áreas do conhecimento. Essas análises sugerem que é preciso ampliar as discussões no campo da Educação Infantil a respeito das contribuições que o jogo simbólico pode dar ao desenvolvimento da criança e seu processo de humanização. Palavras – chave: Jogos de Papéis Sociais; Psicologia Histórico-Cultural; Pré-escola; Desenvolvimento infantil. ABSTRACT Early Childhood Education plays a key role in the development of young children and playing is an important element to promote such development. Assigning social roles games as the primary activity of the preschool child and understanding the importance of systematic planning in promoting play activity is imperative. In this work, we seek to understand how pre-school teachers in the daily life of their practices structure these games and how they understand the relationship of games with the process of symbolic representation and the development of imagination and language. We also observe how these activities are conditioned by the space, time, and cultural artifacts available and especially by the cultural contents offered or not by the educators, in order to highlight the extent to which they reinforce everyday experiences or promote mastery and contact with non-everyday experiences. It is a field research based on the theoretical methodological assumptions of Cultural Historical Psychology that allows us to apprehend the studied reality as a result of the relation between the singular and the ties of the totality. The subjects of the research are twelve teachers who work in the 4 and 5 year-olds classes of three municipal schools in Araraquara/SP, and to collect the data we use the interview instrument that was composed of objective and subjective questions, in that the responses were recorded and then transcribed. The objective questions helped us to characterize the researched universe and to understand the daily time destined for the activities of role play in the institutions of early childhood education, and the subjective ones were categorized with the intention of revealing the emancipation of the children's actions in relation to the use of the objects and spaces provided by the teacher, the developmental trajectory of children in role plays through educational practices and the teachers' understanding of the relationship between role-playing and the development of symbolic thought, language and imagination. The results indicate that the organization and the materials of the spaces condition the role-play activities, and as for the educational work, it is possible to verify a planning and recognition of the importance of the role games, but it does not promote elements referring to non-daily actions. The use of role-play as a means to achieve the teaching of contents of several areas of knowledge is predominant. These analyses suggest that it is necessary to broaden the discussions in the field of Early Childhood Education regarding the contributions that the symbolic play can give to the development of the child and its process of humanization. Keywords: Role Play; Cultural-Historical Psychology; Preschool; Child Development. LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1. Tempo diário destinado às atividades de brincadeira ………………….…………73 Gráfico 2. Espaços onde ocorrem as brincadeiras…………….…………………………...…74 Gráfico 3. Brincadeiras de papéis sociais mais reproduzidas pelas crianças…………………85 LISTA DE QUADROS Quadro 1. Perfil dos professores entrevistados..........................................................................72 Quadro 2. Relação entre espaço e materiais utilizados nas brincadeiras....................................76 Quadro 3. Jogos de papéis praticados pelas crianças..................................................................81 Quadro 4. Relação entre os jogos de papéis mais praticados e os objetos e/ou brinquedos.................................................................................................................................83 Quadro 5. Trabalho do professor ao propor as brincadeiras de faz de conta...............................88 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .............................................................................................................12 2 O DESENVOLVIMENTO DO PSIQUISMO E O PROCESSO DE FORMAÇÃO DA FUNÇÃO SIMBÓLICA PELA CRIANÇA ............................................................26 2.1 O psiquismo e o desenvolvimento da criança pela mediação da cultura .............26 2.2 O desenvolvimento cultural da linguagem e do pensamento ..............................30 2.3 O papel cultural da escola de Educação Infantil no desenvolvimento das funções psíquicas ....................................................................................................................34 3 A BRINCADEIRA DE JOGOS DE PAPÉIS SOCIAIS E SUA RELAÇÃO COM O DESENVOLVIMENTO DO PSIQUISMO ...................................................................40 3.1 Da primeira infância ao período pré-escolar........................................................40 3.2 A atividade de jogo de papéis sociais ..................................................................49 3.2.1 A ação do professor para trabalhar o jogo de papéis sociais: contribuições da escola para o desenvolvimento psíquico da criança .................................................56 4 A BRINCADEIRA NA ORGANIZAÇÃO DA ESCOLA DE EDUCAÇÃO INFANTIL ........................................................................................................................68 4.1 A brincadeira em turmas pré-escolares do município de Araraquara/SP ................72 4.1.1 Caracterização dos Centros de Educação e Recreação e perfil dos docentes entrevistados ..............................................................................................................72 4.1.2 A organização do espaço e tempo das brincadeiras de jogos de papéis sociais ...................................................................................................................................76 4.1.3 As concepções e práticas dos professores pré-escolares sobre os jogos de papéis sociais .............................................................................................................79 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................98 REFERÊNCIAS .............................................................................................................101 APÊNDICE A - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE ESCLARECIDO .......105 APÊNDICE B – PARECER CIRCUNSTANCIADO DO CEP ................................107 APÊNDICE C – ROTEIRO DE ENTREVISTA ........................................................109 12 1 INTRODUÇÃO Cada dia mais se tem discutido sobre a importância da brincadeira para a aprendizagem e para o desenvolvimento infantil. A Educação Infantil assume um papel essencial no desenvolvimento das crianças pequenas e a brincadeira é um elemento importante na promoção desse desenvolvimento. A cultura e as relações sociais promovem o desenvolvimento do psiquismo da criança, e é nesse contexto que a instituição escolar se faz relevante e significativa. O processo de desenvolvimento da criança se inicia desde os primeiros dias de vida, e de acordo com a perspectiva histórico-cultural, ele está relacionado com os processos de mudanças e de transformações que ocorrem ao longo da vida, percebidos nas práticas culturais e educativas, incluindo deste modo, o processo de aprendizagem. Considerando isso e assumindo o compromisso de que a Educação Infantil deveria ter o mesmo nível de intencionalidade que todos os demais níveis de educação escolar, passamos a conviver com inquietações que tinham um vínculo ainda subjetivo com o objeto da presente pesquisa. Iniciamos essa trajetória em 2010, com o ingresso na Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Araraquara no curso de Pedagogia, em 2011. Um ano após esse ingresso atuamos como secretária de escola até assumirmos uma vaga de Professora do Ensino Fundamental. Após uma breve atuação neste nível, somente três meses, assumimos a vaga de professora de Educação Infantil, em 2014. Nossa opção pela docência nessa etapa já soava como um reconhecimento de sua importância e desejo de luta em defesa de uma educação humana e de qualidade para as crianças pequenas. A aproximação com o referencial teórico da Psicologia Histórico-Cultural e Pedagogia Histórico-Crítica ocorreu concomitantemente a essa trajetória, inicialmente na disciplina “Psicologia da Educação II”, ministrada pelo Professor Dr. Newton Duarte. Discussões sobre o desenvolvimento humano e a sociedade, as diversas concepções de educação escolar, fundamentos marxistas eram conteúdos presentes nesta disciplina e na optativa “Teorias Pedagógicas”, também cursada. Posteriormente, na disciplina intitulada “Ação Pedagógica Integrada” vivemos uma experiência formativa relevante de articulação teórico-prática na Educação Infantil. Também nesta disciplina, discussões teóricas que desnaturalizam a brincadeira e as apresentam do ponto de vista de sua importância para o desenvolvimento infantil foram abordadas. Nossa primeira experiência de docência na Educação Infantil foi com uma turma de três anos, porém foi a partir de 2015 que começamos a atuar com turmas de cinco anos, então a 13 questão das brincadeiras desponta como objeto de nossa reflexão. Nossas observações, bem como nossa própria prática, indicavam uma desarticulação da brincadeira, em especial pela condição polimorfa que ela adquire nos contextos escolares: brincadeiras de faz de conta, jogos com ou sem regras, jogos esportivos, quebra-cabeças, jogos de montar, etc. Ao associar genericamente a brincadeira a atividades livres, cujo fim é a diversão, começamos a observar que os momentos dedicados às brincadeiras e jogos em geral nas turmas pré-escolares ocorriam sem intervenções pedagógicas. Essa compreensão genérica como algo que se dá de forma espontânea e livre determinava também os espaços onde as brincadeiras, inclusive as de papéis sociais se desenrolavam, ou seja, nas áreas livres ou salas de multimeios, enquanto as salas de recursos e estruturada eram reservadas para o trabalho de conteúdos. A pesquisa originou-se a partir da constatação que a falta de intencionalidade ao promover as brincadeiras de faz de conta, bem como o desconhecimento dos professores pré- escolares a respeito da relação entre as atividades-guias e o desenvolvimento psíquico poderia condicionar suas práticas para fins secundários, se considerarmos as necessidades formativas das crianças em idade pré-escolar. Duas forças acabavam por corroborar com essa desqualificação da brincadeira na Educação Infantil, uma era essa incompreensão por parte dos educadores sobre sua importância e a outra era dada também por uma falta de entendimento e pressão por parte da família e da sociedade, que não reconhece na brincadeira uma atividade constitutiva das crianças. Assistimos então uma parcela da sociedade e da família, mais preocupada com o aspecto profissional, e muitas vezes a escola se adapta a essa expectativa, investindo em conteúdos dirigidos apenas a alfabetizar principalmente, sem se preocupar com a importância do papel da brincadeira na educação da criança, como se essa não fizesse parte do seu processo de desenvolvimento. Com a intenção de mudar a perspectiva de atendimento às crianças dos Centros de Educação e Recreação do município de Araraquara/SP e promover mudanças nas práticas naturalizantes observadas por Barbosa (2018), a FCL/UNESP propôs, em parceria com a Secretaria Municipal de Educação, a construção do Programa “Cresça e Apareça” que visava contribuir para a formação dos professores a partir do referencial da Psicologia Histórico- Cultural e da Pedagogia Histórico-Crítica. O Projeto teve início em 2013, sendo assessorado pela professora Eliza Maria Barbosa, que juntamente com equipe técnica do projeto, criou o Laboratório Pedagógico da Educação Infantil (LAPEI) para o estudo e elaboração de atividades educacionais. O Laboratório também era administrado por funcionários da Educação da 14 Prefeitura, com o intuito de valorizar as boas práticas educacionais dos profissionais. Eram oferecidas formações que visavam apresentar conhecimentos das principais obras dos autores da Psicologia Histórico-Cultural e da Pedagogia Histórico Crítica. Essa relação com o Programa foi muito significativa para nossa atuação docente, pois contribuiu com novas práticas, com intencionalidades e objetivos concernentes ao que fomos construindo e idealizando como uma educação de qualidade as crianças pequenas, além de nos aproximar com a teoria cuja qual nos representa, pois considera cada atividade da criança, e a partir dela busca promover o desenvolvimento. Sempre observamos na rotina das crianças um tempo significativo dedicado às brincadeiras, deste modo, pretendemos então apontar alguns elementos indicativos de como os jogos de papéis socias ou as brincadeiras de faz de conta ocorrem nas turmas pré-escolares, evidenciando a compreensão dos professores sobre a relação entre aquela atividade principal e sua implicação no desenvolvimento do pensamento simbólico. A apresentação formulada a partir dos pressupostos teóricos da Psicologia Histórico-Cultural demonstrada a seguir reforça a importância de nossa pesquisa. Para além das impressões que foram surgindo ao longo dessa construção, fizemos um levantamento bibliográfico acerca do tema da pesquisa, a fim de garantir uma atualização das discussões, traçando semelhanças e complementaridades com os objetivos por nós propostos. Iniciei o referido levantamento no banco de teses e dissertações da CAPES (http://bancodeteses.capes.gov.br/banco-teses/#!/). Na busca utilizei seis descritores, sendo eles, “brincar”, “jogo”, “faz-de-conta”, “ler”, “escrever”, “Educação Infantil”. Para estes termos apareceram 955.596 resultados. Devido a ser um número amplo, selecionei a opção “educação”, refinando a busca, e com esta seleção restaram ainda 42.418 resultados. Como apareceram muitos resultados mesmo refinando a busca na área de Educação, fiz um segundo levantamento na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (http://bdtd.ibict.br/vufind/). Nesse acervo realizei várias buscas, utilizando diferentes nomenclaturas, uma vez que realizei uma busca avançada por título, para assim refinar os resultados, pois os descritores da presente pesquisa são bastante comuns, apesar de não tratarem o assunto da presente pesquisa. Nessa segunda busca, utilizamos diferentes descritores devido às variações de alguns termos e refinamos a busca a partir das seguintes palavras: jogos de papéis sociais, brincadeira de papéis, brincadeiras de faz de conta, atividade lúdica, brincadeira, brincar, Pedagogia Histórico-Crítica, pré-escola, Educação Infantil, e a partir de várias buscas intercalando e combinando os descritores foram selecionados trabalhos, que possuíam, de http://bancodeteses.capes.gov.br/banco-teses/#!/ http://bdtd.ibict.br/vufind/ 15 alguma forma, relação com o estudo proposto. Foram eliminados os trabalhos que, embora tratassem da brincadeira de papéis, se diferenciavam pelo referencial teórico e os que tinham como contexto de pesquisa a etapa do Ensino Fundamental. Portanto, das buscas foram 32 resultados e 5 trabalhos selecionados, que possuíam, de alguma forma, relação com o estudo proposto, foram selecionados os seguintes trabalhos: A criança de seis anos na escola: transição da atividade lúdica para a atividade de estudo (MAREGA, 2010); O papel do brincar na apropriação da linguagem escrita (BOMFIM; 2012); A Brincadeira na Educação Infantil (3 a 5 anos): uma experiência de pesquisa e intervenção (SILVA, 2012); A mediação pedagógica na educação infantil para o desenvolvimento da brincadeira de papéis sociais (MARCOLINO, 2013); A intervenção pedagógica na brincadeira de papéis em contexto escolar: estudo teórico-prático à luz da psicologia histórico-cultural e pedagogia histórico-crítica (BRIGATTO (2018). Os estudos demonstraram a realidade que já apresentamos até então, em que a brincadeira aparece de maneira naturalista e generalizada, ou aparece como um meio para alcançar outro objetivo. Observamos, deste modo uma desqualificação das práticas educativas em relação as brincadeiras nas escolas. O estudo de SACCOMANI (2018) “A importância da educação pré-escolar para o desenvolvimento da linguagem oral e escrita: contribuições à luz da pedagogia histórico- crítica e da psicologia histórico-cultural nos apareceu como sugestão da orientação desse trabalho, e foi muito pertinente e relevante ao presente estudo, pois embora não tenha como objeto a brincadeira de papéis, nos forneceu uma importante síntese sobre a relação entre essa atividade e desenvolvimento do psiquismo em crianças pré-escolares. Tal levantamento se constituiu numa etapa importante, pois além de permitir um controle bibliográfico e um mapeamento da informação produzida, permitiu-nos encontrar conhecimentos produzidos até o momento, verificar diferentes realizadas e então, buscar contribuições novas. Porém, ressaltamos a necessidade de ir à fonte original dos conhecimentos aqui tratados, por isso buscamos nos autores da Psicologia Histórico-Cultural e da Pedagogia Histórico-Crítica as principais referências acerca das contribuições da Educação Infantil ao desenvolvimento das crianças. Uma das contribuições que a Educação Infantil pode dar às suas crianças é a consolidação do pensamento empírico e criação das bases para a formação do pensamento teórico. Pasqualini (2015) discute os objetivos de ensino da Educação Infantil e apresenta uma discussão sobre os princípios didático-pedagógicos referentes ao desenvolvimento omnilateral 16 da criança, formação de motivos e complexificação da estrutura da atividade, formação das bases do pensamento teórico e a formação da atitude comunista. Para falar sobre a criança desse período é importante destacar aspectos do seu desenvolvimento e de suas atividades. O jogo de papéis sociais é a atividade principal da criança pré-escolar, ou seja, ele é quem guia as transformações mais relevantes de seu desenvolvimento nesse período. Logo, assentir o jogo de papéis como atividade principal da criança pré-escolar e compreender a importância de um planejamento sistemático ao promover a atividade de brincadeira é imprescindível. Elkonin (2009) diz que o jogo das crianças pré-escolares consiste na interpretação de um papel assumido pela criança, que contém todos os elementos do jogo, sintetizando um conjunto de ações e regras sociais de conduta. Conforme a criança vai se desenvolvendo, evoluem os elementos do papel, as ações se apresentam cada vez mais articuladas e reproduzem a lógica das ações da vida real, o papel vai alterando as significações das ações e objetos, mas a criança é consciente de que está representando um papel. Sobre esse assunto, é pertinente retomar Leontiev (2001) no que diz respeito à atividade- guia. O teórico explicita que não se trata da atividade que a criança faz na maior parte do tempo, mas que, por seu conteúdo e estrutura, possibilita o desenvolvimento de processos psicológicos essenciais ao processo de humanização, mobiliza o novo no psiquismo humano. As atividades acessórias também são importantes para o desenvolvimento infantil, as atividades criativas e de expressão, o conhecimento de fenômenos da natureza e da história, a apreciação estética, assim como a convivência com a cultura escrita, e têm grande relevância para o desenvolvimento infantil. Tais atividades enriquecem a atividade-guia criando condições para que as crianças conheçam mais sobre o mundo. Elkonin (2009) diz que a ação lúdica evidenciada no jogo favorece a formação dos processos psíquicos. Através do jogo desenvolve-se a atenção e a memória ativa da criança, impulsiona-se o desenvolvimento potencial e os processos imaginários. A condição do jogo introduz a criança no mundo das ideias, faz com que ela se concentre e se manifeste na situação lúdica o desenvolvimento da imaginação, permite-lhe acessar, interpretar, significar e modificar a realidade e a si própria. O aprendizado escolar deve produzir algo novo no desenvolvimento da criança, deste modo, a prática pedagógica deve estar fundamentada em mediar situações para que a criança aprenda, isso ocorre, por exemplo, na promoção de brincadeiras, atividades e momentos que promovam a apropriação de novos conhecimentos. Nesse sentido, para fundamentar que o jogo 17 é propulsor de aprendizagem, é necessário que ele seja constituinte de zonas de desenvolvimento proximal, em que aquilo que naquele momento a criança conseguiu fazer com a ajuda de alguém, um pouco mais adiante ela certamente fará sozinha. Mediante tais considerações essa pesquisa tem como objeto as práticas educativas de professores pré-escolares concernentes aos jogos de papéis sociais ou às brincadeiras de faz de conta. Tal objeto teve origem em nossa trajetória de docência, que gerou também um inconformismo mediante as defesas que reservam à educação infantil um lugar de coadjuvante no processo de escolarização das crianças. Essa pesquisa nasce, portanto, dessa dinâmica reflexiva que imprimimos à docência e tem como objetivo identificar e analisar como estão estruturadas as atividades de jogos de papéis sociais ou brincadeiras de faz de conta na rotina educativa das crianças pré-escolares que frequentam os Centros de Educação e Recreação de Araraquara/SP, revelando especialmente a compreensão dos professores que atuam nas turmas de crianças de quatro e cinco anos de idade quanto aos jogos de papéis sociais enquanto processo integrante do desenvolvimento do pensamento abstrato pelas crianças. Os objetivos específicos voltam-se para a verificação do quanto os espaços, tempo, artefatos e conteúdos culturais disponibilizados pelos professores condicionam os enredos dos jogos de papéis e das brincadeiras de faz de conta e explicitar em que medida as práticas pedagógicas, ao promoverem tais atividades, favorecem a apropriação das práticas sociais para além das esferas cotidianas. Esperamos demonstrar a seguir os demais argumentos que justificam essa pesquisa, destacando a importância de professores pré-escolares compreenderem a brincadeira como possibilidade para o desenvolvimento do pensamento abstrato e superação do cotidiano, refletindo sobre os aspectos que qualificam a brincadeira de modo a promover efetivamente o desenvolvimento. Buscando cumprir o pressuposto da totalidade como exigência para as pesquisas suportadas no Materialismo Histórico-Dialético, demonstraremos nossas impressões empíricas pautadas em nossa experiência docente, naquelas extraídas dos pressupostos teóricos da Psicologia Histórico-Cultural, e por último, as impressões baseadas em pesquisa produzida anteriormente no mesmo contexto: a rede de educação infantil do Município de Araraquara/SP. Essa apresentação dialética justifica a presente pesquisa e revela nossa primeira aproximação com o presente objeto de estudo. Nesse sentido, buscaremos evidenciar a função educativa que as creches e pré-escolas do município de Araraquara-SP têm desempenhado sobre o referido tema. As crianças com 18 faixa etária entre quatro meses e seis anos de idade são atendidas na rede pública de Araraquara nos chamados Centros de Educação e Recreação – CERs1 que se organizam num sistema de rodízio de espaços, que são: Sala Estruturada, Sala de Recursos, Sala de Multimeios, Biblioteca e Área Livre. Diariamente, exceto as crianças menores de dois anos e meio, que têm suas salas específicas, as que têm entre três e seis anos participam de atividades nesses diferentes espaços, sendo que cada turma passa por pelo menos três deles em sua rotina diária. A Sala Estruturada é a que mais se assemelha com as salas de aula tal como a conhecemos, contam com lousa, mesas e cadeiras para todas as crianças e para o professor, e é onde na maioria das vezes são realizadas as atividades gráficas como: desenho, escrita, números, etc. Na Sala de Recursos, em algumas instituições há mesas e cadeiras para todas as crianças, em outras, para pelo menos metade da turma, o diferencial dessa sala é que têm jogos educativos e algumas ainda possuem a lousa digital. Esta sala também é usada na maioria das vezes para a realização de atividades gráficas, os jogos acabam sendo uma distração para os alunos que vão acabando ou que estão aguardando para realizar a atividade. Há educadores que realizam o planejamento e aproveitam os recursos disponíveis, tais como a lousa digital, que quando usada é para introduzir conteúdos diversos, exibição de vídeos, imagens, histórias, etc. A Sala de Multimeios conta com brinquedos industrializados e geralmente uma TV e um DVD. Este espaço é onde as crianças mais brincam livremente e sem intervenção. Ali também são vistos muitos vídeos de desenhos já conhecidos pelas crianças. A biblioteca conta com um acervo de livros diversos e é utilizada na maioria das vezes para contação de história e com menor frequência, para manuseio dos livros pelas crianças. Por sua vez, as áreas externas apresentam uma diversidade nos espaços de acordo com a estrutura e realidade de cada instituição e essa variedade também ocorre quanto às suas nomeações: Areia, Área Livre, Quiosque, Gramado, Calçadão, etc. Os materiais disponíveis nesses espaços geralmente são balanço, brinquedos de playground como escorregador e casinhas, baldinhos e pás, sendo também muito utilizados os baldes ou sacolas com brinquedos afetivos e industriais. Nesse espaço externo ocorrem predominantemente brincadeiras e jogos diversos, entre eles os jogos de papéis, sem que se observe, entretanto, que eles tenham sido planejados e no caso destes últimos, surgem e desenvolvem-se por meio de enredos criados pelas próprias crianças. Diariamente, dois ou mais desses espaços propícios para as brincadeiras e jogos de papéis são usados pelas crianças pré-escolares que têm entre quatro e cinco anos. 1 Doravante o nome dessas instituições de educação infantil pode ser aqui referido pela sigla CER. 19 Alguns desses CERs contam com a Sala de Arte, que possui materiais diversos para trabalhar a expressão artística, mesas e cadeiras, sendo também utilizada para a realização de atividades gráficas de desenho e escrita. Os espaços foram pensados inicialmente visando a atender fins educativos específicos, mas às vezes, observamos na prática um condicionamento explícito dado por sua característica ou recursos ali disponíveis. Notamos que esse sistema de rodízio favorece um engessamento da prática docente e quando não há um planejamento pré-existente, as atividades se repetem e as crianças vivenciam sempre as mesmas relações, não se apropriando de novos conceitos e conhecimentos. Essa realidade constitui-se num importante argumento para nossa pesquisa, eventualmente observamos que o espaço passa a ser o fim quando deveria ser o meio. As primeiras impressões indicam que as ações ali realizadas, tanto pelo professor quanto pelas crianças, acabam seguindo um curso espontâneo, circular e os conteúdos que deveriam ser ensinados às crianças são abordados genericamente e de forma secundária. Essa impressão se soma a outras. Esses pressupostos teóricos, articulados às impressões empíricas colhidas a partir de nossa atividade docente nos CERs., nos indicaram a necessidade de qualificar as brincadeiras que ocorrem nas turmas pré-escolares, exigindo preliminarmente um maior domínio daqueles pressupostos. Para a Teoria Histórico-Cultural a atividade dominante é central ao desenvolvimento, ela o guia e permite alcançar as mudanças mais importantes para o psiquismo. Na fase pré-escolar é o jogo de papéis sociais que produzirá as transformações mais importantes no psiquismo infantil. As transformações mais significativas possibilitadas pelos jogos de papéis sociais são o desenvolvimento da imaginação, do pensamento abstrato, o uso de signos como mediação na atividade e o respeito às regras. Na fase pré-escolar, o desenvolvimento do pensamento abstrato é impulsionado e gerado principalmente nas ações de brincadeira, uma vez que a criança ao brincar atua no mundo imaginário, cujo pensamento está separado dos objetos e a ação surge das ideias resultantes das experiências. Pasqualini (2015) afirma nesse sentido, que a qualidade e diversidade das experiências propostas às crianças são determinantes para ampliação e enriquecimento de suas representações de mundo. As representações dadas pelas experiências práticas são fundamentais para o desenvolvimento do pensamento empírico e para a criação de uma condição de valorização dos conceitos espontâneos, mas é preciso intervir e propor a construção de bases para o pensamento teórico. Nesse sentido, a autora defende que “a escola de educação infantil deve perseguir o objetivo de promover o desenvolvimento do pensamento 20 empírico e formar as bases para o desenvolvimento do pensamento teórico.” (PASQUALINI, 2015, p. 206). Outro aspecto importante a ser considerado na análise do fenômeno é a busca de uma dimensão de totalidade e particularidade, pois são nas determinações particulares que se encontram as explicações das totalidades concretas. Pasqualini (2015) assinala, portanto, a importância de educar o pensamento considerando sua origem e desenvolvimento, orientando- se a partir de princípios gerais que expliquem os fenômenos particulares, processo este do pensamento teórico. O jogo de papéis sociais, por exemplo, permite que a criança avance para etapas mais desenvolvidas do pensamento, afirma Elkonin (2009, p. 415): Se nas etapas iniciais se requer um objeto substitutivo e uma ação relativamente desenvolvida com ele (etapa da ação materializada, segundo Galperin), nas etapas posteriores do desenvolvimento do jogo, o objeto já se manifesta como signo da coisa mediante a palavra que o domina, e a ação com gestos abreviados e sintetizados concomitantemente com a fala. Assim, as ações lúdicas apresentam um caráter intermediário e vão adquirindo paulatinamente o de atos mentais com significações de objetos que se realizam no plano da fala em voz alta e ainda se apoiam em ações externas que, não obstante, já adquiriram o caráter de gesto-indicação sintético. . Como podemos ver, a atividade de jogo contribui para o desenvolvimento da linguagem, bem como, para a formação dos significados das palavras, visto que, as palavras também adquirem seus primeiros significados a partir de alguma origem figurativa. Assim, as representações simbólicas no jogo e o desenvolvimento da abstração são constituintes e importantes, tanto para a linguagem oral quanto para a linguagem escrita. A esse respeito, Vygotski (1995, p. 191, tradução nossa)2 aprofunda a discussão, declarando que: [...] a diferença no jogo entre crianças de três e de seis anos não consiste na percepção de símbolos, mas no modo como utilizam as diversas formas de representação. Consideramos essa dedução como a mais importante, pois demonstra que a representação simbólica no jogo e em uma etapa mais avançada, é em essência, uma forma peculiar de linguagem que leva diretamente à linguagem escrita. 2 Tradução original – (...) la diferencia em el juego entre niños de 3 y 6 años no radica em la percepción de símbolos, sino em el modo em que utilizan las diversas formas de representación. Consideramos esta deducción como la más importante, pues demuestra que la representación simbólica en el juego y em uma etapa más temprana es, em esencia, una forma peculiar del linguaje que lleva diretamente al linguaje escrito. 21 Daí a importância e potencialidade de um trabalho de qualidade que considere o jogo enquanto atividade pedagógica e propulsora de desenvolvimento. Essa representação simbólica cria condições para que a criança represente e construa as bases que orientam o desenvolvimento das complexas capacidades, como pensar, antecipar ações, organizar o pensamento por meio da fala, bem como a capacidade de registrar outros elementos da cultura por meio da escrita, ainda que inicialmente isso ocorra através dos jogos simbólicos ou através do desenho. Trata-se de contribuir para aquilo que os autores denominaram como pré-história da linguagem escrita. A esse respeito Martins (2011, p. 146) assinala, que “os processos percepção, atenção, memória, linguagem oral, pensamento e sentimentos configuram o todo a partir do qual a linguagem escrita se edifica”. Tais processos são compreendidos como uma unidade complexa e impossível de ser decomposta, constituindo-se numa relação interfuncional, dependente e representativa de uma totalidade que traduz o psiquismo humano. Ou seja, esses processos que caracterizam as funções psicológicas superiores configuram o todo, a estrutura complexa da consciência, que é formada ao longo do processo de desenvolvimento sócio histórico da humanidade. Vygotski (1995) assinala que os gestos, o jogo, o desenho e a escrita indicam períodos diferentes no desenvolvimento da linguagem escrita, o sistema de signos, presente nessas ações, é elemento essencial para a apropriação da leitura e da escrita, sendo desenvolvido principalmente por meio dos jogos e brincadeiras infantis. Isso porque o uso de signos funciona como mediador na atividade e deste modo, linguagem dos gestos, linguagem oral e escrita, linguagem externa e interna, vão assumindo várias funções ao longo do desenvolvimento social do psiquismo humano. Compreender os jogos de papéis sociais como uma forma de função simbólica, significa contribuir para a criação das bases psíquicas para a formação de elementos da leitura e escrita, que não dizem respeito diretamente à alfabetização, mas que a ela conduzem. Vigotsky (1991) considera que a aprendizagem da escrita, por exemplo, tem origem muito antes do momento em que se coloca um lápis na mão da criança. O gesto é o primeiro signo visual que posteriormente irá se unir ao signo escrito, e ele se faz presente em vários momentos na vida da criança, desde quando ela é um bebê, para apontar algo, até a idade pré- escolar, seja na garatuja, nos jogos simbólicos, no desenho e até mesmo nos próprios primórdios da escrita. O pressuposto que reiteramos é que o desenvolvimento que ocorre desde os primeiros dias de vida, funda desde essa origem, o processo de construção do símbolo, que se desenrola predominantemente por meio de práticas sociais não espontâneas. 22 A prática educativa só tem sentido se promove aprendizagem, deste modo, é importante pensar quais aprendizagens estão dispostas nas brincadeiras e que criança estamos pretendendo formar, para assim direcionar um trabalho pedagógico de qualidade e determinante no processo de humanização da criança, afinal “[...] as brincadeiras infantis destacam-se no vasto campo social que circunscreve a vida da criança e que representa a base do desenvolvimento de todos os atributos e propriedade humana” (MARTINS, 2006, p. 42). Como construção histórica, a escola então deve criar condições e possibilidades reais da criança desenvolver-se, oferecendo-lhe o conhecimento historicamente acumulado. Mukhina (1995) destaca que essa bagagem é adquirida socialmente por intermédio de um adulto, daí o papel do educador no ambiente escolar. As crianças assimilam esse mundo, a cultura humana, assimilam pouco a pouco as experiências sociais que essa cultura contém, os conhecimentos, as aptidões e as qualidades psíquicas do homem. É essa a herança social. Sem dúvida, a criança não pode se integrar na cultura humana de forma espontânea. Consegue-o com a ajuda contínua e a orientação do adulto – no processo de educação e de ensino (MUKHINA, 1995, p. 40). Uma análise historicizadora do fenômeno permite que seu objeto seja estudado em movimento no seu desenvolvimento, ou seja, na sua realidade e em suas contradições, temos assim, “o caráter material (os homens se organizam na sociedade para a produção e a reprodução da vida) e o caráter histórico (como eles vêm se organizando através de sua história)” (PIRES, 1997, p. 86). Trata-se, portanto, de uma relação que precisa ser construída, materialmente (quais habilidades a criança aprende) e historicamente (de que forma o trabalho vem sendo organizado). A mudança e o movimento da história são produtos das contradições. Refletir então sobre as contribuições da atividade de jogo, que guia o desenvolvimento na fase pré-escolar, enfatiza a condição que tem a educação de reproduzir não só os meios, mas também as relações de produção, fazendo com que através da reprodução, a criança ocupe através da brincadeira, lugares sociais diversos na sociedade. Daí também a importância de planejamento das atividades de jogos de papéis, afinal, se não há planejamento, não há enredos novos, eles fixam-se nas experiências cotidianas, alijando as crianças de experiências não cotidianas. Entretanto, à escola cabe desvendar as relações de poder e socializar um saber que instrumentaliza as crianças para novas possibilidades de vida em sociedade, daí a importância de compreendê-la em suas contradições. O planejamento das atividades, deve se conduzir tendo em vista esses aspectos, em busca de complexificar as ações, fazendo com que o sujeito reivindique um novo lugar nas relações humanas, em que ele supere 23 suas situações concretas de vida, possibilitando que sua atividade seja reorganizada avançando para um novo estágio no seu desenvolvimento psíquico (LEONTIEV, 2001). Na prática, observamos algumas situações em que há uma contradição nas ações de planejamento dos professores. No geral, as atividades didáticas são planejadas e as brincadeiras, que são por sua vez a atividade principal da criança e que possibilitará as maiores transformações no seu desenvolvimento, são livres e sem direcionamento. Isso nos permite perguntar, afora os jogos de papéis sociais que como já dissemos, não ocorre sob a devida intencionalidade dos professores, que outras atividades desenvolvidas nas turmas pré-escolares podem estar favorecendo o desenvolvimento pensamento abstrato? Como aqueles jogos ocorrem sem que se considerem as especificidades e potencialidades próprias das crianças? Precisa-se, portanto, compreender a brincadeira como possibilidade de aprendizagem, de forma a aprender na brincadeira e pela brincadeira, disponibilizando materiais diversos e mediando para que a criança estabeleça uma relação consciente com o conhecimento e com a própria atividade, pois somente assim será possível refletir sobre o lugar que ela ocupa nas relações sociais. Para obter a possibilidade de aprendizagem, deve-se então criar condições para que essa atividade possa se desenvolver com qualidade. A organização e o uso dos ambientes, bem como os elementos e mediações que o educador fará na proposição do jogo, constituem parte dessas condições fundamentais. O educador deve se atentar para desenvolvimento do papel, oferecendo inicialmente brinquedos temáticos que ajudem na adoção do papel, e gradativamente esses objetos devem ser retirados, a fim de auxiliar que a adoção de papéis passe a se estabelecer a partir do conhecimento das relações humanas do papel, de forma que a criança não fique dependente dos objetos imediatamente disponíveis. Nesse sentido, a apresentação das ações e relações dos papéis sociais é fundamental. Sugere-se que as crianças possam interpretar papéis variados, exigindo a criação de situações imaginárias distintas e, por vezes, mais complexas. O desenvolvimento infantil depende de mediações de qualidade. A intenção é de que o jogo possibilite que os processos psíquicos e da personalidade se reorganizem e tomem formas qualitativamente superiores. Temos então, que "a evolução do jogo prepara para a transição para uma fase nova, superior, do desenvolvimento psíquico, a transição para um novo período evolutivo" (ELKONIN, 2009, p. 421). Barbosa (2008) em sua pesquisa de doutorado intitulada Educar para o desenvolvimento: críticas a esse modelo em consolidação na educação infantil faz um 24 levantamento das modalidades de atividades realizadas nos CERs, evidenciando aspectos de organização e desenvolvimento das diversas atividades desenvolvidas com as crianças. Focaremos nas atividades que a autora denomina de “lúdicas”, pois “incluem todas as atividades de jogos, brinquedos e brincadeiras livres ou dirigidas desenvolvidas nos mais diversos espaços” (BARBOSA, 2008, p. 125). A pesquisa indica que 24,13% e 20,55% do tempo das crianças de quatro e cinco anos, respectivamente, é dedicado às atividades lúdicas. É importante destacar, que juntamente com a atividade lúdica, as atividades didáticas - cópias de letras e palavras, cópias de números, desenhos livres, etc. - compreendem 21,09% e 30,67% do tempo, seguidas das atividades de rotina - alimentação, higiene, acolhimento, etc. - que representam 29,56% e 25,45%. As atividades lúdicas representam aproximadamente um quarto do tempo de permanência diária das crianças na instituição. A pesquisadora assinala e demonstra que há uma valorização das atividades lúdicas, provavelmente porque como já mencionamos no início desse trabalho, tem aumentado a construção de um pensamento de que o brincar constitui-se em atividade central para o processo de desenvolvimento das crianças. Como podemos ver, o maior percentual de tempo está destinado às atividades de rotina, indicando a preocupação com as relações de cuidado da criança, e o segundo maior percentual de tempo é dedicado à realização de atividades lúdicas, revelando um consenso influenciado por teses psicológicas e psicopedagógicas de que o brincar constitui uma atividade central para o processo de desenvolvimento das crianças. Porém, Barbosa (2008) afirma que todo o tempo ocupado com as atividades lúdicas correspondiam exclusivamente a atividades livres, sempre com brinquedos industrializados. Isso nos revela que apesar das práticas pedagógicas identificarem ou revelarem a brincadeira como importante para a aprendizagem e desenvolvimento, não significa que na prática isso de fato aconteça. Apresentadas nossas aproximações com o objeto de estudo, nosso trabalho estruturou- se como descrito a seguir. No primeiro capítulo, intitulado: O desenvolvimento do psiquismo e o processo de formação da função simbólica pela criança, conduzimos as reflexões acerca do desenvolvimento do psiquismo pela mediação da cultura, o processo de formação do pensamento e da linguagem, centrais à constituição do conceito de símbolo, além da discussão sobre o papel cultural da escola na promoção de atividades que levem àquele desenvolvimento a partir da transmissão dos conhecimentos científicos, não cotidianos. No capítulo dois, A brincadeira de jogos de papéis sociais e sua relação com o desenvolvimento do psiquismo, discutimos os pressupostos da periodização do desenvolvimento psíquico da primeira infância até a infância, a fim de caracterizar mais 25 sistematicamente a atividade de jogos de papéis, e ao final, apresentamos breves contribuições para a reflexão do trabalho educativo voltado para a promoção dos jogos de papéis em contextos escolares. Sistematizamos e analisamos os dados no terceiro capítulo, A brincadeira de papel e sua estruturação em turmas pré-escolares, apresentando os procedimentos metodológicos utilizados na pesquisa, os critérios de inclusão dos sujeitos da pesquisa, a caracterização de seus perfis e dos contextos das instituições pesquisadas, as categorias elaboradas para as análises e os principais resultados. Apontamos a necessidade de aprofundamento, pelos sujeitos, dos conceitos que definem o jogo de papel como atividade principal da criança, propulsora do desenvolvimento psíquico e da humanização das crianças em idade pré-escolar. 26 2 O DESENVOLVIMENTO DO PSIQUISMO E O PROCESSO DE FORMAÇÃO DA FUNÇÃO SIMBÓLICA PELA CRIANÇA Compreender o desenvolvimento do psiquismo e como se dá o processo de simbolização da criança pré-escolar, são aspectos primordiais para compreensão do psiquismo humano como formação histórica, à luz do materialismo dialético. As reflexões realizadas neste capítulo pretendem corroborar para a elucidação do desenvolvimento do psiquismo humano, em especial os processos de constituição do pensamento e da linguagem, centrais para a capacidade de simbolização como traço distintivo da espécie humana. Nesta direção discutimos também o papel cultural da escola na execução de atividades que promovam aquele desenvolvimento e a superação do cotidiano. A educação escolar é uma instância social que possibilita o acesso aos conhecimentos científicos historicamente acumulados além de revelar aspectos das relações sociais que não são possíveis de ser captados pela percepção imediata, promovendo uma superação do cotidiano. O desenvolvimento humano é um produto da cultura e o desenvolvimento das funções psíquicas superiores corresponde à apropriação dos signos da cultura. O psiquismo humano é constituído intencionalmente, ou seja, não é desenvolvido pelos próprios seres, deve haver uma mediação de natureza social e histórica nesse processo. Nos próximos parágrafos, refletimos sobre o desenvolvimento cultural das funções de pensamento e linguagem, processos esses indispensáveis à construção do simbolismo pelas crianças. A constituição do pensamento simbólico tem origem na apropriação pelas crianças dos primeiros signos e tem, na brincadeira de jogos de papéis sociais, uma atividade propulsora deste pensamento, bem como das demais funções psicológicas superiores tais como: memória, linguagem, atenção, imaginação, etc. Consideramos que a discussão teórica aqui realizada constitui os pressupostos para as análises e reflexões decorrentes do objeto de pesquisa ao qual nos dedicamos. Lançam luzes também sobre as questões teórico-práticas que surgem em razão de nossa condição de professora pré-escolar. Sendo assim esperamos um aprofundamento na compreensão de conceitos e princípios teóricos que nos permitirão um alcance duplo. 2.1 O psiquismo e o desenvolvimento da criança pela mediação da cultura O homem é um ser social e isso o diferencia de outras espécies de animais, aquilo que é particular de sua espécie, emerge da sua vida em sociedade. O trabalho, atividade responsável 27 pela transformação da natureza, forma e transforma também os homens, funda as bases para a constituição de seu psiquismo, produzindo as grandes modificações que ocorrem ao longo do processo de desenvolvimento ontogenético. Martins (2011) ressalta que com a complexificação evolutiva, o desenvolvimento do psiquismo animal baseado no comportamento instintivo da espécie também se complexifica, inaugurando a transformação do ser orgânico em ser social, passando a constituir outra forma de existência representada pela imagem psíquica, pela ideia que dela se constrói, possibilitada pelas condições de existência material, expressas em produções culturais e pelo trabalho. Acrescenta ainda, que o psiquismo humano se denota como imagem subjetiva da realidade objetiva, que é construída historicamente e socialmente através dessa relação homem e natureza e que se identifica com a formação e apropriação dos bens culturais produzidos pela humanidade, num processo mediado por outros indivíduos, indicando necessariamente um processo educativo. A compreensão do desenvolvimento humano implica, necessariamente, a compreensão do movimento de internalização da cultura, orientado pelo desenvolvimento biológico e cultural. Implica também, a compreensão do desenvolvimento humano enquanto processo dialético entre o biológico e a cultura historicamente acumulada. Essa proposição fundamenta a transformação das funções psicológicas elementares em processos complexos, superiores, e acima de tudo, humanos. Martins (2011) dedica em sua obra um subtítulo sobre o psiquismo humano como legado social, e mais adiante o psiquismo como sistema funcional. A esse respeito fica evidente a relevância das intervenções materializadas pela vida em sociedade, uma vez que esta é uma condição que nos possibilita pensar na imagem subjetiva da realidade objetiva como resultado da internalização de signos, construída historicamente e socialmente através da relação homem e natureza. Para compreender o processo de apropriação das funções dos objetos pelas crianças é preciso compreender o conceito de signo, pois ele é capaz de reconfigurar as funções psíquicas. Ele, assim como o sistema de instrumentos materiais, foi criado ao longo da história e é responsável pela mudança da forma social, e o nível de seu desenvolvimento cultural é um produto da cultura, capaz de gerar transformações. É importante lembrar que, apenas o contato com o objeto, não permite que a criança se aproprie das qualidades humanas que o objeto carrega, os objetos vão requalificar as ações das crianças somente à medida que elas se apropriarem da humanidade contida neles, compreendendo sua função social. Aquilo que é 28 herdado culturalmente é fruto de transformações que a atividade social promove ao longo de sua história, e é nessas transformações que se complexifica a atividade humana e suas funções psíquicas. Vygotski (1995) afirma que o emprego de ferramentas possibilita a complexificação da atividade humana e o emprego de signos promove a complexificação das funções psíquicas, tornando-as superiores. A expressão funções psíquicas superiores é essencialmente dialética, trata-se da dialética entre a natureza e a cultura, em que a atividade requer o desenvolvimento orgânico e esse proporciona a complexificação da atividade, vinculando o indivíduo às suas condições objetivas de existência assegurando-lhe a internalização dos signos culturais. O autor acrescenta que essa internalização por meio dos signos assinala-os como mediadores semióticos da relação homem-cultura e como constituintes principais do desenvolvimento psíquico. Para Martins (2011, p. 41, – grifo do autor) “os signos são meios auxiliares para a solução de tarefas psicológicas e, analogamente às ferramentas ou instrumentos técnicos de trabalho, exigem adaptação do comportamento a eles, do que resulta a transformação psíquica estrutural que promovem”. Vygotski (1995, p. 93, tradução nossa)3 afirma que “a semelhança entre o signo e a ferramenta se baseia em sua função mediadora comum entre ambos”, a atividade mediadora permite que os objetos atuem mutuamente uns sobre os outros com sua natureza e com seus próprios objetivos. “Tanto um quanto o outro, podem ser considerados como conceitos subordinados de um conceito mais geral: a atividade mediadora” VYGOTSKI, p. 93, tradução nossa)4. Em relação à orientação, instrumento e signo são considerados distintos, enquanto o instrumento orienta-se para o meio externo, ou seja, para o controle da natureza, o signo caracteriza-se como atividade externa que se internaliza, dirigindo-se para o controle do sujeito. Tais ações proporcionam mudanças no desenvolvimento das funções superiores e da relação do homem com seu ambiente, o homem altera a natureza e essa alteração muda sua própria natureza. 3 Tradução original – (...) la similitude entre el signo y la herramienta se basa em su función mediadora común em ambos. 4 Tradução original – (...) tanto lo uno como lo outro pueden considerarse como conceptos subordinados de um concepto más general: la actividad mediadora. ACTIVIDAD MEDIADORA / \ Empleo de herramientas Empleo de signos Figura 1. 29 As funções psíquicas superiores foram antes, relações sociais que se interiorizaram pela mediação dos signos. A mediação dos signos possibilita transformar a realidade, uma vez que o homem amplia suas possibilidades de compreensão da mesma, ampliando também a capacidade de resolução de problemas e o autocontrole da conduta, o que é especificamente humano. Essa função mediadora da atividade com signos e instrumentos é fundamental para o conceito de desenvolvimento e para a constituição humana. O sistema de signos é assim responsável pelo desenvolvimento cultural do pensamento verbal e da linguagem, pois ele promove a complexificação das funções psíquicas. Por sua vez, o emprego de ferramentas complexifica a atividade humana. A esse respeito Vygotski (1995, p. 94, tradução nossa)5 declara que: Por meio da ferramenta o homem influi sobre o objeto de sua atividade, a ferramenta está dirigida para fora: deve provocar umas e ou outras transformações no objeto. É o meio de atividade exterior do homem, orientado a modificar a natureza. O signo não modifica nada no objeto da operação psicológica: é o meio de que o homem se vale para influenciar psicologicamente, seja na sua própria conduta, seja na dos demais; é o meio para sua atividade interior, dirigida a dominar o próprio ser humano: o signo está orientado para dentro. O uso de instrumentos técnicos (ferramentas) e a atividade com símbolos (signos) aparecem numa relação lógica, deste modo, ainda segundo o autor, temos que o início da atividade simbólica representa um papel específico de organização e adentra no processo de uso de instrumentos, indicando o princípio das principais formas novas de conduta. Nesse contexto, temos que na primeira infância e na infância, período correspondente do primeiro dia de vida de um indivíduo até aproximadamente seis anos, concentra-se um período representativo de requalificação das funções da linguagem e do pensamento. A principal delas ocorre quando os significados das palavras mudam, pois se antes a palavra era apenas extensão do objeto e o pensamento tinha uma função apenas prática, agora com o domínio do seu significado, assistimos ao que Vigotsky (2000) descreve como transformação funcional do significado da palavra, em que este por sua vez transforma-se em ato de 5 Tradução original – Por medio de la herramienta el hombre influye sobre el objeto de su actividad la herramienta está dirigida hacia fuera: debe provocar unos u otros câmbios em el objeto. Es el medio de la actividad exterior del hombre, orientado a modificar la naturaleza. El signo no modifica na em el objeto de la operación psicológica: es el medio de que se vale el hombre para influir psicologicamente, bien em su própria conducta, bien en la de los demás; es um medio para su actividad interior, dirigida a dominar el próprio ser humano: el signo está orientado hacia dentro. 30 pensamento, superando dimensões sensoriais concretas rumo às dimensões abstratas, próprias do pensamento simbólico. Os signos são ferramentas simbólicas produzidas pelo homem e é pela mediação possibilitada por outro indivíduo adulto que se apropria deles, interiorizando-os, logo o indivíduo e seus processos psíquicos se transformam. Esse desenvolvimento das funções psíquicas é decorrente da apropriação dos signos da cultura, diante disso, caminharemos refletindo sobre o desenvolvimento cultural da linguagem e do pensamento, que contribuirão para se pensar a construção da dimensão simbólica possibilitada pelo jogo de papéis sociais. Essa discussão nos pareceu pertinente, pois além de o trabalho se constituir como atividade vital do homem, a linguagem também é determinante na passagem da conduta animal à atividade consciente do homem. Segundo Luria (1987, p. 22): O nascimento da linguagem levou a que, progressivamente, fosse aparecendo todo um sistema de códigos que designava objetos ações. Logo, esse sistema de códigos começou a diferenciar as características dos objetos, das ações e suas relações. Finalmente, formaram se códigos sintáticos complexos de frases inteiras, as quais podiam formular as formas complexas de alocução verbal. O autor acrescenta que sem o trabalho e sem a linguagem não seria possível formar o pensamento abstrato “categorial”, lembrando que são atividades que tem origem nas formas sociais da existência histórica do homem, que constitui a tese fundamental da psicologia marxista. Partindo daqui, encontramos a justificativa para afirmar que o desenvolvimento é decorrente dos signos da cultural, logo torna-se relevante discutir como se dá o desenvolvimento das funções psicológicas do homem. 2.2 O desenvolvimento cultural da linguagem e do pensamento O pensamento e a linguagem possuem origens diferentes, trajetórias de desenvolvimento distintas e independentes, mas se entrecruzam ao longo do desenvolvimento e produzem mudanças qualitativas no comportamento humano. A linguagem merece destaque por se apresentar como uma das funções mais importantes do desenvolvimento cultural, pois ela sintetiza a experiência social da humanidade e revela saltos qualitativos e decisivos para o indivíduo (VYGOTSKI, 1995). Nos primeiros anos de vida as impressões são dadas pelas percepções e sensações, pois há uma indefinição do significado da palavra, deste modo, o signo fica limitado à percepção 31 sensível. A criança aqui tem uma imagem subjetiva de mundo, a partir de um “agrupamento” mental, que resulta na formação do pensamento sincrético, denominado como pré-verbal. Porém, não basta que a comunicação se dê apenas pela expressão dos desejos, desconfortos e emoções, conforme é traduzida pelos bebês, por uma necessidade de compreensão universal fez-se necessária a utilização dos signos. Os signos permitem criar um sistema de comunicação que pode ser compartilhado pela coletividade humana. Conforme a criança vai conquistando o domínio do significado das palavras, por exemplo, ela vai avançando para uma fala compreensível, avançando, concomitantemente em sua forma de pensamento. O pensamento por sua vez, é produto da atividade humana que inclui os instrumentos psíquicos, os signos e os conceitos, e evolui histórica e culturalmente. Quando o percurso do pensamento se encontra com o da linguagem, as funções psicológicas tornam a fala intelectual e o pensamento torna-se verbal. A função do símbolo, como toda função superior ou cultural, emerge num plano natural e tem uma passagem pelo plano cultural. Nessa primeira relação, ela se dá de forma imediata e direta com o meio e na segunda ela é indireta e mediada, como ocorre com o instrumento na relação homem e natureza. Lembrando que o símbolo, por ser criação do homem, não faz parte da ordem da natureza e sim da cultura. Por essa e outras razões é que o desenvolvimento do pensamento e da linguagem são culturais, pois é na interação com os indivíduos no meio social/cultural que se alcança um salto qualitativo para o pensamento verbal, por exemplo. Isso supera o pensamento sem linguagem e a linguagem sem pensamento (inteligência prática), porém é o pensamento verbal que torna capaz a compreensão do homem enquanto ser sócio-histórico. Vigotsky (2000) destaca que diferente dos animais, quando pensamento e linguagem entrecruzam-se, fundamentam a humanização do psiquismo, revelando inclusive avanços para a compreensão de tais expressões. No interior dessa questão, surgiu a análise por unidades, que desdobrou na descoberta do que o autor chamou de “unidade mínima de análise”. A unidade do pensamento e da linguagem é o significado da palavra, que se constitui como “forma socialmente elaborada de representação” (MARTINS, 2011, p. 133). Inicialmente, palavra e objeto estabelecem uma conexão externa, a palavra aqui é associada apenas como imagem sonora do objeto ou da ação, mas depois a palavra vai deixando de ser mera extensão do objeto, para então promover uma conexão interna entre signo e significado, pois a partir do significado cria-se a possibilidade de converter a imagem do objeto em signo. 32 Martins (2011, p. 136) ressalta que quando a criança descobre a função social dos signos, “a palavra passa a ocupar um outro lugar na vida da pessoa, imposto tanto pela necessidade de comunicação em si, quanto pela necessidade de compreensão sobre o mundo”. Os signos e os significados associados nas ações realizadas pelo indivíduo e em sua existência concreta compõem as rearticulações interfuncionais (MARTINS, 2011). Ao pensar a esfera das significações e funções que os signos assumem, temos como análise a linguagem, para cujo domínio gradativo, é preciso uma intensa reorganização nas funções psíquicas superiores, não de forma isolada, mas em suas relações interfuncionais. A palavra indica a pré-história tanto da linguagem quanto do pensamento, além de se revelar promotora das relações internas entre eles. Na ontogenia e filogenia, temos que os processos de linguagem e pensamento possuem raízes e têm trajetórias de desenvolvimento diferentes, representando uma fase pré-intelectual no desenvolvimento da linguagem e uma fase pré-linguística no desenvolvimento do pensamento. Ao pensar nesses processos e na palavra como sua unidade temos, portanto, que ela se revela ao mesmo tempo verbal e intelectual, porém, mais importante que isso são os significados das palavras, que à medida que evoluem, complexificam o desenvolvimento das funções de pensamento e linguagem. O significado da palavra é inconstante. Modifica-se no processo do desenvolvimento da criança. Modifica-se também sob diferentes modos de funcionamento do pensamento. É antes uma formação dinâmica que estática. O estabelecimento da mutabilidade dos significados só se tornou possível quando foi definida corretamente a natureza do próprio significado. Esta se revela antes de tudo uma generalização, que está contida como momento central, fundamental, em qualquer palavra, tendo em vista que qualquer palavra já é uma generalização. (VIGOTSKY, 2000, p. 408). Cabe dizer, que essa generalização, também definida como conceito, é fenômeno do pensar, mas vale lembrar que há uma estreita relação entre pensamento e linguagem, afinal, como declarou Vigotsky (2000, p. 398) “uma palavra sem significado é um som vazio”. O significado é o elemento necessário e constitutivo da palavra e o significado da palavra é mais que uma generalização, é um conceito, logo generalização e significado da palavra são sinônimos e constituem-se em atos de pensamento. O significado da palavra revela-se, portanto, fundante das relações internas entre os processos de linguagem e pensamento. A transição do pensamento concreto a um pensamento abstrato permite uma importante evolução ao desenvolvimento, que é caracterizada por essa capacidade de generalização do pensamento. 33 Apenas a semântica não dá conta da questão mais ampla da evolução dos significados das palavras, isso significa reconhecer a evolução histórica da linguagem, que acaba por transformar as estruturas dos significados e a própria natureza psicológica dadas pelo desenvolvimento cultural do pensamento e da linguagem. Isso porque as generalizações mudam ao longo do desenvolvimento e a partir do momento que as crianças recebem o sistema de significados que já estão prontos e foram construídos pela humanidade coletivamente, elas passam então a aplicar no seu mundo. Tais transformações de significados não ocorrem apenas a partir das experiências vividas, mas também pelas mediações dos conhecimentos consolidados pela cultura e transmitidos principalmente pela educação escolar. Vygotski (1996) vai falar que para a criança entre 2 e 3 anos a linguagem oral da criança começa a se expressar por meio de uma representação do significado do objeto, que ao falar cria-se uma imagem mental do mesmo, isso por que, muda a estrutura da percepção, em que ao atribuir o nome a um objeto a criança passa a compreender esse objeto singular junto aos demais que recebem o mesmo nome, deste modo, a linguagem possibilita a generalização. Essa conversão da imagem é muito importante para a construção do signo, que se constitui como processo imprescindível à apreensão de ler e escrever, pois além de atuar nas funções psicológicas do pensamento abstrato, permite estabelecer uma relação com a função social da escrita. A linguagem oral é um sistema de signos, posterior ao desenvolvimento de outras formas de função simbólica como o uso dos gestos, a fala, o desenho, as brincadeiras de jogos de papéis sociais e até a escrita, que mesmo apresentando elementos constitutivos diferentes, se demonstram semelhantes nesse aspecto. Nesse sentido, reiteramos que muito embora a Educação Infantil não tenha como função assegurar o domínio da escrita e da leitura, ela poderá oferecer-lhe uma importante contribuição na medida em que, por meio de atividades que lhes são próprias, como acuidade dos gestos, aperfeiçoamento da linguagem oral, domínio psicomotor das ações com objetos, promoção de circunstâncias que favoreçam o jogo de papéis sociais, etc., ela aciona funções psicológicas que atuarão quando dominar a leitura e escrita tornar-se uma exigência ou precedência para a continuidade do processo de humanização das crianças. Ler e escrever promovem o desenvolvimento das funções simbólicas e compreendem o processo de construção dos signos na criança, que como pudemos demonstrar, inicia-se muito antes do seu ingresso no ensino fundamental, evidência que nos levou a refletir sobre o quanto os professores pré-escolares compreendem a atividade de jogos de papéis como integrante da capacidade simbólica do homem. A relação, por exemplo, que aproxima o gesto da linguagem escrita, é possibilitada 34 pelo desenho infantil e pelo jogo de papéis quando os objetos são substituídos por outros e os mesmos se convertem em signos, residindo neste ponto, sua função simbólica. Vygotski (1995) analisou como os gestos são transportados para o papel nas primeiras expressões gráficas da criança e concluiu que as garatujas, por exemplo, representam muito mais que uma simples descarga motora, que os jogos simbólicos se caracterizam como um dos mais importantes exercícios objetivamente realizados pela criança pequena por meio de signos e que o desenho sob a forma de elementos gráficos representa objetos e fenômenos da realidade. Sobre os jogos de papéis sociais, Martins (2011, p. 147) desataca que, “o objeto cumpre, no jogo simbólico, uma função substitutiva, e os gestos a ele relacionados conferem o significado situacional que assumem”. A criança extrai do objeto traços que assumem uma função simbólica, reconfigurando totalmente seu significado. Deste modo, é possível compreender a aproximação da atividade de jogo com o desenvolvimento da linguagem, bem como com a formação dos significados das palavras, visto que, as palavras também adquirem seus primeiros significados a partir de alguma origem figurativa, assim temos que as representações simbólicas no jogo e o desenvolvimento da abstração são constituintes e relevantes, tanto à linguagem oral quanto à escrita. 2.3 O papel cultural da escola de Educação Infantil no desenvolvimento das funções psíquicas Saviani (2005) indica que a tarefa específica da educação escolar é a transmissão dos conhecimentos sistematizados e historicamente acumulados. Essa transmissão de conhecimentos científicos, conforme propõe a Pedagogia Histórico-Crítica, acaba por aproximar aprendizagem e ensino, de modo que o desenvolvimento do psiquismo se relaciona com a formação dos comportamentos complexos culturalmente formados, ou seja, com a formação das funções psíquicas superiores. Além disso, o ensino escolar como forma superior de transmissão, deve promover uma educação responsável pela formação da consciência dos indivíduos, imprescindível no processo de emancipação humana, na constituição do ser social enquanto ser universalmente livre e na transformação da sociedade. Ou seja, deve promover a formação humana. Saviani (2005, p.13) define o ato educativo como: o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens. Assim, o objeto da educação diz respeito, de um lado, à identificação 35 dos elementos culturais que precisam ser assimilados pelos indivíduos da espécie humana para que eles se tornem humanos e, de outro lado e concomitantemente, à descoberta das formas mais adequadas para atingir esse objetivo. É importante ressaltar que a escola está inserida num sistema capitalista, então muitas vezes ela aparece como estrutura reguladora e legitimadora do sistema. Porém, contrário a isso, também aparece sua função de universalizar o conhecimento, devendo então refletir sobre sua forma histórica de produzir a humanidade. Por isso, a análise do fenômeno aqui pretendida, deverá ser sempre estudada em movimento, no seu desenvolvimento, ou seja, na sua realidade e contradições. Afinal, toda prática comporta contradições, e nesse caso, elas revelam o modo como as práticas pedagógicas estão estruturadas no interior das escolas. As práticas pedagógicas devem ir ao encontro com os objetivos da escola que deve ser, em todos os níveis de escolarização, a transmissão dos conhecimentos científicos, não cotidianos, conforme defendido pela Pedagogia Histórico-Crítica. A escola deve transmitir um saber sistematizado livre do que a cotidianidade lhe impõe, pois somente assim o indivíduo poderá desenvolver uma consciência filosófica sobre a sociedade e suas relações. A esse respeito, Duarte afirma que “cabe à educação escolar, no processo de formação do indivíduo, o papel de atividade mediadora entre a esfera da vida cotidiana e as esferas não cotidianas de objetivação do gênero humano” (DUARTE, 1993b, p. 69). Nesse sentido, quando falamos de socializar um saber sistematizado, não estamos falando de qualquer saber, estamos falando do conhecimento elaborado, da cultura clássica, trata-se de efetivamente socializar o conhecimento científico, artístico e filosófico nas suas formas mais desenvolvidas (SAVIANI, 2005). A esse respeito ainda, o autor reitera que também é função da escola transformar esse saber em saber escolar, ou seja, de modo a ser transmitido e assimilado no espaço escolar. O processo de aquisição desses saberes culturalmente formados é mediatizado pelas relações com outros indivíduos através do processo educativo e pela apropriação da experiência social. Para a reflexão a respeito da mediação a ser produzida pela escola recorremos às contribuições de Duarte em sua obra A Individualidade Para-Si: Contribuição a uma Teoria Histórico-Social da Formação do Indivíduo (1993a), bem como em seu artigo A educação escolar e a teoria das esferas de objetivação do gênero humano (1993b), e à obra de Heller (1977) Sociología de la vida cotidiana, com o objetivo de abranger de forma mais clara a atividade de mediadora da escola entre a esfera da vida cotidiana e as esferas não cotidianas de objetivação do gênero humano. 36 Heller (1977, p. 19, tradução nossa)6 define como vida cotidiana "o conjunto de atividades que caracterizam a reprodução dos homens particulares, os quais, a sua vez, acreditam na possibilidade da reprodução social”. A autora afirma que todo homem ao nascer se depara com um mundo independente do seu, condições sociais que já estão dadas, sistemas concretos de expectativas e instituições concretas, o indivíduo então se apropria do sistema de uso das coisas da vida em geral. A vida cotidiana proporciona uma imagem da reprodução da sociedade e outra imagem da socialização da natureza, em que compreende o processo de humanização (HELLER, 1977). Pensamos que Duarte (1993b) extrai desses pressupostos a defesa de que a escola assuma a atividade de mediação entre as duas esferas da vida, cotidiana e não cotidiana. A esse respeito, vale acrescentar: As atividades diretamente voltadas para a reprodução do indivíduo, através da qual, indiretamente, contribuem para a reprodução da sociedade, são consideradas atividades cotidianas. Aquelas atividades que estão diretamente voltadas para a reprodução da sociedade, ainda que indiretamente contribuam para a reprodução do indivíduo, são consideradas não-cotidianas (DUARTE, 1993b, p. 71). As experiências de vida acumuladas ao longo da vida cotidiana, conforme explicitado, têm sim seu valor, porém o perde, quando tais particularidades saem de seu ambiente natural. Logo, quanto mais distante ou pouco frequente for a relação entre o particular e seu ambiente, menor será sua apropriação do mundo e sua capacidade de lutar contra sua dureza (HELLER, 1977). Nas palavras da própria autora: Quanto mais dinâmica é a sociedade, quanto mais casual for a relação do particular com seu ambiente em que se encontra ao nascer (especialmente depois da chegada do capitalismo) tanto mas está obrigado o homem a se pôr continuamente a prova de sua capacidade vital, e isso para toda vida, tanto menos pode dar por acabada a apropriação do mundo com a maior idade (HELLER, 1977, p. 22, tradução nossa)7. Daí a importância, de promover o conhecimento de outros ambientes e conteúdos que não estão explicitados na vida cotidiana, em que reside aí também, o papel cultural da escola. 6 Tradução original – La vida cotidiana es el conjunto de atividades que caracterizan la reproducción de los hombres particulares, los cuales, a su vez, crean la posibilidad de la reproducción social. 7 Tradução original – Cuanto más dinâmica es la sociedade, cuanto más casual es la relación del particular com el ambiente em que se encuentra al nascer (especialmente después de la llegada del capitalismo) tanto más está obligado el hombre a poner continuamente a prueba su capacidade vital, y esto para toda la vida, tanto menos puede darse por acabada la apropiación del mundo com la mayor edad. 37 O que se refere ao particular do homem se objetiva na vida cotidiana, formando seu mundo num ambiente imediato, desta forma, permanece no plano do cotidiano. Cabe a nós pensar então, como alcançar objetivações mais elevadas. Mas antes disso, façamos um esclarecimento sobre o surgimento das esferas de objetivação do gênero humano. No geral, podemos dizer que as objetivações encarnam diferentes tipos de genericidade, são sistemas de referências externos em que o homem singular se apropria delas para que tais objetivações possam moldá-lo. Heller (1977) afirma que nem todas as objetivações podem ser moldadas no mesmo nível, residindo neste ponto, a diferença entre as objetivações genéricas em-si e para-si. Tais categorias tomam por referência a relação entre homem e natureza, por isso são relativas e tendenciais. Duarte (1993a, p. 135) ressalta “o ser-em-si será a natureza e o ser-para-si a sociedade”, o ser-em-si objetiva-se numa relação inconsciente com a prática social humana, formando seu mundo e a si mesmo ao longo de sua vida, no que se refere ao particular, ao seu ambiente imediato e ao cotidiano, e o ser-para-si objetiva-se de forma consciente enquanto humanidade, enquanto pertencente ao gênero humano. Toda sociedade possui uma esfera da genericidade em-si. Por sua vez, a esfera para-si, só pode ser constituída a partir de certo desenvolvimento histórico-social, sendo a partir da apropriação de tais objetivações que “se inicia o processo de formação de todo ser humano” (DUARTE, 1993a, p. 137). Voltamos, portanto, à nossa proposição inicial desse subtítulo, de pensar o papel cultural da escola. As objetivações genéricas em-si constituem-se as bases da vida social, que sintetizam a atividade social humana, porém somente as objetivações para-si permitem uma relação dos homens com o desenvolvimento do gênero humano. Nesse sentido, Duarte (1993b) mais uma vez defende uma prática pedagógica que consiga mediar a formação do indivíduo nas esferas cotidianas e principalmente não cotidianas da vida social, esta última traduz as objetivações genéricas para-si, e revela objetivamente tal desenvolvimento. A esse respeito diz Heller (1977, p. 233, tradução nossa)8: O para si constitui a encarnação da liberdade humana. As objetivações genéricas para-si são expressão do grau de liberdade que alcançou o gênero humano em uma época determinada. São realidade cujas quais está objetivado o domínio do gênero humano sobre a natureza e sobre si mesmo (sobre sua própria natureza). 8 Tradução original - El para si constituye la encarnación de la libertad humana. Las objetivaciones genéricas para-si son expresión del grado de liberdad que há alcanzado el género humano en una época determinada. Son realidade em las cuales está objetivado el domínio del género humano sobre la naturaleza y sobre si mismo (sobre su própria naturaleza). 38 Nesse sentido, conceber uma educação que esteja preocupada com essa mediação, significa contribuir para as possibilidades do vir-a-ser da formação do indivíduo, da concreticidade do nosso educando, “o que equivale a incluir na concreticidade do indivíduo as possibilidades socialmente existentes de desenvolvimento da individualidade humana” (DUARTE, 1993b, p. 78). Cabe à escola o papel significativo de promover aos indivíduos a apropriação das objetivações genéricas para-si, e apesar de por si só não conseguir superar os diversos graus de alienação, o trabalho educativo deve comprometer-se com a transformação da sociedade. Transpondo essas reflexões para o nosso objeto de estudo, a criança pré-escolar e o jogo de papéis sociais como atividade essencial que guia seu desenvolvimento, pensamos algumas proposições sobre as práticas pedagógicas e os conteúdos dos jogos, razão pela qual, consideramos relevante nessa pesquisa, identificar a compreensão por parte dos professores pré-escolares do jogo como integrante do processo que constitui o pensamento simbólico. Acreditamos primeiramente que seja necessário conduzir uma prática pedagógica que possibilite à criança estabelecer uma relação consciente com o conhecimento e com a própria atividade, pois somente assim, será possível refletir sobre o lugar que ela ocupa nas relações sociais. O conteúdo do jogo de papéis sociais deve abranger uma dimensão ético-política e oferecer modelos de relações sociais humanizadoras, visto que o jogo contribui para a formação da consciência e da personalidade da criança. Desta forma, o educador deverá incorporar elementos relevantes aos jogos, que demonstrem e enriqueçam as condutas das crianças, pois somente assim será possível intervir no processo de formação da concepção de mundo da criança, suscitando sua transformação. Esses elementos relevantes, que devem ser compreendidos como conceitos novos, hábitos, ações que permitam a apropriação de diversos objetos e ainda a inclusão de regras e condutas para as ações e práticas reproduzidas por meio dos jogos de papéis, sintetizam as possibilidades produzidas socialmente que permitirão a promoção da individualidade para-si, tal como buscamos demonstrar a partir de Heller (1977) e Duarte (1993a, 1993b). Compreendendo, portanto, a brincadeira enquanto instrumento relevante para a constituição da conduta e da consciência nas crianças, bem como da sua humanização, abordaremos no próximo capítulo, o desenvolvimento psíquico que compreende a infância até o período pré-escolar, e mais especificamente, o desenvolvimento da atividade de jogos de 39 papéis sociais, em busca de evidenciar ao final, ações do professor ao propor esse tipo de atividade. 40 3 A BRINCADEIRA DE JOGOS DE PAPÉIS SOCIAIS E SUA RELAÇÃO COM O DESENVOLVIMENTO DO PSIQUISMO A brincadeira de faz de conta, atividade principal da criança pré-escolar9 deve ser trabalhada no interior da escola considerando seu papel enquanto experiência social e cultural relevante para a constituição da consciência nas crianças e de sua humanização. Vimos que o desenvolvimento cultural das funções de pensamento e linguagem permeia a atividade principal aparecendo inclusive, desde a primeira palavra de um bebê, onde se inicia o processo de simbolização. Portanto, refletir sobre tais aspectos, nos permitirá compreender o desenvolvimento infantil e suas funções psíquicas, para assim qualificar as ações pedagógicas no interior da escola, e no caso deste trabalho, principalmente as ações de brincadeira, mais especificamente, o jogo simbólico, nosso objeto de estudo nesse capítulo. Inicialmente abordaremos o desenvolvimento infantil, começando da primeira infância para então chegar à atividade pré-escolar, falaremos, em seguida, da concepção do jogo de papéis para a Teoria Histórico-Cultural, assunto esse, imprescindível para compreender o desenvolvimento do brincar em si, e por fim, trataremos da discussão sobre as contribuições da importância do jogo para o desenvolvimento psíquico da criança, que buscará fornecer subsídios para ação pedagógica da atividade de jogo. 3.1 Da primeira infância ao período pré-escolar O desenvolvimento do psiquismo se dá através de uma relação dialética, ou seja, há uma dinâmica de transição de uma idade para outra, por isso torna-se importante entender como se dá a transição da primeira infância à idade pré-escolar, para assim possibilitar efetivas ações de intervenção pedagógica. Esse exercício também se faz necessário, pois para Vygotski (1996) não se trata apenas de um processo linear evolutivo, seu caminho é marcado por mudanças, revoluções e rupturas, por isso é evolutivo e revolucionário. Isso também nos permitirá compreender, como as apropriações realizadas pelas crianças ao longo do seu desenvolvimento, influenciam no processo de formação das suas novas conquistas e nas mudanças em seu psiquismo, revelando a gênese de cada atividade. Essa proposição inicial se faz importante para compreender a lógica do desenvolvimento segundo a teoria da Pedagogia Histórico-Cultural, abordada nesse trabalho, em que já foi 9 Ao referir-se à criança em idade pré-escolar, consideramos, de acordo com Vygotsky, a criança que se encontra no período que compreende as idades entre 3 e 6 anos. 41 explicitado que não se trata de um processo apenas evolutivo, mas que passa por mudanças e transformações, crises e revoluções, cabendo dizer também que ele é dependente da atividade da criança, de suas reais condições de vida. A atividade como um todo se apresenta numa relação de hierarquia, e se relacionam uma com as outras, existindo as atividades principais que são aquelas que guiam o desenvolvimento, possibilitando as transformações mais significativas ao psiquismo e as atividades acessórias que representam um papel subsidiário ao desenvolvimento da psique. (LEONTIEV, 2001). Em outras obras, autores fazem uso da terminologia atividade dominante, ou atividade-guia como sinônimo de atividade principal. O autor reitera que os estágios de desenvolvimento são conduzidos pelas condições históricas concretas de vida da criança, afinal os comportamentos são sociais e são aprendidos desde os primeiros dias de vida, logo, seu desenvolvimento inicia-se a partir de seu nascimento. A esse respeito, evidencia-se a importância da mediação do adulto desde as primeiras impressões que a criança passa a estabelecer com o mundo, pois tais ações criam a base de seu desenvolvimento psíquico. Mukhina (1995, p. 84) ressalta que “já no primeiro ano se manifesta claramente a lei geral do desenvolvimento psíquico, segundo a qual processos e qualidades psíquicos se formam na criança sob a influência decisiva das condições de vida, da educação e do ensino”. Leontiev (2001) afirma que a transição da criança de um estágio de desenvolvimento a outro, compreende a mudança da atividade principal da criança, que é suscitada por uma nova necessidade, e por isso se diz que ela é quem mobiliza o novo no psiquismo humano. Mas para compreender melhor essa mudança o autor diz ser necessário compreender os conceitos de atividade e ação. Ele define atividade como sendo o modo como uma pessoa relaciona-se com o mundo para satisfazer uma necessidade, e a ação é aquilo que o sujeito faz respondendo a uma finalidade consciente. Porém, mais importante que isso, é a relação que elas mantêm entre si, pois é ela quem caracteriza tal transição: Há uma relação particular entre atividade e ação. O motivo da atividade, sendo substituída, pode passar para o objeto (o alvo) da ação, como resultado de que a ação é transformada em uma atividade. Este e um ponto excepcionalmente importante. Esta é maneira pela qual surgem todas as atividades e novas relações com a realidade. Esse processo é precisamente a base psicológica concreta sobre a qual ocorrem mudanças na atividade principal e, consequentemente, as transições de um estágio do desenvolvimento para o outro (LEONTIEV, 2001, p. 69). 42 O autor destaca que o motivo corresponde a uma necessidade que mobiliza o sujeito em determinada atividade. Há motivos, considerados “compreensíveis” que fazem o sujeito realize as ações, estabelecendo, entretanto apenas uma relação externa, por exemplo, a criança faz a tarefa para poder brincar, já os “eficazes” engajam e dão sentido às ações, estabelecendo relações com o sujeito em si, e assim as ações ganham sentido, sendo que neste caso a criança passa a realizar a tarefa para aprender e se apropriar do conhecimento. Leontiev (2001, p. 70) acrescenta que “o motivo realmente eficaz que induz a criança, a fazer sua lição de casa é um motivo que, anteriormente, era apenas compreensível para ela”. A transformação do motivo é resultado da ação que passa a ser mais significativa e passa então a ocorrer uma nova objetivação de suas necessidades, à medida que os motivos compreensíveis vão se internalizando por sua própria atividade e vivências, eles vão se tornando cada vez mais eficazes, fazendo emergir novos motivos. Porém, afirma o autor, são as novas aquisições da criança em seus novos processos psicológicos que começam a desempenhar o papel da nova atividade principal, e consequentemente, ela passa a mobilizar o psiquismo. Por isso, na medida em que a criança brinca e assimila a atividade humana, ela poderá encontrar significações de suas ações nas relações sociais. Outro exemplo disso é quando o professor pergunta algo e a criança pré-escolar de forma espontânea e imediata, responde. Já a criança escolar responde com a intenção de aprender, mesmo consciente de que o professor já sabe a resposta. Com o propósito de significar as ações das cri