Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação Departamento de Ciências Humanas Origem, desenvolvimento e análise crítica do conceito de culpa na tradição filosófica ocidental. Eli Vagner Francisco Rodrigues Bauru 2022 Eli Vagner Francisco Rodrigues Origem, desenvolvimento e análise crítica do conceito de culpa na tradição filosófica ocidental. Trabalho apresentado ao Departamento de Ciências Humanas da FAAC UNESP Bauru para obtenção de título de Livre Docência na disciplina de Filosofia. Bauru 2022 Rodrigues, Eli Vagner Francisco. Origem, desenvolvimento e análise crítica do conceito de culpa na tradição filosófica ocidental / Eli Vagner Francisco Rodrigues, Bauru, 2022 433 f. : il. Tese (livre-docência) – Universidade Estadual Paulista (Unesp). Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design, Bauru, 2022 1. Filosofia. 2. Ética. 3. Moral. 4. Filosofia Alemã. I. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design. II. Título. Resumo: O trabalho pretende analisar as origens e o desenvolvimento do conceito de culpa na tradição filosófica ocidental, privilegiando autores que forma determinantes para o estabelecimento da doutrina do pecado original e para a concepção a recepção crítica desse legado cultural. Percorre- se através da exegese dos textos clássicos de filosofia e teologia, psicanálise e literatura, as formas como o conceito de culpa influenciou a cultura do ocidente. Palavras Chave: culpa; filosofia; ética; moral; filosofia alemã. Abstract: The thesis intends to analyze the origins and the development of the concept of guilt in the western philosophical tradition, privileging authors that form determinants for the establishment of the doctrine of original sin and for the conception of the critical reception of this cultural legacy. Through the exegesis of the classic texts of philosophy and theology, psychoanalysis and literature, the ways in which the concept of guilt influenced Western culture. Key words: guilt; philosophy, ethics; morals; german philosophy. Sumário Introdução: Capítulo 1. A Herança de Homero: culpa na antiguidade ocidental. 1.1 Os gregos e a culpa: E. R Dodds “Os gregos e o irracional”. 1.2 Origens e permanência da culpa: O culto órfico: Kirk, Raven e Schofield. 1.3 O conceito de Culpa entre os Pré-socráticos: Anaximandro e Empédocles. 1.4 Platão e Aristóteles. Capítulo 2. A Herança de Adão/Agostinho: Pecado original e culpa. 2.1 Santo Agostinho: Pecado Original e Sexualidade. 2.2 O Estabelecimento da doutrina do pecado Original no ocidente. 2.3 Lutero e a mente escrupulosa. 2.4 Kant: Uma batalha contra a heteronomia das causas suficientes. Capítulo 3. A Herança de Lutero: Inocência e culpa do devir. 3.1 O problema da culpa na filosofia de Schopenhauer. 3.2 A culpa universal: Budismo, Cristianismo e Hinduísmo. 3.3 Nietzsche I: Genealogia da Moral, culpa, má consciência e castigo. 3.4 Nietzsche II: A psicologia do ressentimento e a culpa. Metafísica de carrascos. Capítulo 4. Herança histórica e interpretação: culpa como signo, culpa histórica. 4.1 Hermenêutica do dogma do pecado original: Paul Ricoeur. 4.2 Die Schuldfrage: Karl Jaspers e a questão da culpa alemã. 4.3 O crisântemo e a espada: Padrões de culpabilidade na cultura japonesa. 4.4 Hans Kelsen e a noção de culpa a partir do princípio de retribuição. Capítulo 5. A Herança de Nietzsche: Culpa/Dívida ou Sentimento de culpa. 5.1 Heidegger e a questão da culpa. 5.2 Heidegger e Vattimo: a razão técnica culpabilizada. 5.3 Freud: Psicogênese e filogênese da culpa. 5.4 Martin Buber: A insuficiência da psicoterapia e a culpa existencial. Capítulo 6. A Herança de Freud: A permanência da culpa e as novas faces da culpabilidade humana. 6.1 O capitalismo como religião da culpa: Walter Benjamin. 6.2 Stephen Gratzel: Dasein Ohne Schuld. (Existência sem culpa). 6.3 Culpa e literatura: Dostoievski, Kafka e Camus. 6.4 O Bode Expiatório. 1 Introdução: O paradoxo da história de um conceito, segundo Reinhart Kosseleck. Durante quatro décadas Reinhart Kosseleck estudou as possibilidades metodológicas para o estabelecimento de uma história de conceitos. O grande projeto de uma “Geschichtiliche Grundbegriffe: Historisches Lexikon zur politisch-zocialien Sprache in Deutschland” (Conceitos históricos fundamentais: léxico histórico da linguagem político social na Alemanha) visava estabelecer, como o próprio nome indica, um léxico científico, seguro e aplicável aos estudos histórico-conceituais. Um de seus objetivos foi estabelecer diferenças entre a sua proposta de história dos conceitos e a tradicional história das ideias e em relação a história social, como indicam Arthur Alfix e Bernando Ferreira no prefácio à tradução brasileira de Begriffesgeschichten1. As dificuldades que se colocaram diante de Kosseleck são razoavelmente conhecidas por pesquisadores das ciências humanas e da filosofia. Tratar um conceito que atravessa séculos de tradições de pensamento sem que as oscilações semânticas, culturais e sociais impeçam que continuemos a tratar da mesma coisa, do mesmo conceito, representa, sempre, um desafio de pesquisa. Esta dificuldade atinge diretamente as pretensões de um estudo como este que apresento, que pretende compreender um histórico sobre uma abstração moral, teológica e jurídica. Kosseleck aponta para conceitos que, mesmo sendo amplamente usados por diferentes pesquisadores e estudiosos em diferentes contextos e áreas, assumiram especificidades semânticas e significados históricos bastante distintos. E mesmo aqueles sobre os quais, apesar do uso constante, sempre nos perguntamos sobre suas origens e fundamentos. São os casos de Bildung, (formação), Aufklärung, (esclarecimento, iluminismo), progresso, decadência, emancipação, crise, patriotismo, revolução utopia, inimigo, sociedade civil, entre outros. 1 KOSSELECK, Reinhart. História de conceitos, Ed. Contraponto, 2020. 2 Em certo sentido, Kosseleck se opõe à Nietzsche ao pensar que conceitos como tais não têm história, pois, uma vez que são cunhados, escapam à mudança e se tornam um assunto do passado. Como, então, ele propõe uma metodologia para a história de um conceito? O que Kosseleck pretende dizer é que uma formação linguística situada na história possui uma natureza inegavelmente singular que depende do aspecto social e político daquele momento. Nesse sentido, na forma como ele foi formado, ele não comporta mudanças, nuances. Ele não pode possuir a mesma significação em contextos diferentes. Se o contexto não existe mais “o conceito envelhece”. Por esse motivo, diversos estudiosos escrevem coisas do tipo “O significado em tal conceito para a cultura...”, e apontam o contexto cultural da época em que o conceito em questão toma significado. O que Kosseleck enfatiza é que as experiências que deram origem àquele conceito necessariamente desaparecem. Nesse sentido, o conceito não pode ter uma história. Está aí o paradoxo. Como fazer história de algo que não possui uma continuidade histórica como uma linhagem étnica ou um país, um grupo social. O conceito é de natureza distinta do que é real e sofre a passagem do tempo estando presente como entidade material. Estas proposições de Kosseleck, a princípio, provocam um efeito paralisante. Mas é o próprio teórico da historiografia que continua no seguinte sentido: Ainda que do ponto de visto lógico os conceitos não podem possuir uma história como outras entidades materiais “o vocábulo conceitual no qual se condensam e se concentram significados que um dado conceito abrigou em si, pode ser objeto de reapropriações, releituras, reocupações e reinvenções.” (Kosseleck, 2006, p. 9) E Kosseleck complementa com uma ideia pressentida por muitos, mas pouco verbalizada com a certeza com que ele mesmo assinala. “Uma palavra pode ser portadora de novos conceitos”. Assim, ele acaba se tornando portadora de o suporte de novos estados de coisas. Para Kosseleck pode ocorrer um processo diacrônico de medição semântica, isto é, podem ser relidos e aplicados a circunstâncias históricas diferentes. Nesse movimento podemos perceber a simultaneidade de permanência e de reformulação. O que se pretende com essa reflexão é tentar estabelecer que um conceito não pode ser uma espécie de mônada que estaria essencialmente fechada em si mesma e que só conteria os significados que a sua época conferiu a ele. Muda-se, portanto, aqui, com essa concepção, a própria noção de conceito. 3 Essa reflexão de Kosseleck estabelece dois pontos crucias para o trabalho que ora apresento. O primeiro que afirma que “nenhuma formação conceitual poderia, em princípio, ser pensada em termos puramente sincrônicos. O segundo seria: “um conceito, pelo menos potencialmente, conteria em si diferentes camadas de significado, associados a formações conceituais do passado, diacronicamente escalonadas.” Assim, se aceitas essas perspectivas interpretativas, os significados do que se pretende estabelecer como o conceito a ser examinado em seu histórico seriam o resultado dos processos de mediação, recepção, apropriação e reinvenção de sentidos, associados a formações conceituais do passado. E é exatamente isso que acontece com os conceitos de culpa, culpabilidade e imputação, como o comprova o amplo estudo de George Minois que pretendeu mapear as diversas interpretações sobre o dogma do pecado original. Nesta obra o autor se vê na maior parte do tempo ocupado com o esclarecimento das inúmeras interpretações do evento mítico- primordial e determinante ocorrido no jardim do Éden. As diferentes interpretações desse evento primordial determinarão os diversos sentidos de humanidade que a tradição do próprio pensamento clássico desenvolveu. Mais do que isso, constatamos que, dependendo da interpretação, e mais de uma dezena delas foi ensinada, propagada e veementemente defendida por milhares de fiéis seguidores e defensores, o ser humano seria ou não culpado pela introdução do mal no mundo, suprema acusação, ironicamente dependente de uma nuance interpretativa. Os estudos de Minois e de Delumeau, nos mostram que já estivemos por várias vezes entre o paraíso e o inferno, por um fio interpretativo. Muitas vezes salvos por uma palavra estratégica que muda de sentido, muitas vezes condenados pela tendência ortodoxa de um influente intelectual ocupando um cargo relevante para a “ciência teológica normal” de uma época. Uma história de um conceito pressupõe, como afirma Kosseleck, que se tenha através da herança linguística sobre o problema, um acesso heurístico para compreender a realidade passada. No caso do conceito de culpa essa herança foi durante muito tempo delimitada por um vocabulário teológico e jurídico e por fim psicanalítico. Quando o historiador mergulha no passado, ultrapassando suas próprias vivências e recordações, conduzido por perguntas, mas também por desejos e inquietudes, ele se 4 confronta primeiramente com vestígios que se conservaram até hoje, e que em maior ou menor número chegaram até nós. Ao transformar esses vestígios em fontes que dão testemunho da história que deseja apreender, o historiador sempre se movimenta em dois planos. Ou ele analisa fatos que já foram anteriormente articulados na linguagem ou então, com a ajuda de hipóteses e métodos, reconstrói fatos que ainda não chegaram a ser articulados, mas que ele revela a partir desses vestígios. No primeiro caso, os conceitos tradicionais da linguagem das fontes servem-lhe de acesso heurístico para compreender a realidade passada. No segundo, o historiador serve-se de conceitos formados e definidos posteriormente, isto é, de categorias científicas que são empregadas sem que sua existência nas fontes possa ser provada (Koselleck, 2006, p.305). Os conceitos, afirma Kosseleck, retratam e se tencionam contra a sociedade e tanto se originam de uma forma de vida como contribuem para definir essas formas de vida. Mas, ainda mais do que isso, a história dos conceitos mede e estuda a diferença e a convergência entre conceitos antigos e conceitos e as atuais categorias de pensamento. Quando falamos em culpa nos dias de hoje, portanto, falamos mais em uma chave psicanalítica ou ainda utilizamos a matriz teológica para nos referirmos a esse sentimento? E ainda, falamos de um sentimento de culpa que, como veremos, passa a ser utilizado amplamente depois da contribuição de Freud, ou ainda nos referimos a uma culpa essencial, primordial e efetivamente existente em uma perspectiva metafísica? A origem do conceito e as línguas. Kosseleck também assinala que a língua deve ser pensada como elemento importante na compreensão e entendimento do uso de certos conceitos para a inteligibilidade de realidades históricas. Mas que também nos deparamos com o problema de uma polissemia. Isto é, o conceito que se estuda pode adquirir significados distintos em tempo diferentes e em línguas diferentes. O que parece ser uma obviedade para aqueles que possuem o ofício de lutar com palavras, assume um sentido historiográfico importante e não tanto óbvio como, a princípio, parece ter. Um dos exemplos que o autor utiliza é a forma substantivada para designar Bund (Confederatio, Liga). A partir de uma pesquisa histórica pode-se comprovar que o que indivíduos que falavam a mesma língua queriam designar por Bund não era exatamente a mesma coisa. As nuances e a origem latina são reivindicadas a fim de se constatar um mínimo de unidade semântica. 5 Pensamos, portanto, no conceito de culpa e tentamos localizar sua origem a fim de estabelecer um recorte semântico mínimo. A princípio, nossas matrizes foram o hebraico, o grego e o latim. Em relação a origem latina do português “Culpa”, o mesmo ocorre em relação a línguas românicas ibéricas, surge sem grandes alterações fonéticas a partir do latim ‘culpa’. O que indica tanto o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa e o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa é que a palavra designa não só uma falta para com a lei, seja ela religiosa ou civil, mas também a consciência dessa falta por quem a cometeu. Se considerarmos as observações de Kosseleck aqui, podemos afirmar que nos casos de uma falta em relação à leis, normas sociais ou religiosas, teremos variações efetivas diretamente relacionadas às diferenças das próprias leis. No caso da consciência dessa falta e da forma como culturalmente essa consciência se forma e define a própria humanidade, teremos, por exemplo, toda a história das divergências em relação a interpretação do pecado original, que estabeleceu um dos padrões mais relevantes da noção de culpabilidade humana. Se nos detivermos um pouco mais nesse aspecto e recuarmos ainda mais, ‘culpa’ aparece como ‘colpa’ além de ‘culpa’, coexistiam as formas, noxius e ‘noxa’ ou ‘noxia’, que designavam a «maldade» ou «ofensa» causadas e que também adquiri o sentido de algo nocivo ao corpo. É talvez através do latim e dos seus parentes indo-europeus que podemos ficar um pouco mais esclarecidos quanto ao seu significado inicial. Os estudos indicam que pelo menos dois significados devem ser considerados nas palavras indo-europeias que designam o conceito de culpa: 1) Uma infração de carácter moral menos forte que o pecado, mas mais grave que o simples erro, ou falta. 2) A responsabilidade moral por uma ação incorreta, ou propriamente, a culpabilidade pelo ato. Para esses significados já tivermos as palavras latinas ‘culpa’ e ‘noxa’ ou ’noxia’. Quanto à relação entre culpa e falha ou erro, em algumas línguas temos uma distinção marcadamente linguística nos termos como em português culpa, erro, falha, em alemão Schuld, Fehler, Strafwürdigkeit, no inglês, Guilt, fault, error. Outros exemplos seriam possíveis em línguas latinas, mas não é nossa intenção adentrar com mais profundidade 6 nesse terreno. O que, a meu ver, é necessário apontar, de saída, para o acompanhamento deste estudo é que a orientação metodológica que se adotou seguiu, em vários aspectos, alguns resultados das reflexões de Kosseleck, sobretudo aquelas que apontaram para a área da hermenêutica. A história dos conceitos e a hermenêutica. No contexto pós-guerra na Europa, Koselleck e Hans-Georg Gadamer travaram um debate sobre as consequências da consciência histórico-científica para os rumos tomados pelo mundo moderno. O esforço crítico de Kosseleck e Gadamer foi influenciado pela filosofia de Martin Heidegger. Ao passo que Koselleck transforma a descoberta heideggeriana da historicidade intrínseca à experiência humana num projeto historiográfico, Gadamer segue a tradição hermenêutica. Para Kosseleck o objetivo foi pesquisar empiricamente como no plano dos conceitos políticos fundamentais a modernidade se instaurou e remodelou a linguagem política. A marca historiográfica de Koselleck é a tarefa de compreensão do processo de inserção dos conceitos fundamentais do pensamento político moderno em numa consciência processual da história. (Rauter, 2011). Gadamer, seguindo, como vimos, a tradição da hermenêutica alemã, procurou revelar em Verdade e método, que o fundamento da historiografia e de todas as ciências do homem é a relação de pertencimento e comprometimento com o mundo e as tradições, e não a metodologia cientifica. A posição de Gadamer, assim como a perspectiva de Kosseleck apontam para a relevância de um estabelecimento seguro sobre a compreensão de como conceitos específicos e determinantes da cultura foram e são compreendidos em contextos históricos e como, necessariamente eles evoluem. Para Gadamer, a experiência hermenêutica do estabelecimento da verdade não se esgota nos parâmetros estabelecidos pela ciência, mas, diz respeito à totalidade da experiência do homem no mundo. (Rauter, 2011) O que esse debate, a meu ver, tem a contribuir para um estudo sobre o conceito de culpa é que a peculiaridade do conceito nos encaminha necessariamente para a historicidade e para a hermenêutica, sobretudo, pelo menos até Nietzsche, para a hermenêutica teológica. Até o marco de uma obra como a Genealogia da moral, por exemplo, não se encontram reflexões sobre a culpa que extrapolem radicalmente, como o faz Nietzsche, o âmbito da 7 culpa encarada eminentemente como problema teológico. Na filosofia de Schopenhauer, por exemplo, há uma universalização da culpa no sentido de uma concepção já presente em outras tradições religiosas, mas a discussão sobre a culpabilidade está concentrada em terminologia religiosa, mesmo quando o filósofo reivindica o sentido alegórico. Com Nietzsche se rompe, pela primeira vez esse limite do teológico e se introduz o universo do comércio, das trocas sociais e das noções de dívida, pena e castigo, mais diretamente relacionados a cultura social e aos costumes. Veremos em um capítulo específico como a formação linguística Schuld significa “culpa” e “dívida”. Retomando Kosseleck, se não podemos pensar o conceito de culpa como uma formação conceitual que reagiria como uma espécie de mônada que conserva seu significado e que, fechada em si, conservaria somente os sentidos teológicos que sua época (qual época?) o conferiu e, ao longo do tempo, se mostraria imutável, não podemos pensar a culpa de modo sincrônico. Pelo contrário, como vimos, segundo Kosseleck, “um conceito conteria em si diferentes camadas de significados, diacronicamente escalonadas” (Kosseleck, 2020). Pergunta-se aqui, de início, “qual época?” seria aquela mais adequada para se estabelecer um ponto de partida para os estudos sobre a significação da culpabilidade na forma como ela se desenvolveu no ocidente. Ao longo deste trabalho, se constatará que essa é uma pergunta das mais complexas. A opção que adotamos marca, como se constata já na introdução, que nossos marcos são a literatura homérica e a tradição judaica/hebraica. Assim, estabelecem-se, com alguma liberdade, o que denominamos os limites do que denominamos tradição ocidental. O conceito de culpa seria, portanto, o depositário de sentidos acumulados pela tradição ocidental do pensamento, sobretudo da longa e duradoura influência do pensamento teológico que se desenvolveu pelo menos dos séculos IV e V até o século XV e XVI. Se até o século XVI um dos mais relevantes fundamentos da cultura clássica é a centralidade do pecado original tanto na teologia como nas artes em geral, talvez seja nesse século que um lapso de discórdia, pela primeira vez, em relação à culpabilidade humana se vislumbra na forma de um protesto veemente, que tanto em seu impacto cênico como em sua profundidade teológica não encontra precedentes na cultura ocidental até então. Trata-se do protesto/lamento de Adão no Paraíso Perdido de John Milton: 8 Por acaso pedi a Ti, ó Criador, que do barro Me moldasses Homem, por acaso solicitei a Ti Que da escuridão me resgatasses? (Paraíso Perdido, X) A provocação de John Milton, no lamento de Adão, toca em um intrincado problema da teologia que tem como núcleo o problema da culpa, problema que será, como veremos objeto de trabalho de pelo menos uma década daquele que pavimentou a solução teológica adotada pela tradição, Santo Agostinho. Com a suposta solução da centralidade do livre- arbítrio, aponta-se para o homem como responsável pelo mal e, assim, para o ser legitimamente imputável na economia teológica da culpa. Esse legado será, como veremos, revirado e examinado de maneira contundente somente nos limites do século XIX e mesmo assim deixará um rastro de culpabilidade em outras instâncias da cultura. Vale mencionar, já de início, que a história do conceito de culpa é, em grande medida a mesma que o conceito de pecado original. Nesse sentido e seguindo a perspectiva proposta por Paul Ricoeur em “Finitude e culpabilidade” Lemos numa das Confissões de Fé das Igrejas da Reforma que a vontade do homem está “totalmente cativa sob o pecado” (Confissão de fé de La Rochelle, art.9). É fácil reencontrar sob esta expressão de “catividade” toda a pregação profética e apostólica; mas a Confissão de Fé acrescenta imediatamente a seguir: “Acreditamos que toda a linhagem de Adão está infectada deste contágio, que é o pecado original e um vício hereditário, e não somente uma imitação como os Pelagianos quiseram dizer, os quais detestamos nos seus erros” (Ibid., art. 10). Pecado originário, vício hereditário; com estas palavras operou-se uma mudança de nível: passámos do plano da pregação para o da teologia, do domínio do Pastor para o do Doutor; e simultaneamente produziu-se uma mudança no domínio da expressão: a catividade era uma imagem, uma parábola; o pecado hereditário pretende ser um conceito. Além do mais, quando lemos o texto que se segue: “Acreditamos que este vício é verdadeiramente pecado e que ele basta, para condenar todo o género humano, até às crianças no ventre da sua mãe, e que é reputado pecado diante de Deus (e assim por diante)” (art.11). Temos a impressão de entrar, não somente na teologia como disciplina relevando dos doutores, mas na controvérsia, na disputa de escola: a interpretação do pecado original como culpabilidade original das crianças no ventre da sua mãe, não somente não está mais ao nível da pregação, mas atinge um ponto 9 onde a tarefa do teólogo se torna especulação abstrata, escolástica. (Ricoeur, 2008, p. 3) Com o trabalho estabelecimento da doutrina do pecado original por Agostinho e pelos pais da igreja mantém-se firme a tradição ininterrupta de Israel e da Igreja, a “tradição penitencial”, que tem na cena da queda sua maior expressão simbólica. Veremos que o histórico do conceito de culpabilidade, invariavelmente, corresponde ao posicionamento dos diversos autores aqui estudados entre a posição de reafirmação da tradição penitencial ou, aqueles, raros, que negaram essa tradição. Mas antes dessa querela de séculos na tradição judaico-cristã, o que havia minimante elaborado em relação à culpa na chamada tradição ocidental? É o que veremos a seguir em uma breve passagem pela Grécia homérica e pré-homérica. A característica hegemônica da perspectiva penitencial na chave cristã, nesse percurso, exigiu a colocação de Agostinho, e sua querela contra os gnósticos, antes de Hesíodo e Homero. Origens e noções de culpabilidade Quando, ainda na literatura homérica e hesiódica, a justiça é exaltada como valor supremo e, posteriormente, se torna um conceito ontológico, além de moral e político, sobretudo em Platão, introduz-se na lógica e no cálculo do que seria justo e equilibrado, o problema da compensação em relação ao sofrimento humano. Nesse horizonte cultural remoto e em mesmo em outras tradições, já se insinua a noção de culpabilidade em relação a origem do mal. Os poetas líricos fixaram, também, um outro conceito que aponta para a noção de limite para as ações humanas que aponta para uma ideia de dívida e culpa. Aos seres humanos (mortais) é determinada uma justa medida de comportamento. Ultrapassar essa medida, a medida que lhe é atribuída pelos deuses, constitui uma Hybris, uma transgressão, passível de punição. Nesse contexto e, como pressupomos, mesmo antes dele, já se pensava em culpa pelos atos humanos, em justificação das ações e em punição pelo agir que fosse julgado incorreto por alguma instância normativa metafísica. Este estudo pretende apresentar diversos contextos culturais nos quais a questão da culpabilidade humana foi desenvolvida, seja do ponto de vista mitológico, religioso, teológico, psicológico, filosófico ou mesmo histórico, entrecruzando interpretações e autores, instituições e costumes, opiniões e visões de mundo. Como não se trata, obviamente, de datar uma origem para o surgimento da noção de culpabilidade ou mesmo de localizar o nascimento do sentimento de culpa na história da humanidade, o que seria, 10 do ponto de vista metodológico, impraticável, mas antes, de acompanhar os desdobramentos do desenvolvimento do conceito, noção e ideia de culpa e de seus rastros na cultura, o texto apresenta análises exegéticas de obras centrais para o estabelecimento da história filosófica da culpa, mas apresenta, também, um aspecto ensaístico, sobretudo no que diz respeito a permanência da culpa na cultura contemporânea. Nesse sentido, este trabalho é diretamente influenciado pela Begriffsgeschichte (História dos conceitos) de Reinhart Kosseleck e pelo relativismo expresso na hermenêutica de Gadamer e, posteriormente de Paul Ricoeur, por considerar, assim como estes pensadores, a possibilidade do conhecimento da história de uma ideia, noção ou conceito, a partir da ‘fusão de horizontes interpretativos’ das diferentes comunidades linguísticas que se sucedem nos diferentes tempos históricos. A forma como a tradição do pensamento ocidental pensou a ordem do tempo histórico até hoje, sobretudo a partir da influência da tradição religiosa, esteve relacionado com a questão de uma culpabilidade humana. Se boa parte da humanidade acredita em uma finalidade para a história, ou, de uma maneira ou de outra, já pensou nos termos de um “final dos tempos”, muito provavelmente essa concepção foi influenciada pela ideia de um julgamento final, de um juízo num suposto fim dos tempos. Nossa interpretação do mundo, no correr dos últimos séculos, não parece ter se afastado tanto de uma noção de história baseada em uma visão judicativa, seja pela noção de pecado, seja pela ideia de um tribunal da razão julgando os perigos de destruição natural do planeta e mesmo de um finalismo apocalíptico, distópico. Aos agentes responsáveis do mundo atual não parece estranha a ideia de um julgamento no horizonte dos tempos, essa ideia um tanto mitológica não parece ser tão fictícia para a maioria das pessoas, mesmo na atualidade secularizada. A ideia de responsabilidade pelos destinos da natureza e do planeta é apenas uma das novas formas de culpabilidade. A ideia de responsabilidade é central na reflexão sobre a culpa, pois nos projeta para ao ambiente da filosofia moral e aponta, necessariamente, para a noção de autonomia. Se essa história pode ser acompanhada desde seus inícios é o que tentaremos empreender a partir de um dos primeiros registros culturais de uma relação mente-corpo que implicaria em noções de justiça, compensação e retribuição. 11 No início, o orfismo... O orfismo é uma das fontes a partir da quais o ocidente pensou o dualismo que proporciona o terreno a partir do qual uma lógica de culpabilidade começa a se tornar um elemento indissociável da cultura. A invenção de uma substância que habita o corpo, mas que não é da mesma natureza do que o corpo será determinante para a origem de toda uma tradição imputativa. A alma estabelece uma relação de dicotomia em relação aos apetites do corpo e só pode alçar seu lugar de origem se livrar-se dos domínios da satisfação corporal e das tendências materiais e instintivas dessa morada indesejável e degenerada. Pois é esta substância que vai responder pelo que posteriormente se denominará consciência e à qual será atribuída responsabilidade pelo agir. Instância decisória e, portanto, passível de julgamento e imputação. Na esteira da noção de consciência se estabelecerá uma outra noção, essa, de fato, capaz de atribuir ao indivíduo no qual essa luta se instala, a culpa por suas ações, trata-se do conceito de autonomia. De posse plena de autonomia, o indivíduo pode ser legitimamente punido. Essa noção de autonomia está obviamente diretamente relacionada à noção de liberdade. Exatamente por esse motivo todo o edifício que deriva do orfismo/platonismo, a saber, o próprio cristianismo, dependerá essencialmente do chamado liberum arbitrium indiferentiae para sustentar seu ordenamento histórico-temporal-escatológico e seu plano de compensação pela culpa e pelo pecado humano. Nessa estrutura jurídico-teológica a própria morte figura como retribuição aos atos do corpo. Dessa maneira e a partir dessas premissas poderemos iniciar uma investigação a respeito do desenvolvimento da noção de culpa no que foi denominado como a tradição ocidental do pensamento. É do núcleo das crenças órficas, ou dos desdobramentos que essa concepção dualista propaga, que surgirão os fundamentos de inúmeras reflexões sobre a imputação do ser humano a partir de suas ações. O princípio da medida das ações legítimas se funde com a natureza dualista da concepção órfica estabelecendo desde os primórdios do pensamento grego uma concepção de justiça e compensação, de ato e retribuição, de ação e punição, em outras palavras, de uma potencialidade ou de uma necessidade imputativa em relação as ações humanas. O núcleo das crenças do orfismo pode ser resumido a partir dos seguintes princípios: a) No homem hospeda-se um princípio divino, um demônio (alma) que caiu em um corpo por causa de uma culpa originária. 12 b) Esse demônio apenas preexiste ao corpo, mas também não morre com o corpo, pois está destinado a reencarnar-se em corpos sucessivos, a fim de expiar aquela culpa originaria. c) Com seus ritos e práticas, a "vida órfica" é a única em grau de p6r fim ao ciclo das reencarnaq6es e de, assim, libertar a alma do corpo. d) Para quem se purificou (Os iniciados nos mistérios órficos) há um prêmio no além (da mesma forma que há punições para os não iniciados). (REALE, 2007, p. 9) Com essa concepção o homem se via diante de uma luta entre dois “princípios de contraste e luta”. A alma e o corpo tomarão lugares éticos que determinarão a história da cultura até os nossos dias. O que é importante destacar nessa passagem é o rompimento com a concepção ética naturalista. Ao colocar a alma em contraposição com o corpo determina-se uma tensão ética que não poderia ter existido, pelo menos na forma existencial mais radical, na concepção naturalista. O homem é incitado, por um princípio ontológico, a reconhecer que algumas tendências ligadas ao corpo, alguns instintos, algumas pulsões, que anteriormente poderiam ter sido consideradas até positivas, devem ser reprimidas. Além disso, alguns preceitos relativos à relação corpo e alma são desenvolvidos no sentido de purificar a alma em relação às pulsões do corpo. Passa-se a pensar numa dieta da alma em relação ao corpo. Trata-se de saber: O que vem do corpo que eu devo negar e combater? Boa parte das doutrinas ascéticas são motivadas por essa lógica, no budismo, no cristianismo e no hinduísmo. A vida concebida a partir de uma visão monástica passa a fazer parte do universo da sabedoria filosófica e religiosa e a noção de culpabilidade é indissociável dessa concepção. Além do orfismo. Mas não é somente o orfismo que reforçará e introduzirá a lógica dualista como estrutura da noção de justiça retributiva em relação às ações humanas no sentido da imputação e da punição. O gnosticismo desempenhará um papel importante na concepção que diversas visões da própria natureza humana e na relação que passamos a estabelecer entre o que é material e o que é imaterial. Restrito, a princípio, ao horizonte de influência da teologia cristão e objeto de inúmeras críticas por representar um dos alvos mais visados da chamada herisiologia cristã o gnosticismo se tornou uma influência de fundo para diversas teorias e em diferentes campos do pensamento, influência que foi posteriormente 13 notada na história do pensamento. Basicamente a influência se dá a partir da concepção de matéria como entidade degenerada na escala da criação. Essa concepção, de certa forma, reforça um aspecto do orfismo que coloca no corpo e nos instintos humanos a origem da necessidade de culpabilização da própria existência. Mas o gnosticismo projeta essa degeneração culpabilizada para uma esfera cósmica, sugerindo que a culpa extrapola os limites da existência humana e repousa na própria natureza da matéria, entidade inferior na configuração cósmico-temporal. Essa concepção, que aqui não será explicada à exaustão, de uma maneira ou de outra, faz parte da forma como pensamos a matéria corporal e a hierarquia dos valores em relação ao que é material e ao que é supostamente imaterial ou ideal. Quando nos movemos mais propriamente para o campo da filosofia enquanto uma área historicamente mais estabelecida e podemos tratar de conceitos e não somente de noções a situação de tal investigação não muda radicalmente no caso das ideias de culpa, imputação e culpabilidade. As dificuldades para se determinar, com segurança teórica, uma definição de culpa e de apontar os elementos constituintes de uma legitimidade teórica ou jurídica, a meu ver, continuam. Do universo do mito e da religião, passa-se ao universo da ética e da filosofia política, mesmo assim, a tentativa de esclarecer os fundamentos da culpabilidade continua sendo uma tarefa difícil. Por trás de uma teoria da culpabilidade legitima deveríamos ter uma teoria da justiça também legitima, mas essa se mostra também difícil de encontrar uma vez que a própria noção de justiça também sofrerá o influxo de mitos, tradições religiosas e concepções antropológicas que não estão isentas de dogmatismos, imprecisões e conteúdos culturais específicos de cada época, portanto, não necessariamente universais. O caminho que leva da concepção de justiça esboçada por Aristóteles na “Ética à Nicômaco” e por Platão na “República” até a obra “Uma teoria da Justiça” de John Rawls, por exemplo, o que seria uma tarefa ainda que óbvia, infactível, em um trabalho cujo tema não é propriamente a justiça, não será percorrido aqui, antes, procuraremos indicar como a ideia de culpa se formou em diversas tradições de pensamento, respeitando suas características e mesmo suas incoerências, a fim de compreender como os fenômenos da culpabilização e da auto-inculpação se mantém como um elemento constitutivo da cultura, antiga, medieval e moderna e, sobretudo, quais seriam os fundamentos (culturais) desse fenômeno, sejam eles religiosos, psicológicos, políticos, jurídicos ou econômicos. 14 Evolução da conceituação e das concepções de culpa na História da Filosofia. Os problemas tradicionais da filosofia, apontam para conceitos que se tornaram, por assim dizer, “clássicos”. Entre estas questões de evidência filosófica por natureza podemos citar os conceitos de livre-arbítrio, moralidade, conhecimento, beleza, bem, mal, justiça, entre outros. Alguns temas, no entanto, apesar de serem a todo momento referências determinantes para outros tantos conceitos fundamentais da ética, da estética e da metafísica, apenas para citar três disciplinas, ou áreas, centrais da filosofia, foram e são relegados a um papel complementar aos raciocínios, argumentos e à estrutura das teorias e dos sistemas filosóficos. Este é, sem dúvida, o caso do conceito de culpa. Associado diretamente e em primeiro lugar à teologia e posteriormente à psicologia, como veremos na parte histórica deste estudo, o conceito, pelo menos em suas primeiras referências esteve vinculado à dogmática religiosa e a manifestações psicológicas ligadas sobretudo à experiência concreta característica do modo de vida propriamente religiosa, isto é, da experiência concreta da religião. Nesse sentido, para compreendermos um pouco mais sobre o conceito e o fenômeno da culpa, nossas referências bibliográficas são necessariamente as obras dos teólogos e dos teóricos da psicanálise e mesmo da psicologia enquanto disciplina aplicada. No entanto, como os teólogos se confundem com os filósofos, e vice-versa, em muitos momentos da formação da cultura ocidental, por diversas razões cujos méritos não serão aqui julgados, tampouco explicitados, nos ocupamos também da obra de alguns filósofos na tentativa de perscrutar a legitimidade de um conceito de tão difícil esclarecimento em suas raízes ontológicas. É preciso alertar, também, nesse início, que em cada momento dessa investigação, por força de seu aspecto inegavelmente hermenêutico, procurou-se determinar em cada autor, época e contexto cultural o sentido específico que se deu ao conceito de culpa, tentando, assim, não exatamente alcançar uma precisão conceitual que talvez seja impossível à noção de culpabilidade, mas, antes de tudo, evitar ao máximo a ideia de culpa como um mosaico semântico. Se em cada época e contexto o conceito adquiriu uma conotação em relação aos acusadores e à natureza dos acusados, é preciso apontar para cada um desses personagens e para a natureza de suas acusações. O conceito de culpa sempre esteve relacionado às consequências de um ato de imputação muitas vezes relacionado a instâncias que não possuíam legitimidade racional (razoável) ou mesmo empírica (evidente). É nesse sentido que ele, o ato de acusar e de imputar, pode ser, na maioria das vezes, acusado de portar um status autocrático ilegítimo e apresentar 15 traços de um dogmatismo judicativo e por isso mesmo pode ser criticado e refutado, em alguns contextos, em sua legitimidade e validade. A pergunta dirigida a qualquer ato de imputação sempre foi em relação à legitimidade da instância condenatória. Numa escala que considere o ponto de vista da imaterialidade à materialidade teríamos uma instância divina, os códigos morais, as doutrinas ético-religiosas, as normas e leis, o estado, as autoridades civis, as autoridades religiosas, os pais, a consciência, a sociedade, etc. Mas, não em um momento determinado do desenvolvimento do espírito humano, mas como resultado de um processo cultural, longo e cumulativo e bastante efetivo, uma nova instância de imputação e, portanto, de culpabilidade, surgiu e essa também não seria uma instância material e externa e não estaria distante de nós como um outro, mas, antes, se manifestaria como se estivesse localizada em uma transcendência obscura e metafísica, apesar de devidamente entranhada em nós mesmos. Essa “nova” instância é a consciência moral, que nos julga de dentro para fora e não mais de fora para dentro. O surgimento e a estruturação e legitimação dessa instância imputativa e “punitiva” também é objeto desse estudo. Talvez a conceituação mais conhecida dessa forma de escrutínio da própria consciência tenha sido a forma como Sigmund Freud a estabeleceu segundo sua tentativa de esquematizar uma estrutura psíquica que fosse capaz de nos conduzir a uma compreensão mais segura do comportamento e de sua origem psíquica. Nessa tentativa, essa instância judicativa foi denominada Super-Eu, ou superego. Veremos, também, que foi o próprio Freud que estabeleceu aquilo que interpretamos como uma virada epistemológica na interpretação do fenômeno do surgimento da culpa na consciência, apontando mais especificamente para o sentimento de culpa (Schuldgefühl) e não propriamente para a culpa como algo justificado em si mesma ou justificado por alguma instância imputativa, supostamente legítima. A complexidade dos problemas que envolvem e se relacionam com o conceito de culpa, por si só, já seriam justificativa para uma abordagem filosófica do problema. No entanto, nos deparamos, de saída, com uma questão de método. Qual seria o método e a disciplina da filosofia a partir da qual podemos examinar e refletir sobre o conceito de culpa? A princípio, considerando a separação radical de método entre a filosofia e a teologia, podemos atribuir o problema à área da ética e nos debruçarmos sobre o problema a partir do problema da liberdade e das teorias do valor (axiomática), além de pensarmos o problema a partir de referenciais da filosofia do direito e da metaética. 16 Há, no entanto, uma rica reflexão sobre o problema da culpa desenvolvida por filósofos que se filiaram, em vários sentidos, à tradição denominada a partir do início do século XX como a escola hermenêutica. A hermenêutica, tida como um movimento histórico- filosófico, é formada por uma história mais longa que remonta à Antiguidade. Nos interessa, no entanto, enquanto método, mais a história moderna da hermenêutica que se origina com figuras do pensamento alemão do século XIX e do início do século XX, especialmente Friedrich Schleiermacher e Wilhelm Dilthey. A hermenêutica contemporânea foi moldada, por sua vez, especialmente por Martin Heidegger e Hans- Georg Gadamer e por Paul Ricoeur. Este último, assim como Heidegger, mas de maneira mais sistemática, se debruçou sobre o problema da culpa com distanciamento metodológico em relação à teologia, mas sem negar aspectos relevantes dos discursos mitológico, religioso e teológico, como, aliás, é característico da escola hermenêutica. Vale lembrar que a hermenêutica, enquanto disciplina, nasce de tentativas de interpretar, antes de tudo, os textos bíblicos (e religiosos em geral) e jurídicos. A abordagem hermenêutica permite recuperar e reinterpretar as diversas tentativas de compreender o problema a partir de um léxico próprio de sistemas metafísicos e religiosos que, quando submetidos ao rigor da reflexão filosófica contemporânea, como por exemplo ao rigor da metodologia característica da filosofia analítica, esbarram em aporias e refutações radicais. Nesse sentido é que veremos, no início do século XX, mais exatamente a partir da publicação de “Principia Ethica” de George Edward Moore, o surgimento da metaética. Para essa vertente da filosofia, por exemplo, as questões sobre a culpa, imputação e culpabilidade devem ser submetidas, antes de mais nada, a uma investigação sobre o realismo moral e o Antirrealismo moral. Para o anti-realismo moral, por exemplo, o ideal moral (o certo e o errado) somente são categorias a priori. Isto é, existem somente em abstrato, em um sistema de valor específico (axiologia) e seria distinto da prática moral (a atualização ética). Assim, fatos morais não existiriam como coisas, mas são as atitudes e valores pessoais ou sociais que devem ser categorizadas como morais. Ora, essa perspectiva, por si só, se levada a uma consideração radical, deixaria em aberto a possibilidade de imputação e, portanto, de culpabilidade humana. Por esse e por outros motivos metodológicos, a tradição hermenêutica, que não invalida os esforços mitológicos, religiosos, teológicos e filosóficos, mesmo que dogmáticos, de tentar compreender a culpabilidade, tem aqui um espaço talvez maior do que outras perspectivas filosóficas. Nesse sentido, efetuamos, 17 propriamente o que se costuma classificar como história da filosofia, história dos conceitos, ou ainda história do pensamento. A culpa como problema filosófico. Os conceitos e problemas tradicionais da filosofia, que, ou por serem evidentes temas de cunho, inspiração ou mesmo por dificuldade de abordagem e desenvolvimento, temas filosóficos por excelência, não requerem justificativas ao serem abordados em tratados, teses e artigos por quem pretende examiná-los da perspectiva do método filosófico. Entre estes conceitos de evidência filosófica por natureza podemos citar os conceitos de livre-arbítrio, moralidade, conhecimento, beleza, bem, mal, justiça, entre outros. Alguns temas, no entanto, apesar de serem a todo momento referências determinantes para outros tantos conceitos fundamentais da ética, da estética e da metafísica, apenas para citar três disciplinas, ou áreas, centrais da filosofia, foram e são relegados a um papel complementar aos raciocínios, argumentos e à estrutura das teorias e dos sistemas filosóficos. Este é, sem dúvida, o caso do conceito de culpa. Se a filosofia enquanto movimento crítico, tanto para Kant quanto para Hegel significa, na verdade, compreender a gênese daquilo que aparece para nós como dotado de validade, a culpa, a imputação de entes racionais e suas origens deve ser objeto legítimo de crítica, análise e estudo. Aquela forma que aparece a nós como resultado de uma normatividade estabelecida, como modelo para uma maneira de julgar e de inculpar os agentes em um campo moral, deve, ela mesma, passar por um julgamento. Vale ainda mencionar que a suspeita que motivou e motiva esse estudo surge a partir da concepção arqueo-genealógica da moral, que nega a origem transcendental da ideia e da validade (legitimidade) da culpa como aquilo que é atemporal, como aquilo que desconhece a história (“o que é transcendental desconhece a história”). Nega-se a ideia de atemporalidade da culpa e com isso nega-se sua inquestionabilidade. Por outro lado, se toda tentativa de explicitar a gênese de qualquer normatividade, legitimidade e validade significa demonstrar porque ela deve ter validade, buscamos, também encontrar a possibilidade de legitimação da culpa. O problema está diretamente relacionado com os conceitos de autonomia e responsabilidade, que serão, veremos, em linguagem da filosofia o do período modernos, outros nomes para a culpa. Esta guinada, da concepção teológico-religiosa da culpa para a esfera do direito moderno terá como fundamento a noção de eu (cogito) e de indivíduo que, em si, manifestará a existência de uma “subjetividade responsável”. Só existe culpa a partir de uma subjetividade responsável, o 18 que muda na história é a forma como essa subjetividade se auto-imputou pelo mal do mundo e como ela continua a lidar com essa perspectiva em fronteiras que extrapolam a consciência individual. (ecologia, desigualdade social, alteridade, opressão, violência, depressão, niilismo). Segundo Patrice Meyer Bisch, em “Pour une conscience de la culpabilité infinie. Approche philosophique”2 a abordagem filosófica da culpa deve ser considerada a partir de três perspectivas, a saber: 1. Ética: trata-se de detectar por trás do sentimento de culpa, a natureza e alcance da consciência que a expressa. Entre a culpa mórbida e a ausência de sentimento de culpa, há espaço para uma auto-imputação autêntica, isto é, existe uma "culpa razoável"? 2. Metafísica: trata-se de comparar duas noções essencialmente assimétricas, bem e mal, para mostrar qual é a natureza da falta, da falibilidade e a boa ação humanas. 3. Crítica: com base nos dados da psicologia e da ética, distinguir rigorosamente entre culpa mórbida e culpa saudável. Essa etiologia nos serve de ponto de partida e em vários momentos dessa pesquisa ela representa o que, de fato, estou tentando empreender, apesar das grandes dificuldades que o tema apresenta. De uma maneira ou de outra, os autores aqui citados, cujas obras foram examinadas, partem invariavelmente de um dos pontos de vista elencados acima. A culpa como enigma. O termo enigma designa algo de difícil compreensão e, portanto, de definição complexa. Geralmente é atribuído a algo que não conseguimos conhecer a fundo e para o qual as causas não são evidentes. Na história da cultura está associado ao metafórico e à ambiguidade, com o obscuro e com aquilo cujas intenções objetivas não são claras. Os enigmas também estão relacionados com os aspectos místicos, inexplicáveis e surge em narrativas sobre os aspectos sobrenaturais e, portanto, compõe uma parte central das mitologias. Além dessas definições, um enigma está sempre em relação de provocação em relação àquele que toma conhecimento de sua existência. Um enigma incita a desvendá-lo, este aspecto também compõe sua definição. Talvez a mais conhecida estória sobre um enigma seja a de Édipo, personagem que tem um papel central na “história da 2 Dans Echos de Saint-Maurice, 1987, tome 83, p. 150-160 © Abbaye de Saint-Maurice 2013. 19 culpa”, e que desvendou o enigma proposto pela esfinge. É curioso notar que a desvendado o enigma, a esfinge, vencida, se precipita do alto de um rochedo e morre. Esta imagem é, a meu ver, altamente significativa se considerarmos que a esfinge devorava aqueles que não conseguiam vencê-la, decifrar o enigma. Se nos permitirmos uma interpretação livre em relação ao enigma da culpa, veremos que ocorre o mesmo na relação entre o homem e sua culpabilidade. A falta de compreensão da origem e gênese da culpa geralmente conduz a precipitação do homem, seja em forma patológica e mesmo em sua auto-aniquilação. A forma como o homem tentou se livrar dos efeitos da culpa sempre foi pelas tentativas racionais de decifração de uma linguagem cifrada, obscura e incerta. Assim foi com a teoria psicanalítica, assim ocorre na teologia e da mesma forma nos ocupamos da culpa na filosofia, como um enigma da cultura. Um enigma pode ser um enigma figurado, no qual imagens e figuras e metáforas substituem as palavras, textos e números, o material usualmente usado pela racionalidade para resolver problemas. No caso da culpa, mitos, lendas, costumes, rituais e dogmas compõem o quadro a ser decifrado. Conforme acompanhamos o desenvolvimento da cultura ocidental alguns aspectos que geraram as noções de culpabilidade humana parecem ficar mais claros à luz da crítica filosófica e teológica, mas, ao mesmo tempo, as novas formas de imputação e de sentimentos de culpa passam a representar novos enigmas. Nessa fronteira, atualmente, a psicologia e a medicina têm contribuído muito para o esclarecimento de que a culpa, como elemento fundamental da constituição e definição de humanidade, não é apenas um problema da teologia. A culpa estaria associada, por exemplo, aos chamados transtornos obsessivos compulsivos à anorexia e a inúmeras doenças psíquicas. No campo da política o tema da culpa coletiva determina, hoje, diversas diretrizes políticas e culturais na Europa, é uma área sobre a qual já se debruçaram pensadores como Hanna Arendt, Karl Jaspers, Adorno, entre outros. A culpa em seu aspecto enigmático, não se manifesta apenas no indivíduo acuado pela estória de condenação e julgamento que lhe contam as metafísicas dogmáticas, ela atinge o coletivo e determina comportamentos e sentimentos contraditórios. Segundo a estória de Édipo, a esfinge, que era uma criatura alada, com corpo de leão e cabeça de mulher, que pairava como uma maldição sobre a cidade de Tebas, era portadora de um enigma e desafiava a todos com sua proposta e ameaça de morte. O enigma proposto pela esfinge é bastante conhecido: “Que animal anda pela manhã sobre 20 quatro patas, a tarde sobre duas e a noite sobre três?” Édipo consegue resolver o enigma. A resposta é "o ser humano", pois "engatinha na infância, anda ereto na idade adulta e necessita de bengala na velhice". Segundo a lenda, a esfinge sofre um profundo e inesperado abalo atira-se de um penhasco, matando-se. Em relação à culpa, a esperança que parece acompanhar todos os estudos que a tomam como objeto é a de ver cessar os efeitos do enigma, isto é, poder cessar o constante incômodo de sofrer os efeitos de uma causa desconhecida. Esse, a meu ver pode ser o correspondente para a condição humana e que foi traduzida de maneira feliz na fórmula “decifra-me ou devoro-te”, que faz referência à estória da esfinge. O efeito que a culpa provoca na alma humana é exemplarmente representada nessa imagem agônica, pois a culpa, seja como sentimento individual ou coletivo, seja como objeto de inquirição teórica, não mostra com clareza suas origens, tampouco se legitima a partir de um conhecimento seguro, objetivo, racional. A designação da culpa como um enigma, portanto, é, a meu ver, bastante legítima pelo fato, quero crer, comprovado por este estudo, de que só conseguimos nos aproximar com alguma segurança de seu significado através da hermenêutica. Nessa tradição, como já afirmamos, seguimos alguns passos de Paul Ricoeur, sobretudo em seus estudos sobre a hermenêutica do mal, no que diz respeito ao método, mas recuamos muito em relação aos autores contemporâneos para procurar no início da tradição ocidental indícios de modelos de culturais que se forjaram a partir de dualidades morais contratantes que derma origem a noções de dicotomias imputativas. O mundo dividido em duas esferas, uma portadora de uma essência boa e a outra carregando uma maldição, seja de degeneração, seja de ação maligna. Essa concepção de cisão entre dois mundos parece ser estrutural nas concepções metafísicas características de uma visão imputativa em geral. Até porque é preciso dividir o mundo em dois lados para que seja possível que um lado julgue o outro. Nesse movimento, porém, percebe-se que o mesmo lado está se julgando ao criar outro mundo imaginário para resolver seus problemas, insolúveis, quando se contempla o mundo de um ponto de vista unívoco. Não há sentido de inculpação se não houver a imagem de um juiz, isto é, de uma instância que pode e tem a prerrogativa de julgar. Nesse sentido a história dos juízes é longa e vai desde a concepção de deuses antropomórficos até a internalização do juiz na figura de um super- ego, necessariamente passando pela ideia de um Deus absolutamente moral e perfeito ou perfeitamente moral. 21 Como essa história é muito longa não tive outra opção a não ser tentar analisar apenas os pontos decisivos dessa jornada de auto-incriminação humana e dos efeitos culturais que mesmo assim, sabemos, terá a marca inevitável da incompletude. Minha esperança, porém, é poder ter tocado nos problemas centrais e nos eixos e nós górdios desse problema. Culpa: religião, teologia, filosofia. Associado diretamente e em primeiro lugar à religião e à teologia e sempre em gênese paralela com o surgimento dos códigos de legislação social, posteriormente à psicologia, como veremos nos aspectos históricos deste estudo, o conceito, pelo menos em suas primeiras referências, esteve vinculado à forma como a dogmática religiosa e construiu os modelos de troca e negociação na relação de dívida entre culpado e juiz. A teologia da culpa se desdobra em subdivisões de acordo com a tradição (teoria da retribuição, teoria do karma), mas, mesmo em diferentes referenciais culturais, sempre está a ligada a uma concepção da vida ligada a ideia segundo a qual estamos pagando pecados anteriores, pregressos, delitos e crimes inconscientes, imemoriais. Nesse sentido, para compreendermos um pouco mais sobre o conceito e o fenômeno da culpa, nossas referências bibliográficas são as obras dos teólogos que sistematizaram e fundamentaram a ideia de uma culpa originária, dos filósofos que herdaram os problemas da teologia diretamente na filosofia moral (ética) e, finalmente, dos teóricos da psicanálise e mesmo da psicologia enquanto disciplina aplicada. Como os teólogos se confundem com os filósofos em muitos momentos e aspectos da formação da cultura ocidental, por diversas razões cujos méritos não serão aqui julgados, tampouco explicitados, nos ocupamos, principalmente da obra dos filósofos da moral, (filosofia moral, ética), na tentativa de perscrutar a legitimidade, ou a possibilidade de legitimação, de um conceito de tão difícil esclarecimento em suas raízes ontológicas. É preciso alertar, também, nesse início, que em cada momento dessa investigação, por força de seu aspecto inegavelmente hermenêutico, procurou-se determinar em cada autor, época e contexto cultural o sentido específico que se deu ao conceito de culpa, tentando, assim, não exatamente alcançar uma precisão conceitual que talvez seja impossível em relação à noção de culpabilidade, mas, antes de tudo, evitar ao máximo a ideia de culpa como um mosaico semântico. Se em cada época e contexto o conceito adquiriu uma conotação em relação aos acusadores e à natureza dos acusados, é preciso apontar para cada um desses personagens e para a natureza de suas acusações. 22 A complexidade do tema que proponho examinar é atestada, sobretudo, a meu ver, pela pluralidade de abordagens que ele reivindica. É exatamente nesse sentido que o próprio tema é tratado sob a designação de enigma em alguns estudos. A teologia, a psicologia, as chamadas ciências jurídicas, a filosofia e a sociologia já contribuíram para a compreensão desse fenômeno singular e abstrato. Sentimento, instituição, noção, ideia, conceito, sombra do humano, enigma, ilusão, sintoma, consequência lógica e moral, punição, medida, alegação, fantasma, destino e maldição. Estes, entre outros, termos foram usados por diversas tradições que encararam o problema da auto-imputação humana. O problema da culpa, em sentido amplo, é um problema da história da cultura, pois parece não haver evidências de que o problema ocorra em alguma outra instância que não a humana. A separação entre natureza e cultura delimita, portanto, nossa investigação não sem deixar aberta uma porta para a possibilidade da re-inserção do homem no mundo da necessidade natural, o que, aparentemente, representaria uma saída para a destinação imputativa do animal racional. O conceito de culpa sempre esteve relacionado às consequências de um ato de imputação muitas vezes relacionado a instâncias que não possuíam legitimidade racional ou esmo empírica. É nesse sentido que ele pode ser acusado de portar um status de dogmatismo e por isso mesmo pode ser criticado e refutado, em alguns contextos, em sua legitimidade. A pergunta dirigida a qualquer ato de imputação sempre foi em relação à legitimidade da instância condenatória. Numa escala que considere o ponto de vista da imaterialidade à materialidade teríamos uma instância divina, as igrejas, o estado, as autoridades civis, as autoridades religiosas, os pais, etc. Mas, em um determinado momento do desenvolvimento do espírito humano uma nova instância de imputação, portanto de culpabilidade, surgiu e essa também não é material e não está distante de nós, como se estivesse localizada em uma transcendência obscura e metafísica. Essa “nova” instância é a consciência moral, que nos julga de dentro para fora e não mais de fora para dentro. O surgimento e a estruturação e legitimação dessa instância imputativa e “punitiva” também é objeto desse estudo. A complexidade dos problemas que envolvem e se relacionam com o conceito de culpa, por si só, já seriam justificativas para uma abordagem filosófica do problema. No entanto, nos deparamos, de saída, com uma questão de método. Qual seria o método e a disciplina da filosofia a partir da qual podemos examinar e refletir sobre o conceito de culpa? 23 A princípio, considerando a separação radical de método entre a filosofia e a teologia, podemos atribuir o problema à área da ética e nos debruçarmos sobre o problema a partir do problema da liberdade e das teorias do valor (axiomática), além de pensarmos o problema a partir de referenciais da filosofia do direito e da metaética. Há, no entanto, uma rica reflexão sobre o problema da culpa desenvolvida por filósofos que se filiam, em vários sentidos, à corrente da hermenêutica. As abordagens hermenêuticas permitem recuperam e interpretar as diversas tentativas de compreender o problema a partir de um léxico próprio de sistemas metafísicos e religiosos que não podem ser submetidos ao rigor da reflexão filosófica contemporânea, como por exemplo a vertente da filosofia analítica, que dá origem à subdivisão da metaética, mas que serão consideradas como fontes legítimas para nossa investigação, pelo menos como objeto de interpretação. Mas, a princípio, uma vez que se decide investigar filosoficamente um conceito supostamente de outra esfera, devemos nos perguntar quais foram os filósofos que pautaram a culpa de um ponto de vista da filosofia. A resposta a essa questão, por si só, já guarda uma justificativa e uma legitimação do termo como conceito filosófico. No arco histórico-conceitual que apresento, considero as noções de culpabilidade, imputação, julgamento e valor negativo como conceitos próximos e diretamente relacionados com o conceito de culpa, pois veremos em capítulo específico que a visão pessimista em diversos casos apresenta um fundamento de inculpação dirigida ou a o devir ou ao humano (algumas vezes até aos deuses e semi-deuses). O que se verifica nessas passagens é que o dedo da atribuição da culpa sempre está apontado para alguma instância expiatória. Em outras palavras, alguma instância deve pagar pela dívida contraída pela existência de males e sofrimento independente de quem acusa. Em alguns autores essa indicação de culpa e a própria pauta do problema não obedece a essa lógica de indicação de responsabilidade direta, mas associa-se a culpa ao grupo ou ao próprio devir, o que caracteriza uma auto-imputação do ser que, de fato, constitui um problema sem solução do ponto de vista da filosofia. O longo percurso que apresento aqui persegue um objetivo claro e definido e toda a saga teórica que percorro, em seus momentos mais expressivos, pretende resolver uma questão colocada nos limites do surgimento da disciplina que foi denominada metaética no limiar do século XX. De certo, essa questão está relacionada com o tema do niilismo, 24 ao qual dediquei algumas linhas aqui, e que já foi o tema central de minha pesquisa, pois a negação de um ordenamento, seja ele qual for, representa uma forma de ceticismo que, em última instância esvazia de sentido qualquer imputação. A questão, portanto, diz respeito às noções de inocência e culpa e, seguindo diretrizes tanto da abordagem analítica como da perspectiva hermenêutica, pretende-se compreender como as críticas às tradicionais teorias da moral nos conduziram à novas possibilidades de significação para estes dois termos fundamentais para a história da cultura. Vale dizer, ainda à título de apresentação, que esta tentativa representa um esforço no sentido de compreender quais os significados que culpa e inocência ainda podem ter no início do século XXI. Em oposição à tese afirmativa da ordenação moral do mundo, pretendeu-se ainda no final do século XIX, eliminar a legitimação da culpa como fundamento de uma visão verdadeira da realidade humana. Nesse sentido, a crença na culpabilidade (na culpa) e na responsabilidade humana em relação aos seus atos seria uma perspectiva a ser superada pela por uma concepção de inocência humana da qual seria capaz apenas o homem de conhecimento. Em outras palavras, a tese amoralista, da negação de ordenamento moral do mundo, representa a negação radical de toda a justificativa racional para os conceitos de Imputação, responsabilidade e culpabilidade. Sendo assim, como aponta Giacoia em sua exposição da perspectiva nietzscheana transvalorativa, “de todo fundamento para juízos a respeito do valor ético-moral de nossas ações”. O longo processo através do qual se chega a essa concepção ética raríssima e considerada estranha e absurda (a negação de uma ordem moral constitutiva do mundo), mesmo em vários contextos contemporâneos (talvez ela, na verdade, nunca, e em nenhum contexto, tenha sido oficial e abertamente admitida) compõe a matéria fundamental de minha investigação. O que vai transparecer durante essa investigação é a tendência de auto-imposição de valores idealizados no domínio da moralidade a fim de elevar o homem a uma condição civilizatória desejável. A referência idealizada leva a uma hiper-espiritualização do homem, os ideais éticos elevados se tornam, por sua vez, objetos e objetivos canonizados pela razão em dogmas de fé. Nesse movimento e tendência a concepção de natureza humana é construída a partir da relação do corpo com os ideais da mente espiritualizada (alma). Como as apostas da hiper-idealização são altas em relação aos objetivos impostos 25 pela moral idealista, a culpa se instala como constante sentimento em relação as próprias ações. Toda a lógica da imputação se dá, por exemplo no caso, da sexualidade, a partir de uma tentativa de associar o que é constitutivo da natureza (aspecto biológico) como objeto de negação e da imposição de um ideal “não natural” ao funcionamento da mente e do corpo. A idealização do comportamento, portanto, é uma das causas fundamentais da recorrência da culpa na cultura. Na história da cultura o corpo foi o alvo de inúmeras detrações. É nele e por ele que não se chega ao ideal de comportamento que se almeja, é nele que as derrotas em relação aos ideais morais e ascéticos são perdidas todos os dias, e nele que o ideal se contradiz cotidianamente. O idealista da moral precisa do pressuposto de uma ordem moral constitutiva do mundo (transcendente, ideal, referencial) para impor sua disciplina ao corpo. Nessa lógica os fatos relativos ao comportamento humano, a experiência diária do agir natural dos homens é ignorado a favor de uma ordem ética superior ideal. O que se pretende, como se vê na história da filosofia moral, é transformar a moral em sabedoria de vida. Antes ela deveria ter sido tratada, no entanto como ciência da mora, o que só parece ter seu início com a arqueo-genealogia nietzscheana da moral e, talvez, com a tentativa de Schopenhauer de transformar a moral em uma ciência (veremos se ele obteve êxito). Nessa história da moral, no entanto, impera uma tendência idealista de inculpação que foi modelo para gerações e gerações de filósofos e teólogos. O modelo perene de imputabilidade seja ligado aos costumes, à moralidade, à religião e ao mundo jurídico e mesmo ao domínio do inconsciente guarda resquícios da psicologia da dicotomia alma e corpo. Na raiz do movimento de auto-inculpação, característico da mente humana, está assentada a antiga concepção segundo a qual o homem possui uma instância decisório, deliberativa, portadora de uma origem distinta da origem degenerativa da matéria corporal. Por meio dessa caracterização da alma como essencialmente ligada a esferas transcendentes (divinas, próximas à divindade, nascidas da divindade, etérea, incorpórea, sutil, elevada) e a partir de seus supostas atributos ideias se formula o juízo sobre o corpo e a partir dele a julgamento das ações motivadas por seus apetites e instintos. Nesse sentido e nessa lógica, o homem cria uma instância ideal no interior de sua consciência para julgar sua natureza no agir e no pensar, no desejar e no sentir. Esse modelo ideal, como nasce em contraste direto com as manifestações do corpo e se impõe como uma referência para a auto-inculpação. No tempo da maturação da compreensão humana sobre o desenvolvimento da cultura, praticamente no início do que 26 foi designado como modernidade tardia, ficou claro que essa imposição de modelos ideias para as ações humanas teve como intenção última a própria possibilidade do processo civilizatório. Nesse momento, porém, começou-se a perceber, sobretudo com Nietzsche e Freud, os efeitos colaterais desse processo. O maior desses efeitos colaterais representa, ainda hoje, um dos grandes problemas para a humanidade e se esconde por detrás de toda a sorte de modelos e produtos da cultura, da religião até o sistema econômico. Este efeito é a permanência da culpa como o maior entrave ao que em filosofia contemporânea nos acostumamos a denominar pelo termo “Emancipação”. A emancipação, em sentido mais amplo, pressupõe autonomia e liberdade. Com a permanência da culpa como uma espécie de fantasma de eras passadas a assombrar o homem moderno, supostamente liberado da culpabilidade religiosa pelo longo processo de desencantamento do mundo, esbarra ainda em nossa dificuldade em conceber a inocência do homem e do devir. A própria ideia de uma inocência do homem nos parece uma ideia perigosa. Por isso, nos apegamos a velhas formas de sentimento de culpa e os renovamos em um conhecido movimento de auto-atribuição da responsabilidade pelo próprio sofrimento humano. Essa renovação da culpa faz surgir novas patologias. Nesse sentido, a ideia segundo a qual o homem é aquele animal que foi moldado pela civilização à condição de um animal que faz promessas (morais) começa a perceber que assume perante si mesmo uma falsa persona, uma contradição abissal, da qual não sabe como se retirar, pois já se comprometeu (dívida-culpa) com o impossível. O tema da permanência da culpa é mais amplo do que as pretensões dessa investigação, todavia, vale apontar outras fronteiras nas quais o tema se manifesta de maneira inequívoca, para além do universo da teologia, psicologia e filosofia. A literatura representa, sobretudo pela pena de alguns daqueles que são considerados sues maiores representantes um aprofundamento singular do problema da culpabilidade humana. Se iniciamos nosso trabalho com uma passagem pela literatura homérica isso já aponta para uma tendência incontornável. De Homero, que anuncia uma culpabilidade hereditária na cultura arcaica grega, podemos passar diretamente para Hesíodo e toda a literatura trágica grega. A tragédia de Édipo, citada diversas vezes nesse estudo, figura como uma modelo mítico dos problemas e enigmas da culpabilidade humana. Entre os modernos limito minha investigação a três escritores fundamentais para a compreensão da cultura contemporânea: Dostoievski, Kafka e Camus. Veremos como, 27 através da arte, esses autores demonstram que o tema da culpa é incontornável e, mais do que isso, fundamental para a compreensão do fenômeno da vida humana. Como última palavra no horizonte filosofia contemporânea, em relação à questão aqui apresentada, encontramos duas confirmações contundentes das teses e análises exploradas nesse estudo confirmando, além do estudo de Gratzel, ainda pouco conhecido fora da Alemanha. Trata-se das obras de Pascal Bruckner e de Georges Minois, sobretudo, no caso de Bruckner, o escrito de 2006 “La tyrannie de la pénitence”, mas também de outras obras do autor que aqui não tive tempo para analisar e que compõe bibliografia de continuidade de minha pesquisa e finalmente a obra de Minois, experiente historiador das ideias, intitulada “A Origem do Mal”, que atualizou o interesse e a discussão sobre o tema do pecado original e sua significação filosófica na Europa na última década. Arrependam-se! Por trás do hedonismo proclamado, eis a mensagem que a filosofia ocidental nos martela há meio século, ela que nos inocula, em matéria de ateísmo, é verdade a velha noção do pecado original, o antigo veneno da danação. Em terra judaico-cristã, não existe combustível mais forte que o sentimento de culpa e falta, e quanto mais os filósofos e sociólogos se proclamam agnósticos, ateus, livre-pensadores, mais prolongam a crença que recusam. Como dizia Nietzsche, as ideologias laicas, em nome da humanidade, super-cristianizaram o cristianismo e reforçaram sua mensagem. (Bruckner, 2008, p 53) Minois aponta para uma conclusão inicial fundamental para compreendemos o desenvolvimento das noções de culpabilidade no ocidente. Para que a noção de redenção, essencial para a estrutura do cristianismo, é preciso que haja uma queda e uma falta original, da qual a humanidade será redimida. Se Jesus é o “novo Adão” implica que recaia sobre o primeiro Adão a origem de todos os males. A ideia de pecado original será, então, um modelo sobre o qual se estabeleceu a cultura do ocidente. Origem da pesquisa e metodologia. A pesquisa que deu origem a esse trabalho teve seu início a partir de uma questão sobre um dos problemas fundamentais da ética, especificamente direcionada a uma das tentativas mais ousadas de solução do problema. O problema é o da legitimidade de sustentação da tese segundo a qual pode-se afirmar um ordenamento moral do mundo, a filosofia que ousou sustentá-la, depois dos efeitos causados pelo advento da filosofia crítica de Kant à metafísica tradicional (dogmática) foi a filosofia de Schopenhauer. No contexto das análises da obra do autor sobre o tema do ordenamento moral, um conceito, 28 a meu ver, merece uma análise mais detida e uma atenção especial, a saber o conceito de culpa (Schuld). No cálculo ético tradicional equacionam-se conceitos de fundamental importância para a absolvição e para a imputação de ações, de seres racionais e, pelo menos enquanto visão de mundo, até mesmo um julgamento do todo como algo positivo ou negativo, isto é, o mundo pode ser interpretado como algo bom ou ruim. O devir passa, nas tradições religiosas e na literatura sapiencial de diversas culturas, por um julgamento e por uma imputação. Assim, por exemplo, no budismo e no hinduísmo o mundo é interpretado em uma perspectiva ética. No cristianismo e no platonismo há uma clara distinção ética entre o mundo sensível e o mundo inteligível que determina uma distinção fundamental na teoria do conhecimento, mas que também aponta para conclusões éticas sobre a natureza do verdadeiro, do bem e do belo, em contradição ao erro, o mal e o imperfeito. A princípio, o trabalho se estrutura em uma análise do conceito de culpa na filosofia de Schopenhauer e de sua relevância no cálculo ético da condenação (imputação) do mundo e do homem, na origem do sofrimento humano e na negação da vontade. A doutrina da salvação que se desenvolve a partir dos primeiros parágrafos do IV livro do “Mundo como Vontade e Representação” tem como pressuposto o sofrimento do mundo e a condição desesperada do homem em busca de um sentido moral para a existência. Na obra acima citada, especificamente no parágrafo 53, que trata da “Justiça Eterna”, a culpa pelo sofrimento é atribuída ao próprio homem. A recorrência ao dogma do pecado original visa sustentar a afirmação de culpabilidade humana em um sentido específico relacionado ao problema da natureza dos caracteres (caráter inteligível, caráter sensível e caráter adquirido) e da liberdade. Nesse contexto, o conceito de culpa ocupa uma centralidade inegável. A atribuição de uma culpa universal atribuída ao mundo e ao ser humano (culpa inata-pecado original) aponta para uma saída de natureza dogmática. A distinção entre o discurso filosófico e o discurso religioso deve ser esclarecida a fim de que o anti- dogmatismo propagado por Schopenhauer como herança legítima do kantismo. Como se dá, então, a legitimação filosófica do apelo ao dogma na filosofia de Schopenhauer em relação ao pecado original? Em outras palavras, pretende-se compreender como o princípio de imputação, isto é, uma culpa, pode ser atribuída ao universo humano sem que se apele aos tradicionais dogmatismos religiosos. Se o termo culpa (metafísica) só tem seu sentido assegurado em um contexto dogmático e opta-se por desconsiderá-los, partimos para uma tendência do pensamento que irá negar a imputabilidade metafísica, caso dos amoralismos modernos. A negação de um sentido moral para o mundo, de um ordenamento ético, passa pela negação da culpa na cultura 29 atual. Nesse sentido, a filosofia de Schopenhauer se opõe a tendências pós-modernas iniciadas na chamada crise da razão do século XX, cuja característica, entre outras é o surgimento do niilismo. Assim, sustenta-se neste trabalho, que a filosofia de Schopenhauer, apesar de ter sido caracterizada de maneira contundente por Nietzsche como uma filosofia niilista, no sentido de representar uma negação da vontade de viver e, através da moral da compaixão, indicar uma tendência de enfraquecimento e contradição dos instintos no sentido de uma decadência cultural, ela não pode ser caracterizada como negação de um sentido ético para as ações (amoralismo). Com esse aspecto do niilismo a filosofia de Schopenhauer não entra em confluência. É preciso notar que o niilismo é uma expressão que comporta diversas acepções e que a designação “niilista” abriga a possibilidade de diversas facetas, perspectivas e até de estágios de concepções éticas, como o próprio Nietzsche estabeleceu em suas tentativas de compreensão do fenômeno de desvalorização dos valores (niilismo negativo, reativo, passivo e ativo). Esta caracterização e suas implicações sobre a interpretação e recepção da filosofia schopenhauriana por Nietzsche foram abordadas em minha tese de doutoramento. No contexto da recepção da filosofia de Schopenhauer por Nietzsche a relação entre o conceito de culpa e a caracterização do niilismo enquanto movimento histórico filosófico, se torna, a meu ver, fundamental. É no posicionamento extremamente contraditório de Nietzsche em relação à filosofia de Schopenhauer que surge o problema da culpa como problema central. A inculpação do mundo, do homem e do devir pela ética de Schopenhauer dá a direção e a característica de seu niilismo. Com Nietzsche tem-se o oposto, a tentativa de atribuir novamente a inocência ao devir e ao homem. Nesse sentido, de fato, os filósofos estão, como afirma este último, nos antípodas. O problema da culpa é, portanto, também, um aspecto do problema do niilismo na filosofia. Aqueles que afirmam a culpa humana seja por uma fundamentação metafísica dogmática, seja por uma tentativa filosófica de leitura racional de dogmas religiosos, seja propriamente por uma leitura e interpretação teológica, tendem à negação do devir, da vida natural (natureza, instintos) e à afirmação de uma transcendência ou de uma redenção. Nesse sentido a caracterização que faz Nietzsche do fenômeno psicológico do niilismo nos convida a pensar o caso de Schopenhauer, do cristianismo e do budismo. Se o questionamento de Nietzsche sobre o niilismo conduz à meditação sobre o valor dos valores essa tentativa de avaliação mais ampla possível da cultura, ela deve se debruçar 30 sobre o valor do homem como agente no mundo. Se a ação tem como móvel uma ideia de valor e a natureza desse valor é questionada, a pergunta é deslocada do contexto da ação propriamente dita. Nesse sentido a ética, com o advento da crítica do valor dos valores passa para outro registro especulativo. Nessa nova perspectiva opera-se uma crítica da cultura em seu sentido mais amplo. Como nota Adorno em “Crítica Cultural e Sociedade”, existem dois modelos de atividade negativa que podem balizar as operações da crítica: um seria baseado na noção de transcendência, outro na noção de imanência. A perspectiva schopenhauriana parte de uma suposta posição imanente em sua interpretação ética do mundo. Porém, sua afirmação de imanência fica fragilizada pelo recurso ao dogmatismo, mesmo que de um ponto de vista de uma interpretação alegórica. A perspectiva nietzscheana, de fato, partiria de uma negação da transcendência, pois nega a culpa tanto no aspecto efetivo do discurso dogmático quanto no aspecto alegórico. Isto é, para Nietzsche a imputabilidade, ela mesma é, em última instância, dogmática pois o conceito de culpa que opera na cultura em vários aspectos é o resultado de relações de poder a partir das quais se estabeleceram perspectivas valorativas vencedoras e hegemônicas em detrimento de outras perspectivas valorativas. O valor dos valores é radicalmente questionado e esta posição atinge diretamente a noção de culpa, pois aquela perspectiva que se torna hegemônica em relação aos valores é a mesma que determina quem e o que é culpado e quem e o que é inocente. Nesse sentido o devir é acusado, culpabilizado e condenado por Schopenhauer porque o filósofo se rendeu ao quadro valorativo das perspectivas dogmáticas características das religiões antigas do oriente (cristianismo e budismo, hinduísmo). Tributário dessas tradições o filósofo não consegue se livrar da perspectiva condenatória em relação ao mundo e ao devir porque não consegue se livrar da interpretação do sofrimento como um castigo pelo querer? Ou interpreta o sofrimento como um efeito da causa “Vontade”, sem objetivo final, sem fim, sem finalidade, sem descanso. O foco da condenação é a natureza da vontade, seu efeito, o sofrimento em todos os seus aspectos, é o verdadeiro problema da ética do filósofo. Sem sofrimento e morte não haveria filosofia e necessidade de avaliação do mundo e da vida. Schopenhauer afirma que a morte é a musa da filosofia, e a morte um castigo final pela culpa. Nesse sentido, sem a culpa sua filosofia não tem estofo ético, não tem o dizer sobre o aspecto moral do mundo, aquele que diferentemente do aspecto físico, segundo ele próprio, é o aspecto mais importante. O aspecto moral do mundo necessita de um sentido, de uma explicação. O sentido deve ser uma explicação sobre o sofrimento. O 31 sentido deve explicar o sofrimento de seres que não são livres e que, portanto, não decidem, não optam, não escolhem. Essa seria uma interpretação. Ora, não é possível uma imputação de seres não livres. O determinismo é inimputável. Os animais não são julgados por suas ações. Estaria o homem na mesma esfera ética dos animais, isto é, fora da esfera ética. Se é assim, se isso é possível a ética não é esvaziada de sentido. Em outras palavras, um campo ético é definido por dois fatores, racionalidade e liberdade. Nota-se neste ponto que o problema nos encaminha para a teoria do servo- arbítrio de Schopenhauer. Se, de fato, o homem age livremente ele pode ser imputado, se somente a vontade é livre, para que não haja contradição, o homem não pode ser imputado, pois estará no domínio do determinismo natural. Este problema e o problema do sentido do sofrimento são, a meu ver, dois pontos fundamentais para a compreensão do problema ético na filosofia de Schopenhauer. Mais do que a determinação de sua característica niilista, mais do que a contradição entre a afirmação e a negação da vontade e da possibilidade da negação e da contemplação do outro lado do mundo. O problema central de sua ética é o problema da culpa e a culpa só existe neste contexto pela existência do sofrimento. Se o mundo tem em si uma culpa originária, fundamental, esse é o dilema a partir do qual Schopenhauer se bate ao tentar resolver o enigma do mundo. O enigma se constitui como uma pergunta básica que questiona o sentido do sofrimento humano. O enigma é a existência do sofrimento em um mundo em que os seres vivos não tiveram, a princípio, a decisão de nascer, ou, em outras palavras, não foram responsáveis pelo impulso inicial de sua existência, mas que possuem sim um impulso ao viver e perpetuar a existência. O enigma está também na constatação de que os seres vivos afirmam a vida mesmo constatando que o sofrimento é inerente ao viver. Em suma, o problema do enigma do mundo diz respeito ao problema do sofrimento humano. A forma como o sofrimento é interpretado determina a posição ética do filósofo. Este aspecto de minha interpretação se relaciona também com a tentativa de compreensão e classificação da denominada visão trágica da vida em contraste com a visão soteriológica. Uma metafísica de carrascos? Outra fonte determinante desse estudo é a obra do Prof. Oswaldo Giacoia Junior, sobretudo seus estudos sobre a filosofia de Nietzsche. Em um artigo de 2017 intitulado 32 “Metafísica de Carrascos” publicado em Estudos Nietzsche 3 Giacoia apresenta um cenário crítico que viria a ser o horizonte filosófico a partir do qual desenvolvi minhas pesquisas nos anos posteriores, sobretudo meu estágio de pós-doutorado na Alemanha. Naquela ocasião aprofundei a questão da culpa na filosofia de Schopenhauer motivado pelas reflexões desenvolvidas por Giacoia no artigo citado. Giacoia demonstra, no texto em questão, como a metafísica da alma e a religião da culpa inventaram a liberdade da vontade para dar fundamento aos juízos de imputação – a invenção da liberdade (mesmo aquela inteligível) é metafísica de carrasco. Essa asserção radical e extremamente provocativa de Nietzsche coloca uma questão fundamental, pois acusa o próprio movimento civilizatório, por um lado, de ter se tornado um processo criminal. Tendo dado início à história espiritual da Europa, ela termina, consuma-se e esgota-se ao transformar-se em seu contrário, na doutrina da inocência do devir. A negação da responsabilidade, que Nietzsche empreendera, ainda que sob formas diferenciadas, desde O Nascimento da Tragédia, constitui então o pivô, o centro nevrálgico da última e mais radical versão de seu programa filosófico. Essa provocação, como afirmei, me levou a uma tradução do ensaio de Schopenhauer “Sobre a liberdade da vontade”4 e a uma pesquisa sobre os desdobramentos do conceito de culpa e culpabilidade em toda a tradição da filosofia alemã. Posteriormente, mais do que o próprio programa filosófico nietzscheano, interessou-me percorrer o caminho apontado e denunciado por Nietzsche da efetivação cultural dessa metafísica dita de carrasco e verificar como, na história do ocidente, as formas de imputação denunciadas por Nietzsche foram marcando o terreno de nossa consciência moral até hoje. A estrutura do texto. No primeiro capítulo, 1.1, procurei esclarecer, a partir da obra de E. R. Dodds “Os gregos e o irracional” o significado de “ate” na tradição arcaica grega, pois ela nos encaminha, naquela tradição à noção de responsabilidade e culpa. O termo “ate” pode ser traduzido por ruína, insensatez ou engano. Como divindade representa a deusa da fatalidade. Ela se apresenta na maioria das vezes não como uma força aleatória, mas como uma 3 Estudos Nietzsche, Espírito Santo, v. 9, n. 2, p. 77-101, jul./dez. 2017 4 Analiso o texto citado na parte final desse trabalho, a partir de minha tradução, publicada pela editora do Unesp em 2021. Schopenhauer, A. Sobre a liberdade da vontade, Editora da Unesp, São Paulo 2021. 33 personificação do irracional e das consequências de ações irrefletidas. Ela pode se impor tanto aos atos dos mortais como aos atos impensados dos deuses, como uma reação ou consequência natural à falta que se cometeu. Veremos que nessa tradição, no que diz respeito à esfera propriamente humana, a culpa pode ser hereditária, isto é, ela pode ser herdada de atos de antepassados, o que, apesar de nos ajudar a compreender o enredo e a estrutura de algumas tragédias gregas, por exemplo a tragédia de Édipo, coloca, por assim dizer, a sensibilidade moderna em certa perplexidade, acostumada que está com a noção de atribuição de responsabilidade somente ao indivíduo e aos seus atos. Dodds explica o significado de Hybris e de Nemesis, noções fundamentais para a compreensão de qualquer movimento de inculpação no contexto da consciência grega arcaica. Ainda no terreno do irracional, esses conceitos serão reintroduzidos posteriormente por autores que tentarão prescrutar um sentido de justiça a partir da noção de ato desmedido humano. No capítulo 1.2, analiso alguns aspectos dos trabalhos de quatro mestres do helenismo, a saber, Kirk, Raven, Schofield e Jagger. A partir do trabalho estabelecido “Die Fragmente Der Vorsokratiker”, de Hermann Diels, e do “Orphicorum Fragmenta”, de O. Kern e me oriento pelo trabalho de Anna Maria Casoretti em “A origem da alma: do orfismo à Platão. Segundo a tradição dos estudos helenistas do início do século XX, o orfismo tanto como religião de mistérios como tradição mais amplamente e popularmente adotada e que irá influenciar diretamente Platão, foi responsável pela introdução da concepção dualista e dicotômica (corpo/alma) e que coloca em movimento uma lógica de auto- imputação baseada na noção de idealidade da alma e corrupção do corpo. Como afirma Anna Maria Casoretti em “A origem da alma: do orfismo à Platão” “introduz na civilização grega um novo esquema de crenças e uma nova interpretação da existência humana.” (Casoreti, 2011, p. 11) Segundo Casoreti, enquanto a concepção grega tradicional sobre o homem, a partir de Homero, o considerava como um ser mortal, determinando a morte como o final definitivo de sua existência, o Orfismo proclamava aquele que seria, a meu ver, uma crença que pode ser reconhecida como uma das crenças- fonte da noção de culpabilidade, a crença na imortalidade da alma. No capítulo 1.3, abro espaço para o pensamento pré-socrático, que, apesar de reconhecidamente representar uma perspectiva voltada para a physis e para a questão da unidade da diversidade constitutiva do mundo, não deixa de guardar elementos da metafísica e mesmo das tradições mitológico-religiosas do período arcaico da cultura grega e com elas elementos rudimentares de filosofia moral. Nesse sentido apresento as 34 obras de Anaximandro e de Empédocles como as mais antigas referências filosóficas de uma concepção de culpabilidade primordial e existencial tanto em relação aos seres humanos quanto em relação ao próprio devir. O pensamento de Anaximandro, segundo a doxologia e a crítica moderna teria sofrido não somente a influência, mas a efetiva infiltração de concepções do orfismo. Um traço que chamou a atenção de Nietzsche e que o liga diretamente à Schopenhauer é o pessimismo de fundo de sua cosmologia. Anaximandro associa ao nascimento, como separação de uma unidade, a “imposição” de uma “culpa”, e considera a morte como uma expiação. Parece se orientar por um princípio de justiça baseado na ideia de equilíbrio entre nascimento como separação e morte como retorno a situação inicial. Com Empédocles a mesma perspectiva imputativa em relação ao devir orienta uma visão geral do aspecto moral do mundo. Nessa parte do trabalho aproveito as considerações de Nietzsche sobre a concepção pessimista de Empédocles e aponto como Schopenhauer associa essa visão aos conteúdos éticos fundamentais do cristianismo, do budismo e do bramanismo. No capítulo 1.4 aponto brevemente como Platão se vale de concepções do Orfismo e reproduz concepções de culpabilidade baseado na lógica dicotômica corpo/alma para estabelecer o campo de forças a partir do qual ele poderá introduzir qualquer doutrina que coloque em jogo as noções de vício e virtude. No que diz respeito à obra de Aristóteles, optei por expor a relação, entre culpabilidade e catarse. A consideração por Aristóteles da compaixão como um elemento da tragédia, tem relação com a ideia de compartilhamento da culpa, ou identificação com a culpabilidade de herói. Esta tese será aprofundada por Schopenhauer, mas encontra seus fundamentos na própria obra de Aristóteles “Poética”. O sentimento de piedade e identificação que o espectador em relação ao herói que é considerado culpado ao final de uma trama estaria relacionado com uma identificação peculiar. Nessa identificação, vale notar, também ocorre o terror pela possibilidade de termos o mesmo destino. Na verdade, todo destino trágico traz a suspeita de que tal condenação se refere a nós mesmos. O terror que faz o espectador tremer por si e mesmo o sentimento de compaixão que faz o espectador tremer pelo destino do outro, que padece de um sofrimento supostamente imerecido, seria a chave para a compreensão da catarse que se dá através da tragédia. O delito que foi cometido pelo herói, consciente ou não, por ignorância ou por ousadia, excesso, ultraje, soberba, pode e acontece a qualquer homem, nisso nos identificamos com o herói e nisso nos sentimos culpados também. Essa 35 possibilidade só existe por sermos, também, como o próprio herói, culpados por antecipação, culpados por natureza, portadores de uma culpa existencial. No segundo capítulo 2.1, enfoco o conceito de Pecado Original assim como foi estabelecido por Santo Agostinho, como uma das chaves essenciais para a compreensão do ideário moral ocidental e, portanto, para o significado de conceitos como culpa, transgressão, erro, pecado e punição, que são característicos da forma de pensamento da civilização ocidental e que foi constituído como o efeito das imagens e noções surgidas a partir do que se denominou como a cosmogonia do gênesis. Este que se estabeleceu como um modelo de concepção de um descaminho primordial que resultou na forma como todas as subdivisões do cristianismo tentaram resgatar a conexão do homem com a ideia de redenção ou inocência. Neste capítulo enfatizo, além das posições teórico-teológicas estratégicas das noções de pecado original e de livre-arbítrio, para a constituição da ordem teocrática do mundo, baseada na ideia de uma divindade que não pode ser responsabilizada pela origem do mal, a importância da compreensão da querela de Santo Agostinho contra os maniqueus. No capítulo 2.2, abro espaço para uma consideração de cunho histórico-filosófica. A partir do trabalho de Delumaeu, analiso as implicações históricas, culturais e de comportamento ligadas à assimilação pela cristandade europeia da concepção de pecado original. O historiador comprova com base em ampla documentação e bibliografia que até o último quartel do segundo século a questão do pecado original permanece obscura nos textos dos apóstolos e dos apologistas cristãos, mas que se aprofunda e se cristaliza de maneira indelével a partir da obra de Santo Agostinho. Além disso, a narrativa da queda não era obsessiva como vai se tornar depois da interferência do bispo de Hipona. Irineu, Tertuliano e Orígenes vão se perguntar sobre o pecado original, mas não vão se aprofundar como o faz Santo Agostinho a ponto de criar uma doutrina do pecado original amplamente debatida quase sempre com reverência e aceitação. Na verdade, as teses de Santo Agostinho foram usadas, até mesmo por São Thomas de Aquino, mais como fonte de autoridade teológica do que propriamente como teses a serem questionadas em perspectiva de disputa. No capítulo de número 2.3, tento examinar, a partir da obra e de alguns dados biográficos como Lutero efetua uma ampliação e intensificação do problema da culpabilidade humana através mesmo de sua teoria da liberdade do cristão. Do ponto de vista de uma investigação sobre a permanência das tendências imputativas na cultura, Lutero e toda a 36 sua revolução religiosa teria representado mais um impulso daquela natural resistência da tendência a interpretar o mundo das ações a partir do princípio da necessidade e que terá sua fisionomia científica logo que a filosofia das luzes iniciar sua influência. Para combater a filosofia das luzes e sua aposta na razão, é preciso, como Lutero o fez, investir no irracionalismo e no pessimismo. No capítulo 2.4, examino com Kant estabelece uma batalha contra a heteronomia das causas suficientes, isto é, como o filósofo de Konnisberg empreende uma tentativa de resolver o problema da submissão das ações humanas à causalidade natural. O que nos leva ao problema do determinismo e da culpabilidade, já aventado aqui a título de introdução. Se, de fato, estivermos nessa condição não pode existir um sentido para um juízo moral sobre o valor das ações humanas. A consequência dessa constatação, se ela for possível, seria a impossibilidade de imputação e de responsabilização “moral” do homem em relação às suas ações. Nesse sentido seria razoável afirmar que os homens não seriam, eles mesmos, os sujeitos de seu agir, “ao invés disso, seriam, em suas ações, como que “agidos” por seus impulsos, postos em movimento pelo mecanismo da natureza, que operaria também como causalidade de seus atos de vontade. Ora, seres agidos pela natureza não são culpados de forma alguma. O breve capítulo sobre Kant abre uma das mais amplas discussões desse trabalho, desenvolvida no terceiro capítulo, 3.1, a saber, o problema da culpa na filosofia de Schopenhauer, que, de certa maneira foi a pesquisa que deu origem a um estudo mais amplo a respeito da culpabilidade humana. No capítulo 63 do Mundo, dedicado à “justiça eterna” (ewige Gerechtkeit) Schopenhauer afirma que, se pesarmos em uma balança dor e penúria veremos que elas são “equivalentes à culpa” dos seres que afirmam à vontade a todo instante em suas existências temporais enquanto fenômenos da vontade. Nietzsche, por outro lado, se coloca como aquele que descobriu a artimanha ético-cultural de imputação do devir levada a efeito por indivíduos cuja tipologia psicológica e de vida fizeram de seu recuo patológico em relação à toda afirmação do viver uma foram de dominação e espiritualização culturalmente vencedora. Nesse sentido Nietzsche pretende purificar a inocência do devir de sua contaminação imputativa personificada em uma divindade julgadora-credora. Essa contraposição ética fundamental perpassa como horizonte de questões toda nossa tentativa de compreensão do fenômeno da culpabilidade humana. 37 No capítulo 3.2 abro a discussão, a partir de uma sugestão da obra de Schopenhauer sobre a universalidade da culpa nas doutrinas do