Revista do Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFOP ISSN: 2526-7892 ARTIGO ARTE EM RUÍNAS: APROXIMAÇÕES E DESDOBRAMENTOS 1 Lucas Rossi Gervilla2, Resumo: São discutidas algumas das relações entre arte, lugares abandonados e ruínas. É feita uma breve retrospectiva histórica de artistas que trabalharam com essa temática no século XVIII. O texto recorre ao pensamento do autor Andreas Huyssen para discutir o sentimento de nostalgia despertado por esses lugares e influências que ele pode ter na produção de arte contemporânea. São analisadas obras de artistas contemporâneos de diversos países que abordam o universo ruinoso em suas produções. O artigo procura ainda investigar como esse tipo de arte pode tensionar as relações entre memória e esquecimento e entre cultura e natureza. Palavras-chave: Arte contemporânea; Lugar abandonado; Memória; Ruína. Abstract: This paper discusses some aspects of the relationships among art, abandoned places, and ruins. It brings a brief historical retrospective of artists who worked with this theme in the 18th century. The text resorts to some thoughts of the author Andreas Huyssen to discuss the feeling of nostalgia stimulated by these places and his influences in the production of contemporary art. The article analyzes some artworks by contemporary artists who treat the ruinous universe in their productions. It also investigates how this type of art can provoke strain in the relationship among memory and forgetfulness, culture and nature. Keywords: Contemporary Art; Abandoned Place; Memory; Ruin. 1 Art in ruins: proximities and repercussions. 2 Doutorando (Bolsa CAPES) e mestre em Artes Visuais no Instituto de Artes da UNESP, com um período de estudos na Universität der Künste Berlin (Bolsa DAAD). Bacharel em Comunicação e Multimeios pela PUC-SP, trabalha com imagens desde 2005. E-mail: lucas.gervilla@unesp.br. ARTE EM RUÍNAS: APROXIMAÇÕES E DESDOBRAMENTOS LUCAS GERVILLA ARTEFILOSOFIA, Nº31, JAN-DEZ DE 2022, P. 48-63 http://www.artefilosofia.ufop.br/ 49 INTRODUÇÃO “Tudo o que era sólido e estável se desmancha no ar”3 A célebre frase de Marx e Engels presente no Manifesto Comunista é uma metáfora. Ela faz referência às relações sociais, políticas e econômicas da época.4 Porém, é possível analisá-la em um contexto mais literal, o dos lugares abandonados e das ruínas. Ao longo da história, algumas estruturas arquitetônicas que um dia foram sólidas e, aparentemente, inabaláveis, como as antigas cidades de Pompeia e Herculano, praticamente desapareceram no ar, restando hoje apenas ruínas de uma época gloriosa. Esse “desmanche no ar” não aconteceu apenas com lugares antigos ou que tenham sofrido algum tipo de catástrofe, ele continua presente nos dias de hoje, seja por motivos socioeconômicos ou políticos. Este artigo apresenta algumas origens das aproximações entre arte, lugares abandonados e ruínas. Quando esses elementos se encontram, surgem as estéticas do abandono; uma espécie de linguagem artística que tensiona as relações entre memória e esquecimento; entre cultura e natureza. PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES O fascínio por ruínas possivelmente surgiu junto com os primeiros lugares abandonados pela humanidade. A escritora inglesa Rose Macaulay nos lembra que “muitas pessoas, de diversas épocas, sentiram diferentes tipos de prazeres por construções em ruínas.”5. Para a autora, “é bastante seguro”6 supormos que, entre as dezenas de prazeres da ruína, o mais antigo é o que o conquistador sente ao estar sobre as ruínas do conquistado. O teórico alemão Andreas Huyssen (2014:83) acredita que o interesse por cenários ruinosos existe devido a “uma atraente mescla de melancolia e documentação.”7. Dentro dessa ideia de documentação através do estudo de ruínas e lugares abandonados, a primeira obra do gênero é provavelmente 3 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo Editorial, 1998, p. 43. 4 O Manifesto Comunista foi publicado originalmente em 1848. A obra critica o modo de produção capitalista e a estruturação da sociedade através dele. 5 MACAULAY, Rose. Pleasure of ruins. Nova York-EUA: Walker & Company, 1966, p. XV. 6 MACAULAY, 1966, p.1. 7 HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente – modernismos, artes visuais, políticas da memória. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014, p. 83. ARTE EM RUÍNAS: APROXIMAÇÕES E DESDOBRAMENTOS LUCAS GERVILLA ARTEFILOSOFIA, Nº31, JAN-DEZ DE 2022, P. 48-63 http://www.artefilosofia.ufop.br/ 50 “Descrição da Grécia”, do geógrafo grego Pausânias. Redigido entre os anos 160 e 176 d.C., o trabalho apresenta cidades da Península Helênica, Itália, Síria, Palestina, Egito e Macedônia. Algumas polis e vilas mencionadas por Pausânias já não existiam mais na época do geógrafo, suas localizações foram deduzidas a partir das observações de suas ruínas. A obra de Pausânias é um exemplo clássico de como a literatura pode ser usada para criar uma estética do abandono. Saltando na história, chegamos ao século XVIII: um período que iria transformar completamente as relações entre arte e ruínas. Alguns dos principais fatores que contribuíram para isso foram as descobertas das cidades de Herculano (1709) e Pompeia (1748). Localizadas na região de Campânia, na Itália, ambas foram soterradas em 79 d.C., após uma erupção do vulcão Vesúvio. Embora as escavações não tenham começado de imediato, as notícias dos descobrimentos arqueológicos influenciaram o imaginário artístico ocidental. Artistas começaram a ver as antigas cidades romanas – intocadas durante séculos – como verdadeiros portais para o período clássico. Figura 1: Ruínas de Pompeia Ruínas de Pompeia, Campânia-Itália. Fonte: Lucas Gervilla. 2022. O pintor italiano Giovanni Paolo Panini (1691-1765) foi um dos pioneiros a incorporar o universo ruinoso romano em seus trabalhos. Dentre as diversas obras do artista que evocam cenários em ruínas, destacam-se o par de pinturas “Ruinas con San Pablo predicando” e “Ruinas con una mujer predicando (¿una sibila?)”, ambas feitas por volta de 1735. Mesmo tratando-se de duas pinturas, Panini as concebeu para que fossem vistas como uma só, sendo posicionadas – idealmente – lado a lado. Na imagem que seria a da esquerda, vemos uma sibila (profetisa) discursando para uma ARTE EM RUÍNAS: APROXIMAÇÕES E DESDOBRAMENTOS LUCAS GERVILLA ARTEFILOSOFIA, Nº31, JAN-DEZ DE 2022, P. 48-63 http://www.artefilosofia.ufop.br/ 51 pequena plateia diante de uma ruína romana. Parte das estruturas já estão sendo reclamadas pela natureza, seja pela vegetação que cresce através das colunas, ou pelo mofo que nasce sobre as estruturas caídas na água. Na pintura que deveria ficar à direita, São Paulo – um dos principais nomes da mitologia cristã — também faz seu sermão para uma plateia diminuta, rodeada por ruínas romanas. Ao fundo, é possível ver a pirâmide de Cayo Cestio, indicando que cena acontece em Roma. O posicionamento lado a lado das obras propõe uma oposição entre paganismo e cristianismo, tendo como testemunhas as ruínas da antiguidade. Figura 2 (esq.): Ruínas con San Pablo predicando e Figura 3 (dir.): Ruinas com uma mujer predicando Fig. 02 (dir): “Ruinas con San Pablo predicando”, Giovanni Paolo Panini; óleo sobre tela, circa 1735. Fonte: Banco de Imágenes del Museo Nacional del Prado, Madrid. Fig. 03 (esq): “Ruinas con una mujer predicando (¿una sibila?)”, Giovanni Paolo Panini; óleo sobre tela, circa 1735. Fonte: Banco de Imágenes del Museo Nacional del Prado, Madrid. Poucos anos depois, o gravurista e arquiteto Giovanni Battista Piranesi (1720- 1778), natural de Veneza, chegou à capital italiana. Na década de 1740, o artista iniciou duas de suas séries mais famosas de gravuras: “Carceri d’invenzione” (Prisões Imaginárias) e “Vedute di Roma” (Vistas de Roma). A primeira é formada por 16 ilustrações de lugares imaginários, a maioria subterrâneos, que seriam usados como calabouços. As imagens apresentam sucessões de planos que combinam um “sistema figurativo com reflexos em formas concretas”8. Não é possível afirmar com precisão se vários dos cárceres encontram-se abandonados ou não; alguns 8 EINSENSTEIN, Sergei. Piranesi: or the fluidity of forms. Izbrannye proizvedeniia. Moscou:1967, p. 156-187. ARTE EM RUÍNAS: APROXIMAÇÕES E DESDOBRAMENTOS LUCAS GERVILLA ARTEFILOSOFIA, Nº31, JAN-DEZ DE 2022, P. 48-63 http://www.artefilosofia.ufop.br/ 52 trazem figuras humanas em meio às ruínas. Na segunda série, Piranesi produziu mais de 100 gravuras retratando ruínas e outras estruturas remanescentes do Império Romano. Atualmente, muitas das Vedute registradas pelo artista não existem mais e sua obra tornou-se a única documentação delas. Nas imagens é possível notar uma “produção de fantasmas a que as ruínas dão vida.”9. Entretanto, sua obra não tem um caráter exclusivamente documental, é como se suas gravuras propusessem uma viagem ao passado monumental romano. Ao mesmo tempo, esse passado não está mais acessível. Na maior parte das imagens da série, vemos a natureza retomando as estruturas que outrora representaram a magnitude imperial, não há nenhum cuidado em relação à sua preservação. As ruínas, frequentemente, encontram-se envoltas por cenários repletos de pobreza e são habitadas por pessoas que parecem embriagadas ou exaustas. Piranesi cria uma estética do abandono que apresenta uma dicotomia entre a glória do passado e a melancolia do presente. Figura 4: Carceri d’invenzione Carceri d’invenzione, Giovanni Battista Piranesi, circa 1740. Fonte: Lucas Gervilla, 2022. 9 HUYSSEN, 2014, p. 105. ARTE EM RUÍNAS: APROXIMAÇÕES E DESDOBRAMENTOS LUCAS GERVILLA ARTEFILOSOFIA, Nº31, JAN-DEZ DE 2022, P. 48-63 http://www.artefilosofia.ufop.br/ 53 Ainda no século XVIII, a arte europeia viu o surgimento do Romantismo. Embora o estilo tenha se expandido por todo o continente, em alguns países a sua adesão foi maior, como é o caso da Alemanha, espalhando-se pela literatura, música e artes plásticas. Na pintura, um dos maiores expoentes é Caspar David Friedrich (1774- 1840). Natural de Greifswald, no nordeste alemão, o pintor usou as praias do Mar Báltico e as florestas da região como temas de alguns de seus trabalhos. No entanto, há um elemento que chama a atenção em diversas de suas obras: as ruínas da Abadia de Eldena. Inaugurada em 1199, a construção do templo também marcou o início das atividades que transformariam Greifswald em uma cidade autônoma algumas décadas depois. A igreja foi desativada em 1535 e, no século seguinte, o edifício foi ocupado como fortaleza, sendo danificado durante a Guerra dos Trinta Anos. Após a guerra, a região foi dominada pela Suécia, que usou uma quantia significativa de tijolos da antiga igreja em outras construções. No período de Friedrich — após diversos outros conflitos militares da região — a abadia estava totalmente em ruínas. Figura 5: Ruínas da Abadia Ruínas da Abadia de Eldena. Greifswald-Alemanha. Fonte: Lucas Gervilla, 2022. ARTE EM RUÍNAS: APROXIMAÇÕES E DESDOBRAMENTOS LUCAS GERVILLA ARTEFILOSOFIA, Nº31, JAN-DEZ DE 2022, P. 48-63 http://www.artefilosofia.ufop.br/ 54 Em obras como “Abtei im Eichwald” (1809-1810) e “Klosterruine Eldena bei Greifswald” (1824-1825), as ruínas assumem um papel central, onde as ações desenvolvem-se ao seu redor. Na primeira pintura, vemos um cortejo fúnebre, com um grupo de monges carregando um caixão para dentro das ruínas da igreja. Os carvalhos secos e a neve indicam que a cena acontece durante o inverno, o céu pálido reforça o ambiente mórbido. O segundo trabalho apresenta uma situação distinta: duas pessoas conversam próximas a uma casa construída usando as ruínas como apoio; o céu azul e árvores com folhas verdes sugerem que os personagens estão na primavera ou verão. Ao observar os dois trabalhos — e outros nos quais o artista retrata as estruturas de Eldena — é possível notar que as ruínas não são reproduzidas de forma fidedigna, elas são transpostas para outros lugares, outras realidades. É como se o pintor as colocasse em temporalidades diferentes, onde a retomada da natureza acontece em ritmos e formas distintas. Figura 6: Klosterruine Eldena bei Greifswald Klosterruine Eldena bei Greifswald”, Caspar David Friedrich, óleo sobre tela, 1824-1825. Fonte: Banco de imagens da Alte Nationalgalerie, Berlim. ARTE EM RUÍNAS: APROXIMAÇÕES E DESDOBRAMENTOS LUCAS GERVILLA ARTEFILOSOFIA, Nº31, JAN-DEZ DE 2022, P. 48-63 http://www.artefilosofia.ufop.br/ 55 DIAS ATUAIS Nos dias atuais, as aproximações entre arte e ruínas continuam presentes nas mais variadas linguagens da arte contemporânea, o que leva a uma procura por possíveis justificativas desse interesse. Huyssen acredita que uma das razões é a nostalgia que os lugares abandonados despertam nas pessoas que os visitam: A ruína arquitetônica é um exemplo da combinação indissolúvel de desejos espaciais e temporais que desencadeiam a nostalgia. No corpo da ruína, o passado está presente nos resíduos, mas ao mesmo tempo não está mais acessível, o que faz da ruína um desencadeante especialmente poderoso da nostalgia.10 Nesse contexto, as ruínas surgem como elementos que nos deslocam de nossa temporalidade atual, permitindo-nos imaginar outras possibilidades de passados, futuros e presentes. Caminhar por uma ruína pode ser um convite para nos perdermos voluntariamente em nossas próprias noções de tempo. Mas o que faz de uma ruína uma ruína? Ou o que torna um lugar abandonado? Huyssen acredita que ruínas são “estruturas arquitetônicas reclamadas pela natureza”11, ou seja, o surgimento de uma ruína é um processo que depende da natureza, diferentemente de implosões planejadas ou situações de guerra. Dessa forma, é necessário um tempo natural para que as estruturas venham a tornar-se ruínas, não é algo que pode ser feito da noite para o dia. Paralelamente, um lugar passa a ser abandonado quando deixa de ser habitado. Marion Segaud diz que “habitar significa dominar um espaço ou uma série de espaços por meio da execução neles de práticas cotidianas.”12. Quando essas práticas cotidianas deixam de existir, o abandono é constituído e se inicia o processo de reapropriação da natureza. Essa é uma das possíveis origens do interesse de artistas contemporâneos por esses lugares: investigar quais eram essas práticas cotidianas. RUÍNAS CONTEMPORÂNEAS E ARTE Ao falarmos de ruínas e lugares abandonados, pode ser natural pensarmos em períodos longínquos, em resquícios de um tempo distante. Porém, esses lugares continuam fazendo parte do nosso tempo atual. As ruínas estão tão presentes na contemporaneidade quanto estiveram durante toda a história da humanidade. O 10 HUYSSEN, 2014, p. 91. 11 HUYSSEN, 2014, p. 83. 12 SEGAUD, Marion. Antropologia do Espaço – Habitar, fundar, distribuir, transformar. São Paulo: Edições Sesc: 2016, p. 124. ARTE EM RUÍNAS: APROXIMAÇÕES E DESDOBRAMENTOS LUCAS GERVILLA ARTEFILOSOFIA, Nº31, JAN-DEZ DE 2022, P. 48-63 http://www.artefilosofia.ufop.br/ 56 que pode gerar um estranhamento ao vermos uma ruína mais moderna é o fato de ela representar um fracasso, contrariando o otimismo progressista. Nesse sentido, elas podem despertar repulsa ao invés de admiração. A relação entre artes e ruínas não fica restrita a nenhum período histórico, ela segue forte até os dias atuais. Possivelmente, “essa obsessão contemporânea pelas ruínas esconde a saudade de uma era anterior, que ainda não havia perdido o poder de imaginar outros futuros.”13. Um trabalho contemporâneo que dialoga com o que Huyssen chama de “saudade de uma era anterior” é “Cine Fantasma”, do grupo carioca Coletivo Fantasma, liderado por Paola Barreto. Criado em 2013, o trabalho é: Uma série de videointervenções urbanas que ocupa espaços públicos ao ar livre, e acontece em locais que já abrigaram, um dia, salas de cinema”. Mixando imagens de arquivo com trechos de filmes e imagens captadas ao vivo no local da ação, as projeções em grande formato evaporam-se pelas paredes externas dos edifícios, ativando a memória da cidade e cruzando imaginários urbanos.14 Embora, na maioria das vezes, o trabalho não seja realizado em lugares abandonados — pois boa parte dos locais que abrigavam cinemas de rua no Brasil foi transformada em lojas de departamento, estacionamentos ou igrejas evangélicas — o trabalho lida com a ruína em um sentido metafórico, o da memória em ruínas. As imagens projetadas nas fachadas dos prédios reativam a memória daquele lugar. As projeções são como vestígios da memória dos cinemas de antigamente, que já não estão mais presentes fisicamente, eles são acionados através das imagens. “Cine Fantasma” é um trabalho multidisciplinar que emprega “técnicas de teatro de rua, reportagem e VJ. Este projeto propõe uma ação crítica que reflita sobre identidade, memória, arquitetura e imaginário.”15. O trabalho foi realizado em cidades como Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Juazeiro do Norte, Berlim e Roma. Em uma época em que praticamente todos os cinemas do Brasil foram transferidos para os interiores de shopping centers ou grandes galerias, o que restou dos cinemas de rua foram apenas memórias, lembranças ruinosas. O “Cine Fantasma” persegue essas memórias e as devolve aos seus lugares de origem através de imagens. 13 HUYSSEN, 2014, p. 91. 14 BARRETO, Paola. Cine-Fantasma: assombrações dos cinemas de rua. Disponível em: http://cinefantasma.blogspot.com/p/sobre-o-projeto.html Acesso em: 18 de mar. 2019. 15 BARRETO, 2013. ARTE EM RUÍNAS: APROXIMAÇÕES E DESDOBRAMENTOS LUCAS GERVILLA ARTEFILOSOFIA, Nº31, JAN-DEZ DE 2022, P. 48-63 http://www.artefilosofia.ufop.br/ 57 Figura 7: Cine Fantasma Cine Fantasma”, Coletivo Fantasma, 2013. Fonte: fotografia cedida pelos artistas. Outro trabalho que segue essa temática é a obra conjunta dos artistas Lucas Gervilla e Monica Toledo intitulada “Ruínas|Ruídos – de Detroit a Moscou”, de 2017. Uma série com 10 imagens, onde são sobrepostas fotografias captadas em lugares abandonados nas cidades de Detroit (EUA), Moscou e Nizhny Novgorod (Rússia). A técnica de sobreposição gera novos lugares a partir de registros de cidades que já foram expoentes do capitalismo e comunismo: Detroit foi o símbolo do capitalismo industrial estadunidense, enquanto Moscou foi a capital da União Soviética. Nizhny Novgorod foi a primeira cidade russa a passar pelo processo de desestatização após a dissolução da URSS e funcionou como um laboratório para as privatizações. Também faz parte da obra um vídeo de 3:50min na qual é empregada a mesma técnica de sobreposição de imagens ruinosas e ruídos captados nas mesmas localidades. O trabalho procura criar lugares imaginários, conectando por alguns instantes ruínas e ruídos de ambas as cidades. Com a incrustação de imagens e a mixagem de sons não é possível identificar cada local isoladamente, eles se tornam uma coisa só. A grande quantidade de lugares abandonados nessas três cidades expõe as distopias do capitalismo e do comunismo. ARTE EM RUÍNAS: APROXIMAÇÕES E DESDOBRAMENTOS LUCAS GERVILLA ARTEFILOSOFIA, Nº31, JAN-DEZ DE 2022, P. 48-63 http://www.artefilosofia.ufop.br/ 58 Figura 8: Ruínas|Ruídos — de Detroit a Moscou Ruínas|Ruídos — de Detroit a Moscou, Lucas Gervilla e Monica Toledo, 2018. Fotografia cedida pelos artistas. Figura 9: Ruínas|Ruídos — de Detroit a Moscou Ruínas|Ruídos — de Detroit a Moscou, Lucas Gervilla e Monica Toledo, 2018. Fonte: fotografia cedida pelos artistas. A fotógrafa brasileira Ana Ottoni, em sua dissertação de mestrado intitulada “A ruína brutalista — sobre a fotografia e a nostalgia na contemporaneidade”, apresenta um ensaio fotográfico (2012-2016) sobre ruínas modernistas brasileiras, em especial ruínas do estilo arquitetônico conhecido como brutalismo. Para a autora, não se trata apenas de estruturas arquitetônicas abandonadas, mas também ARTE EM RUÍNAS: APROXIMAÇÕES E DESDOBRAMENTOS LUCAS GERVILLA ARTEFILOSOFIA, Nº31, JAN-DEZ DE 2022, P. 48-63 http://www.artefilosofia.ufop.br/ 59 da representação de um projeto político-institucional que promove o descaso com estruturas públicas. O ponto de partida do trabalho foi a casa onde a artista morou durante a adolescência e, na época da dissertação, estava abandonada. Ottoni optou por abordar um tema que lhe é familiar. Para ela, a casa abandonada – projetada pelo seu próprio pai — gera relações afetivas que vão além da frustração com o projeto moderno falido. Além da antiga casa, fazem parte do ensaio lugares como o Centro Cultural de Convivência de Campinas, a Garagem de Barcos Santa Paula Iate Clube (São Paulo-SP) e o Estádio CEPEUSP, dentro da Cidade Universitária da USP. As fotografias da artista funcionam como um mecanismo para que a memória desses lugares não se transforme em ruínas, como aconteceu com suas estruturas: Figura 10: A Ruína Brutalista Fotografia integrante da série “A Ruína Brutalista”, Ana Ottoni, 2012-2016. Fonte: fotografia gentilmente cedida pela artista. No campo da pintura, a produção da artista dinamarquesa Mie Olise Kjærgaard propõe aproximações da arte com lugares ruinosos. Desde 2008, Kjærgaard desenvolve — através de pinturas, instalações e vídeo — um trabalho focado na arquitetura decadente da sociedade contemporânea e na construção de lugares imaginários a partir de ruínas. Suas pinturas promovem uma investigação sobre espaços e estruturas abandonadas, como é possível observar nas obras “On Stick with Pineapples” e “Habitation”, ambas de 2008. O trabalho é inspirado nas ruínas da cidade de Piramida, localizada na ilha de Spirsbergen, no extremo norte da Noruega. Em 1927, o governo norueguês vendeu a ilha para a União Soviética, que passou a explorar uma mina de carvão no ARTE EM RUÍNAS: APROXIMAÇÕES E DESDOBRAMENTOS LUCAS GERVILLA ARTEFILOSOFIA, Nº31, JAN-DEZ DE 2022, P. 48-63 http://www.artefilosofia.ufop.br/ 60 local. Piramida foi construída logo em seguida e funcionou como uma cidade operária até o fechamento da mina em 1998, quando o governo russo devolveu a ilha à Noruega. As imagens criadas pela artista trazem visões alternativas para as estruturas remanescentes no local. Em 2009, a pintora criou uma série chamada “The Esquisite Capabilities of The Flying Carpet”, inspirada no Spreepark, um parque de diversões abandonado em Berlim, no antigo lado oriental da cidade. As pinturas e os vídeos que integram a obra mostram estruturas e brinquedos que sobraram do local, uma mistura de melancolia com destruição. O parque foi abandonado em 2004, quando o proprietário do local foi preso pela polícia alemã após uma tentativa frustrada de contrabandear cocaína dentro de brinquedos. Figura 11: Jet Star Jet Star, obra integrante da série “The Esquisite Capabilities of The Flying Carpet”, Mie Olise Kjærgaard, 2009 Acrílico sobre tela. 90x84cm. Fonte: fotografia gentilmente cedida pela artista. Dentre sua produção recente, Kjærgaard criou em 2017 a série “Bastard Monuments”. Suas telas foram pintadas a partir das ruínas retratadas no filme “A Queda da Babilônia”, de D.W. Griffith, lançado em 1919. A película mostra ruínas imaginárias do que um dia foi o Império Babilônico. A artista se apropria dessas ruínas e cria ARTE EM RUÍNAS: APROXIMAÇÕES E DESDOBRAMENTOS LUCAS GERVILLA ARTEFILOSOFIA, Nº31, JAN-DEZ DE 2022, P. 48-63 http://www.artefilosofia.ufop.br/ 61 outras, ainda mais imaginárias. Uma metalinguagem perdida entre algum lugar do que um dia foram ruínas reais e as cinematográficas criadas por Griffith. Figura 12: Bastard Monuments Obras integrantes da série “Bastards Monuments”, Mie Olise Kjærgaard, 2017. Fonte: fotografia gentilmente cedida pela artista. O universo das ruínas segue influenciando as mais variadas linguagens artísticas. No cinema, uma evidência dessa ação é o longa-metragem “Homo Sapiens”, do diretor austríaco Nikolaus Geyhalter. Lançado em 2016 e com 90 minutos de duração, o filme mostra diversos tipos de lugares abandonados por todo o mundo: hospitais, catedrais, construções monumentais da antiga União Soviética, as cidades de Prypriat (Ucrânia) e Fukushima (Japão), entre outros que não são prontamente reconhecidos. As imagens retratam paisagens apocalípticas de um mundo pós-humanidade, como se o homo sapiens estivesse extinto. O filme pode ser classificado como um documentário observativo, pois todos os lugares são mostrados em planos abertos, com a câmera fixa e sem nenhum movimento como panorâmicas, tilts ou travelings. O diretor justifica essa opção estética: “se não há humanos, quem iria mover a câmera?”16. Os únicos movimentos nas imagens são provocados por fatores não humanos, como vento, chuva e insetos. 16 Geyhalter, nikolaus. “nikolaus geyhalter confronts homo sapiens”. Courtney ARTE EM RUÍNAS: APROXIMAÇÕES E DESDOBRAMENTOS LUCAS GERVILLA ARTEFILOSOFIA, Nº31, JAN-DEZ DE 2022, P. 48-63 http://www.artefilosofia.ufop.br/ 62 Figura 13: Homo Sapiens Still do filme “Homo Sapiens”, Nikolaus Geyhalter, 2016. Fonte: imagem de divulgação do filme, disponível em: www.geyrhalterfilm.com/en/homo_sapiens. Acesso em 05 de mar de 2019. “Homo Sapiens” transita entre as fronteiras do documentário e da ficção científica. Não há marcadores temporais no filme, o que embaralha as noções de espaço e tempo do espectador. CONSIDERAÇÕES FINAIS A admiração e interesse pelas ruínas são tão antigos quanto as primeiras estruturas abandonadas pela humanidade. Como o então chamado progresso avança em um ritmo cada vez mais acelerado, visando apenas o que pode vir a ser, ele deixa um rastro de ruínas, renovando o imaginário acerca delas. Diante desse contexto, é quase certo afirmar que a arte irá continuar se aproximando de lugares abandonados e ruinosos, utilizando-os como temas que questionam as relações entre memória e esquecimento, entre cultura e natureza. Os trabalhos artísticos aqui mencionados são apenas um recorte dentro das produções passadas e atuais. A tendência é que a criação de obras que abordam essa temática continue se expandindo, evitando, assim, que muitas de nossas memórias entrem em estado de ruição. sheehan. The independent magazine. 28 de fevereiro de 2016. Disponível em: http://independent-magazine.org/2016/02/nikolaus-geyrhalter-confronts-homo- sapiens/ acesso em: 19 de mar. 2019. ARTE EM RUÍNAS: APROXIMAÇÕES E DESDOBRAMENTOS LUCAS GERVILLA ARTEFILOSOFIA, Nº31, JAN-DEZ DE 2022, P. 48-63 http://www.artefilosofia.ufop.br/ 63 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARRETO, Paola. Cine-Fantasma: assombrações dos cinemas de rua. Disponível em: http://cinefantasma.blogspot.com/p/sobre-o-projeto.html Acesso em: 18 de mar. 2019. EINSENSTEIN, Sergei. Piranesi: or the fluidity of forms. Izbrannye proizvedeniia, Moscou, p. 156-187, 1967. GEYHALTER, Nikolaus. “Nikolaus Geyhalter confronts Homo Sapiens”. Courtney Sheehan. The Independent Magazine. 28 de fevereiro de 2016. Disponível em: http://independent-magazine.org/2016/02/nikolaus-geyrhalter- confronts-homo-sapiens/ Acesso em: 19 de mar. 2019. HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente — modernismos, artes visuais, políticas da memória. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014. MACAULAY, Rose. Pleasure of ruins. Nova York: Walker & Company, 1966, MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo Editorial, 1998. SEGAUD, Marion. Antropologia do Espaço – Habitar, fundar, distribuir, transformar. São Paulo: Edições Sesc: 2016. Artigo recebido em 27/08/20 Aceito em 06/03/22