II Congresso Nacional de Formação de Professores XII Congresso Estadual Paulista sobre Formação de Educadores O CONCEITO DE INCLUSÃO E A DIVERSIDADE NA POLÍTICA EDUCACIONAL BRASILEIRA Jose Geraldo Alberto B Poker, Rosimar Bortolini Poker Eixo 5 - A formação de professores na perspectiva da inclusão - Relato de Pesquisa - Apresentação Oral As teorias recentes da sociologia política localizam a existência dos problemas de inclusão e reconhecimento no interior das chamadas sociedades multiculturais do século XX, mas as teorias não tratam das sociedades multiculturais derivadas da colonização no século XVI, e que abrigam em seu interior contrastes étnicos muito mais intensos. A população brasileira é composta por povos imigrantes de várias origens e de 800 mil descendentes de povos nativos, agrupados em cerca de 200 nações, que falam 180 idiomas diferentes. Este estudo visou analisar as atuais políticas educacionais brasileiras, enfocando a forma pela qual elas consideram a diversidade e o reconhecimento para elaborar e executar ações de inclusão. Foi construído um modelo teórico baseado na perspectiva de Habermas sobre as teorias de inclusão e reconhecimento, com que foram analisadas as concepções de inclusão, reconhecimento e diversidade nas políticas educacionais no Brasil, observando a potencialidade delas em efetivar a diversidade num contexto de discrepâncias. Notou-se que o conceito de inclusão reconhece algumas diferenças individuais, mas não concilia modos de vida e visões de mundo discrepantes, o que torna as políticas educacionais de inclusão brasileiras insuficientes para promover a coexistência das culturas no plano da diversidade e da emancipação. Palavras-chave: inclusão, diversidade, políticas educacionais brasileiras. 9268 1 O CONCEITO DE INCLUSÃO E A DIVERSIDADE NA POLÍTICA EDUCACIONAL BRASILEIRA José Geraldo Poker;Rosimar B. Poker. FFC, Unesp. O conceito de inclusão não pode ser compreendido em sua complexidade sem que seja conjugado ao conceito de reconhecimento. Ambos se referem às condições essenciais e básicas para a construção de sociedades nas quais as relações sociais sejam orientadas pelo princípio da diversidade. Neste sentido, a diversidade pode ser observada como uma ética que preside e organiza relações sociais, indicando o valor máximo que se pretende consolidar na vida coletiva dos integrantes de sociedades determinadas, sobretudo aquelas nomeadas como multiculturais. Foi escolhida como referência para este estudo a abordagem do filósofo-sociólogo alemão Jürgen Habermas. Em sua análise, merecem atenção o fato de que os conceitos de inclusão, reconhecimento e diversidade estão ligados a um contexto histórico bem definido, notadamente aquele no qual a globalização, os movimentos migratórios e o desenvolvimento tecnológico afetam a estrutura das instituições nas sociedades ocidentais. Habermas se concentra em analisar a incidência da globalização em quatro aspectos da sociedade contemporânea, a saber: a segurança jurídica e a efetividade do Estado administrativo, a soberania territorial, a identidade coletiva e a legitimidade democrática do Estado nacional. Em relação aos dois primeiros aspectos, Habermas observa que, com o alto grau de interdependência presente no sistema internacional, praticamente todos os problemas enfrentados pela administração estatal se tornaram planetários. Problemas ambientais, fiscais, monetários, de segurança interna, nada disso mais pode ser resolvido por um Estado sem a cooperação de todos os outros. Por isso, os Estados nacionais perdem parte de sua força de coação e torna-se difícil garantir a efetividade das leis internas, ou o cumprimento pleno de decisões judiciais, porque tudo isso depende do pleno domínio sobre o território, o que não existe mais. Quanto ao terceiro aspecto, que trata da influência sobre a identidade coletiva, a análise feita por Habermas considera que, da mesma forma que atinge as demarcações territoriais, a globalização embaralha culturas e assim atua sobre os fatores de etnicidade com os quais se constroem os sentimentos de povo ou nação. Disso decorrem dois fenômenos combinados: 9269 2 o endurecimento da indentidade nacional e o amolecimento das formas de vida homogêneas em cada cultura local (Habermas, 2001, p. 92) Mas isso não significa que o processo democrático esteja inviabilizado. Segundo Habermas, o processo democrático e a prática da autolegislação dependem mais da existência de uma cultura política, quer dizer, da disposição de participação das pessoas nos debates sobre as decisões públicas, do que das formas pelas quais elas constroem suas visões de mundo. É nesse ponto que se pode observar um dos significados atribuídos por Habermas à expressão inclusão. Tal expressão indica um aperfeiçoamento necessário da democracia moderna, para que ela se torne “uma prática de autolegislação que engloba igualmente todos os cidadãos” (Habermas, 2001, p. 93), e suporte as mudanças culturais e sociais provenientes da globalização. Ou ainda, inclusão significa “que a coletividade política permanece aberta para abarcar os cidadãos de qualquer origem, sem fechar esse outro na uniformidade de uma nação homogênea” (idem, p. 94). Por isto, segundo Habermas, o aperfeiçoamento do processo democrático permite que diferentes culturas coexistam num espaço de liberdade, à medida que a condição de igualdade derivada dos direitos fundamentais garantidos aos indivíduos possibilita que as culturas afirmem seus modos de vida umas em relação às outras, sem que isso venha a ameaçar a integração da sociedade. Do mesmo modo, os indivíduos também se tornam livres para escolher a referência cultural a qual querem pertencer. Assim, as sociedades multiculturais podem ser apresentadas como espaços sociais constituídos e mantidos pela permanente negociação de identidades de sujeitos que se vinculam a matrizes culturais diversas. Nelas o conceito de coletividade não depende de laços pelos quais indivíduos se vêem como companheiros de destino. Ao contrário, a coletividade deve se formar mediante a livre associação de companheiros de direitos (Habermas, 2001, p. 128). Em relação a isso, identifica-se um significado secundário de inclusão, que consiste na emancipação decorrente do processo de universalização dos direitos fundamentais. Disso resulta um processo de individualização, à medida que todo ser humano precisa ser tratado como indivíduo, e todo indivíduo deve ser considerado como sujeito de direitos, não importando sua procedência ou vinculação cultural. Segundo Habermas, o multicuturalismo e a individualização decorrentes da globalização, “obrigam a abrir mão da 9270 3 simbiose do Estado constitucional com a ‘nação’ como uma comunidade de origem, para que a solidariedade entre os cidadãos possa se renovar em um nível mais abstrato, no sentido de um universalismo mais sensível às diferenças” (2001, p. 106). Por inclusão, então, na teoria de Habermas, deve-se entender o empenho pela abertura à diversidade necessária à preservação das condições de convivência nas sociedades multiculturais. Tanto mais aumentam as condições de convivência, quanto mais se aperfeiçoa a democracia nos processos de tomada de decisões. Tal aperfeiçoamento, por sua vez, depende do esforço pela extensão dos direitos fundamentais, que permite a todos os cidadãos participarem das discussões públicas representando seus próprios interesses, juntamente com os da cultura a qual escolheram pertencer. Para compreender o argumento de Habermas, primeiramente há que se tentar definir o que seria reconhecimento para ele, salientando que uma definição assim não se encontra já pronta. Ele do pressuposto que cada modo de vida existente numa coletividade possui especificidades, e que cada um afirma sua existência a medida que considera a igual legitimidade da existência de todos os outros, não importando se compõem minorias ou maiorias na sociedade que integram. Nesse sentido, qualquer reconhecimento implica um tipo de relacionamento entre grupos étnicos, ao mesmo tempo que se refere à validação das especificidades e à consideração do direito a existência que os grupos se concedem mutuamente. A expressão luta por reconhecimento pode ser entendida de duas formas: como o projeto e as estratégias políticas empregadas por um grupo para afirmar a legitimidade de sua especificidade diante de outros e conquistar espaço na sociedade; ou pode ser entendida também como a mobilização política de um grupo étnico para dirigir demandas ao Estado, exigindo dele a proteção na forma de benefícios adicionais, quando as especificidades do modo de vida do grupo se tornam fatores de privação econômica e inferiorização social dos seus integrantes. Em virtude disso, qualquer luta por reconhecimento empreendida numa coletividade esbarra de alguma forma na configuração ética do direito racional existente e que regula as relações inter-individuais e inter-grupais na sociedade, ao mesmo tempo que confronta o sistema de distribuição dos direitos gerenciado pelo Estado. O argumento de Habermas começa com um questionamento dirigido ao direito ocidental. Ele se pergunta: “uma teoria dos direitos de orientação 9271 4 individualista pode dar conta de lutas por reconhecimento nas quais parece tratar-se sobretudo da articulação e afirmação de identidades coletivas?” (Habermas, 2002, p. 229). Com tal pergunta, ele observa que o direito ocidental pode ser considerado um instrumento eficiente para solucionar demandas no âmbito individual da vida, servindo bem ao propósito de consubstanciar as lutas históricas de emancipação na sociedade ocidental, que culminaram na conquista da igualdade de oportunidades e no Estado de bem-estar social. Se houver a efetivação do direito liberal, esta é a condição suficiente para estabelecer uma ordem social legítima, que incorpore a afirmação e reconstrução das identidades na convivência intercultural (liberdade de escolha), ao mesmo tempo em que proporciona as formas correspondentes de correção das situações de inferioridade, mediante o reconhecimento da dignidade de quaisquer grupos étnicos (Habermas, 2002, p, 242). A solução para todos os problemas relacionados ao reconhecimento encontra-se disponível na arquitetura do direito racional e na vinculação do Estado de Direito e a democracia. Para solucionar eventuais conflitos interculturais, basta ao Estado garantir a participação de todos os cidadãos nas instâncias deliberativas, em que serão produzidas demandas na forma de cobrança pela efetivação dos direitos. No Estado democrático de direito, segundo analisa Habermas, não é preciso que sejam criadas políticas de reconhecimento, pois isso resultaria na perda da neutralidade ética do Estado. Se o Estado protege um tipo de vida determinado em detrimento de outros, ele não consegue garantir as autonomias privada e pública, porque torna obrigatória uma escolha que cada cidadão deve ser livre para fazer. Ao invés de tutelar as minorias, cabe ao Estado democrático desenvolver políticas de inclusão, quer dizer, de universalização dos direitos fundamentais, que são imprescindíveis à participação de todos os cidadãos no discurso público e nas deliberações, por meio do que os diferentes grupos étnicos podem expressar sua identidade e conquistar o reconhecimento uns dos outros. No Brasil, um conceito de inclusão foi originalmente apresentado no âmbito da política educacional, em que passou a ser associado ao conceito de necessidades educacionais especiais, associação esta que teve como conseqüência a vinculação entre inclusão e ações contra discriminação de deficientes no campo da educação especial. 9272 5 Na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), promulgada em 1996, a terminologia necessidades educacionais especiais foi utilizada, mas sem que seu conceito fosse explicitado, ou seja, o conceito apareceu como se já fosse conhecido. Fazendo uma análise do contexto da época, é possível supor que o uso do termo na LDB se deu sob influência da Declaração de Salamanca, de 1994, resultante da Conferência internacional que tratou dos princípios, políticas e práticas na área das necessidades educacionais especiais, reafirmando o direito de todas as pessoas à educação. Embora não tenha participado dessa Conferência, o Brasil foi signatário da declaração, que se referiu aos alunos com necessidades educacionais especiais como “crianças e jovens cujas necessidades decorrem de sua capacidade ou de suas dificuldades de aprendizagem” (ONU, 1994). Importante destacar que na Declaração, o conceito de necessidades educacionais especiais é bem explanado, e inserido em um princípio maior que deve reger a escola denominada inclusiva, a de uma escola acolhedora, que utiliza uma pedagogia centrada no aluno, que é capaz de assumir o desafio de ensinar todos, independentemente das condições físicas, intelectuais, sociais, emocionais, lingüísticas, étnicas, culturais ou outras. Na LDB de 1996, a expressão necessidades educacionais especiais aparece sem definição, e encontra-se no tópico relacionado estritamente à educação especial, conforme se pode observar na leitura do seu Capítulo V. A falta de esclarecimento a respeito da nova terminologia utilizada, e a vinculação direta do alunado com necessidades educacionais especiais com a modalidade educação especial, conforme foi proposta pela LDB, levou a sérios problemas de interpretação, que repercutiram no cotidiano das escolas. Isto porque, em uma primeira interpretação do que consta na LDB, se o conceito de educandos com necessidades educacionais especiais for compreendido na mesma perspectiva apresentada pela Declaração de Salamanca, amplia-se consideravelmente a área de abrangência da clientela atendida pela educação especial, já que na Declaração, tal alunado refere-se a todo aluno que apresenta dificuldades em seu processo de escolarização, conforme exposto acima. Diferentemente, se a compreensão de necessidades educacionais especiais se basear, única e exclusivamente, naquilo que está escrito na LDB - sem referência a Declaração de Salamanca - como o conceito apareceu diretamente atrelado ao capítulo que trata exclusivamente da educação especial, então é possível concluir que apenas 9273 6 os alunos com algum tipo de deficiência apresentariam necessidades educacionais especiais. Essa imprecisão conceitual a respeito do alunado com necessidades educacionais especiais mudou a partir de 1999 quando, no conjunto de materiais que tratam dos Parâmetros Curriculares Nacionais, documento oficial produzido pela Secretaria da Educação/MEC, foi publicado um volume sobre Adaptações Curriculares, em que apareceu a definição desse termo. O subtítulo do volume é Estratégias para a educação de alunos com necessidades educacionais especiais, e a definição do termo necessidades educacionais especiais foi apresentada identicamente como proposto pela Declaração de Salamanca (1994), sem qualquer ajuste ou adaptação ao contexto brasileiro. Ao explicitar a abrangência do significado de necessidades educacionais especiais, compreendeu-se que todos os alunos com dificuldades de aprendizagem decorrentes de fatores diversos, assim como os alunos com deficiência, teriam também direito ao atendimento educacional especializado. Por causa disto, naquele momento ocorreu um aumento considerável e preocupante de encaminhamento de alunos com dificuldades de aprendizagem para serem atendidos pelos serviços especializados das escolas, que ficaram sobrecarregados. Além disso, observou-se que os professores das salas regulares, de certa maneira, se sentiram a vontade para se isentar de responsabilidade sobre os alunos identificados com necessidades educacionais especiais, pois, afinal, eles passaram a ter o direito de serem atendidos pelo serviço especializado e lá havia especialistas que poderiam suprir as suas necessidades educacionais. O Plano Nacional de Educação de 2001, aprovado em forma da Lei nº 10.172/01, também utilizou a terminologia necessidades educacionais especiais em seu texto. Ele estabeleceu como objetivos e metas para a educação e atendimento dos alunos com necessidades educacionais especiais, os padrões mínimos de infra-estrutura das escolas e incentivo à realização de estudos e pesquisas nas diversas áreas relacionadas com as necessidades educacionais especiais. Nada mais foi tratado sobre o conceito de necessidades educacionais especiais ao longo do documento. A Resolução do CNE/CEB nº 02/2001, que instituiu as Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica, manifestou o compromisso do país em universalizar o ensino atendendo à diversidade. A política expressa no documento traduziu o conceito de escola inclusiva, que 9274 7 deveria ser uma escola que se colocava à disposição do aluno, organizando- se para oferecer ensino de qualidade para todos, assegurando atendimento aos educandos com necessidades educacionais especiais, conforme consta do seu Art.5º. Em consonância com estes instrumentos legais já citados, em 2003, a Secretaria da Educação Especial/MEC elaborou documentos norteadores da prática educacional para alunos com necessidades educacionais especiais que mantiveram a mesma definição de necessidades educacionais especiais, apresentada antes nos Parâmetros Curriculares Nacionais – Adaptações Curriculares de 1999. No Brasil, a importação deturpada de conceitos trouxe conseqüências lesivas para a implementação do modelo educacional inclusivo. Como este modelo de educação foi vinculado ao atendimento na educação especial, na prática, se verificou que a mudança efetivamente observada no cotidiano das escolas em decorrência da inclusão, foi o crescente encaminhamento e atendimento generalizado de alunos com dificuldades de aprendizagem provocadas por fatores conhecidos ou não, pelos serviços especializados. Mas a mudança do paradigma da escola, da superação do modelo homogeneizador de ensino, na prática não aconteceu. O foco manteve-se na ampliação do oferecimento do serviço educacional especializado, atingindo um sensível percentual de alunos, agora denominados alunos com necessidades educacionais especiais, contrariando radicalmente a lógica da diversidade. Assim, em nome da inclusão, um tipo de alunado que anteriormente não era notado dentro da escola, repentinamente passou a compartilhar dos diversos tipos de estigmatização que atingem os alunos com deficiência. A maneira brasileira de compreender e enfrentar a questão da educação para todos é muito diferente do que propõe, de fato, uma educação inclusiva, uma modalidade de educação que reconhece a diversidade do alunado e é orientada pela emancipação. Nesta direção, a escola deve adaptar-se às características específicas de sua clientela, oferecendo respostas próprias e adequadas que garantam a aprendizagem de qualquer aluno, não obstante a existência de causas que eventualmente o levariam a apresentar problemas de desempenho no processo de escolarização. Tentando reverter as consequências da importação a-crítica do conceito de necessidades educacionais especiais, a partir de 2008, novos documentos foram elaborados pelo Ministério da Educação apontando 9275 8 reconsiderações a respeito da clientela da educação especial que tem direito ao Atendimento Educacional Especializado. No entanto, o esforço pelo redirecionamento da política educacional não foi acompanhado da devida e necessária correção acerca da recepção e compreensão do conceito de inclusão. No contexto da educação brasileira, esvaziadas de sentido, inclusão, sociedade inclusiva, escola inclusiva tornam-se apenas palavras utilizadas para compor discursos políticos novos, em torno dos quais são mantidas antigas práticas. Permanecem intactas nas escolas, e em alguns casos, como foi demonstrado logo acima, até mesmo renovadas e ampliadas as práticas discriminatórias de inferiorização, decorrentes da lógica da homogeneização, orientação esta que não reconhece a validade de diferenças e peculiaridades individuais. Na forma como se encontra, o sistema educacional pouco contribui para a universalização do acesso aos direitos fundamentais, que permitiriam a participação política dos cidadãos, tornando-se um instrumento de políticas públicas às avessas. Nos discursos educacionais brasileiros com freqüência se observa que a palavra inclusão tem sido pronunciada de modo a designar a situação contrária à exclusão. Então, inclusão social consistiria em todas as tentativas, seja do Estado ou de outros agentes, de promover a superação das situações de exclusão social, que seriam todas as supostas formas e mecanismos que impediriam determinadas pessoas de fazer parte da sociedade. Nesse caso, aplicando-se a regra acima, quaisquer pessoas em situação de privação econômica ou que seja vitima de preconceitos, como os pobres, homossexuais, negros, mulheres, velhos, índios, deficientes, entre outros, todos eles estariam fora da sociedade, e precisariam ser colocados para dentro, incluídos, como gesto de humanidade e de respeito aos direitos humanos. Por intermédio da análise feita por Martins (2003), nota-se o erro de atribuir a uma suposta ação de exclusão a causa para todas as formas de privação de direitos que ocorre na sociedade brasileira. Segundo Martins, o ato de excluir implica a retirada de alguém de dentro de uma sociedade, o que é possível apenas pelo banimento. De fato, a expressão exclusão indica um fenômeno contrário ao da expulsão. Indica um processo de inclusão perversa, na qual pessoas com determinadas características são propositadamente inferiorizadas nas trocas sociais para em seguida serem exploradas nas trocas econômicas. Mas isso não significa que as vitimas da 9276 9 exploração deixaram de fazer parte da sociedade; ao contrário, as pessoas somente podem ser inferiorizadas e exploradas na condição de integradas à sociedade. Outra distorção no emprego das palavras inclusão e reconhecimento, e dos seus respectivos conceitos, é aquela provocada pela vinculação entre grupo social (étnico) e grupo estatístico. Grupos étnicos são constituídos mediante a vinculação automotivada de pessoas que se identificam com determinada cultura ou modo de vida. Grupos estatísticos, por sua vez, são coleções de indivíduos montadas por quem interpreta dados demográficos, e dessa forma classifica as pessoas mediante certas características comuns que os dados indicam. É o caso, por exemplo, dos idosos, das crianças, dos deficientes, dos encarcerados etc. Mas nem todo grupo estatístico é um grupo social ou étnico. Daí o problema de pretender políticas ou práticas de inclusão exclusivas para deficientes. A categoria deficientes é uma categoria estatística, e não expressa qualquer tipo de identidade cultural. Por isso a deficiência não pode ser evocada para nomear uma cultura cuja especificidade deve ser reconhecida; ela só pode ser empregada para nomear características físicas e/ou intelectuais de indivíduos que podem vincular-se a várias referências culturais. Além disso, o esforço pela caracterização da peculiaridade, necessário para justificar as políticas públicas de inclusão, pode dificultar a superação dos preconceitos aplicados na discriminação de deficientes, a medida que a justificativa para a inclusão incide sobre a demonstração de diferenças culturais que precisam ser respeitadas. Nesse caso, pessoas com deficiência podem vir a sofrer um preconceito ao contrário, mas igualmente discriminador. Deficientes podem ser considerados como irremediavelmente diferentes, um outro tipo de gente, dotados de tamanha peculiaridade a ponto de não poderem mais ser tratados dentro da condição de igualdade referente às pessoas comuns. Mas existe um outro aspecto da problemática recepção dos conceitos de inclusão e reconhecimento que precisa ser evidenciado. Trata-se das limitações empíricas da abrangência dos respectivos conceitos, que estão presentes na formulação original, e que somente a introdução deles na política educacional brasileira permite que sejam observadas. Conforme já fora demonstrado, os conceitos originais de inclusão e reconhecimento traduzem a preocupação com a emancipação concebida por 9277 10 meio do princípio da diversidade numa sociedade multicultural. A peculiaridade do caso brasileiro evidencia os limites das políticas de inclusão, porque expõem os limites das referências e dos instrumentos do direito racional para a composição do conceito de diversidade. Na argumentação de Habermas a diversidade presente nas teorias do reconhecimento é um objetivo possível de ser atingido quando todos os integrantes de uma sociedade tornam-se efetivamente recobertos pelos direitos fundamentais, e se tornam atores políticos atuando sob a regulação do direito racional. No entanto, as concepções de reconhecimento foram construídas considerando a diversidade observada em contextos sociais muito específicos, nos quais as peculiaridades de modos de viver e de pensar de alguma forma combinam com a subjetividade instituída pela modernidade ocidental. Por mais que possam parecer diferentes de início, os modos de vida e as visões de mundo presentes nos contextos cobertos pelas teorias do reconhecimento pertencem a um mesmo modelo de sociedade. Todos eles são compostos por meio dos princípios da individualidade, igualdade, liberdade, racionalidade e historicidade, mediante os quais também se constitui o direito racional. No caso brasileiro, se as diferenças de fato forem todas elas consideradas em suas reais dimensões, a construção de uma sociedade apta à diversidade no Brasil é uma tarefa muito mais complexa que aquela a ser realizada na Europa, nos Estados Unidos ou no Canadá. Isto porque existem no Brasil culturas não modernas, que ainda orientam modos de viver e pensar em nada referentes aqueles constituídos pela modernidade ocidental. Caso se pretenda aplicar o modelo de diversidade, é preciso reconhecer que a diversidade brasileira seria resultante de uma multiculturalidade na qual se encontram referências simbólicas e sociais as mais discrepantes possíveis, quadro este que abrange desde diferentes modos de vida modernos, e se estende a formas de sociedade constituídas no período pré-colombiano. No Brasil, apesar da ação contínua de forças contrárias, sobrevivem 817 mil indígenas, que se agrupam em 220 povos e falam 180 idiomas diferentes. Não bastasse isto, a Fundação Nacional do Índio - FUNAI, estima que haja 82 povos indígenas que vivem isolados e não são conhecidos pela sociedade nacional. Em que pesem as distorções já mencionadas, o contexto brasileiro serve para demonstrar os limites do conceito de diversidade na forma como foi originalmente construído. Conforme Habermas, em sua forma original, a 9278 11 construção de uma sociedade apta à diversidade pode ser atingida mediante a efetivação e universalização dos direitos fundamentais. Mas quando se observa a complexidade do caso brasileiro, de início há que se questionar a capacidade do direito racional ocidental em ser universal, quer dizer, em ser plástico o suficiente para conseguir regular relações entre pessoas vinculadas a modos de pensar e viver totalmente diferentes, ou mesmo conflitantes, entre si. O direito racional, embora seja eficiente para regular relações e proporcionar o governo da sociedade na modernidade, consiste num sistema de regras construído mediante um sistema simbólico, em torno do qual se estabelece a unicidade ético-valorativa característica do modo de vida na civilização ocidental. Nesse sentido, a construção de uma sociedade apta à diversidade no Brasil dependeria, logo de início, da possibilidade de elaboração de regulações que sejam extensas o suficiente para abranger com eficácia relações sociais realizadas dentro de um plano radical de interculturalidade. Se todas as culturas que designam modos de viver e pensar forem de fato reconhecidas como legítimas, conforme determina o preceito da diversidade, a dificuldade se torna ainda maior quando se pretende criar um sistema de regras para relações sociais que concilie referências simbólicas modernas ocidentais e não modernas pré-colombianas. Ao questionamento da pretensão de universalidade do direito ocidental, segue um outro, que coloca sob dúvidas a continuidade política educacional inclusiva no Brasil, na hipótese de que ela se mantenha. Se a inclusão for de fato o objetivo da política educacional atual, mesmo considerando as distorções existentes na elaboração do conceito brasileiro, para atingir o plano da diversidade, seria necessário construir um sistema educacional suficientemente universal para abranger e conciliar todas as diferenças presentes na sociedade. A concretização deste ideal dependeria da capacidade de construir escolas coerentes com propostas pedagógicas e administrativas elaboradas mediante os parâmetros da diversidade no contexto de uma sociedade multicultural. Diante disto, um outro horizonte de problemas se torna visível. A começar pela linguagem. Num espectro de mais de 200 idiomas possíveis, qual deles as pessoas usariam para se comunicar, considerando a exigências de universalidade próprias da dimensão da diversidade? Na perspectiva de uma escola multicultural e coerente com o plano da diversidade, é imprescindível definir o conhecimento em torno do qual seriam 9279 12 prescritos os currículos e os conteúdos a serem ensinados. Então, o que seria o saber escolar se fosse definido na perspectiva da diversidade? Nesta escola, os atores pré-existentes ainda se nomeariam alunos e professores, e em torno deles ainda ocorreria os processos de ensino e de aprendizagem? Em síntese, como deveriam ser os sujeitos, as relações e as regulações que compõem o cotidiano de uma instituição educacional concebida de forma coerente com os princípios ético-valorativos da diversidade numa sociedade multicultural de fato? Considerações finais Diante de tudo que foi exposto, pode-se afirmar que não é possível atingir o plano da diversidade de fato enquanto as instituições educacionais permanecerem presas à forma organizacional convencional, que é orientada pela homogeneização de pessoas e hierarquização de saberes, de relações e agentes. Na escola convencional, um tipo de saber é apresentado como único válido, a ser ensinado por um único agente, por meio de uma relação de poder vertical e unilateral, numa situação em que todos os alunos devem aprender o mesmo conteúdo, ao mesmo tempo, do mesmo modo. O caso brasileiro permite observar os limites ainda estreitos da abrangência do conceito de diversidade e dos vícios de homogeneização cultural nele existentes, mesmo em sua concepção original. E as mesmas limitações também incidem sobre os conceitos de inclusão e reconhecimento. Para que sejam utilizados em políticas públicas dirigidas à ampliação das condições fáticas e concretas do exercício da igualdade e liberdade entre indivíduos na sociedade, é preciso que tais conceitos sejam submetidos a rigorosos exames críticos. E isto somente é possível quando os conceitos são confrontados com situações reais e radicais de diversidade, nas quais se pode testar o potencial de emancipação neles contido. Referências BRASIL. Lei 9.394/96, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 1996. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Adaptações Curriculares / Secretaria de Educação Fundamental. Secretaria de Educação Especial. Brasília: MEC/ SEF/ SEESP, 1999. BRASIL. Plano Nacional de Educação. Lei n. 10.172, de 09 de janeiro de 2001. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 2001a. 9280 13 BRASIL. 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