Virginia Maria Nuss As relações de causalidade por meio do sintagma preposicionado por + substantivo São José do Rio Preto 2021 Câmpus de São José do Rio Preto Virginia Maria Nuss As relações de causalidade por meio do sintagma preposicionado por + substantivo Tese apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutora em Estudos Linguístico, junto ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Câmpus de São José do Rio Preto. Financiadora: CAPES Orientadora: Profª. Drª. Marize Mattos Dall’Aglio Hattnher São José do Rio Preto 2021 N975r Nuss, Virginia Maria As relações de causalidade por meio do sintagma preposicionado por + substantivo / Virginia Maria Nuss. -- São José do Rio Preto, 2021 95 f. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Instituto de Biociências Letras e Ciências Exatas, São José do Rio Preto Orientadora: Marize Mattos Dall’Aglio Hattnher 1. Relações de causalidade. 2. Sintagma Preposicionado. 3. Gramática Discursivo-Funcional. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca do Instituto de Biociências Letras e Ciências Exatas, São José do Rio Preto. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. Virginia Maria Nuss As relações de causalidade por meio do sintagma preposicionado por + substantivo Tese apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutora em Estudos Linguístico, junto ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Câmpus de São José do Rio Preto. Financiadora: CAPES Comissão Examinadora Profª. Drª. Marize Mattos Dall’Aglio Hattnher UNESP – Câmpus de São José do Rio Preto Orientadora Prof. Dr. Juliano Desiderato Antonio UEM – Câmpus de Maringá Prof.ª Dr.ª Flávia Bezerra de Menezes Hirata Vale UFSCAR – Câmpus de São Carlos Prof.ª Dr.ª Gisele Cássia de Sousa UNESP – Câmpus de São José do Rio Preto Prof. Dr. Sebastião Carlos Leite Gonçalves UNESP – Câmpus de São José do Rio Preto São José do Rio Preto 23 de agosto de 2021 Dedico este trabalho, com amor e carinho, ao meu esposo, Eliseu, aos meus filhos, Ana e Lucas, e aos meus pais, Ivo (in memoriam) e Lindramil. AGRADECIMENTOS À minha muito querida orientadora e amiga, Prof.ª Dr.ª Marize M. Dall’Aglio Hattnher, por todo apoio e compreensão neste longo e árduo processo, pela qualidade da orientação e pela confiança depositada no meu trabalho. Obrigada por me acolher tão prontamente no Programa de Pós-graduação em Estudos Linguísticos do Ibilce, por me compreender e me auxiliar sempre, não me deixando desistir em momento algum. Obrigada por todo zelo, ética, apoio, carinho e respeito tanto em meu percurso profissional e acadêmico quanto pessoal. Ao meu esposo, Eliseu Alves Fortes, por me auxiliar e me compreender neste longo e difícil percurso. Obrigada por estar ao meu lado. Aos professores da banca de qualificação, Prof.ª Dr.ª Gisele Cássia de Sousa e Prof. Dr. Sebastião Carlos Leite Gonçalves, pelas valiosas sugestões, correções, observações e apontamentos. Aos meus familiares que, independentemente de estarem perto ou longe, sempre acreditaram em mim. E, finalmente, a todos os professores e amigos que, no decorrer deste processo de doutoramento, compartilharam comigo suas convicções e conhecimentos. Obrigada a todos por fazerem parte da minha história. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. "O homem, criador dos signos, não era modesto a ponto de aceitar que apenas nomeava, ele precisou acreditar que com as palavras adquiria saber sobre as coisas. A linguagem é nossa ficção primeira, é ela que permite o universo imaginário que vamos chamar de "mundo verdadeiro". Os signos são nossa primeira experiência de duração; é a duração ficcional da palavra que fornece a crença em mundo durável [...]. E é o esquecimento do caráter fictício de toda valoração que leva à crença na verdade" MOSÉ, Viviane. Nietzsche e a grande política da linguagem (2016, p. 49) “O enunciado definitivo, com efeito, não deve tornar claro apenas o fato, como a maioria das definições dizem, mas devem conter e tornar visível a causa.” Aristóteles. De anima (s/d, p.38) RESUMO Este trabalho visa investigar, a partir de uma perspectiva discursivo-funcional, a relação de causalidade expressa por meio de sintagmas preposicionados compostos pela preposição por seguida de um elemento nominal (por+substantivo). Defendendo a hipótese mais geral de que esses sintagmas podem ser a codificação de relações de causalidade constituídas tanto no Nível Interpessoal como no Nível Representacional, esta pesquisa tem como objetivo geral investigar o funcionamento desses sintagmas nos níveis de análise pragmático, semântico e morfossintático, buscando caracterizar seu uso dentro e fora do sistema de transitividade e os diferentes tipos de relações de causalidade que estabelecem, bem como verificar a distinção entre esses sintagmas e os demais casos de construções causais desenvolvidas. A análise do funcionamento desses sintagmas na língua portuguesa do Brasil é feita a partir de ocorrências reais coletadas, principalmente, do Corpus online do Português, organizado por Mark Davies e Michael Ferreira (2016-2021). Os resultados demonstraram que os sintagmas preposicionados com por indicando causalidade (SPpc) podem codificar relação de causalidade que se estabelece no Nível Interpessoal, com função retórica Motivação, na camada do Ato Discursivo, e no Nìvel Representacional, com função de modificador que indica as relações semânticas razão, explicação e causa, ou de argumento com função semântica causativo, de acordo com a configuração argumental da predicação. Foram encontrados ainda dois casos atípicos da expressão da causalidade por meio da construção sintagmática. Na relação razão, observou-se a possibilidade de a relação entre um (p) modificando outro (p) e, na camada do Movimento, verificou-se que a função interacional Transição também pode ser considerada como uma manifestação da causalidade. Palavras–chave: Relações de causalidade. Sintagma Preposicionado. Gramática Discursivo- Funcional. ABSTRACT This work aims to investigate, from the perspective of Functional Discourse Grammar, the causal relation expressed through prepositional phrases composed by the preposition por followed by a nominal element (por+noun). Defending the more general hypothesis that these phrases can be the codification of causality relations constituted both at the Interpersonal Level and at the Representational Level, this research aims to investigate the functioning of these phrases at various levels of analysis, seeking to characterize their use within and outside the transitivity system and the different types of causality relations they establish, as well as verifying the distinction between these phrases and the other cases of developed causal constructions. The analysis of the functioning of these phrases is made from real occurrences of the Portuguese language of Brazil, which were collected, mainly, from the Corpus do Português, organized by Mark Davies. The results showed that the prepositional phrases with por indicating causality (SPpc) can be the codification of a causal relationship that is established at the Interpersonal Level, through the rhetorical function Motivation, in the Discourse Act layer, and in the Representational Level, through modifiers that indicate the semantic relations reason, explanation and cause, or through arguments with causative semantic function, according to the argumental configuration of the predication. Two atypical cases of expression of causality through syntagmatic construction were also found. In the relation of reason, it was observed the possibility of the relation between one (p) modifying another (p) and, in the Movement layer, it was verified that the interactional function Transition can also be considered as a manifestation of causality. Keywords: Causality. Prepositional phrases. Functional Discourse Grammar. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1. A GDF como parte de uma teoria mais ampla da interação verbal 20 Figura 2: Esquema Geral da GDF 21 Figura 3: Estrutura hierárquica do Nível Interpessoal 23 Figura 4: Estrutura hierárquica do Nível Representacional 25 Figura 5: Estrutura hierárquica do Nível Morfossintático 27 Figura 6: Estrutura hierárquica do Nível Fonológico 29 LISTA DE QUADROS Quadro 1: Os domínios semânticos, tipos de causalidade e os níveis de formulação da GDF 46 Quadro 2: Características semânticas das relações de causalidade 78 Quadro 3: Características pragmáticas, semânticas e morfossintáticas das relações de causalidade no sintagma preposicionado por+substantivo 90 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS CP-G/H Corpus do português - subcorpus General/Historic CP-NOW Corpus do português - subcorpus NOW CP-W/D Corpus do português - subcorpus Web/Dialect GDF Gramática Discursivo Funcional GT Gramática Tradicional NF Nível Fonológico NI Nível Interpessoal NM Nível Morfossintático NR Nível Representacional SPpc Sintagma preposicionado com por indicando causalidade SPrep Sintagma preposicionado SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 13 2. CAPÍTULO I: BASES TEÓRICAS ............................................................................... 19 2. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DA GRAMÁTICA DICURSIVO-FUNCIONAL: UMA BREVE APRESENTAÇÃO ................................................................................... 19 2.1 Nível Interpessoal ............................................................................................. 23 2.2 Nível Representacional ..................................................................................... 25 2.3 Nível Morfossintático ....................................................................................... 26 2.4 Nível Fonológico ................................................................................................ 28 2.5 A abordagem teórica e o sintagma por+substantivo ....................................... 30 3. CAPÍTULO II: RELAÇÕES DE CAUSALIDADE ..................................................... 31 3.1 ASPECTOS COGNITIVOS DA RELAÇÃO DE CAUSALIDADE ......................... 31 3.2 AS EXPRESSÃO DA CAUSALIDADE NA GRAMÁTICA TRADICIONAL........ 36 3.3 AS RELAÇÕES DE CAUSALIDADE NA GDF ...................................................... 39 3.4. O CONCEITO DE CAUSALIDADE: SÍNTESE ..................................................... 45 4. CAPÍTULO III: O SINTAGMA PREPOSICIONADO EM LÍNGUA PORTUGUESA....................................................................................................................... 48 4.1 O SINTAGMA PREPOSICIONADO ........................................................................ 48 4.2 ESTRUTURA E FUNCIONAMENTO DO SINTAGMA PREPOSICIONADO COM POR ................................................................................................................................... 52 5. CAPÍTULO IV: PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ..................................... 58 5.1 CONSTITUIÇÃO DO CÓRPUS ....................................................................................... 58 5.2 CRITÉRIOS DE ANÁLISE ............................................................................................... 59 5.2.1 Critérios do Nível Interpessoal ............................................................................. 60 5.2.1.2 Tipo de relação entre Atos ............................................................................ 61 5.3.2 Critérios do Nível Representacional .................................................................... 63 5.3.3 Critérios Morfossintáticos .................................................................................... 67 5.3.3.1 Estrutura simples ou complexa ..................................................................... 67 5.3.3.2 Relação sintática ........................................................................................... 68 5.3.3.3 Ordem do SPpc ............................................................................................. 70 6. CAPÍTULO V: AS RELAÇÕES DE CAUSALIDADE NA GDF POR MEIO DO SINTAGMA PREPOSICIONADO POR + SUBSTANTIVO ............................................. 72 6.1 A EXPRESSÃO DA CAUSALIDADE NO NI .......................................................... 72 6.2 A EXPRESSÃO DA CAUSALIDADE NO NR ........................................................ 75 6.2.1 As relações de causa, explicação, razão ....................................................... 75 6.2.2. A função semântica causativo ...................................................................... 81 6.3 O SPPC E OUTRAS RELAÇÕES DE CAUSALIDADE ......................................... 84 7. CONCLUSÕES ................................................................................................................ 91 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 94 13 1. INTRODUÇÃO As marcas linguísticas de expressão da causalidade são investigadas por diferentes teorias, desde a filosofia aristotélica, perpassando diversas áreas, até a linguística moderna. Na área dos estudos sobre a linguagem, gramáticos e linguistas investigam e classificam variadas construções e formas verbais que indicam causalidade. Este trabalho visa investigar, a partir de uma perspectiva discursivo-funcional, esse tipo de relação semântica quando expressa por meio de construções linguísticas formadas por sintagmas preposicionados (SPrep) compostos pela preposição por seguida de um elemento nominal (por+substantivo). A escolha desse objeto de pesquisa pode ser justificada a partir de duas perspectivas, quais sejam, a do objeto e a da proposta de pesquisa. Acerca do objeto, percebeu-se, a partir dos estudos realizados durante o mestrado sobre as orações desenvolvidas causais (NUSS, 2017), que as construções sintagmáticas preposicionadas com por apresentavam ocorrências peculiares e relevantes para o funcionamento da interação verbal. Dessa forma, tendo em vista que os estudos sobre as relações de causalidade nos estudos funcionalistas geralmente priorizam o âmbito oracional, a presente proposta de pesquisa justifica-se, sobretudo, por trazer um estudo sobre as construções sintagmáticas de expressão de causalidade. Por serem demasiadamente amplas as possibilidades sintagmáticas desse tipo de construção, optou-se pelas construções sintagmáticas inicadas com por. Aliada à sua alta produtividade, observou-se também que esse tipo de sintagma, comumente visto apenas como perlativo ou locativo, servia à expressão de diferentes relações semânticas de causalidade. É a necessidade de um estudo que sistematize tais ocorrências, considerando não apenas sua forma sintagmática, mas o seu funcionamento na expressão da causalidade, que justifica a presente proposta de pesquisa, uma vez que esse tipo de construção ainda não possui descrição nos estudos da teoria que subsidia esta pesqusia. Considerando que a causalidade envolve aspectos cognitivos, conceituais e interacionais presentes na relação entre a linguagem e a representação de fatos no mundo, a escolha teórica e metodológica natural para o desenvolvimento desta pesquisa foi a abordagem funcionalista. Mais especificamente, o suporte teórico para a análise da expressão sintagmática da causalidade adotado foi a Gramática Discursivo-Funcional 14 (HENGEVELD; MACKENZIE, 2008), que prioriza a análise integrada de critérios pragmáticos, semânticos e morfossintáticos dos usos da língua, característica essencial para descrever a multifuncionalidade do sintagma preposicionado com por, que expressa causalidade. Na Gramática Tradicional, a descrição do SPrep é feita a partir de critérios sintáticos, sem que haja um consenso acerca da sua classificação morfossintática. Nos estudos funcionalistas, por sua vez, diferentes classificações são apresentadas a partir critérios sintáticos, semânticos e pragmáticos e, ainda assim, o reconhecimento das funções do SPrep também não é consensual. Para melhor identificar as questões que se apresentam para a análise da estrutura por+substantivo, alguns desses estudos são brevemente comentados a seguir. Considerando o funcionamento das construções sintagmáticas preposicionadas, de modo geral, sob uma perspectiva de relação entre sentenças, Castilho (2010) considera que o SPrep se compõe de preposições com o sentido de base de deslocamento espacial ou temporal, sempre intraoracional. No entanto, ao abordar especificamente os sintagmas compostos com por+substantivo, Castilho (2010, p. 375) reconhece que a preposição por e as locuções prepositivas “concorrem” com as conjunções causais, constituindo o que o autor denomina de minissentença. Para Castilho (op. cit., p. 313-321), a minissentença apresenta propriedades gramaticais específicas, bem como propriedades semânticas e discursivas bem delineadas, e ocupa uma posição intermediária em um contínuo entre o sintagma (argumental) e a sentença simples (oração absoluta). Essa consideração é bastante interessante para a presente investigação na medida em que relativiza o conceito de dependência usualmente atribuído ao SPrep, mostrando que, na verdade, essa dependência apresenta certa escalaridade. Para ilustrar essa posição, Castilho apresenta SPrep totalmente dependentes, como em (1), que são regidos pelo verbo que organiza a estrutura argumental da predicação; SPrep que, embora sejam dependentes, no sentido de não apresentarem sentido completo quando sozinhos, podem ocupar diferentes posições na estrutura sintática, como no caso dos adjuntos em (2), e SPrep não exigidos pela estrutura argumental, que constituem minissentenças, como em (3). (1) Preciso de grama. (CASTILHO, 2010, p. 266) (2) No fundo, ele sabe tudo. / Ele, no fundo, sabe tudo. (CASTILHO, 2010, p. 267) (3) Sobre globalização, eu gostaria que o senhor falasse sobre o significado da globalização no mundo moderno. (CASTILHO, 2010, p. 320) 15 Com relação ao SPrep com por, quando intraoracional, Castilho (2010, p. 597, 598) considera por como uma preposição do eixo horizontal espacial que estabelece relações semânticas derivadas da indicação de um ponto intermediário de um percurso físico ou temporal. Essa consideração é bastante recorrente tanto nos estudos funcionalistas quanto nos estudos da GT, e costuma ser a classificação primeira para essa preposição. A exemplo disso, cita-se o trabalho de Pezatti et alia (2010), que aborda o estatuto lexical e gramatical das preposições em português sob a perspectiva da Gramática Discursivo-funcional (GDF). Nesse estudo, os sintagmas por+substantivo são classificados apenas como perlativos (indicando percurso, movimento), quando dentro do sistema de transitividade, e como durativos (indicando temporalidade), quando fora do sistema de transitividade. No entanto, como se pretende mostrar nesta pesquisa, o SPrep com por pode ser encontrado em um grande número de ocorrências no estabelecimento da causalidade, seja intraoracional ou não. Como explica Neves (2000), a preposição por pode compor um SPrep que é capaz de atuar dentro do sistema de transitividade, e de forma subordinada pela regência de termos anteriores, como em (4), e também fora do sistema de transitividade, estabelecendo relações semânticas sem subordinação exigida pela regência, como em (5), respectivamente. (4) Depois de ver toda a família exterminada por uma ditadura sanguinolenta do seu país. (NEVES, 2000, p.703) (5) Aparentava mais idade pelo abuso de banhos quentes. (NEVES, 2000, p.706) Outros estudos também consideram o SPrep como um elemento que pode atuar fora do sistema de transitividade. Zago (2014), por meio da perspectiva da Teoria Sistêmico- funcional, trata os processos juntivos de causa nos âmbitos pragmático, semântico e sintático, classificando diferentes tipos de SPrep como extraoracionais, utilizando como base teórica o sistema tático de combinação de orações de Halliday (2004). Em seu trabalho, a autora considera alguns sintagmas por+substantivo como uma estrutura subordinada de funcionamento adverbial, nos moldes de orações hipotáticas desenvolvidas. A partir da perspectiva teórica da GDF, Sposito (2012) investiga as relações adverbiais de causa e reconhece, por meio de critérios sintáticos e semânticos, a ocorrência de sintagmas por+substantivo como um segmento linguístico capaz de estabelecer relações de causalidade nos moldes das relações estabelecidas pelas orações conhecidas na GT como “adverbiais”. 16 A consideração dos SPrep com por indicando causalidade dentro ou fora do sistema de transitividade é importante para este trabalho que, adotando a perspectiva teórica da GDF, pretende analisar categorias e funções semânticas a partir da constituição do esquema argumental do segmento linguístico nuclear com o qual o SPrep se relaciona. A expectativa é a de que a análise do SPrep dentro e fora do esquema argumental ajude a identificar e a descrever as diferentes relações de sentido causal expressas pela estrutura por+substantivo. Na análise das relações da causalidade na GDF, Abreu, Pezatti e Marques (2016) apresentam uma proposta para a verificação das relações de causalidade por meio de construções adverbiais causais, considerando que uma oração causal pode codificar tanto um Ato Discursivo1 que fornece a Motivação para a realização de um outro ato (6), como um estado de coisas que explica um conteúdo proposicional expresso na oração principal (7), ou, ao contrário, pode compor um conteúdo proposicional que justifica um estado de coisas (8), bem como compor, ainda, um estado de coisas como causa ou consequência de outro estado de coisas (9), como ilustram os exemplos apresentados pelos autores (p.127-128) dados a seguir. (6) Não repare não, porque a jabá foi feita avexada. (7) Morar na cidade é bom porque temos acesso a muitas mais coisas. (8) E muitas vezes na tradição africana, as pessoas usam mesmo, eh, pulseiras, e porque acreditam em qualquer coisa de mágica. (9) Escureceu muito rapidamente porque estava ameaçando chuva. Essa classificação das relações causais oracionais é especialmente importante para a presente investigação porque permite identificar duas instâncias de atuação da causalidade, no nível das relações pragmáticas (Nível Interpessoal), em que essas construções desempenham a função de Motivação, e no nível das relações semânticas (Nível Representacional), em que essas construções expressam uma relação de explicação, razão ou causa. Espera-se que a análise da expressão oracional da causalidade também possa ser expandida para a análise das construções sintagmáticas com por+substantivo. Apesar de diferentes estudiosos terem avaliado o SPrep no seu funcionamento interno e externo ao quadro predicativo de uma construção linguística de núcleo verbal, falta ainda demonstrar 1 Como veremos no Capítulo I, a GDF utiliza letras maiúsculas para identificar unidades e funções interpessoais e letras minúsculas para unidades e funções semânticas. Neste texto, seguimos essa notação. 17 que, com diferentes graus de dependência, o sintagma por+substantivo pode veicular múltiplas relações de causalidade, indicando que essa construção deve ser considerada para além de seus valores semânticos tradicionais (perlativo ou locativo). Considerando o SPrep sob um viés mais composicional, uma das construções linguísticas possíveis do SPrep com por indicando causa, e que é bastante recorrente, é aquela em que por é seguido de um substantivo transitivo, formando locuções prepositivas. A produtividade linguística deste tipo de sintagma permite variadas construções causais como por causa de, por motivo de, por influência de. Além dessas construções, serão analisados, também, sintagmas com substantivo intransitivo, como por curiosidade, por corrupção, por overdose, por estupro, e sintagmas com substantivos de léxico causal, como por motivos políticos, por razões distintas etc. Isso posto, a presente pesquisa, que tem por base teórica a Gramática Discursivo- Funcional, restringe seu objeto de análise aos SPrep iniciados com por que codificam relações de causalidade (doravante SPpc). Defendendo a hipótese mais geral de que um SPpc pode ser a representação de unidades do Nível Interpessoal e do Nível Representacional com diferentes funções, dada a sua multifuncionalidade, esta pesquisa tem como objetivo geral investigar o funcionamento desses sintagmas, buscando caracterizar seu uso dentro e fora do sistema de transitividade e os diferentes tipos de relações de causalidade que expressam, bem como verificar a distinção entre esses sintagmas e os demais casos de construções causais desenvolvidas. Outras hipóteses, decorrentes da abordagem teórica selecionada, serão levantadas para explicar casos específicos do funcionamento do SPpc, e serão apresentadas ao longo do Capítulo IV, na discussão dos critérios de análise. A análise do funcionamento desses sintagmas na língua portuguesa do Brasil será feita a partir de ocorrências reais, coletadas, principalmente, do Corpus online do Português, organizado por Mark Davies e Michael Ferreira (2016-2021). Este trabalho organiza-se em cinco capítulos. No primeiro, expõem-se os princípios teóricos da Gramática Discursivo-Funcional (GDF) que embasam esta pesquisa, apresentando-se sucintamente os níveis e camadas do Componente Gramatical que serão pertinentes para a análise dos sintagmas por+substantivo expressando causalidade. No capítulo dois, são apresentadas algumas breves considerações sobre aspectos cognitivos da relação de causalidade relevantes para a análise aqui empreendida, bem como aspectos da sua descrição presentes nas gramáticas tradicionals e nos estudos descritivos feitos segundo a GDF. No terceiro capítulo encontra-se uma breve discussão dos conceitos existentes acerca 18 dos SPrep, tanto nas gramáticas tradicionals quanto nas funcionalistas, abordando questões específicas do SPpc. O capítulo quatro trata dos procedimentos metodológicos para a constituição do corpus e dos critérios e parâmetros de análise. O capítulo cinco apresenta análises e resultados que permitem a verificação das hipóteses desta pesquisa. Por último, há a apresentação das conclusões a que se chega neste trabalho. 19 2. CAPÍTULO I: BASES TEÓRICAS 2. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DA GRAMÁTICA DICURSIVO-FUNCIONAL: UMA BREVE APRESENTAÇÃO A Gramática Discursivo-Funcional (GDF) é assim denominada por ser um modelo funcionalista de gramática que, buscando adequação tipológica, tem como unidade básica de análise o Ato Discursivo (HENGEVELD; MACKENZIE, 2008), definido não pelas suas propriedades formais, mas pela sua função de expressar a intenção do falante no ato comunicativo. Como parte de um modelo mais amplo de interação verbal, o componente gramatical da língua interage com outros três componentes envolvidos na produção linguística de um falante de uma língua natural: os componentes Conceitual, Contextual e de Saída.2 A GDF assenta alguns de seus pressupostos teórico-metodológicos na Gramática Funcional de Dik (1989, 1997), mas apresenta reformulações fundamentais dessa teoria. Um conceito importante a ser destacado diz respeito à adequação psicológica. Conforme Hengeveld e Mackenzie (2012), a teoria proposta por Dik (1989) visava uma adequação pragmática, tipológica e psicológica da comunicação verbal e apresentava sua gramática como um modelo centrado no falante. A GDF, no entanto, não é um modelo do falante, mas é “uma teoria sobre a gramática que tenta refletir as evidências psicolinguísticas em sua arquitetura básica” (HENGEVELD; MACKENZIE, 2012, p. 45), apresentando uma rigorosa arquitetura descendente que começa com a intenção do falante e se desenvolve até a articulação. Em suma, a GDF não é uma teoria do Discurso ou “do falante”, mas do Ato Discursivo e dos processos linguísticos que daí decorrem e perpassam os diferentes níveis de análise da língua, desde o pragmático até ao fonológico. É, portanto, Discursivo- funcional, por observar o funcionamento das formas linguísticas expressas em Atos Discursivos, as quais refletem a funcionalidade da linguagem na interação, e é Gramática, por descrever e explicar a sistematicidade subjacente às estruturas linguísticas. 2 Conforme figura 2, adiante. 20 Para Hengeveld e Mackenzie (2008), o Ato Discursivo ocorre em todas as línguas e, por isso, na GDF, ele é o ponto de partida para a realização de análises, diferentemente de outras gramáticas, que possuem como ponto de partida a oração. Ao buscar adequação psicológica, a GDF propõe uma organização descendente que reflete o processamento linguístico do falante. Em outras palavras, o modelo reflete um processo que se inicia com a intenção do falante, no Componente Conceitual, passa pelas operações de Formulação e Codificação linguística do Componente Gramatical e, termina com a articulação, no Componente de Saída, como se vê na Figura 1. Figura 1. A GDF como parte de uma teoria mais ampla da interação verbal Fonte: Hengeveld e Mackenzie (2012, p. 44) Os quatro componentes descritos na figura 1 relacionam-se de diferentes maneiras e compõem um modelo geral de interação verbal que possui o Componente Gramatical como central. Dessa forma, tanto o Componente Conceitual, responsável pela intenção comunicativa do falante e pelas conceptualizações associadas aos eventos extralinguísticos relevantes, quanto o Componente Contextual, que é responsável pelo contexto comunicativo, fornecem informações imediatas que interagem com o Componente Gramatical. Por sua vez, o Componente Gramatical traz os aspectos descritivos e tipológicos da formulação e da codificação linguística, com base nas informações recebidas dos outros dois componentes. Já o Componente de Saída converte as estruturas do Componente Gramatical de acordo com 21 o tipo de interação verbal realizada - oral, gestual ou escrita. O componente que possibilita uma descrição formal da língua é o Componente Gramatical, que se organiza em quatro diferentes níveis de descrição da língua: Interpessoal, Representacional, Morfossintático e Fonológico, como mostrado na Figura 2. Figura 2: Esquema Geral da GDF Fonte: Hengeveld e Mackenzie (2012, p. 45) Ao verbalizar algo, o falante principia um processo de Formulação e Codificação linguística. O processo de Formulação alimenta os Níveis Interpessoal e Representacional, no interior dos quais se encontram regras que possibilitam converter as representações cognitivas em representações pragmáticas e semânticas subjacentes, respectivamente. O processo de Codificação alimenta os Níveis Morfossintático e Fonológico, os quais possibilitam decodificar as representações subjacentes do processo de formulação em representações codificadas morfossintática e fonologicamente. Esses processos e os diferentes níveis apresentados na teoria não são excludentes entre si, mas visam mostrar exatamente a que nível de organização deve ser atribuída cada parte que compõe um enunciado, de forma a descrever o funcionamento linguístico. 22 Cabe ainda mencionar que Hengeveld e Mackenzie (2008, p. 48-49) consideram que as estruturas das camadas dentro dos níveis possuem uma relação de paralelismo, de modo que é possível pensar em uma representação formal que se aplique a todas as camadas, considerando que (i) cada camada e cada componente de cada camada é simbolizado por uma variável indexada (V); (ii) cada variável pode ser expandida por um item lexical ou por uma representação complexa de uma camada inferior, a ser identificada como núcleo (H); (iii) um núcleo pode ser modificado posteriormente por um ou mais modificadores (Σ), novamente, extraído do léxico ou internamente complexo; (iv) cada variável pode ser especificada por um ou mais operadores (π), que será expresso por meio de recursos gramaticais ou fonológicos, ao invés de recursos lexicais; (v) as unidades em cada camada podem conter uma função retórica ou pragmática (Φ)3. (HENGEVELD; MACKENZIE, 2008, p. 48,49) A estrutura abstrata resultante de cada camada, de acordo com o exposto por Hengeveld e Mackenzie (2008, p. 49), é a seguinte: (π v1: [H(V1)Φ]: [ Σ (V1)Φ]) Os autores salientam que apenas a variável é obrigatória, ou seja, a estrutura mínima para cada camada é (V1). Percebe-se, portanto, que cada nível do componente gramatical possui suas especificidades, mas a organização hierárquica dessas estruturas é comum a todos os níveis. Todavia, apesar de as camadas se organizarem hierarquicamente, nem todas as relações entre as unidades que as compõem são hierárquicas: núcleo e modificador, por exemplo, estão em relação hierárquica, ao passo que predicado e argumentos, não. O uso dos colchetes marca, formalmente, essa relação não hierárquica ou configuracional. Há de se ressaltar, ainda, a forma como o Componente Gramatical da GDF expõe os 3 No original: (i) each layer and each component of each layer is symbolized by an indexed variable (V); (ii) each variable can be expanded by a lexical item or by a complex representation of a lower layer, to be known as the head (H); (iii) each head can be further modified by one or more modifiers (Σ), again either drawn from the lexicon, or internally complex; (iv) each variable can be specified by one or more operators (π), which will be expressed by grammatical or phonological rather than lexical means; (v) the units at each layer may have a function (Φ), rhetorical or pragmatic. 23 princípios funcionalistas mencionados no início desta seção, mantendo um alinhamento entre a hierarquia fundamental a toda teoria funcionalista, que considera a influência da pragmática sobre a semântica, e destas sobre a morfossintaxe e a fonologia, ao especificar hierarquicamente esses domínios, arranjados de modo descendente. Após essa breve apresentação dos princípios que regem a concepção do modelo de gramática que fundamenta a GDF, a composição de cada Nível é apresentada brevemente, destacando-se os aspectos principais para a análise dos sintagmas por+substantivos. 2.1 Nível Interpessoal No Nível Interpessoal (NI), é analisada não só a relação dos Componentes Conceitual e Contextual com o Componente Gramatical, mas, sobretudo, as estruturas que surgem por intermédio da interação entre falante e ouvinte, com prioridade às estratégias discursivas do falante, as quais envolvem aspectos retóricos e pragmáticos, de acordo com o objetivo da comunicação. As camadas do Nível interpessoal organizam-se hierarquicamente como mostrado na figura 3. Figura 3: Estrutura hierárquica do Nível Interpessoal (πM1: [ Movimento (πA1: [ Ato Discursivo πF1: ILL (F1): Σ(F1)) Ilocução (πP1: ... (P1): Σ (P1))S Falante (πP2: ... (P2): Σ (P2))A Ouvinte (πC1: [ Conteúdo Comunicado (πT1: [...] (T1): Σ(T1))Φ Subato Atributivo (πR1: [...] (R1): Σ (R1))Φ Subato Referencial ] (C1): Σ (C1))Φ Conteúdo Comunicado ] (A1): Σ (A1))Φ Ato Discursivo ] (M1): Σ (M1)) Movimento Fonte: Hengeveld e Mackenzie (2008, p. 49) A camada mais alta do NI é a do Movimento (M), “a maior unidade de interação relevante para a análise gramatical” (HENGEVELD; MACKENZIE, 2012, p. 51). O conteúdo verbal de um M pode ser considerado como algo que cause ou represente ele próprio uma reação do Falante. É essa característica interacional que define um M, que não 24 tem forma fixa, podendo variar “do silêncio até um longo trecho de discurso” (op. cit., p. 51). No caso da língua falada, um M pode corresponder aos turnos conversacionais; já no caso da língua escrita, pode corresponder, mas não necessariamente, ao parágrafo ou a períodos oracionais. Na camada do M, as estratégias são estabelecidas conforme o objetivo da interação em curso, e cada Movimento pode conter um ou mais Atos Discursivos (A), definidos como “a menor unidade identificável da comunicação” (KEIZER, 2015, p. 302). Quando um M é composto por mais de um A, a relação entre eles poderá ser de equipolência ou de dependência. No caso de dependência, a relação entre os atos será indicada por uma função retórica, que diz respeito à forma de ordenação dos componentes linguísticos em um discurso visando à aceitação do ouvinte. As funções retóricas podem ser de Esclarecimento, Orientação, Concessão, Aposição e Motivação. A função Motivação, a princípio, é a única função retórica relevante para o objeto de análise proposto nesta pesquisa, para o estudo dos nexos causais no NI. Esse conteúdo será retomado e desenvolvido no próximo capítulo, na seção intitulada “Relações de causalidade na GDF.” O Ato Discursivo (A), por sua vez, é composto por participantes que se alternam como Falante (PI) e Ouvinte (PJ), por uma Ilocução ILL (F1), e por um Conteúdo Comunicado (C). Sua representação será feita apenas com os componentes que realmente tenham sido utilizados pelo falante, tendo em vista que os componentes mínimos são o próprio Falante (P1) e a Ilocução (F1). Um Ato Discursivo pode conter um Conteúdo Comunicado que veicula a totalidade da informação que o falante deseja comunicar e, por sua vez, contém um ou mais Subatos, “assim chamados porque são hierarquicamente subordinados aos Atos Discursivos” (HENGEVELD; MACKENZIE, 2012, p. 53). Os Subatos, por evocarem uma propriedade ou uma referência, são classificados como i) Subato de Atribuição (T) e ii) Subato de Referência (R). Os Subatos podem ainda ter funções pragmáticas que concernem à distribuição informacional. A função Tópico sinaliza para o ouvinte que alguma informação dada no Conteúdo Comunicado está relacionada a informações disponíveis no Componente Contextual. A função Foco é atribuída ao Subato que explicita uma informação nova na comunicação; por fim, há a função Contraste (restritivo e expansivo), que visa realçar relações existentes entre Conteúdos Comunicados/Subatos ou entre Conteúdo Comunicado/Subato e informações do Componente Contextual. 25 2.2 Nível Representacional Enquanto o NI trata do modo como as unidades linguísticas são utilizadas em termos de interação entre falante e ouvinte, o Nível Representacional (NR) trata dos aspectos semânticos de designação utilizados no processo de formulação linguística. Desse modo, as camadas do NR são definidas em termos das categorias semânticas que elas designam, entendidas como “manifestações de categorias ontológicas linguisticamente relevantes específicas de cada língua” (HENGEVELD; MACKENZIE, 2008, p. 54). A descrição hierárquica do NR é a mostrada na figura 4 a seguir. Figura 4: Estrutura hierárquica do Nível Representacional (πp1: Conteúdo Proposicional (πep1: Episódio (πe1: Estado-de-Coisas [(π f1: [ Propriedade Configuracional (π v1: (v1): [σ (v1)φ]) qualquer categoria semântica ... ... (π v1+n: (v1): [σ (v1)φ]) φ qualquer categoria semântica ] (f1): [σ (f1)φ]) Propriedade Configuracional (e1)φ]: [σ (e1)φ]) Estado-de-Coisas (ep1): [σ (ep1)φ]) Episódio (p1): [σ (p1)φ]) Conteúdo Proposicional Fonte: Hengeveld e Mackenzie (2008, p, 142) O Conteúdo Proposicional (p), que apresenta uma entidade de terceira ordem,4 é caracterizado como um construto mental que não pode ser localizado nem no espaço nem no tempo, mas que pode ser avaliado em termos dos valores de verdade das proposições. Dessa forma, avaliam-se aspectos como a crença do falante sobre algo, dúvidas, certezas etc. Um (p) pode conter um ou mais Episódio (ep) que, conforme Hengeveld e Mackenzie (2008, p. 157), consiste em uma unidade linguística composta por um ou mais Estados de coisas (e) que são tematicamente coerentes, no sentido de que mostram unidade ou continuidade de Tempo (t), Localização (l) e Indivíduos (x), mesmo que haja a combinação de tempos verbais diferentes. Um exemplo de episódio pode ser facilmente pensado como uma cena apresentada por uma narrativa e uma sequência de episódios como 4 A ordem aqui mencionada considera a proposta da GDF (2008) que tem como base os estudos de Lyons (1977). Essa abordagem será melhor explicada na seção 2.3 do Capítulo II. 26 uma sequência de cenas5. Um Estado de Coisas (e) apresenta uma entidade de segunda ordem e pode ser localizado no espaço e no tempo relativo, assim como pode ser avaliado em termos de sua realidade; trata-se de um evento marcado linguisticamente por predicação. Com isso, tem- se que o núcleo de um (e) é sempre uma Propriedade Configuracional (fc). A Propriedade Configuracional (fc) tem um núcleo não hierárquico. É, portanto, formada por uma Propriedade Lexical (f), e/ou um Indivíduo (x). A Propriedade Lexical (f) é uma entidade de zero ordem e é avaliada em termos de sua aplicabilidade a outra entidade superior. O Indivíduo (x) é uma entidade de primeira ordem, localizável no tempo e no espaço, e pode ser avaliada pela sua existência. A Propriedade Configuracional (fc) pode conter ainda outras categorias semânticas que não são classificadas em termos de entidades, mas que são avaliadas em termos de sua função semântica, quais sejam Lugar (l), Tempo (t), Modo (m), Quantidade (q) e Razão (r). Como exposto, no NR, o tipo de entidade e a existência ou não do traço temporal presente no que é representado por determinado segmento linguístico permite a distinção entre o que é classificado como (e), (p), (x) ou (f). Ainda, a distinção entre entidades e categorias semânticas permite a verificação das funções semânticas, como (l), (t), (m), (q) e (r), que são averiguadas a partir da categoria semântica representada. A função semântica Razão é especialmente importante para a análise do objeto desta pesquisa e será abordada com mais detalhes na seção 2.3 do capítulo II. 2.3 Nível Morfossintático O Nível Morfossintático (NM) é alimentado por conteúdo do NI e do NR, que são considerados “Níveis de entrada” (ou de formulação) e que apresentam informações pragmáticas e semânticas. No NM há a mescla dessas informações superiores em que se formaliza uma representação estrutural, ou seja, se codificam linguisticamente as intenções comunicativas de um falante. Independentemente de os conteúdos da formulação apresentarem paralelismo ou não em suas relações, eles serão codificados morfossintaticamente. 5 Um exemplo de (ep) trazido pelos autores é: “Então Jafa, carregando a cesta, subiu, pegou as bananas e encheu a cesta com elas” (HENGEVELD E MACKENZIE, 2008, p. 158) 27 A relação entre o NM e os dois Níveis de formulação é governada por três princípios, os de Iconicidade, Integridade de Domínio e Estabilidade funcional.6 Cada um à sua maneira contribui para maximizar o paralelismo entre as estruturas, aumentando assim a transparência e a interpretabilidade da estrutura linguística. A camada mais alta do NM é a Expressão Linguística (Le), que é formada por uma ou mais orações (Cl) e/ou por um ou mais sintagmas (Xp), os quais se relacionam morfossintaticamente. As camadas desse nível se organizam hierarquicamente, como mostram suas disposições na figura 5. Figura 5: Estrutura hierárquica do Nível Morfossintático (Le1: Expressão Linguística (Cl1: Oração (Xp1: Sintagma (Xw1: Palavra (Xs1) Raiz (XsJ) Afixo (Aff1) Sintagma (Xw1)) Sintagma (Cl1)) Oração (Le1)) Expressão Linguística Fonte: Hengeveld e Mackenzie (2012, p. 59) A camada da Expressão Linguística (Le) é composta por, no mínimo, uma unidade morfossintática independente. Essas unidades podem ser Orações (Cl) e/ou Sintagmas (Xp). O núcleo de uma Oração é o Sintagma. Uma Expressão Linguística com mais de uma unidade sintática apresenta sintagmas coordenados que podem compor frases ou orações simples e/ou complexas. Os Sintagmas (Xp) possuem como núcleo um item lexical e constituem uma fórmula recursiva de expressão linguística, que contém, ou pode conter, outras construções linguísticas. Assim, Expressão linguística (Le) seria potencialmente composta por uma sequência de palavras (Xw), de outras frases (Xp) ou de cláusulas incorporadas (Cl). Dessas construções linguísticas, destaca-se que o sintagma pode ser 6 Conforme Keizer (2017), na GDF, a Iconicidade serve para descrever uma relação direta entre função (Formulação) e forma (Codificação), ou seja, entre elementos dos NI e NR, por um lado, e entre unidades do NM e NF por outro. O princípio do Domínio de Integridade demonstra que as unidades de informação que pertencem aos Níveis Interpessoal e Representacional tendem a serem colocadas umas após as outras. Já o princípio da Estabilidade functional evidencia que as unidades codificadas tendem a serem colocadas em uma mesma posição em relação a outra. 28 verbal (Vp), nominal (Np), adjetival (Adjp), adverbial (Advp) ou adposicional (Adp). A Palavra (Xw) pode ser lexical ou gramatical e constituir-se de apenas um morfema ou de uma sequência de morfemas, como raízes e afixos. Deve-se levar em conta que o NM tem seus próprios princípios de organização, que podem ser funcionalmente motivados ou não. Assim, ao dizer que um fenômeno é funcionalmente motivado, entende-se que a relação entre os elementos linguísticos no NM codifica e reflete a intenção do falante e abriga, portanto, seleções estabelecidas pelas escolhas e estratégias linguísticas realizadas nos níveis Interpessoal e/ou Representacional. Esses são casos em que são inseridos na estrutura morfossintática elementos que não são previstos pela estrutura interna do sistema da língua, como alguns marcadores discursivos, por exemplo. Dizer que a organização morfossintática pode não ser motivada significa dizer que uma estrutura apresenta um elemento que é exigido pela regência verbal, nominal ou adjetival; esses são casos que possuem motivação do próprio sistema interno da língua e são regidos pela influência do que se pode chamar de gramática internalizada. O fato de os elementos linguísticos no NM serem ou não funcionalmente motivados explica parcialmente os sintagmas que atuam dentro do sistema de transitividade e que são exigidos pela regência do verbo, e os sintagmas que não atuam dentro do sistema de transitividade verbal, mas que são inseridos pelo falante na estrutura linguística, a fim de garantir a eficácia da comunicação durante a interação verbal. Essa é uma distinção que será especialmente importante para a descrição morfossintática do fenômeno em análise neste trabalho, conforme se verá no capítulo II, intitulado “Relações de causalidade”.. 2.4 Nível Fonológico Apesar de o Nível Fonológico (NF) não compor os níveis de análise que serão averiguados neste trabalho, há algumas considerações importantes a serem pontuadas, levando em conta o modelo estrutural da GDF. O NF, assim como o NM, é um mecanismo de codificação da língua, dentro do componente gramatical da GDF. Dessa forma, considerando a arquitetura descendente da teoria, o NF recebe informações dos outros três níveis, ou seja, o NF codifica aspectos interacionais, pragmáticos, semânticos, sintáticos e morfológicos, acrescentando, ainda, aspectos da codificação que podem não ter sido codificados no NM. O NF é o último 29 componente gramatical que fornece a entrada das estruturas linguísticas para o componente de saída. Assim, enquanto os níveis de formulação, NI e NR, fornecem a entrada para os Níveis de codificação, NM e NF, é o NF que fornece as informações para o componente de saída. Do mesmo modo que nos outros níveis, as representações fonológicas também seguem uma representação hierárquica, como se pode observar na figura 6. Figura 6: Estrutura hierárquica do Nível Fonológico (π U1: [ Enunciado (π IP1: [ Frase Entonacional (π PP1: [ Frase Fonológica (π PW1: [ Palavra Fonológica (π F1: [ Pé (π S)N Sílaba ] (F1)) Pé ] (PW1)) Palavra Fonológica ] (PP1)) Frase Fonológica ] (IP1) Frase Entonacional ] (U1)) Enunciado Fonte: Hengeveld e Mackenzie (2012, p. 59) O Enunciado (U1) é a maior unidade de discurso que o NF engloba e é formado por uma ou mais Frases Entoacionais. A Frase Entoacional (IP1) é marcada por um núcleo que corresponde à tonicidade de uma ou mais sílabas, o que é essencial para sua interpretação. A Frase Fonológica (PP1) contém uma sílaba com tonicidade maior e é considerada como o ponto principal para a subida ou a descida da Frase Entoacional. Essas alterações prosódicas de tonicidade são responsáveis por marcar distinções lexicais e/ou de ilocução (como por exemplo, a ilocução interrogativa em português, que possui uma subida de tonicidade), assim como a Palavra Fonológica (PW1), para as línguas que possuem esse tipo de codificação. A camada seguinte é o Pé (F1), que é formada por uma Sílaba (π S)N. A Sílaba possui o máximo de três partes, um ataque (parte inicial), um núcleo e uma coda (parte final), e o mínimo de uma parte, o núcleo. A formação das sílabas, considerando-se a presença ou a ausência e a composição de suas partes, varia de língua para língua. O nível fonológico pode apresentar muitos segmentos que não são codificados no NM, e sua codificação pode ser essencial para codificar estruturas linguísticas dos níveis da 30 formulação. No entanto, pelo fato de o corpus deste trabalho utilizar tanto a língua escrita quanto a língua falada, e por se considerar que as análises possíveis nos outros três níveis sejam suficientes para demonstrar o que se pretende com esta pesquisa, o NF não será utilizado nas análises, exceto em possíveis comentários como pausas que podem marcar o início e o término de um enunciado que possa corresponder a Atos Discursivos e Ilocuções bem marcadas, a fim de corroborar as análises. 2.5 A abordagem teórica e o sintagma por+substantivo Após essa breve apresentação da GDF, é possível afirmar os motivos pelos quais as bases teóricas desse modelo de gramática podem ser consideradas especialmente adequadas para a análise do tipo de fenômeno objeto da presente investigação. Inicialmente, pretende-se comprovar a multifuncionalidade do sintagma por+substantivo na expressão da causalidade, o que poderá ser feito por meio da análise estratificada em níveis de atuação desse sintagma. A hipótese que se pretende comprovar é a de que cada valor causal pode ser caracterizado a partir do nível e da camada em que a unidade que eles constituem atua. Mais ainda, espera-se que a expressão interpessoal ou semântica da causalidade seja igualmente responsável por diferentes graus de dependência do SPpc na relação causal. Para demonstrar a adequação do modelo a esses objetivos, serão discutidos, no Capítulo 2, aspectos cognitivos e descritivos do conceito de causalidade, com destaque para a abordagem da GDF. 31 3. CAPÍTULO II: RELAÇÕES DE CAUSALIDADE Tendo em vista que a causalidade envolve aspectos cognitivos e conceituais presentes na relação entre a língua e a representação de fatos no mundo, este capítulo traz, na seção 3.1, algumas breves considerações sobre aspectos cognitivos da relação de causalidade relevantes para a análise da sua expressão por meio do SPpc; na seção 3.2, alguns aspectos da sua descrição encontrados nas gramáticas tradicionals e, na seção 3.3, a descrição do seu funcionamento segundo a GDF. Ao final do capítulo, na seção 3.4, é apresentada uma síntese dos aspectos teóricos desta seção que serão mais relevantes para a análise dos SPpc aqui pretendida. 3.1 ASPECTOS COGNITIVOS DA RELAÇÃO DE CAUSALIDADE Para a expressão da causalidade, basta haver acontecimentos de um mundo físico ou imaginário que sejam relacionados causalmente por diferentes meios linguísticos, desde construções sintagmáticas, como em (10), até construções oracionais absolutas (11), justapostas (12), coordenadas (13) ou subordinadas (14): (10) Seguiu emocionado até o final da partida. Quando foi aplaudido, chorou de alegria. (CP- NOW) (11) [O custo da energia] é o dobro ou o triplo do custo de alguns concorrentes internacionais, apesar de o custo de geração médio brasileiro ser um de os menores do mundo, graças à predominância de fontes hidroelétricas. A razão disso é o ineficiente modelo de regulação. (BR-NOW) (12) Impedido de assumir o cargo, o chef registrou um boletim de ocorrência na 78º DP (Jardins) contra a atual administração de o condomínio Baronesa de Arary. (CP-NOW) (13) O motor da jangada quebrou, não aguentou o peso de a embarcação. (CP-NOW) (14) O motor da jangada quebrou porque não aguentou o peso de a embarcação. (CP-NOW) Esses diferentes meios de expressão se devem ao fato de que a causalidade pode ser percebida pelo indivíduo por meio de inferências pragmáticas e/ou semânticas proporcionadas por itens lexicais, como verbos e substantivos com valor semântico de causa (como motivo, razão, etc.), assim como por marcas sintáticas apropriadas (conectivos como 32 pois, porque etc.). Para Maat e Sanders (2000), há uma possível causalidade subjacente aos eventos do mundo e a forma de expressão dessa causalidade fica a critério do falante, uma vez que há diferentes usos lexicais e construções sintáticas dos quais um falante de uma língua natural se utiliza para relacionar eventos ou conceitos de forma causal. Meyer (2000, p. 25-30), por sua vez, descreve a causalidade no âmbito cognitivo como um dispositivo importante para a criação de relevância no discurso. A causalidade é vista por ele como um princípio, entre vários, de organização do texto, e a percepção da causalidade, expressa por um falante a um ouvinte por meio de uma expressão linguística, é algo que envolve questões cognitivas, culturais e sociais. Dessa forma, para esse autor, a causalidade é uma representação cognitiva que tem em vista mais os aspectos social, pragmático e discursivo do que os eventivos, que visam relacionar estados de coisas. Para Baker e Hengeveld (2010), a interface entre o conhecimento de mundo e o conhecimento linguístico do falante se estabelece por meio do conhecimento do vocabulário que o falante possui. Esse conhecimento vocabular constitui o léxico mental do falante, que relaciona esse arcabouço lexical por meio de nós (nodes) e cadeias (strings) que formam uma rede (network). Nessa rede, as conexões entre o conteúdo dos itens lexicais armazenados na mente do falante podem ocorrer por meio de semelhanças semânticas ou sonoras, que vão trazendo à mente do falante seu léxico armazenado. Essa ativação na rede resulta no que os autores denominam de “propagação da ativação”, processo que permite a compreensão e o reconhecimento de palavras apresentadas ao final de um conteúdo informacional, mesmo que nenhuma menção anterior tenha sido feita a elas durante o discurso (BAKER; HENGEVELD, 2010, p. 27-28). Com isso, entende-se que, em uma ocorrência como (15) Quero pedir desculpas por meu silêncio. (CP-W/D) o SPrep apresenta uma causalidade subjacente que é perceptível por traços cognitivos, semânticos e pragmáticos do ato de “desculpar”, presentes no item lexical “desculpas”, que ativa uma rede e suas conexões. Nota-se que o SPrep iniciado pela preposição por continuaria apresentando o motivo pelo qual se está pedindo desculpas, mesmo alterando os outros termos que o constituem, como em (15a) Quero pedir desculpas por meu descuido. (adaptado) (15b) Quero pedir desculpas por minha ausência. (adaptado) 33 Fato similar ocorre em (16), em que o SPrep é composto por uma locução que estabelece uma causalidade que pode ser considerada resultado de uma ativação da palavra “causa” que compõe o SPrep. (16) Soube que ele teve um bate-boca danado com o Dr. Quinca do Engenho Novo, por causa do Capitão Antônio Silvino. (CP-G/H)) Assim, “soube” ativa a informação contida na oração subordinada, a qual é modificada pelo SPrep que atribui a causalidade para “ter um bate-boca com alguém”. No entanto, a informação do SPrep, diferentemente de (15), não faz parte da estrutura que se pode denominar, aqui, “rede inicial”, que diz respeito à construção oracional subordinada “soube > disso”, mas é inserida pelo falante e reconhecida pelo ouvinte como causalidade por meio da locução prepositiva composta por um nome com léxico causal - “soube disso” e “isso aconteceu por causa de”. Casos ainda mais específicos podem ser observados em (17) Aí, por insistência do Franklin, resolvemos levar o embaixador para a casa da nossa imprensa clandestina. (CP-G/H) em que a locução prepositiva, e por extensão o SPrep, não se constitui como um léxico ativado apenas por outro item lexical, mas uma informação ativada por todo um conteúdo informacional. Há um funcionamento cognitivo, semântico e informacional que compõe a “rede”, constituída por conexões que são ativadas pelo léxico, e, nesse sentido, compreende- se a importância do item lexical na formulação realizada pelo falante e na compreensão das informações por parte do ouvinte, mas não se descarta a importância da participação da locução prepositiva ou de preposições nessa rede, uma vez que podem apresentar papel fundamental na composição do SPrep como estabelecendo uma relação de sentido causal para a informação transmitida. Do mesmo modo que um SPrep composto por uma locução prepositiva é capaz de estabelecer uma causalidade, um SPrep simples também o é, porque a preposição, embora não seja vista com um item lexical, pode apresentar valor semântico. Bechara (2010, p. 290), ao tratar das preposições em língua portuguesa, esclarece que “tudo na língua é semântico” e que “as preposições não fazem exceção a isso”. Para exemplificar essas relações semânticas das preposições, basta considerar construções como as seguintes, que apresentam relações semânticas de causa (18) e modo (19) não por uma questão de regência, mas por questão da escolha da preposição. 34 (18) Gullar, por problemas pessoais com o Ministério da Cultura do Brasil, que se dispôs a patrociná-lo, não aceitou e teve de pedir a passagem ao Festival. (CP-G/H) (19) Gullar, com problemas pessoais com o Ministério da Cultura do Brasil, que se dispôs a patrociná-lo, não aceitou e teve de pedir a passagem ao Festival. (adaptado) As noções de causalidade subjacente, de acordo com Maat e Sanders (2000), de causa como um princípio de organização textual e relevância discursiva, conforme Meyer (2000), e de ativação da rede de conexões entre os conteúdos lexicais da mente de um falante, conforme Baker e Hengeveld (2010), permitem concluir que as relações de causalidade são estabelecidas tanto lexicalmente quanto por elementos conectivos, e decorrem de inferências semânticas e pragmáticas. O sintagma por + substantivo atua nessa “rede de causalidade”, assumindo diferentes funções, conforme se constitua ou não por um substantivo com valor semântico de causa. A análise dessa multifuncionalidade de por + substantivo torna-se ainda mais complexa quando se considera que apenas o conteúdo lexical pode não ser suficiente para estabelecer uma relação de causalidade, como se pretende discutir no Capítulo V. Para além do conteúdo lexical, Baker e Hengeveld (2010) explicam que é necessário que o falante também tenha habilidades cognitivas, e não apenas a capacidade de armazenar e relacionar esse léxico. Essa capacidade cognitiva envolve três fatores, a saber: “(i) conhecimento do sistema linguístico (competência linguística), (ii) conhecimento de mundo e (iii) conhecimento de como usar a língua em diferentes situações (competência comunicativa)” (BAKER; HENGEVELD, 2010, p. 32). Esses aspectos cognitivos são especialmente relevantes para este trabalho, uma vez que a cadeia de relações semânticas, dentre as quais destacamos as relações causais, pode ser ativada por meio do léxico e por meio de inferências que podem ser semântica e/ou pragmaticamente motivadas. Esses conceitos facilitam a descrição e a compreensão de uma construção como (20) permitir aos falantes inferirem que a causa/motivo da ida ao retiro vocacional foi a curiosidade de alguém, e saberem que “curiosidade” não é um lugar para onde se foi ou um meio pelo qual se foi a algum lugar - complementos mais esperados para o verbo ir. (20) minha mãe me convidou para participar de um retiro vocacional em a minha paróquia. Eu fui por curiosidade. (CP-W/D) Para Baker e Hengeveld (2010, p. 47), esse acontecimento relacional em rede é pré- linguístico e fornece os conceitos necessários que guiam a construção linguística, ou ainda, que guiam a formulação e a codificação linguística – que, na GDF, ocorrem no componente 35 gramatical. Para esses autores, “o primeiro passo na formulação gramatical é a ativação das palavras certas, sendo que cada palavra traz em si seus próprios significados e propriedades sintáticas. Ao combiná-las, o falante é capaz de construir e formular sua fala”.7 Portanto, percebe-se que a relação de causalidade pode se concretizar tanto na fase de formulação quanto na de codificação das expressões linguísticas e envolve conhecimento de mundo, conhecimento do léxico da língua e o conhecimento de como usar as estruturas linguísticas que cada falante possui. Sweetser (1990) explica que uma interpretação correta das construções causais não depende da forma, mas de uma escolha pragmaticamente motivada para a consideração das construções como representações de unidades de conteúdo, entidades lógicas ou de atos de fala. Daí a atribuição do relevo à intenção comunicativa do falante. Linguisticamente, o que se compreende como uma relação de causa poderia ser visto como um construto linguístico que representa fatos e coisas possíveis em um mundo real ou imaginário, podendo a relação de causa envolver eventos físicos e/ou fatos, ou envolver crenças do falante. De acordo com Sweetser (1990), é possível estabelecer, então, três domínios de causalidade em que o evento ocorre: domínio do conteúdo, domínio epistêmico ou domínio dos atos de fala. No domínio do conteúdo, a causalidade diz respeito a um estado de coisas que causa outro estado de coisas sem a intervenção de uma entidade com traço + volitivo, tendo o evento, portanto, entidades com traço - volitivo, o que denota que não houve uma escolha ou uma intenção na ou para a causa do evento causado. No domínio epistêmico, a causalidade é resultado do raciocínio de um falante que relaciona dois eventos causalmente por entender que há uma causalidade entre os eventos. No domínio dos atos de fala, são considerados os fatores pragmáticos e não de raciocínio do falante para que se considere uma relação de causalidade entre os eventos. Os três domínios de causalidade definidos por Sweetser (1990) são também mencionados por Maat e Sanders (2000) que, a partir da análise de três conjunções causais do holandês, concluem que essa tipologia de domínios deve ser observada como hipótese para pesquisas empíricas, mas que não são específicos o bastante para explicar os diferentes significados e usos destas conjunções. Esses autores propõem que, para dar conta da tipologia da causalidade, uma distinção do tipo [+/-volitivo] pode ser tão fundamental como 7 No original: the first step in grammatical encoding is to activate the right words. Each word brings along its own meanings and syntactic properties. By combining these, the speaker is able to construct and formulate the structure of the utterance. 36 aquela entre domínio de conteúdo e domínio epistêmico uma vez que “é preciso determinar se a relação diz respeito a um motivo para uma ação intencional ou não” (MAAT; SANDERS, 2000, p. 63).8 Esses linguistas chamam a atenção para a importância de se considerar a volição ou a não volição existentes entre as relações nos diferentes domínios e acrescentam às relações causais, além da “causalidade epistêmica”, “de conteúdo” e “de atos de fala”, uma “causalidade volitiva”. No entanto, Maat e Sanders (2000, p. 64) também esclarecem que tanto a causalidade epistêmica quanto a volitiva envolvem um sujeito animado, uma pessoa, cuja intencionalidade é conceituada como a fonte última do evento causal, seja um ato de raciocínio ou uma atividade realizada no mundo. Dessa forma, para este trabalho, embora se reconheça a importância da volição nas relações causais, ela não será considerada um quarto domínio, mas será reconhecida enquanto um critério de análise da relação causal. 3.2 AS EXPRESSÃO DA CAUSALIDADE NA GRAMÁTICA TRADICIONAL A literatura gramatical tradicional em língua portuguesa seleciona e organiza as relações de causa de diferentes formas. Não é a intenção, aqui, discutir a validade ou não das diferentes nomenclaturas de construções de causa, como no caso de uma oração subordinada adverbial de causa e questões de hipotaxe. Inicialmente, é importante lembrar que, nas gramáticas tradicionais, não há uma preocupação efetiva com os fatores cognitivos das relações causais, mas há uma preocupação em selecionar e apresentar construções linguísticas que expressem causalidade por meio de construções oracionais prototípicas. As relações de causalidade reconhecidas são causa e explicação – essa afirmação pode ser verificada por meio de consultas a gramáticas brasileiras como as de Bechara (2010), Cunha e Cintra (2006), Cegalla (2008), entre outras. A gramática tradicional apresenta construções que podem ser conjuncionais ou relacionais, que seriam as construções oracionais, desenvolvidas e reduzidas ou não oracionais ligadas por preposição, como as construções oracionais justapostas e os adjuntos adverbiais não preposicionados. Ao observar a seguinte definição de Cegalla (2008, p. 375): “As orações coordenadas explicativas não devem ser confundidas com as subordinadas adverbiais causais: estas exprimem 8 No original: we need to determine whether the relation concerns a reason for an intentional action or not. 37 a causa de um fato, aquelas dão o motivo, a explicação da declaração anterior”, percebe-se que tal explicação, embora correta, mostra-se vaga, uma vez que não fica clara a diferença entre o que é uma causa e o que é uma explicação. Na sequência, o autor apresenta dois exemplos: (21) João está triste porque perdeu o emprego. (adverbial causal - Cegalla, 2008, p. 376) em que “a perda do emprego” é a causa da “tristeza de João” e (22) A criança devia estar doente, porque chorava muito. (oração explicativa - Cegalla, 2008, p. 376), em que o autor alega que o “choro da criança” não podia ser a causa de sua doença. A essas explicações, o gramático acrescenta a seguinte informação: “Note-se também que há pausa (vírgula, na escrita) entre a oração explicativa e a precedente e que esta é, muitas vezes, imperativa, o que não acontece com a oração adverbial causal” (CEGALLA, 2008, p. 376). No entanto, apesar desse esclarecimento, a dúvida entre causa e explicação tende a permanecer, uma vez que o uso da vírgula antes de uma adverbial causal é facultativo em muitos casos e nem sempre há o uso do imperativo nas orações explicativas. Como construções aqui denominadas de relacionais que podem expressar causalidade, a gramática considera as orações adverbiais reduzidas de gerúndio, particípio e infinitivo, respectivamente, como em (23) Vendo este os seus maltratados, mandou disparar algumas bombardas contra os espingardeiros. (BECHARA, 2010, p. 401); (24) Irado o infante com as injúrias que lhe tinham dito, mandou enforcar uns e degolar outros... (BECHARA, 2010, p. 402) (25) ... é tão desairoso falar um homem a sua língua mal, sob o pretexto de que ela é difícil, como tirar as botas num salão por lhe doerem os calos. (BECHARA, 2010, 398) A relação de causalidade ainda pode também ocorrer em orações justapostas, como em (26) Não se ouvia nada, tamanho era o barulho. (CEGALLA, 2008) ou ainda, por meio de adjuntos adverbiais, mediante uma relação intraoracional, como em (27) Por que lhes dais tanta dor?! (CUNHA; CINTRA, 2006, p. 112) ou (28) Não lhe telefonei por esquecimento. (CEGALLA, 2008, p. 403). Essas construções são relacionais e não conjuncionais porque as orações são ligadas por 38 preposição e não por conjunção. Tendo esses exemplos em vista, não fica clara a distinção tradicional da classificação morfossintática dos termos conjunção e preposição, visto que preposição é definida como “palavra invariável que liga um termo dependente a um termo principal, estabelecendo uma relação entre ambos (CEGALLA, 2008, p. 678) e conjunção, como uma “palavra invariável que liga orações ou palavras da mesma oração” (CEGALLA, 2008, p. 299) – com a diferença de que as conjunções podem ser coordenativas ou subordinativas. No entanto, essa distinção não se mostra suficiente, uma vez que, em língua portuguesa, observa-se a ocorrência de preposições que ligam orações, como é o caso de por: (29) Critica-se muito os tecnocratas, por constituírem um mundo à parte. (CP-G/H). Assim, embora a gramática tradicional cumpra sua finalidade de descrever e normatizar, ela deixa lacunas que envolvem a relação entre a linguagem, o mundo e o falante, sendo essa relação algo de extrema importância para a compreensão da comunicação, bem como para sanar problemas relativos à aprendizagem de língua portuguesa. Considerações aparentemente simples continuam merecendo atenção, como o fato de a preposição por continuar recebendo a classificação morfológica de preposição, mesmo quando está funcionando como conjunção, ligando duas orações, ou ainda, o fato de grande parte dos adjuntos adverbiais, mesmo quando formado por sintagma preposicionado, ser classificada como sintagmas adjetivais ou adverbiais. Casos como esses já foram investigados por Givón (2012), por exemplo, que questiona a classificação dos tipos de sintagmas e o cruzamento de critérios morfológicos, sintáticos e semânticos que se mostram ineficientes. Questões como essas interessam a esta pesquisa, não pela discussão sobre a classificação morfossintática da preposição ou do sintagma, mas por colocarem em evidência o estatuto lexical ou gramatical dessas preposições ou, sobretudo, das locuções prepositivas, como em “por causa de”, que é considerada locução prepositiva pela gramática tradicional, mesmo que ela relacione duas orações, ou seja, parece que o simples fato de unir orações não é o suficiente para que se caracterize um elemento linguístico como conjuntivo ou prepositivo. Portanto, afirmar que uma locução prepositiva é um item gramatical, dada sua classificação ou composição morfossintática, parece algo muito simplista, uma vez que esses termos podem apresentar diferentes funcionamentos semânticos, e, nesses casos, não deveriam ser considerados apenas itens gramaticais. É preciso reconhecer que as relações 39 semânticas - no caso deste trabalho, as relações de causalidade – podem ser marcadas linguisticamente, mas elas envolvem questões ontológicas e cognitivas que são assim marcadas, e não o contrário. Em outras palavras, pode-se criar uma relação entre elementos de um mundo real ou imaginário por meio de recursos linguísticos, mas essas relações também podem ocorrer/existir independentemente do uso linguístico que se faça de conjunções (como porque, pois, etc.) ou de conteúdos lexicais (como causar, motivo, etc.), conforme discutido neste capítulo. As abordagens funcionalistas dos fenômenos linguísticos podem preencher as lacunas existentes na gramática tradicional, na medida em que, não desconsiderando os aspectos cognitivos, apresentam uma descrição integrada dos aspectos pragmáticos, semânticos e morfossintáticos envolvidos na expressão da relação de causalidade. Na seção seguinte, apresenta-se a abordagem da GDF para esse fenômeno. 3.3 AS RELAÇÕES DE CAUSALIDADE NA GDF Antes de se iniciar a apresentação do modo como a relação de causalidade é tratada na GDF, cabe esclarecer a distinção entre causalidade e causatividade. A causalidade é entendida, nos estudos funcionalistas, sobretudo de Neves (1999, 2001), como a relação de causa-efeito ou causa-consequência entre eventos ou entre proposições e atos de fala. Já o termo causatividade denota a função semântica do argumento envolvido na causação do evento expressa pelo verbo causativo. Apesar de se reconhecer a distinção recoberta pelos dois conceitos, para os propósitos deste trabalho, que objetiva descrever o funcionamento dos SPpc, o conceito de causalidade será entendido para abarcar tanto a relação de causa-efeito ou causa-consequência entre eventos como a relação entre as entidades da predicação marcada pela função semântica de causativo,9 uma vez que o SPpc pode atuar nessas duas relações. Como já apontado no Capítulo I, a perspectiva teórica da GDF se mostra capaz de organizar os critérios linguísticos e extra-linguísticos na expressão de relações semânticas e interacionais por meio de sua arquitetura descendente, organizada em níveis e camadas. Alguns estudos abordam as relações de causa em língua portuguesa a partir desse modelo de 9 Função causativo aqui entendida como papel semântico que integra uma predicação e que se distingue, portanto, do conceito de causatividade ou construções causativas. 40 gramática (SPOSITO, 2009; SPOSITO, 2012; MARQUES; PEZATTI, 2015; SPOSITO, MARQUES E PEZATTI, 2016); no entanto, sempre priorizando o âmbito oracional. As distinções de causalidade que são consideradas nesses trabalhos são motivação, explicação, causa e razão. Assim, as relações de causalidade que serão apresentadas a seguir situam-se no nível da relação entre orações, mas são de extrema relevância para o estudo que se propõe aqui no nível sintagmático das expressões linguísticas. 3.3.1 A causalidade no Nível Interpessoal No NI, a relação de causalidade é marcada linguisticamente por meio da Função Retórica Motivação. Conforme Hengeveld e Mackenzie (2008), essa função é uma estratégia do falante que visa direcionar seu ouvinte em relação à mensagem que ele deseja transmitir, que ocorre por meio de dois Atos Discursivos sucessivos, em que um é o Ato nuclear e o outro é o Ato subsidiário e que objetiva alertar/convencer o ouvinte sobre algo. A relação de motivação será sempre expressa pelo conteúdo do Ato subsidiário, cuja informação apresenta a motivação do falante em enunciar o conteúdo presente no Ato nuclear. Outro aspecto importante considerado pelos autores é a ordenação do Ato subsidiário em relação ao Ato nuclear quando há o uso de conjunções que estabelecem a relação de dependência entre os Atos. Hengeveld e Mackenzie (2008, p. 53 e 54) utilizam os seguintes exemplos: (30) Cuidado, porque haverá perguntas complicadas no exame.10 (MI: [(AI: –cuidado– (AI)) (AJ: –haverá perguntas complicadas no exame: (AJ)) Motiv] (MI)) (31) Haverá perguntas complicadas no exame, então cuidado.11 (MI: [(AI): –haverá perguntas complicadas no exame– (AI)) Motiv (AJ: cuidado (AJ))] (MI)) A presença da conjunção, em (30), indica que a motivação está no Ato subsidiário, iniciado por porque, que segue o ato nuclear. Já em (31), os autores ressaltam que a relação de dependência entre os atos está construída em outra direção. O ato nuclear iniciado pelo conector então é precedido pelo ato subsidiário que indica a motivação. Os autores salientam que a realização das Funções Retóricas é dependente da posição que os atos ocupam dentro do Movimento: “se a motivação precede o Núcleo, a realização por meio de porque 10 Watch out, because there will be trick questions in the exam 11 There will be trick questions in the exam, so watch out.m 41 (because) é impossível; e a marcação do Núcleo por então (so) é possível apenas se ele seguir a Motivação.”12 (HENGEVELD; MACKENZIZE, 2008, p. 54), como se vê em: (30a) ?Porque haverá perguntas complicadas no exame, cuidado.13 (31a) ?Então cuidado, haverá perguntas complicadas no exame.14 Note-se que, quando os Atos nucleares ocorrem após os Atos subsidiários, a relação entre eles é alterada, e o Ato subsidiário deixa de apresentar uma motivação para a realização do Ato nuclear.15 Os autores também chamam a atenção para o fato de que, muitas vezes, os Atos subsidiários podem ser confundidos com modificadores, mas, para esses casos, é importante observar que há línguas que apresentam conjunções subordinativas específicas, como é o caso da língua portuguesa. Todavia, os autores não declaram explicitamente que a função retórica Motivação ocorre apenas mediante Atos que se relacionam por meio de conjunção, embora todos os exemplos utilizados apresentem essa característica. Antes, os autores iniciam dizendo que esse tipo de estratégia é implementado pelo falante por meio de dois Atos Discursos sucessivos, com uma Ilocução própria. Acerca dos Atos Discursivos, como mencionado em outros momentos deste trabalho, trata-se de uma unidade mínima de comunicação, a qual não precisa ser uma oração. Duas observações importantes para o desenvolvimento desta pesquisa podem ser derivadas dessas afirmações de Hengeveld e Mackenzie (2008). A primeira diz respeito à configuração morfossintática dos Atos envolvidos em uma relação de causalidade. Ainda que os autores não mencionem explicitamente a expressão não-oracional das Funções Retóricas, elas podem ser descritas em consonância com a descrição oracional dessas funções, como pretendemos demonstrar nesta pesquisa, na medida em que os Atos Discursivos são definidos pela sua função interpessoal e não pela sua constituição morfossintática. A segunda observação diz respeito ao nível de atuação das construções de causalidade. Como apontam Abreu, Pezatti e Marques (2016), em estudo sobre as relações de causalidade em língua portuguesa sob a perspectiva da GDF, há ocorrências de 12 If the Motivation precedes the Nucleus, realization by because is impossible; and marking of the Nucleus by so is possible only if it follows the Motivation: 13 *Because there will be trick questions in the exam, watch out. 14 *So watch out, there will be trick questions in the exam. 15 É importante observar que a inadequação da ordem nos exemplos oferecidos pelos autores é mais evidente na língua inglesa; na língua portuguesa, essas duas ordens ainda seriam possíveis em contextos específicos, mas, nesse caso, a relação expressa não é a de Função Retórica de Motivação, mas sim a função semântica de explicação, razão ou causa. 42 construções causais conjuncionais que, embora sejam expressas por meio de Atos Discursivos, a relação de causalidade não se estabelece no NI, mas no NR. As autoras ilustram essa possibilidade com a seguinte ocorrência: (32) A gente levava altos pitos da minha mãe, não é? porque a gente ficava dando risada da minha vó. (ABREU; PEZATTI; MARQUES, 2016, p. 77) As autoras explicam que, embora as orações envolvidas em (32) correspondam, no Nível Interpessoal, a Atos Discursivos (separados, inclusive, por um ato discursivo de natureza interativa – “não é?”), a relação causal se estabelece no nível representacional, entre dois estados de coisas. É a ocorrência do estado de coisas “a gente ficar dando risada da vó” que desencadeia o estado de coisas “a gente levar altos pitos da mãe”, ou seja, não é possível afirmar que o fato de dois Atos Discursivos estarem envolvidos (em uma relação em que um é subsidiário e o outro, nuclear) seja suficiente para determinar o nível em que a relação de causa se manifesta, se no NI ou no NR. Ressalta-se que as informações apresentadas nesta seção decorrem de análises e estudos que foram realizados considerando segmentos linguísticos oracionais relacionados por meio de conjunções. No entanto, uma vez que a GDF considera as construções linguísticas nos diferentes níveis por meio da recursividade sintagmática, independentemente do tipo de sintagma, se preposicionado, verbal, nominal etc., argumenta- se que esses pressupostos teóricos sejam aplicáveis aos sintagmas em estudo nesta pesquisa. A seção seguinte trará a manifestação da causalidade no nível das relações semânticas, o Nível Representacional. 3.3.2 A causalidade no Nível Representacional As relações de causalidade no Nível Representacional são as que se mostram mais recorrentes na literatura teórica da GDF. Conforme Hengeveld e Mackenzie (2008), as relações de causalidade, neste nível, são de explicação, razão e causa, com a distinção de razão como Propriedade Configuracional ou como categoria semântica Razão. Essas relações consideram aspectos linguísticos para representação do mundo extralinguístico e aspectos semânticos de designação e significado. Abreu, Pezatti e Marques (2016) apresentam, de forma bastante detalhada e objetiva, as relações de causalidade em língua portuguesa, sob a perspectiva da GDF. As autoras 43 definem a relação de causalidade explicação como “ocorrências em que um estado de coisas justifica um conteúdo proposicional expresso na oração principal” (ABREU, PEZATTI E MARQUES, 2016, p. 132), ilustrando essa relação com a seguinte ocorrência: (33) Eu acho que estamos a levantar uma nova mentalidade, não é, porque... já começamos a perceber as coisas. (op. cit., p. 132) Já a relação causa é definida pelas autoras como aquela que “indica que o evento expresso na oração dependente desencadeia a ocorrência do evento expresso na oração principal, sem que haja qualquer envolvimento intencional de uma entidade agentiva” (ABREU, PEZATTI E MARQUES, 2016, p. 134). (34) Escureceu muito rapidamente e isso aconteceu porque estava ameaçando chuva. (op. cit., 134) Em outros termos, a relação de causa, portanto, entre segmentos linguísticos, ocorre no domínio do conteúdo, conforme Sweetser (1990), ou como causa efetiva, de acordo com Neves (2001). Acerca da relação razão, Abreu, Pezatti e Marques (2016) explicam que ocorre o inverso do que acontece na relação explicação, ou seja, enquanto a explicação apresenta uma justificativa para um conteúdo proposicional, atuando como modificador de conteúdo proposicional, a razão apresenta um conteúdo proposicional que modifica um estado de coisas. Nesse sentido, é possível relacionar a razão ao domínio epistêmico de Sweetser (1990). Um exemplo fornecido pelas autoras consta em (35) E muitas vezes na tradição africana, as pessoas usam mesmo, eh, pulseiras, e porque acreditam em qualquer coisa de mágica. (ABREU, PEZATTI E MARQUES, 2016, p. 128) Dessa forma, a razão “constitui, portanto, a função exercida por uma oração que apresenta um pensamento que leva um agente humano a agir de determinada forma” (ABREU, PEZATTI E MARQUES, 2016, p. 134). Acerca da razão, é importante destacar que Hengeveld e Mackenzie (2008) demonstram a ocorrência dessa relação como modificador ou como uma propriedade. Assim, a razão pode ser um modificador de estado de coisas, como em (35) ou uma propriedade, como em (36): 44 (36) Ontem, a chuva causou um acidente. 16 ((HENGEVELD; MACKENZIE, 2008, p. 141) em que não há um modificador de estado de coisas, mas um item lexical que estabelece uma relação entre dois estados de coisas como causal, atuando como uma “propriedade” e não como uma categoria semântica. Esse uso se difere da categoria semântica no sentido de que, quando razão é uma categoria semântica, ela pode ser considerada como um “tipo especial de conteúdo proposicional” que orienta uma determinada ação humana, como em (35) e, quando atua como uma propriedade, ela é um constituinte lexical de valor de natureza semântica causal dentro da estrutura semântica da expressão linguística, como em (36), e não um termo dependente ou independente da/na predicação. Nesse sentido, é importante destacar que o exemplo em (36) denota uma relação de causatividade, ao passo que a relação em (35) denota um exemplo de causalidade. Hengeveld e Mackenzie (2008, p. 850) ressaltam que o vocábulo razão (ao qual, em língua portuguesa, pode-se acrescentar motivo etc.), pode ser utilizado como centro léxico de uma propriedade configuracional. Há também o fato de que operadores e quantificadores podem se aplicar a razões, com funções textuais, como em (37) Líderes de consórcios que não chegaram a apresentar propostas para essas áreas apresentaram três razões: baixa densidade populacional, poder aquisitivo restrito e dispersão geográfica. (CP-G/H) Como se vê, a razão pode ser uma propriedade e ocorrer na camada da propriedade configuracional com núcleo configuracional (36) ou com núcleo lexical (37). Em suma, no Nível Representacional, a causalidade pode ser expressa por meio das relações de causalidade de explicação, razão e causa e, segundo pretendemos mostrar, essa relação pode ser manifestar também por meio de SPpc. 3.3.3 A causalidade no Nível Morfossintático O Nível Morfossintático, NM, é responsável por codificar as construções da formulação para a gramática das línguas. No caso da língua portuguesa, Abreu, Pezatti e Marques (2016) consideram que a função retórica Motivação, do NI, será codificada no NM 16 ‘Yesterday the rainfall caused an accident.’ 45 como um processo de coordenação. Já as relações da causalidade do NR, são codificadas como segmentos subordinados, uma vez que, por constituírem restritores de conteúdo proposicional ou de estados de coisas, modificam um núcleo no nível representacional, o que acarreta consequências no NM, qual seja, um processo de subordinação. Assim, de acordo com as autoras, as orações causais conjuncionais em língua portuguesa, quando atuam no NI, apresentam o estatuto de coordenação e, quando no NR, subordinação. Todavia, Hengeveld e Mackenzie (2008), por sua vez, reconhecem outras possibilidades de ocorrências em diferentes línguas, sobretudo as ocorrências estabelecidas no NR, sem essa aparente correspondência direta, apresentada por Abreu, Pezatti e Marques (2016), em língua portuguesa, de a função retórica motivação coordenar elementos linguísticos e as relações de explicação, razão e causa serem sempre subordinadas. Neste trabalho, consideram-se essas outras possibilidades com base no que é proposto por Hengeveld e Mackenzie (2008), uma vez que a relação é sintagmática e não oracional, e a relação de subordinação, marcada no NM, não corresponde, necessariamente, a relações de causalidade, mediante subordinação, expressas no NI. No entanto, quando se tem uma relação razão que seja devida ao léxico ou que seja estabelecida por um SPpc que atue fora do sistema de transitividade, parece haver coordenação ou Cossubordinação entre os sintagmas no NR, e não apenas subordinação, como no caso das construções oracionais. 3.4. O CONCEITO DE CAUSALIDADE: SÍNTESE Tendo apresentado alguns aspectos da causalidade segundo uma perspectiva cognitiva, tradicional e também funcionalista, cabe destacar alguns conceitos que são relevantes para a análise a ser empreendida neste trabalho. Uma vez que a relação de causalidade pode ser expressa de diferentes modos, o modo de sua expressão não exige uma marca sintática. Todavia, a marcação linguística por meio de conjunções ou outros elementos linguísticos pode servir de orientação para identificar relações de sentido que possuem nexos de causalidade, facilitando o reconhecimento, por parte do ouvinte, dos tipos de causalidade expressos pelas construções linguísticas do falante. Neste trabalho, considera-se a distinção semântica entre o modo de realização da causalidade representada nas construções linguísticas como causa efetiva e causa declarada, conforme Neves (1999, 2001). A causa efetiva apresenta uma causalidade de conteúdo 46 expressa nas construções linguísticas que explicitam um evento real e factual no mundo físico, como em (38) ela morreu por coccidiose adquirida. (MD) Já a causa declarada apresenta construções dos níveis epistêmicos e dos atos de fala, que retratam acontecimentos factuais ou não factuais e que apresentam uma causalidade entre os eventos do mundo, causalidade que é atribuída pelo falante ao evento, como em (39) Comentários sobre shows de o Yes em os anos setenta são totalmente desnecessários e sem sentido, pois não há mais o que dizer a respeito por razões óbvias. (CP-W/D) (40) O protagonista do filme volta, por conta duma mágica qualquer, à Paris dos anos 1920 - (CP- W/D) Nesses exemplos, percebe-se que a causalidade entre os eventos não ocorre entre os estados de coisas relacionados, como no caso do domínio de conteúdo, mas a causalidade é uma relação criada pelo falante por meio do uso da língua (NEVES, 2001). Como já apontado, essa distinção apresentada por Neves (1999, 2001) é feita com base nos estudos de Sweetser (1990), que, por sua vez, apresenta uma proposta de identificação de três domínios de causalidade. A partir da proposta da autora, e tendo em vista o modelo teórico da Gramática Discursivo Funcional (GDF), de acordo com Hengeveld e Mackenzie (2008), é possível estabelecer as seguintes relações entre os domínios semânticos da causalidade e os níveis de formulação da GDF: Quadro 1: Os domínios semânticos, tipos de causalidade e os níveis de formulação da GDF DOMÍNIO SEMÂNTICO Sweetser (1990) MODO DA REALIZAÇÃO DA CAUSA Neves (2010) NÍVEIS DE FORMULAÇÃO DA GDF Hengeveld e Mackenzie (2008) Domínio conversacional Causa declarada Nível Interpessoal Domínio epistêmico Causa declarada Nível Representacional Domínio do conteúdo Causa Efetiva Nível Representacional Fonte: elaborado pela autora Assim, consideram-se como “causa efetiva” expressões linguísticas do domínio do conteúdo, ou, em suma, a relação entre eventos do mundo (físico ou imaginário) em que a relação causal independe da vontade ou interpretação humana, conforme exemplo 47 mencionado em (38). Causa declarada, por sua vez, seriam as expressões linguísticas dos domínios epistêmico e conversacional, que relacionam fatos do mundo de forma causal, como os exemplos supracitados em (39) e (40). Portanto, causa efetiva diz respeito a relações entre conteúdos externos à situação comunicativa, ao passo que a causa declarada diz respeito a relações entre conteúdos internos à situação comunicativa. A causa efetiva, portanto, é expressa verbalmente pelo falante para representar fatos do mundo físico, a causa declarada é expressa verbalmente pelo falante de modo a relacionar fatos ou conceitos do mundo físico como causais. Ainda, devido aos aspectos de designação do Nível Representacional da GDF e os aspectos pragmáticos analisados no Nível Interpessoal, percebe-se que a causa efetiva, que pertence ao domínio do conteúdo, será analisada sempre em termos de designação semântica ou de relações entre categorias semânticas ou Propriedade, ou seja, será sempre analisada no Nível Representacional. Já a causa declarada, quando ocorre no domínio epistêmico, pode ser verificada no Nível Representacional e, quando ocorre no domínio conversacional, poderá ser analisada no Nível Interpessoal, como função retórica. Essas considerações são relevantes no sentido de orientar e auxiliar na distinção das ocorrências de construções causais nos diferentes Níveis da GDF. Importante dizer que, tendo em vista os domínios causais (conteúdo, epistêmico e conversacional) e o modo de realização das relações causais (efetiva ou declarada), percebe- se suas relações com as distinções de construções gramaticais causais na literatura tradicional, amplamente estudadas em termos de orações subordinadas adverbiais causais desenvolvidas ou reduzidas e as orações coordenadas explicativas. No caso específico das construções linguísticas estudadas aqui, interessa-nos a expressão da causalidade que ocorre por meio de SPrep iniciado com por, denominado na Gramática Discursivo-Funcional (GDF) como um sintagma adposicional, termo utilizado para que seja possível a descrição de línguas em que a preposição dentro de um SPrep possa vir em posição tanto posposta (final do sintagma) como anteposta (início do sintagma), sendo esta última a posição que a preposição assume na língua portuguesa. 48 4. CAPÍTULO III: O SINTAGMA PREPOSICIONADO EM LÍNGUA PORTUGUESA Como já apontado na Introdução deste trabalho, na literatura gramatical corrente sobre o sintagma preposicionado em língua portuguesa (SPrep), o reconhecimento de que esta é uma unidade distinta de análise, diferentemente de outros tipos de sintagmas, não é totalmente consensual. Perini (2006), por exemplo, aborda apenas os sintagmas nominal, verbal, adjetival e adverbial, considerando o SPrep como incluído nessas outras categorias de sintagmas, que são classificados em termos do elemento nuclear, independentemente de serem ou não iniciados por preposição. Já Bechara (2010), por sua vez, reconhece os SPrep como unidades distintas, para além dos sintagmas nominais, verbais e adjetivais. A despeito dessa diferença de classificação, para os dois gramáticos aqui mencionados, o SPrep pode desempenhar funções sintáticas variadas no interior de uma oração, como complemento ou adjunto. Este trabalho reconhece a classificação distinta do SPrep e se ocupa dos usos causais desse sintagma quando iniciado com a preposição por. 4.1 O SINTAGMA PREPOSICIONADO Nos estudos gramaticais, dos quais se toma como referência Bechara (2010) e Perini (2006), é amplamente difundido o conceito de construção oracional a partir de um elemento verbal, em que, considerando critérios sintáticos da língua portuguesa, uma oração é composta por um ato de referência (o sujeito), expresso ou não, e um ato de predicação (predicado), sempre expresso. Essa formulação sintática pode ser segmentada em unidades menores (intraoracionais) – as construções sintagmáticas – ou formar unidades maiores (extraoracionais) – as construções oracionais coordenadas ou subordinadas. Com base em critérios morfossintáticos, os SPrep em língua portuguesa são reconhecidos como suboracionais, podendo ocorrer sintaticamente nos limites dos constituintes sujeito e predicado e também na composição de complementos verbais e nominais, exigidos ou não 49 pela regência do termo que estão complementando. Assim, em uma oração como (41) Aldenira gosta de Belo Horizonte. (BECHARA, 210, p. 289) o sujeito é formado por um sintagma nominal reduzido a seu núcleo (Aldenira), e o predicado é formado por dois sintagmas, um predicado verbal, que tem por núcleo o verbo “gostar”, no interior do qual ocorre outro sintagma, o SPrep, na posição de complemento do verbo, com função sintática de objeto indireto, composto por uma preposição (de) e um sintagma nominal, também reduzido a seu núcleo (Belo Horizonte). Chama-se a atenção para o fato de que a preposição que inicia o SPrep em (41) faz parte da regência do verbo que é núcleo do sintagma verbal. No entanto, nem todos os SPrep são inseridos por questões de regência e transitividade, mas podem ser inseridos por critérios pragmáticos ou semânticos, com base na informação que um falante deseja verbalizar, como em (42), em que o SPrep “de fome” não funciona como um complemento do verbo, mas apenas especifica o seu sentido. (42) As autoridades suspeitaram que a paciente morreu de fome. (CP-W/D) A informação no SPrep constitui-se, sintaticamente, como um adjunto adverbial que indica a causa da morte – embora alguns gramáticos considerem este sintagma um adverbial de modo, aqui tal ideia é descartada, uma vez que “fome” não expressa um modo de se morrer; antes, apresenta um estado de coisas que deu origem a outro. A ideia de que o SPrep pode se manifestar em funções sintáticas variadas, tais como adjunto adverbial, adjunto adnominal, predicativo do objeto ou complemento verbal ou nominal, com diferentes preposições iniciando o sintagma é consensual entre Linguistas e Gramáticos. Em definição amplamente aceita na literatura gramatical, sobretudo para linguistas como Neves (1999, 2000) e Castilho (2010), o SPrep é considerado uma unidade sintática com constituintes hierarquicamente organizados em torno de um constituinte nuclear, podendo sua organização ser oracional ou suboracional e ocorrer dentro ou fora do sistema de transitivida