CASA, Vol.8 n.1, agosto de 2010 http://seer.fclar.unesp.br/casa 1 Cadernos de Semiótica Aplicada Vol. 8.n.1, agosto de 2010 A “PALAVRA” POÉTICA DE ARNALDO ANTUNES ARNALDO ANTUNES’ POETICS “PALAVRA” Luciane de Paula UNESP - CAs 1 RESUMO: Este artigo reflete sobre a poética de Arnaldo Antunes (AA). Para isso, pauta-se, tanto nas contribuições de Fontanille e Zilberberg, no que concerne à tensividade, quanto nas ideias de Tatit, no que se refere ao estudo da semiótica da canção. O objetivo é pensar em como se estrutura a dança entre enunciação e enunciado na arquitetônica poética de AA, exemplificada aqui pela análise do poema “Palavra”. A hipótese é a de que a tensão entre os dois núcleos centrais do poema analisado, metalinguagem e erotismo, seja o traço composicional essencial da estilística poética de AA. Os resultados levam à reflexão de que a tensão musical é o jogo que garante a movimentação entre a densidade da palavra e a fluidez erótica do ato de produção (metalinguístico) autoral. PALAVRAS-CHAVE: Poética; Semiótica; Arnaldo Antunes; Metalinguagem; Erotismo. ABSTRACT: This article reflects on Arnaldo Antunes‟ (AA) poetics. For this purpose, both the contributions of Fontanille and Zilberberg regarding tensivity, as well as some ideas of Tatit regarding song semiotics. The aim is to think about how the dance between enunciation and enunciate is structured in AA within poetical architecture as exemplified here based on the analysis of the poem “Palavra”. The hypothesis is that the tension between the two central nuclei of the poem, metalanguage and erotism, are the essential compositional marc of AA poetical stylistics. The results lead to the reflection that the musical tension is the game that guarantees the movement between the density of the word and the erotic fluidity of the authorial (metalinguistic) act of production. KEYWORDS: Poetics; Semiotics; Arnaldo Antunes; Metalanguage; Erotism. Introdução O poema de Arnaldo Antunes publicado sob os títulos “Palavra” (2003) e “O Sumo” (2006) (com uma diferença discreta e fundamental entre as duas versões citadas 2 ) é apresentado ao leitor da maneira como o citamos abaixo, formatado como um parágrafo 1 UNESP - Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Campus de Assis - Departamento de Linguística. 2 A versão “Palavra” (2003) apresenta o terceiro verso como “o ar onde soa o mar onde ecoa a mar onde” enquanto a versão “O Sumo” (2006) omite o artigo feminino que precede o lexema “mar”, logo, o verso fica: “o ar onde soa o mar onde ecoa mar onde”. A presença e a ausência do artigo definido feminino na composição desse verso levam a uma diferença semântica imensa, a qual não nos debruçaremos neste artigo, mas que é importante ser mencionada. CASA, Vol.8 n.1, agosto de 2010 http://seer.fclar.unesp.br/casa 2 “justificado”, um bloco retangular que guarda palavras, ou, ainda, bloco retangular que serve de cenário à performática palavra poética, um retângulo, forma geométrica que parece guardar e revelar o poema como uma caixa de surpresas. Nós analisaremos a primeira versão do poema (“Palavra”, 2003): o sumo do suco do extrato grosso espesso concentrado da palavra leve aérea perfumando o ar onde soa o mar onde ecoa a mar onde escoa a palavra mar onde escorra a palavra porra até o óvulo ouvido da próxima palavra pessoa O “sujeito do fazer” desse poema é a palavra (“leve aérea perfumando/ onde escorra a palavra” etc.) que lastreia duplamente dois núcleos de sentido: um núcleo é a metalinguagem do poema – palavra, criação; e o outro é o erotismo que ecoa por onde escorre a palavra poética no texto. Assim, nesse poema, podemos apreender a palavra como gênese (“próxima palavra pessoa”) e como instrumento que nomeia a união entre “óvulo” e “porra”: “pessoa”. O vocábulo palavra percorre o poema, repetindo-se aqui e ali para certificar que a criação, a vida, surge pela linguagem, ao mesmo tempo espessa e palpável, densa. Esse adensamento sugere a iconicidade e a plasticidade como elementos essenciais do poema. A densidade, espessura da palavra poética que, mais do que recobrir temas e ícones, “concentrada e aérea”, vai da figuração à plasticidade (TEIXEIRA, 2004, p.242), que parece deslizar pelos significantes em torno da sibilante /s/, marcadamente expressiva no primeiro e no último verso do poema. Como empreender, em termos teórico-analíticos uma leitura que dê conta da tensão entre o núcleo metalinguístico e o erótico, centrais no poema? Entendemos que a metalinguagem e a erotização são dois aspectos igualmente importantes para a compreensão do poema, um sobrepondo-se ao outro, alternadamente, sem que se possa privilegiar um ou outro, já que, se isso ocorrer, haverá, sem dúvida, uma perda da tensão que sustenta a própria organização de sentido do texto: criação literária + pulsão erótica. Centraremos nossa leitura na tensividade e na entoação do texto de AA, uma vez que o corpo do poema, a palavra, é gerado como um ato de amor ácido e fluido, intenso e extenso, marcado, entre outros aspectos, pela repetição de alguns fonemas. O senso comum entende entoar como cantar ou, como define o dicionário, “dar o tom para se cantar. Cantar afinado. Pôr no tom. Fazer soar, fazer ouvir cantando. Dar direção a.” Na música, não é muito diferente. A entoação se refere à harmonia da canção. Essa harmonia ocorre pelo ajustamento entre música e canto, ou melhor, entre música e voz, uma vez que esta é que engata a palavra falada no canto, transformando-a em palavra cantada, por meio de sua modulação. Podemos considerar o poema de Antunes, por nós aqui analisado, como “palavra cantada”, dado o ritmo melódico que revela ao leitor-ouvinte (destinatário- locutário) a presença do poeta (destinador-locutor), ou seja, pelo direcionamento tonal do poema aos sujeitos a ele relacionados o qual funde esses sujeitos tensivamente. A percepção da entoação e a presença do destinador-locutor e sua síncrese com o destinatário-locutário no texto poético de Arnaldo Antunes é fundamental, uma vez que, de um modo geral, sua poética encontra-se calcada na musicalização de seus poemas, amiúde transformados em canções ou produzidos para serem lidos em voz alta, por isso a ideia de CASA, Vol.8 n.1, agosto de 2010 http://seer.fclar.unesp.br/casa 3 “palavra cantada”. Tanto que é comum, por exemplo, a instalação dos textos de Antunes em exposições onde só se tem acesso à voz do locutor do poema, entre outras peculiaridades. Apesar de ser um poeta já consagrado pela crítica, julgamos importante apresentar uma breve contextualização das matrizes poéticas que orientam as criações de Arnaldo Antunes. Depois dessa breve exposição sobre os determinantes de sua poesia, passaremos à análise propriamente dita, balizada sob os aspectos da tensividade (Fontanille & Zilberberg) e da entoação (Tatit) do texto. Afinal, em Antunes, a palavra é corpo, a palavra- corpo; o corpo é palavra, o corpo-palavra, que fala, canta, geme, espreme e goza a alma do corpo, alma da palavra: som, silêncio e sentido. Em outras palavras, a alma/sentido da palavra está em sua “carnação”: “músculo, carne e osso, pele e cor”, como sugere a canção “Carnavália” (In: Tribalistas, 2002), composta pelo próprio Arnaldo Antunes e dois de seus parceiros, Carlinhos Brown e Marisa Monte. Sincretismo concreto Arnaldo Antunes possui, como uma de suas influências mais expressivas, o concretismo, movimento de vanguarda liderado pelos poetas Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Decio Pignatari, a partir de meados da década de 50 do século passado, cuja característica essencial talvez seja a atenção dada à materialidade do signo, concebida em termos de proximidade entre som e sentido. Tal um diamante polifacetado, a poesia concreta, como a de AA, preenche um espaço sui generis no contexto cultural contemporâneo, pois representa um amplo espectro de caminhos e de criações e permite maior interação entre os meios de comunicação, cujos suportes musical e visual se veem impregnados de significância/signância poética. Na trilha de Mallarmé, os concretos ampliaram as “subdivisões prismáticas da ideia” ao transformarem o espaço gráfico em agente estrutural; além disso, incluíram também, em seus estudos e, consequentemente, em sua produção poética, o ideograma. A escrita ideogramática é um apelo à comunicação não verbal; desse modo, ao fazer do ideograma uma referência, o poema concreto comunica sua própria estrutura verbivocovisual, ou seja, comunica, principalmente, formas e não mensagens. Em outras palavras, nessa nova estética, prevalece a fusão de contrários, o minimalismo simbólico com o máximo de efeitos, a síntese de múltiplas possibilidades semântico-sintáticas, além das musicais, como ocorre com a poética de Arnaldo Antunes, conforme o poema analisado aqui. Tudo isso aparece de forma densa, permutável, cinética, aberta, autorreferencial – inclusive na poesia de Arnaldo Antunes. Ao lado do manifesto radical de inovação da linguagem, coloca-se e assume igual importância a leitura da tradição como busca da invenção e condição da reinvenção, mecanismos que seriam usados para fazer do poema um objeto útil social e culturalmente. Nesse sentido, a poesia concreta trilhava as sendas da mudança e da discussão da utilidade do objeto artístico iniciada com as vanguardas históricas no início do século XX. Nessa perspectiva, é possível situar o percurso assumido pelos poetas concretos como busca da invenção poética segundo a ótica das vanguardas históricas, mas que procura, não apenas nessas, mas também na história da literatura de um modo geral, dos antigos aos modernos, passando pelos orientais e pelos livros sagrados (textos bíblicos), a materialidade, ou ainda, a corporalidade da escrita poética. Ser “concreto”, por conseguinte, significa optar por um tipo de poesia aberta, em que as figuras que tematizam a vida se requintam e se personalizam ao atingirem o ápice CASA, Vol.8 n.1, agosto de 2010 http://seer.fclar.unesp.br/casa 4 da perfeição formal e vital. Figuras legíveis de maneira “aberta”, ou seja, sem ordem imposta, tanto do ponto de vista do “engendramento” poético (paronomástico, neologístico, permutacional) quanto do ponto de vista de uma visão caleidoscópica do mundo, em que o velho dialoga com o novo, a luz com as sombras, o som aberto com o som fechado dos fonemas, o belo com o feio; a poesia com a música, o corpo/enunciado com a alma/enunciação, o inteiro com a fração; enfim, a ruptura com as certezas absolutas. Justamente sob esse ponto de vista é que a poesia de Arnaldo Antunes se aproxima da poesia concreta, podendo, inclusive, ser considerada um tipo de nova poesia concreta (contemporânea), e também é a partir desse prisma que analisamos seu poema neste artigo. A poesia concreta é uma manifestação que, desde o seu nascimento, reclama formas, cores, sons, “filmletras”, “clippoemas” e “pixelpoemas” como uma espécie de “ideologia poética” que, segundo Décio Pignatari, caracteriza-se como “uma ideologia icônica, que escapa aos conceitos”. Portanto “uma ideologia não verbal, que se exprime através do e no verbal”. Segundo Pignatari: Entendamos por ideologia poética a ideologia inerente ao fazer poético – aquilo que normalmente chamamos “beleza”. Sim, a beleza é a ideologia da poesia. Já uma poética ideológica é uma poética pragmática: a ideologia da beleza posta a serviço da ideologia social e política. (PIGNATARI, 1975, p. 74). A ideologia poética é o que Pignatari chamou de “uma psiqué, um drive, um mergulho, um pulso, uma pulsão, uma pulsação que nasce do sentimento de carnação, encarnação e reencarnação da palavra em relação à vida”. A poesia é concreção sígnica: síntese e nódulo das “coisas” sob a forma de signos. Nesse sentido, a literatura pode ser compreendida como “o lado ficcional do processo de desautomatização do signo verbal”. Mais, “desautomatização essa que só pode operar-se por força da intervenção do icônico. Por onde a vida, não apenas a cabeça, parece vazar. Isto é, entre a figura e a não figura situa-se a literatura.” (PIGNATARI, 1975, p.75). E, mais especificamente, a poesia. O caráter icônico do signo literário é contundente na poesia pela proximidade entre significante e significado, entre som e sentido. Jakobson faz referência a essa característica do texto poético a partir do modelo triádico do signo proposto por Peirce, que assume o ícone como identidade absoluta entre a coisa e a representação da mesma. A essa identidade Jakobson atribui caráter essencial e responsável pela materialidade, pela concretude do signo poético. Mais do que discutir, entretanto, o caráter icônico do signo e as diferentes teorias que procuraram dar conta de suas especificidades, tratamos da iconicidade em si, enquanto processo de geração de sentido do texto poético. Nesse sentido, podemos dizer que, quando o discurso satura-se de figuras (como ocorre no discurso poético de Antunes), temos a iconicidade, que busca aproximar a representação de uma imagem do mundo e opera por meio de um simulacro que garante fidelidade de representação do mundo “real” em dada cultura (TEIXEIRA, 2004, p. 237-239). Segundo Teixeira (idem), “A iconicidade, portanto, define-se pela semelhança e pela analogia entre objeto e representação, mas tanto o objeto quanto a representação estão submetidos à modelização cultural que os instala no mundo de linguagem que habitamos.” Hoje, a série literária é quase ininteligível sem o confronto, a presença e a pressão das séries não literárias e não verbais, como o caso da música e do visual da poesia de Arnaldo Antunes (o exemplo clássico é seu trabalho Nome (1993), composto por um livro, um CASA, Vol.8 n.1, agosto de 2010 http://seer.fclar.unesp.br/casa 5 disco e um vídeo, todos de poemas e palavras cantadas e visíveis). Por isso existe a busca de uma nova poética verbal concreta, não em conflito com o icônico, mas dele nascitura. Assim, pela experiência da poesia concreta, o texto é solarizado em novo ângulo, pois revela e refrata virtualidades sígnicas e de significados diferentes que nos levam a considerar um aspecto da poesia concreta que parece se sobrepor à iconicidade: a plasticidade, ou seja, o poema em sua dimensão verbivocovisual, refratária às múltiplas possibilidades sinestésicas e sincréticas da criação artística, para além do signo icônico, origina “efeitos de sentido plásticos a partir do espessamento da materialidade discursiva, de modo a construir correspondência entre os planos da expressão e do conteúdo”. A partir desse aspecto dos poemas concretos é que pretendemos construir a leitura do poema “Palavra” de Arnaldo Antunes, uma vez que a produção artística de Antunes não se restringe à literatura. Pelo contrário, seu percurso estético-critativo parte, segundo Paula (2008), de seu processo de produção intergenérico, pois navega os mares da poesia, da música, das artes visuais, sem deixar de incorporar vídeos, shows, performances e intervenções em vários meios. Normalmente, seu nome é associado à banda Titãs, da qual participou nos anos 80, porém seu trabalho extrapola os limites da carreira musical notadamente a partir dos anos 90, quando lançou sua carreira solo e pôde dedicar-se também à escrita de poesia e ensaios críticos, bem como a outras áreas artísticas e ainda à produção de seus trabalhos. Podemos dizer, com toda certeza, que Arnaldo Antunes é o que Tatit (1989; 1990) chama de “homem de estúdio”, pois, mais que compor e musicar suas canções, ele produz seu trabalho com o auxílio da tecnologia computadorizada e atribui a isso um toque artesanal, diferencial, portanto, da produção em alta escala industrial. Segundo Tatit (idem), o homem de estúdio é “Aquele que, sendo ou não um músico, sabe converter uma composição, por mais simples que seja, num produto expressivo e agressivo que invade a sala do ouvinte com a mesma exuberância de um som ao vivo.” Ainda segundo o semioticista da canção, sem o respaldo de qualidade sonora, “caminhando com as invenções eletrônicas pari passu e assegurando um acabamento técnico impecável”, a produção de um espetáculo, de um disco, de um clipe ou de um poema musicado (aqui denominado “palavra cantada”) seria impossível. O alto padrão de produção da arte contemporânea em geral se deve, então, à mescla entre o uso da tecnologia disponível e a inventividade sincrética entre diversas artes. Esse é o papel do homem de estúdio que caracteriza o que Tatit denomina como “era do estúdio” ao se referir às manifestações da arte contemporânea. Para o semioticista: Hoje vivemos o auge desse processo. O mercado fonográfico aumenta o seu poder de penetração em todas as camadas sociais, enquanto sua principal instância de produção de canções, ou seja, o estúdio de gravação, está cada vez mais distante do conhecimento (ou mesmo da imaginação) do público em geral. Para este, os estímulos que advêm de uma equalização, de uma distribuição dos timbres no espaço sonoro, de uma relação entre plano da voz e plano dos instrumentos, de um emprego da câmara de eco e da reverberação, sem contar a manipulação das próprias ondas sonoras sintetizando sons inusitados, confundem-se, ainda, com o trabalho artesanal de composição, arranjo e interpretação.” (TATIT, 1989; 1990, p.41-44). Assim sendo, de acordo com Tatit (idem), “o ensaísta que já encontrava dificuldade em descrever a canção enquanto totalidade de sentido composta por melodia, texto e arranjo, hoje deve se arriscar a analisar um produto que toma sua verdadeira forma nas CASA, Vol.8 n.1, agosto de 2010 http://seer.fclar.unesp.br/casa 6 salas esotéricas dos estúdios” pelas mãos de produtores como Antunes, cuja competência engloba técnicas de diversas manifestações artísticas incorporadas ao seu fazer poético. Justamente por ser influenciada pelo concretismo, a poesia de Antunes se volta para a experimentação extrema. Herdeira, sobretudo, de Augusto de Campos, faz uso dos jogos sonoros, da mídia eletrônica, da fotografia, do vídeo, do computador e dos meios de comunicação de massa. Em outras palavras, em seus poemas, os signos também são marcados pelos aspectos verbivocovisual e icônico. Outra característica da poética de Antunes, herdada também das novas concepções poéticas da modernidade, é, com certeza, a metalinguagem. A reflexão sobre a construção poética no ato de criação é marcante a partir de Baudelaire e se acentua cada vez mais. No entanto, na poética de Antunes, essa reflexão metalinguística está diluída pela presença marcante de outras temáticas exploradas ao mesmo tempo, nas suas obras, com igual intensidade, o que provoca uma tensão temática revelada pela fusão figurativa e icônica. Densidade volátil A leitura de poesia não pode deixar de considerar os significantes porque eles estão dispostos no poema para provocar sentido. Eles, de fato, articulam o sentido, fazem a poética manifestar-se e o poema, autônomo e autorreflexivo, origina sua própria lógica, cuja característica principal é a ambiguidade. No poema contemporâneo, a poética se origina pelas relações de semelhança (relações metafóricas) e de contiguidade (relações metonímicas) que passam a se confundir, ou coincidir, e se acentuam como reflexão a partir do momento em que o poeta, cônscio de uma necessidade de ruptura das estruturas analógicas mais simples, passa a estabelecer metáforas cuja referencialidade se apresenta ampliada e, por isso, instaura novas possibilidades de leitura, marcadas pela iconização, ou seja, quanto mais as palavras tornam- se ícones, mais as relações analógicas se estabelecem também por contiguidade e não apenas por semelhança, por isso as metáforas são também metonímias que fundam uma “realidade” outra, a poética. Como diz Jakobson: Em poesia, não apenas a sequência fonológica, mas, de igual maneira, qualquer sequência de unidades semânticas, tende a construir a equação. A similaridade superposta à contiguidade comunica à poesia sua radical existência simbólica, multíplice, polissêmica [...]. Em poesia, onde a similaridade se superpõe à contiguidade, toda metonímia é ligeiramente metafórica e toda metáfora tem um matiz metonímico. (JAKOBSON, 1977, p. 149,150) No poema de Antunes, podemos entender que as metáforas são metonímias. “Óvulo” e “porra”, por exemplo, são metáforas do processo criativo e, ao mesmo tempo, parte desse processo, ou seja, duas instâncias que, em conjunção, definem o objeto-valor perseguido pelo poeta: “próxima palavra pessoa”. Da mesma forma, a “palavra” metaforiza a “pessoa” que surge depois do encontro entre “óvulo” e “porra” e é parte desse processo. Portanto, no poema analisado, metáfora é metonímia tanto em relação a um plano de leitura ligado à metalinguagem, quanto a um plano de leitura ligado à erotização, pois o que parece tema, a palavra, também figurativiza o ato sexual, uma vez que a própria palavra é sujeito (“eu”) e objeto (“outro”) da cópula entre “óvulo” e “porra”. Mas ela não é nem só feminina CASA, Vol.8 n.1, agosto de 2010 http://seer.fclar.unesp.br/casa 7 nem só masculina, é hermafrodita que se auto(re)produz, uma vez que afrodisíaca. Assim, tema e figura se neutralizam um dentro do outro intensa e extensamente. Segundo Fontanille e Zilberberg (2001), colocam-se “forças” mais ou menos intensas que definem a articulação do sentido. Isso ocorre no poema aqui analisado em torno dos dois núcleos que mencionamos (o da metalinguagem e o do erotismo). A intensidade e a extensidade situam-se num espaço tensivo e são apreendidas e focalizadas segundo a percepção de um sujeito, o que converte os gradientes 3 em profundidades semânticas mais ou menos abstratas, de maneira que a categorização depende da existência de um observador sensível, o destinatário-locutário. Isto é, a percepção do núcleo metalinguístico e do núcleo ligado à erotização é dependente da leitura (e) do leitor tanto quanto é dependente do corpo do poeta (o destinador-locutor) que “sente” o que escreve a partir de sua leitura (percepção) de mundo. Em outras palavras, a “caixa preta” da semiótica das paixões, a saber, o corpo próprio do sujeito que sente, encontra aqui uma definição oblíqua inesperada: o corpo próprio é o lugar em que se faz e se sente, de uma só vez, a correlação entre valências perceptivas (intensidade e extensidade). (FONTANILLE & ZILBERBERG, 2001, p.20, grifo do autor). Não podemos esquecer também que a leitura se dá, como diz Barbosa (1979, p.16), em dois níveis convergentes. O primeiro diz respeito à própria busca de compreensão do poema, de suas articulações, do significado geral; o segundo nível está no fato de que a compreensão está na própria busca de significado – ou seja, no rastreamento do significado pela matéria significante e no que dela emana; a compreensão não é do texto, mas sim de “como o texto diz o que diz” (BARROS & FIORIN, 1999). Não se trata, pois, de compreender o texto, mas, a partir de suas articulações, a tensão que o sustenta e que o define como obra de arte, um fim em si, a dança de que trata Paul Valéry. Por isso, há que se buscar a compreensão da tensividade, há que se buscar a percepção do sujeito. Segundo Fontanille e Zilberberg (op.cit.), falar de valências exige que se repense o sentido de paradigma. Para Saussure (1994), o paradigma constitui-se em espaço de acolhimento de valores. Se considerarmos que os valores são determinados por valências, então, todo paradigma pressupõe valências, de modo que a noção de paradigma deixa de ser o início de uma categoria para tornar-se resultante. Os signos passam a estabelecer uma conexão entre sua definição e o paradigma a que pertencem. Cada grandeza está contida em um paradigma e contém sua própria definição. A valência, em consequência, pode restabelecer a linha tênue que divisa o paradigma e sua própria definição, intensa ou extensamente. Se opusermos a função das valências, uma vez que variam uma em função da outra, teremos duas opções de abordagem: a tensão conjuntiva (do tipo “e...e”) ou a disjuntiva (do tipo “ou...ou”), definindo-se uma relação conversa (participação), no caso da conjunção, e inversa (exclusão), no caso da disjunção. Com relação ao poema em questão, o regime que prevalece é o da complementaridade-participação, já que tanto a metalinguagem como o erotismo articulam o sentido do texto e o sustentam. 3 Segundo Fontanille & Zilberberg (2001), gradiente é uma variável que se modifica sempre em função de uma outra variável. Por isso, dizemos que as valências (profundidades recobertas que determinam o surgimento de um valor) são gradientes quando, aos pares, determinam um valor, porque ambas variam uma em função da outra. CASA, Vol.8 n.1, agosto de 2010 http://seer.fclar.unesp.br/casa 8 Ao pensarmos nas valências como liame tensivo (ou número de liames) que se articula(m) a um núcleo e seus periféricos e estes, definidos pela atração que o núcleo exerce sobre eles (FONTANILLE & ZILBERBERG, op. cit.), ou ainda, pela força centrípeta que os mantém em torno de si, o núcleo é tanto mais potente quanto maior o número de periféricos que é capaz de atrair, determinando relações de dependência e efeitos de coesão. No caso do poema de Arnaldo Antunes, podemos pensar que um dos núcleos remete-se ao sensível e à intensidade (erotismo), e outro, ao inteligível e à extensidade (metalinguagem). Assim, se, por um lado, considerarmos como núcleo o erotismo e fizermos uma leitura do que seriam os “seus periféricos”, teríamos as palavras do campo semântico ligado ao erótico e ao amor: “a mar”, “óvulo”, “porra”, “sumo”, “suco extrato grosso espesso” (todas referentes a sêmen), bem como jogos sonoros que, pela modulação e entoação, podem indicar o jogo amoroso dos corpos e a tensão entre masculino e feminino conciliada por esse jogo. Com essa estratégia estrutural, o poema constrói e se fundamenta numa coesão sensível, marcada pela intensidade – que começa com o fechamento das vogais no primeiro verso, dando lugar à abertura vocálica no segundo verso e vai se dialogando e fundindo, de maneira cada vez mais ampla, até o último verso, onde se concretiza a nascitura da palavra-pessoa como fruto do “ato sexual” existente entre “óvulo” e “porra”, entre “o mar” e “a mar”. Por outro lado, se considerarmos como núcleo a metalinguagem, prevalece, em nossa leitura, a extensidade, da palavra “leve aérea” que “perfuma” “o ar onde soa o mar onde ecoa a mar onde / escoa a palavra mar onde escorra a palavra” poética – densa e fluida. Não é possível (nem interessante) estipular qual leitura deva prevalecer, mas tão somente pontuar que ambas, por suas características intensas e/ou extensas, constroem, como valências, os valores que surgem no paradigma e, depois, manifestam-se no sintagma. Dessa maneira se compõe, não apenas no poema aqui analisado, a poética tensiva de AA. Além disso, a palavra-pessoa-poesia se manifesta como a poeticidade de AA no poema “Palavra” a partir do momento em que consideramos o texto de Antunes como palavra cantada. A leitura do presente texto merece, pois, ser ampliada, para que melhor entendamos essa relação tensa e musical 4 entre o amor e a palavra, o amor feito pela palavra, num ato enunciativo. Afinal, como diria Fiorin (ao retomar Kristeva, 1998), desde o princípio, Deus não criou o mundo por um ato de realização (/fazer/), mas a construção do paraíso terreno surgiu a partir de um ato locutivo-enunciativo: “Deus disse „Faça-se a Luz‟ e a luz foi feita”. Deus, no poema de Antunes por nós analisado, é o poeta que faz a palavra “soar”, “ecoar”, “escoar”, “escorrer” e gerar amor e poesia no transcorrer de sua palavra cantada. Palavra en-toada Para compreender o processo de construção do poema aqui analisado, consideramos o seu locutor. A definição de “locutor” dada por Tatit (1986, p.6) advém “[...] tanto da origem etimológica (loquor = „falar‟, „exprimir‟, „dizer‟) como do senso comum”, pois [...] define alguém que se expressa com as articulações vocais. A fala e sua extensão estética, o canto, pressupõem necessariamente um sujeito locutor. 4 Musical entendido aqui como música da própria língua, ritmo, cadência, tom. Nesse caso, a musicalidade poética de um poeta-compositor. Não um poeta qualquer, indefinido, mas um dos mais proeminentes de sua geração: trata-se de AA e sua poeticidade musical e musicalidade poética, como estudamos em nossa pesquisa intitulada A intergenericidade da poesia: o caso Arnaldo Antunes (2008). CASA, Vol.8 n.1, agosto de 2010 http://seer.fclar.unesp.br/casa 9 Este termo define melhor a posição sintáxica de „alguém que canta‟, antes que seja preenchida pelo compositor, pelo cantor, pelo intérprete, ou qualquer outra personificação. O locutor é apenas uma posição gramatical da canção. (Ibid., id.) Assim, para a síncrese apresentada na própria conceituação de locutor, Tatit formula o termo composto destinador-locutor. Nos termos enunciativos convencionais, o responsável em contar e conduzir a narrativa de um enunciado é o narrador. Este é uma projeção do sujeito da enunciação, que cria um simulacro da situação enunciativa – seja a enunciação enunciada (marcada pela primeira pessoa – o narrador do texto assume o papel de narrador e personagem, sendo “eu” do texto), ou o enunciado enunciado (marcado pela terceira pessoa – em que o narrador fala sobre alguém, um “ele”). No caso do poema de Antunes, objeto de nossa análise no presente artigo, temos um enunciado enunciado, pois o “ele narrado” é a palavra, e esta não é uma palavra qualquer, mas a palavra poética que intitula o próprio poema. Na relação destinador-locutor e destinatário-ouvinte, o primeiro é o sujeito que conta uma história qualquer de uma maneira diferenciada; ao cantar/declamar o enunciado, como ocorre com o poema “Palavra”, o destinador-locutor amplia os horizontes de contemplação estética do mesmo, (re)significa sua leitura, corporaliza a escritura. Esse gesto causa a impressão de que a canção (no caso, o poema) é construída(o) no momento em que é cantada(o)/declamada(o), isso porque, segundo Tatit (1996, p.20), “o núcleo entoativo da voz engata a canção na enunciação produzindo efeito de tempo presente: alguém cantando é sempre alguém dizendo, e dizer é sempre aqui e agora”. O cantor ou o poeta, em seu papel de locutor, quando assume a função de destinador do texto ao cantá-lo ou declamá-lo, parece incorporar os diferentes fazeres que encontramos quando nos deparamos com um texto. No caso do poema de Arnaldo Antunes, o fazer poético em plena construção poética. Nesse sentido, o destinador-locutor faz com que o destinatário-ouvinte reconheça, na canção ou, no caso do texto de Antunes aqui analisado, na palavra cantada, situações cotidianas que simulam a sua relação com o destinatário-ouvinte: o amor, melhor ainda, o ato de amar é a situação cotidiana que sincretiza destinador-locutor e destinatário-ouvinte ao mesmo tempo em que se especializa no ato de escrita poética, expressão de amor do poeta com a palavra. Dessa forma, conforme salienta Tatit: Quando o locutor se materializa num timbre de voz qualquer (o cantor), o ouvinte não consegue dissociar com nitidez a comunicação principal (destinador-locutor/destinatário-ouvinte) de seu simulacro (interlocutor/interlocutário), pois o sujeito parece ser o mesmo. De fato, a figura do cantor sincretiza as duas posições, destinador-locutor e interlocutor, e isso causa no ouvinte a impressão de que a cena relatada pela canção é viva. Durante o mesmo tempo que o interlocutor fala com o interlocutário, o destinador-locutor canta para o destinatário-ouvinte. A locução é uma só. Pelo texto, temos a construção do simulacro, pela melodia, a sua presentificação. Um timbre de voz produzindo a melodia revela a entonação simultânea do interlocutor e do destinador-locutor (sincretizados), fazendo com que a locução principal e o simulacro de locução tenham o mesmo tempo de existência: o tempo da canção (TATIT, 1986, p. 10, grifo do autor). CASA, Vol.8 n.1, agosto de 2010 http://seer.fclar.unesp.br/casa 10 A partir da síncrese entre destinador-locutor e destinatário-ouvinte feita por Tatit, entendemos o uso abusivo do recurso de repetição sonora (aliteração e assonância) existente no poema de Antunes, uma vez que esse recurso imprime um ritmo ao texto por meio da atualização do timbre de voz dos sujeitos da enunciação projetados no enunciado. A alternância entre os sons fechados (/o/, /e/) e abertos (/a/, /E/, /O/) das vogais (assonância) demonstra a alternância entre a densidade e a fluidez da palavra poética, narrada como geradora de sentido no texto de Antunes: o “ato sexual” que leva a porra da palavra até “o óvulo ouvido da próxima palavra pessoa”. A densidade do “sumo, o extrato grosso espesso / concentrado da palavra” dá lugar, a partir do segundo verso do poema, à fluidez da palavra leve e aérea da criação em e de Antunes. Isto é, uma composição não é uma palavra pedra, fechada, dura, como narrada no início do texto, mas uma palavra lânguida, que “soa”, “ecoa”, “escoa”, “escorre” amor/sentido. A palavra sisuda, fechada, dá lugar à palavra amorosa no decorrer do texto ao mesmo tempo em que a maioria dos sons fechados permuta-se com os sons abertos das vogais revelando a oposição masculino e feminino (“o mar” – “a mar”), além do próprio movimento dos corpos durante o jogo amoroso. Quanto à repetição dos sons das consoantes (aliteração), ela imprime um ritmo ao poema. A alternância entre /s/ e /r/, bem como suas combinações alternativas (/s/ seguido de /t/ ou /d/, no primeiro verso, e /r/ entre /m/ e /v/, no penúltimo verso, por exemplo) geram o compasso musical da leitura do texto, o que imprime a entonação do poema, que possui características das “canções de situação”, como as designa Tatit (dez./89-fev./90). Essas canções, segundo o semioticista, tendem a neutralizar a tensão existente entre letra e música, como ocorre, segundo Paula (2007), com o funk, em que a “falação” se sobrepõe a uma marcação rítmica minimalista que oscila entre os compassos 2:4 (dois por quatro) e 1:3 (um por três). Numa canção ou num poema melódico, como esse ora analisado, a relação entre letra e melodia é que gera a tensão do e no texto. Segundo Tatit: As canções de todas as épocas sempre operaram com dois tipos de tensividade: 1 o ) a „tensividade somática‟, que configura precisamente um ritmo, uma pulsação e uma periodicidade, ou seja, um gênero bem delineado (um samba, uma marcha, uma valsa, um roque, um bolero...; e, 2 o ) a „tensividade passional‟, que corresponde aos estímulos afetivos e cognitivos desenhados pela melodia e apoiados pela harmonia, acarretando, sobretudo, a valorização de cada um de seus contornos (TATIT, 1989-90, p. 41-44). De acordo com o semioticista, o primeiro tipo de tensividade se processa com a redução de frequência e duração rítmicas, pois “Não importam tanto os contornos isolados, mas a sua reiteração, que produz encadeamentos, os chamados temas melódicos”. No caso do poema aqui analisado, isso pode ser notado se entoarmos suas repetições sonoras (marcadas pela aliteração e pela assonância), como ocorre, por exemplo, com a sibilante: “sumo”, “suco”, “extrato”, “grosso”, “espesso”, “concentrado”, “soa”, “escoa”, “escorra”, “próxima”, “pessoa”. A tensividade passional, ao contrário, depende da ampliação de frequência e duração. Conforme Tatit: Isso repercute na expansão do campo de tessitura e na valorização de cada uma das vogais. As canções tornam-se assim, naturalmente, mais lentas, de CASA, Vol.8 n.1, agosto de 2010 http://seer.fclar.unesp.br/casa 11 forma que as tensões concentram-se nos contornos individuais e na permanência da voz em cada frequência emitida. Este tipo de canção provoca urna introspecção solene compatível com sentimentos passionais decorrentes dos processos de disjunção e conjunção afetiva (Ibid., id., p.41- 44). Entretanto, segundo Tatit, na época de ouro do rádio, a fala despontou como outra/nova possibilidade de recurso entoativo. Como ocorre com nossa linguagem cotidiana, as melodias das “canções faladas” ou das “falas cantadas”, como o rap, o repente e a palavra cantada sincrética que compõe a poética de Arnaldo Antunes, não possuem uma clara autonomia sem a presença do texto, feito, como vimos, de tensividade, intensidade e extensidade. Assim, não basta entender a repetição sonora como efeito de sentido melódico para se compreender o texto, pois ao contrário dos outros dois tipos de canção (as de tensividade somática e as de tensividade passional), este não se estabiliza nos contornos e nos encadeamentos melódicos. A melodia é um recurso que confirma o que é expresso no texto verbal – criação, poiésis. Essa tessitura neutraliza a tensividade dando a impressão de que se trata de uma situação efêmera, cuja duração não ultrapassa o tempo de execução da própria enunciação. É a reprodução do colóquio no enunciado. Essas são as chamadas por Tatit de “canções de situação”. Assim, apesar de existir uma tensão entre densidade e fluidez no poema de Antunes, o que é marcado pela alternância sonora (aliteração e assonância), essa tensão é aparentemente neutralizada pelo andamento do ritmo do poema, que simula o ato sexual como ato criativo de som e silêncio. Ato de composição/geração de sentido poético, o que é muito significativo não apenas nesse texto, mas em toda a poética de Arnaldo Antunes. O simulacro construído entre cópula e criação poética na “Palavra”, de Antunes, aproxima os dois actantes da comunicação, destinador-locutor e destinatário- ouvinte. Ainda que pareça não haver marcação de sujeito, espaço e tempo nesse poema, esses elementos aparecem. Os actantes não aparecem de maneira clara porque são, como vimos, destinador-locutor (poeta-cantor) e destinatário-ouvinte (leitor-ouvinte). O espaço é o da construção poética, o corpo da palavra-pessoa cantada: “onde” tudo acontece entre “óvulo” e “porra”. O tempo é o da palavra cantada, portanto, o presente da locução, marcado pelos verbos no presente do indicativo e em processo (o gerúndio – “perfumando”) amoroso, que simula o ato de construção poética no poema já criado. Sujeitos, tempos e espaços, aparentemente inexistentes, criam o efeito de sentido de congelamento da cena, mas não da ação narrada. A metalinguagem, temática predominante na extensão do poema, fica, aparentemente, em suspenso, para dar lugar à ação amorosa intensa entre a palavra densa e a palavra fluida, a gerar/tecer palavras-pessoas – a forma retangular do poema que guarda e revela o ato amoroso-poético, da “palavra” com a “pessoa”, enunciado e sujeito em plena ação metalinguístico-amorosa. Assim, o que, na “realidade” extratextual, pode ser entendido como oposição é construído, no poema, como fusão: o feminino (“óvulo”) e o masculino (“porra”), o denso e o fluido, vogal e consoante, abertura e fechamento fonético, som e silêncio, enfim, tudo fundido em torno da geração de sentido. Não um sentido qualquer, mas o sentido da “Palavra” que enuncia o sentido da vida e a tessitura da pessoa, a palavra-pessoa – corpo e alma, concreto e abstrato, significância e signância, poesia e música, catarse. Afinal, segundo Pignatari, ao se referir à poesia concreta, CASA, Vol.8 n.1, agosto de 2010 http://seer.fclar.unesp.br/casa 12 Onde só parecia haver enunciado, só há enunciação: o signo verbal que parecia vidro transparente para a visão plena de um objeto ou referente externo se transforma em espelho ou em régua que, para medir o espaço, tem de acompanhá-lo (PIGNATARI, 1975, p.79). Em outras palavras, a concreção sígnica e significativa do poema (concreto/abstrato) cantado/declamado de Arnaldo Antunes encarna a poesia no poema, ou seja, enuncia o enunciado e reflete sobre ele, que se auto(re)produz pela ligação entre os vocábulos densos como pedra e fluidos como água. Eis a linguagem poética, que nos dá a sensação de poder ser captada, presa, mas sempre escorre por entre os dedos de nossas mãos, exatamente porque o(s) sentido(s) nos escapa(m). A ligação tensa entre a palavra, o homem e o mundo é feita, no poema, por meio da palavra pela palavra em si (daí, o título do poema analisado – “Palavra”), pois a maioria dos vocábulos do texto é nome, há poucos verbos, raros determinantes (os artigos) e conectivos (as conjunções, preposições e advérbios). A tentativa é a de criar a palavra-coisa, plena de sentido em si mesma, autônoma, sem necessidade de outro elemento externo de conexão. Por isso, a palavra-pessoa-poesia se explica por si mesma, ao mesmo tempo em que se compõe enquanto texto poético. Conclusão Arnaldo Antunes escreve, no prefácio do livro de Augusto de Campos (2003), que, certa vez, João Cabral de Melo Neto, numa conversa com Augusto de Campos, disse-lhe que seus poemas eram únicos, diferentes uns dos outros. Talvez por definições e preocupações com a qualidade de nossa escrita é que possamos fazer nossas as palavras de Augusto de Campos, já que essa escrita se impôs a nós como uma escolha “inelutável”, como Augusto de Campos afirma, em seu “NÃOfácio”, do livro Não poemas (2003), ao se referir à sua escrita, pois diz que Cada poema é para mim uma mínima coisa nova, vida ou morte, e a prática digital, com a sedução dos seus multinstrumentos, ainda veio agravar o problema, pois às vezes penso que sou menos poeta que músico e menos músico que artista gráfico. O fato é que meus poemas caberiam melhor talvez numa exposição, propostos como quadros, do que num livro. Mas o livro, mesmo bombardeado pelos novos meios tecnológicos, é uma embalagem inelutável, ainda mais para os guetos e guerrilhas da poesia e suas surdas investidas catacúmbicas. A nós, parece-nos que cada reescrita é mínima mas nova, porque renova, sempre amparada na tradição, correntes e pensamentos; ilumina e assombra poemas, como, no nosso caso, em que o pequeno poema analisado exemplifica a “Palavra” poética de AA como movimento entre a densidade e a fluidez (erótica) da palavra em seu próprio ato de produção (metalinguístico). Produção de linguagem, de mundo (coisa) e de “pessoa”. Segundo Antunes 5 , [...] A poesia restitui, através de um uso específico da língua, a integridade entre nome e coisa. 5 “Sobre a origem da poesia”, texto incluído no libreto do espetáculo 12 Poemas para dançarmos, dirigido por Gisela Moreau. São Paulo, 2000. CASA, Vol.8 n.1, agosto de 2010 http://seer.fclar.unesp.br/casa 13 [...] No seu estado de língua, no dicionário, as palavras intermedeiam nossa relação com as coisas, impedindo nosso contato direto com elas. A linguagem poética inverte essa relação, pois vindo a se tornar, ela em si, coisa, oferece uma via de acesso sensível mais direto entre nós e o mundo. Segundo Mikhail Bakhtin (em Marxismo e Filosofia da Linguagem), „o estudo das línguas dos povos primitivos e a paleontologia contemporânea das significações levam-nos a uma conclusão acerca da chamada 'complexidade' do pensamento primitivo. O homem pré-histórico usava uma mesma e única palavra para designar manifestações muito diversas, que, do nosso ponto de vista, não apresentam nenhum elo entre si. Além disso, uma mesma e única palavra podia designar conceitos diametralmente opostos: o alto e o baixo, a terra e o céu, o bem e o mal, etc‟. Tais usos são inteiramente estranhos à linguagem referencial, mas bastante comuns à poesia, que elabora seus paradoxos, duplos sentidos, analogias e ambiguidades para gerar novas significações nos signos de sempre. Já perdemos a inocência de uma linguagem plena assim. As palavras se desapegaram das coisas, assim como os olhos se desapegaram dos ouvidos, ou como a criação se desapegou da vida. Mas temos esses pequenos oásis − os poemas − contaminando o deserto da referencialidade.” (ANTUNES, 2000) E o que são esses oásis senão o pensamento do poeta (destinador-locutor) figurativizado, que procura se inscrever (ao se escrever) no mundo, percebido, sentido? Oásis que transformam em verbo o vivido, plasticamente, espessamente, fazendo ressignificar, experienciar criação, “Palavra”, ato – fato de linguagem? Os oásis-poemas são suas/nossas possibilidades catárticas de vida. Então, sem mais analisar o poema, pois ele nos pede sensibilidade para senti-lo, amá-lo e, junto com ele, sentir seu gozo pela e na vida, para se fazer poesia, coisa em si. Referências bibliográficas ANTUNES, A. “Palavra”. In: GULLAR, F. Boa Companhia. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. ______. “O Sumo”. Como é que chama o nome disso. São Paulo: PubliFolha, 2006. ______. “Prefácio”. In CAMPOS, A. de. Não poemas. São Paulo: Perspectiva, 2003. ______.Nome. (Livro, CD e vídeo). São Paulo: BMG, Ariola Discos, 1993. ______. “Sobre a origem da poesia”. Incluído no libreto do espetáculo 12 Poemas para dançarmos, dirigido por Gisela Moreau, São Paulo: 2000. ANTUNES, A.; BROWN, C.; MONTE, M. “Carnavália”. Tribalistas. Rio de Janeiro: EMI- ODEON, 2002. BARBOSA, J. A. “Um cosmonauta do significante: navegar é preciso”. In: CAMPOS, H. Signantia: Quasi Coelum Signância: Quase Céu. São Paulo: Perspectiva, 1979. BARROS, D.L.P., FIORIN, J. L. (org.) Dialogismo, polifonia, intertextualidade. 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