UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – UNESP Faculdade de Ciência e Tecnologia - Campus de Presidente Prudente FABIANE RIZO SALOMÃO PROCESSO DE INTERVENÇÃO PSICOLÓGICA AVALIATIVO-FORMATIVO DIANTE AS QUEIXAS DE DIFICULDADES ESCOLARES: Contribuições da Psicologia histórico-cultural e Pedagogia histórico-crítica Presidente Prudente – SP 2025 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – UNESP Faculdade de Ciência e Tecnologia - Campus de Presidente Prudente FABIANE RIZO SALOMÃO PROCESSO DE INTERVENÇÃO PSICOLÓGICA AVALIATIVO-FORMATIVO DIANTE AS QUEIXAS DE DIFICULDADES ESCOLARES: Contribuições da Psicologia histórico-cultural e Pedagogia histórico-crítica Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho” (UNESP), Campus de Presidente Prudente. Linha de Pesquisa 4: Formação dos profissionais da educação, políticas educativas e escola. Orientadora: Profa. Dra. Vanda Moreira Machado Lima Presidente Prudente- SP 2025 Dedico esta tese aos meus pais, Ademar e Dalvina! Pelo amor e incentivo em todos os momentos da minha vida! AGRADECIMENTOS Ao Prof. Dr. Irineu Aliprando Tuim Viotto Filho, pela nossa história de trabalho e parceria, construída desde meu início no GEIPEE, no ano de 2014, estudando, pesquisando, participando de congressos, organizando livros e realizando intervenções-formativas nas escolas. Sem você eu não teria chegado até aqui. Por ser meu companheiro e estar sempre ao meu lado. Obrigada! À orientadora professora Dra. Vanda Moreira Machado Lima, pelo apoio e contribuição para a minha formação! Aos professores membros da banca examinadora, Profa. Dra. Marilda Gonçalves Dias Facci, Profa. Dra. Flávia da Silva Ferreira Asbhar, Profa. Dra. Yoshie Ussami Ferrari Leite e Prof. Dr. Ricardo Eleutério dos Anjos, pelas sugestões e indicações que contribuíram muito para a elaboração e organização do trabalho. Aos amigos do GEIPEE, Rodrigo, Lucas, Cintia, Marisa e Jeferson, pelos encontros de estudos, trabalho coletivo e momentos de descontração. As amigas do Centrinho (C.A.A.), Ariádine, Paula, Luciana Padilha e Lucilene, e aquelas que não estão mais trabalhando conosco, mas que contribuíram para a efetivação de nossa atuação com os estudantes, familiares e junto às escolas da rede municipal de Presidente Prudente/SP. Aos professores que contribuíram com minha formação por meio de minha participação nas suas disciplinas na pós-graduação, Prof. Dr. Ricardo Eleutério dos Anjos, Prof. Dr. Alberto Albuquerque Gomes, Profa. Dra. Marilene Proença R. De Souza e Prof. Dr. Fauston Negreiros. Aos estudantes, seus familiares e aos professores e gestores das escolas que acompanhei ao longo de 19 anos de trabalho como psicóloga do CAA, pelas experiências enriquecedoras e gratificantes. Aos funcionários da sessão técnica de pós-graduação, especialmente a querida Ivonete, por estarem sempre nos auxiliando. Aos gestores da Seduc, por terem apoiado meus estudos, participação em eventos e disciplinas, obrigada! Aos amigos da Secretaria Municipal de Educação, pela amizade e parceria no cotidiano de trabalho. À minha filha, Clarice, pelo amor e compreensão nos momentos que precisei me dedicar a elaboração da tese. Aos meus pais, Ademar e Dalvina, pelo amor e por sempre incentivarem meus estudos. Aos meus irmãos, Alvaro e Leonardo, pelo nosso amor e cumplicidade. A todas as pessoas que me ajudaram, direta ou indiretamente, para que eu conseguisse desenvolver esta tese. Obrigada! “O ser humano, dizia Hegel, é uma criança cuja tarefa não consiste em permanecer no abstrato e incompleto em si, mas sim em ser também para si, isto é, converter-se em um ser livre e original”. (Vygotski, 1996, p. 199). RESUMO A avaliação psicológica é um tema clássico e polêmico na Psicologia, sendo que, desde o final da década de 1970 no Brasil, os processos tradicionais e positivistas de avaliação tem recebido crítica, devido ao reducionismo de suas explicações naturalizantes e psicologizantes sobre o desenvolvimento humano, sendo que a crítica aos testes padronizados e tecnicistas de quantificação da inteligência e mensuração do psiquismo humano tem sido severa. A crítica tem apontado a necessidade de revisão das concepções e métodos utilizados pela Psicologia escolar e educacional para avaliar as queixas escolas de estudantes, pois ainda vemos o fenômeno do fracasso escolar na educação brasileira, fato que tem feito aumentar o encaminhamento de estudantes para avaliação psicológica, levando a produção de laudos que rotulam, estigmatizam e intensificam a medicalização na/da educação. Este cenário nos motivou a sistematizar uma proposta de intervenção psicológica avaliativo-formativa que tenho assumido em minha atuação como psicóloga escolar no CAA (Centro de Avaliação e Acompanhamento) da Secretaria Municipal de Educação de Presidente Prudente e como aprofundamento de nossa pesquisa de mestrado e outras pesquisas que temos participado no GEIPEE (Grupo de Estudos, Intervenção e Pesquisa em Educação Escolar) da UNESP- Presidente Prudente. A citada proposta de intervenção psicológica estrutura-se por meio de atividades lúdicas e educativas (ludopedagógicas) e assume os pressupostos da Psicologia histórico-cultural em diálogo com a Pedagogia histórico-crítica, iluminada pelos princípios filosóficos do materialismo histórico-dialético, considerando a necessidade de avaliação de crianças que têm sido encaminhadas para serviços de psicologia, devido a queixas escolares de dificuldades de aprendizagem e problemas de comportamento. Defendemos a tese da necessidade de sistematização e aplicação de um processo de intervenção histórico dialético que seja avaliativo e formativo, com objetivo de favorecer a identificação do nível efetivo de desenvolvimento e avanço no plano potencial dos sujeitos, enfatizando ações lúdicas e educativas por meio de jogos e brincadeiras como mediadores do desenvolvimento de funções psicológicas como linguagem, pensamento, sentimentos, dentre outras funções essenciais para o desenvolvimento de capacidades psíquicas que possibilitem aos estudantes o enfrentamento consciente e crítico das queixas escolares, para que possam avançar no seu processo de escolarização. O objetivo principal é contribuir para a produção de conhecimentos teórico- práticos que respaldem o trabalho da psicóloga(o) do professor (a) na educação escolar, assim como, instrumentalizar os familiares/responsáveis dos estudantes na ressignificação da queixa escolar. Os caminhos metodológicos da pesquisa se respaldaram na pesquisa teórico- bibliográfica e documental, assim como, pela análise de situações exemplo de estudantes acompanhados no CAA, sendo que, para aprofundamento dos dados, estudamos o caso de uma criança que participou de um processo interventivo avaliativo-formativo no CAA. Os dados da pesquisa foram coletados a partir da observação-participante, registros escritos e fotográficos, conversas e entrevistas com os pais e professores. Os resultados apontam os avanços na linguagem, pensamento, expressão de emoções e sentimentos, assim como, no processo de aprendizagem da leitura e escrita da criança sujeito do estudo. Palavras-chave: Avaliação psicológica; Intervenção psicológica avaliativo-formativa; Psicologia Histórico-cultural. ABSTRACT Psychological assessment has become a classic theme in Psychology, being an object of study and critic of several authors, whose detected the reductionism of analysis resulting from naturalizing and psychologizing explanations of human development. As well as the criticism of the application of standardized tests to mathematize the intelligence and psychic life of the subjects. This criticism pointed out the need to revise the conceptions and methods of used by school and educational psychology to assess students' school complaints, situation that has engendered the increase in the referral of students for evaluation, leading to the production of reports, which label, stigmatize and intensify the medicalization in the education. This worrisome scenario led us to systematize a proposal based on historical-cultural psychology for the evaluation of the school complaints. To carry out this proposal, we defend the thesis of a formative evaluative psychological intervention process, based on the foundations of historical- cultural psychology and historical-critical pedagogy to propose a process that enables situations of evaluation of the effective development and, at the same time, favors the potential learning of students. Our main objective is to contribute to the production of theoretical-practical knowledge that can support the work of the psychologist and assist the work of the teacher, involving family members/guardians so that they can re-signify the school complaint. In order to face the challenge of constructing our thesis, we assume the methodological paths offered by theoretical-bibliographic and documentary research, illustrate with example situations of students monitored at the Evaluation Center (CAA) from the city of Presidente Prudente/SP, and deepen the theoretical analysis from the case study of a student assisted in the CAA. We conclude by discussing the results based on the advances identified in the capacities developed in the student regarding their language, thinking, expression of emotions and feelings, learning process of reading and writing of the subject of study. Keywords: Psychological assessment; Formative-evaluative psychological intervention; Historical-Cultural Psychology. LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Encaminhamentos ao CAA no ano de 2021 durante a Pandemia de COVID-19....40 Quadro 2 - Diagnóstico de estudantes do Atendimento Educacional Especializado.............................................................................................................................5 5 Quadro 3 - Cronologia construída por Mitsuko A. M. Antunes (2003)......................................69 Quadro 4 - Cronologia de Pfromm Netto (2008)........................................................................71 Quadro 5 - Convergências: história do Brasil e história da psicologia no Brasil........................72 Quadro 6 - Movimento de crítica da Psicologia Escolar e Educacional (Negreiros; Souza, 2020)..........................................................................................................................................8 5 Quadro 7 - A crítica e para além da crítica (Negreiros; Souza, 2020).........................................85 Quadro 8 - Psicologia Escolar Crítica na contemporaneidade (NEGREIROS; SOUZA, 2020).........................................................................................................................................85 Quadro 9 - Obras publicadas pós pandemia COVID- 19.............................................................87 Quadro 10 - Trabalhos de pesquisa relacionados ao processo de avaliação histórico- cultural.......................................................................................................................................9 4 Quadro 11 - Artigos histórico-culturais sobre o tema avaliação psicológica............................101 Quadro 12 - caracterização das queixas escolares encaminhadas para serviços de clínica escola e serviços públicos...................................................................................................................101 Quadro 13 - Características dos estudantes e propostas de atividades......................................202 Quadro 14 - Dados sobre o acompanhamento com o estudante...............................................205 Quadro 15 - Dados da família do estudante..............................................................................215 LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Estudantes em atividade ludopedagógica. Placa dos sentimentos..............................................................................................................................193 Figura 2 - Familiares/responsáveis e estudantes confecção de massa de modelar....................................................................................................................................193 Figura 3 - Familiares/responsáveis e estudantes atividade de desenho e escrita......................................................................................................................................193 Figura 4 - Jogos e atividades confeccionados pela equipe do C.A.A......................................................................................................................................194 Figura 5 - Formação de professores em HTPC.........................................................................195 Figura 6 - Formação de professores em HTPC........................................................................195 Figura 7 - Reunião com orientadora pedagógica e professora................................................................................................................................195 Figura 8 - Reunião com orientadora pedagógica e professora................................................................................................................................195 Figura 9 - Encontro com familiares/responsáveis...........................................................................................................197 Figura 10 - Encontro com familiares/responsáveis...........................................................................................................197 Figura 11 - Quebra-cabeça confeccionado pela equipe utilizado para demonstrar o trabalho coletivo....................................................................................................................................197 Figura 12 - Familiares/responsáveis participando da dinâmica..............................................198 Figura 13 - Familiares/responsáveis e estudantes em atividade ludopedagógica........................................................................................................................19 9 Figura 14 - Familiares/responsáveis e estudantes em atividade com massa de modelar...........200 Figura 15 - Familiares/responsáveis e estudantes em atividade de pintura......................................................................................................................................20 0 Figura 16 - Familiares/responsáveis e estudantes em atividade de pintura.............................201 Figura 17 - Quadro dos sentimentos confeccionado pela psicóloga- pesquisadora............................................................................................................................203 Figura 18 - Estudantes confeccionando livro..........................................................................204 Figura 19 - Estudante e familiar em atividade com massa de modelar......................................226 Figura 20 - Estudante e familiar em atividade de pintura..........................................................229 Figura 21 - Estudante e familiar em atividade de pintura.........................................................229 Figura 22 - Quadro “minhas emoções e sentimentos”..............................................................229 Figura 23 - Placa emojis...........................................................................................................230 Figura 24 - Jogo dos sentimentos.............................................................................................230 Figura 25 - Estudantes jogando bingo silábico. .......................................................................233 Figura 26 - Desenho do estudante............................................................................................234 Figura 27 - Atividade feita pelo estudante................................................................................237 Figura 28 - Materiais da atividade............................................................................................238 Figura 29 - Estudante em atividade ludopedagógica................................................................239 Figuras 30 - Estudante e boneco confeccionado.......................................................................239 Figura 31 - Estudante brincando.............................................................................................240 Figura 32 - Estudante confeccionando dobradura....................................................................242 Figura 33 - Quadro de dobradura.............................................................................................242 Figura 34 - Estudante jogo de papeis sociais............................................................................242 Figura 35 - Estudante no cenário da história.............................................................................245 Figura 36 - Estudante em atividade com barbante....................................................................246 Figura 37 - Estudante mostrando atividade..............................................................................247 Figura 38 - Estudante em atividade de jogo..............................................................................247 Figura 39 - Jogo da velha.........................................................................................................248 Figura 40 - Desenho avaliativo................................................................................................249 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AEE Atendimento Educacional Especializado CAA Centro de Avaliação e Acompanhamento CEP Comitê de Ética em Pesquisa DOCP Departamento de Organização e Coordenação Pedagógica GEIPEE THC Grupo de Estudos Intervenção Pesquisa Educação Escolar e Teoria Histórico-cultural MHD Materialismo Histórico-Dialético PedHC Pedagogia Histórico-crítica PHC Psicologia Histórico-Cultural PsiHC Psicologia histórico-cultural SACE Setor de Ações Complementares a Educação SAEB Sistema de Avaliação da Educação Básica SEDUC Secretaria Municipal de Educação SNC Sistema Nervoso Central TEA Transtorno Espectro Autismo TDAH Transtorno Déficit Atenção Hiperatividade THC Teria Histórico-Cultural SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 15 2 POR QUE AINDA FALAMOS SOBRE O FRACASSO ESCOLAR? ......................... 34 2.1 Patologização e medicalização: A biopsicologização da educação e da vida ......... 48 2.2 Propondo um olhar crítico... ...................................................................................... 57 3 ENTENDENDO AS RAÍZES HISTÓRICAS DAS QUEIXAS ESCOLARES E SUA RELAÇÃO COM A PSICOLOGIA ESCOLAR E AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA ...... 60 3.1 De uma Psicologia do escolar para a Psicologia escolar .......................................... 67 3.2 Avaliação psicológica: A constituição teórico-prática presente nas pesquisas ..... 87 3.3 Raízes históricas da avaliação psicológica: a pretensão de medir o psiquismo humano .................................................................................................................................. 102 3.4 As escalas de inteligência e as implicações do teste WISC na psicologia escolar 109 3.5 Avanços na avaliação psicológica: a avaliação assistida ou dinâmica ................. 112 3.6 Processo de avaliação e intervenção psicológica com base nos fundamentos Vigotskianos .......................................................................................................................... 117 4 Lógica formal e lógica dialética: compreendendo as diferenças entre avaliação psicológica tradicional e avaliação psicológica histórico-cultural .................................... 122 4.1 Lógica formal e lógica dialética: implicações para a avaliação psicológica ........ 122 4.2 Da psicologia tradicional de base formal positivista e subjetivista para uma psicologia crítica de base dialética materialista histórica ................................................. 132 5 CONTRIBUIÇÕES DA PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL PARA O PROCESSO DE INTERVENÇÃO PSICOLÓGICA AVALIATIVO-FORMATIVO .. 141 5.1 O princípio materialista histórico na Psicologia histórico-cultural ..................... 145 5.2 Atividade social e desenvolvimento psicológico humano ...................................... 147 5.3 Aspectos sociais e culturais na periodização do desenvolvimento psíquico ........ 153 5.4 Situação social de desenvolvimento e avaliação psicológica histórico-cultural .. 162 6 CONTRIBUIÇÕES DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA PARA O PROCESSO DE INTERVENÇÃO PSICOLÓGICA AVALIATIVO-FORMATIVO .. 172 6.1 A unidade dialética intervenção-avaliação psicológica de base histórico- cultural..................................................................................................................................182 7 PROCESSO de INTERVENÇÃO psicológica AVALIATIVO-formativo ................. 187 7.1 Contextualização do Centro de Avaliação e Acompanhamento (CAA) .............. 187 7.2 Encontros de intervenção avaliativo-formativos com estudantes e familiares/responsáveis ........................................................................................................ 191 7.3 Atuação junto às escolas: trabalho de formação de professores, reuniões e visita escolar .................................................................................................................................... 194 7.4 Processo de intervenção avaliação realizado pela equipe interdisciplinar do C.A.A......................................................................................................................................196 7.5 Processo de intervenção avaliativo-formativo realizado no CAA ........................ 196 7.6 Processo de intervenção avaliativo-formativo ludopedagógico com os estudantes...............................................................................................................................201 7.7 Processo de intervenção avaliativo-formativo: O caso Leonardo ........................ 204 7.7.1 Queixa escolar resumida ...................................................................................... 205 7.7.2 Relatório de encaminhamento ao CAA (17/09/2018) ........................................ 206 7.7.3 Informações contidas na ficha de encaminhamento do estudante: .................. 207 7.7.4 Reflexão e análise da queixa escolar ................................................................... 208 7.7.5 Acompanhamento do caso de Leonardo (2019-2020) ........................................ 211 7.7.6 Avaliação psicológica particular- (realizada em janeiro de 2019) ................... 212 7.7.7 Análise da avaliação psicológica .......................................................................... 212 7.7.8 Acompanhamento do caso de Leonardo (2021) ................................................. 218 7.7.9 Reunião com prof.ª do AEE, profª. da sala regular e orientadora pedagógica da escola (Julho de 2022). .......................................................................................................... 219 7.7.10 Análise da reunião com equipe da escola ........................................................... 222 7.7.11 O processo de intervenção avaliativo-formativo com o estudante Leonardo . 224 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 251 REFERÊNCIAS..................................................................................................................................258 15 1 INTRODUÇÃO Nossa tese dispõe-se a defender a efetivação do processo de intervenção psicológica avaliativo-formativo junto a crianças com queixas de dificuldades de aprendizagem e problemas de comportamento escolar, e iniciamos com a reflexão de Antunes (1999) a respeito do papel da psicologia e sua responsabilidade na construção do devir histórico. A autora nos desafia a compreender e atuar diante dos fenômenos humanos considerando a relação da psicologia com a sociedade, pois nos cabe a tarefa de refletir criticamente sobre o contexto em que vivemos na realidade brasileira, reconhecendo a sociedade capitalista como desigual, opressora, competitiva, individualista, hiperativa, medicalizada e excludente, dado o modo de organização e produção social que fragmenta as relações de trabalho e, consequentemente, a vida dos indivíduos, sobretudo atualmente, quando identificamos o fenômeno da internet mediando as relações humanas, preenchendo virtualmente a vida das pessoas, esvaziando-as de objetividade social e comprometendo o processo de humanização dos seres humanos. Fala-se muito na atualidade sobre capitalismo de mercado e financeiro, empreendedorismo, produção, mercadoria, dinheiro, lucro como formas de se garantir a adaptação e desenvolvimento do modo de produção capitalista. Também se fala muito em redes virtuais, metalinguagem, avatares, inteligência artificial, dentre outras novidades tecnológicas que engendram situações virtuais abstratas, fictícias e ilusórias para um futuro inatingível, situações que sempre estão por vir e nunca atingem a maioria da população. É diante desse movimento e modo de vida capitalista, midiático, tecnológico e chamado de inovador, empreendedor e do futuro, que as tecnologias chegam no trabalho, na saúde e, simultaneamente, adentram a educação escolar com o olhar dirigido para os processos de ensino e aprendizagem e, ocupam, pouco a pouco, o lugar dos próprios professores, tornando-os instrumentos da viabilização das plataformas digitais. Não obstante essa situação abstrata, idealista, subjetivista e intangível que se concretiza apenas no plano do pensamento e não na vida real da maioria dos indivíduos, no meu trabalho como psicóloga escolar, tenho visto crescer situações de sofrimento psíquico das crianças e jovens na escola, no entanto esse fenômeno chega com mais força junto aos adultos homens e mulheres e trabalhadores de forma geral, e na escola atinge gestores e professores. Identificamos também, que a difícil luta pela sobrevivência da maioria da população brasileira, a necessidade de se submeter ao trabalho alienado (Marx, 2005) para garantir a manutenção das condições objetivas de vida como alimentação, vestuário, saúde e educação, situações aliadas a outras dificuldades cotidianas e permeadas pela fragilização de vínculos sociais e afetivos, precarização do trabalho assalariado, sucateamento dos serviços de saúde e educação e a perda 16 de direitos sociais, alimentam o empobrecimento material e simbólico da vida humana e seu correspondente social, a exclusão. Diante essa caótica situação social, ética e política em nosso país, a desqualificação dos serviços públicos de forma geral e da escola pública especificamente, tem sido visível, situação que ocasiona e potencializa processos de discriminação, preconceito, marginalização e, ato contínuo, situações de sofrimento psíquico em larga escala, sendo que a classe trabalhadora assalariada e outros setores empobrecidos da população são os maiores atingidos. A escola, como sabemos, é uma instituição social e nela se reproduzem situações e relações várias oriundas da sociedade capitalista, inclusive o fenômeno da alienação, sendo que as queixas escolares apresentam certa identidade com a alienação, pois, além de causar sofrimento psíquico aos estudantes, contribuem para fragmentar as relações e separar os estudantes do conhecimento alimentando situações de fracasso escolar. Ao reproduzir situações de alienação, lamentavelmente, a escola reproduz processos excludentes e discriminatórios que engendram queixas dirigidas aos estudantes e relacionadas a dificuldades de aprendizagem e problemas de comportamento. Nossa preocupação nesta tese se dirige às crianças que são rotuladas de ‘problema’ na escola, por serem objeto de queixas de dificuldades de aprendizagem e problemas de comportamento, as quais sofrem por vivenciar esse processo que as rotula, discrimina e as culpabiliza desde o interior da escola. Esses fatos e situações, justificam a presença da psicóloga no interior da escola, ao lado de professores, gestores, estudantes e familiares, enfatizando uma perspectiva crítica de atuação em psicologia escolar que consiga realizar a crítica a totalidade social capitalista e pensar possibilidades de enfrentamento e superação dos processos de alienação que causam sofrimento aos indivíduos de forma geral e, especificamente às crianças na escola. Diante tantos fenômenos sociais alienados e alienantes que recaem sobre os indivíduos e comprometem a sua vida psíquica, decorrentes das relações de produção e existência na sociedade capitalista contemporânea, nos remetemos a Marx (2001, p. 19), quando nos explica que “a consciência nunca pode ser mais que o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo de vida real”. A citação do filósofo alemão nos possibilita entender a íntima relação entre a realidade social, histórica e cultural e o movimento histórico de constituição e desenvolvimento dos seres humanos e, ato contínuo, nos leva a entender os processos de adoecimento físico e sofrimento psicológico dos indivíduos de forma geral e dos estudantes, seus professores e gestores no interior da escola. 17 Vemos com preocupação, que os problemas apontados por Antunes (1999) ainda persistem em nossa realidade e tem se agravado consideravelmente. Para a autora (1999, p. 09) No mundo atual, o desenvolvimento científico e tecnológico tem alcançado patamares nunca antes imaginados. Tempo e espaço adquirem novos significados com a eliminação das distâncias pelas redes informatizadas. Novos conhecimentos vêm transformar profundamente a estrutura produtiva, a educação, a assistência à saúde, as artes, as relações humanas. Alguns velhos problemas, no entanto, não apenas permanecem, como tendem a agravar-se: a miséria, a exclusão social, a violência, a limitação do acesso ao saber e à saúde, o desemprego, a xenofobia, o racismo, a escassez de perspectivas existenciais. Embora sua publicação tenha 25 anos, os problemas apontados por Antunes (1999) permanecem e se agravaram no decorrer dos anos, especialmente quando nos vemos diante das consequências do negacionismo científico, da política de desvalorização do conhecimento verídico e do fenômeno social da difusão de informações falsas, também conhecidas por fake News pelas redes da internet. Nos preocupam também as situações de desmonte de políticas públicas de natureza social, retirada de direitos previdenciários, dentre outras situações de negligência junto a classe trabalhadora e setores empobrecidos da população, opressão a movimentos sociais, as minorias identitárias, dentre outras situações de ataque a democracia e instituições democráticas do nosso país, como as vividas na história recente e decorrentes do último governo Federal sob a direção de Jair Messias Bolsonaro (2019- 2022). No entanto, é importante salientar que tais situações anti-civilizatórias não se restringiram ao governo brasileiro, e nos lembramos dos governos de Donald Trump nos EUA (de 2017 a 2020), Recep Erdogan na Turquia (2014-atual), Victor Orban na Hungria (2010- atual), Benyamin Netanyahu em Israel (de 2009-atual) e mais recentemente, Javier Milei na Argentina (2024-atual), dentre outros políticos ultraconservadores que tem se aproveitado da alienação dos indivíduos e da ideologia própria do sistema capitalista, para difundir o populismo e o nacionalismo político, o obscurantismo científico, a ilusão religiosa e outras estratégias políticas, para se aliar as elites conservadoras e se garantirem no poder como os salvadores da pátria, enfatizando a crença em deus, nos valores da família conservadora e nos princípios liberais da economia da sociedade capitalista. Compreendemos as consequências de tais processos históricos ao nos basearmos mais uma vez nas reflexões de Marx (2001, p. 18) quando afirma que “a produção das ideias, das representações e da consciência está, a princípio, direta e intimamente ligada à atividade material e ao comércio material dos homens, ela é a linguagem da vida real. As representações, o pensamento, o comércio intelectual dos homens”. É nesse sentido que reconhecemos o quanto 18 cada ser humano constrói seus pensamentos, sentimentos, consciência e personalidade por meio de relações sociais, apropriações culturais materiais, linguagens e objetivações simbólicas, dentre outros objetos culturais e relações humanas que engendram as condições de existência e favorecem a construção do psiquismo humano entrelaçado com a objetividade social, histórica e cultural da vida real. Na defesa de nossa tese de doutoramento, ao adotarmos a concepção materialista histórico-dialética sobre a constituição do psiquismo humano, reconhecemos as determinações histórico-sociais envolvidas nesse processo, desde as relações humanas e sociais, os conhecimentos, informações e outros objetos culturais apropriados pelos indivíduos. Tomo a minha atuação como psicóloga escolar junto ao CAA (Centro de Avaliação e Acompanhamento) da Secretaria da Educação Municipal de Presidente Prudente/SP, e as queixas de dificuldades de aprendizagem e problemas de comportamento impetradas as crianças, para propor um processo de intervenção psicológica avaliativo-formativo de base histórico cultural e engendrado por atividades ludo-pedagógicas que possibilite a avaliação de suas qualidades psíquicas e o desenvolvimento de funções e capacidades psíquicas essenciais para o seu processo de escolarização. Para pensar e planejar o processo de intervenção psicológica avaliativo-formativo, remeto-me a Viotto Filho (2018, p. 32) quando afirma que “o conceito de intervenção se relaciona à uma forma diferenciada, consciente e crítica de ação do pesquisador [e da psicóloga] orientada pelo método materialista histórico-dialético, com o objetivo de transformar a realidade concreta dos sujeitos participantes do processo de pesquisa [e de avaliação]”. Nesse sentido, então, de propormos um processo avaliativo que seja também formativo, tomamos como referências teóricas fundamentais a Psicologia histórico-cultural em diálogo com a Pedagogia histórico-crítica, reconhecendo a escola como espaço social repleto de situações humanizadoras possibilitadas pela apropriação dos conhecimentos humano-genéricos acumulados pela humanidade e, ao mesmo tempo, afrontada pelo fenômeno da alienação, tal como identificamos na construção das queixas escolares que imprimem rótulos negativos e comprometem a escolarização dos estudantes. Saviani (2013) nos orienta que não é possível desconsiderar a relação de determinação recíproca entre a sociedade e educação, e muito menos, desconsiderar a relação entre realidade social objetiva e a condição subjetiva dos indivíduos, tal como elucidou Vigotski (1995) em suas reflexões sobre a importância da educação escolar e dos conhecimentos científicos no processo de desenvolvimento do pensamento conceitual e demais funções psicológicas superiores. 19 Reconhecemos no diálogo entre a Psicologia histórico-cultural e a Pedagogia histórico-crítica, iluminado pelos pressupostos do materialismo histórico dialético, os aspectos teóricos e metodológicos essenciais que confluem de forma significativa para a compreensão do processo de avaliação do desenvolvimento efetivo dos estudantes e, ao mesmo tempo, para alavancar processos de aprendizagem que atinjam a Zona de desenvolvimento proximal (ZDP) dos mesmos, ao se apropriarem de conhecimentos científicos e outras objetivações genéricas veiculadas na escola e essenciais para a construção de funções psicológicas superiores que regem as ações dos seres humano na sua vida em sociedade e na escola. Concordamos com Bock (2009, p. 25-26) ao esclarecer que “mundo social e mundo psicológico caminham juntos em movimento”. Considerando essa compreensão no exercício de minha profissão de psicóloga, tenho acompanhado os problemas que a educação e as escolas brasileiras enfrentam, assim como, temos acompanhado os desdobramentos desse processo na vida dos estudantes de forma geral e especificamente das crianças com as quais trabalhamos no CAA de Presidente Prudente/SP. Diante o difícil cenário educacional brasileiro, ampliam-se, sobremaneira, as queixas de dificuldades de aprendizagem e problemas de comportamento das crianças na escola, fato que nos chama a atenção e, ato contínuo, nos preocupa, dado os processos alienados e alienantes de culpabilização, psicopatologização e medicalização presentes na sociedade e reproduzidos no interior da escola. Embora tantos problemas e dificuldades sejam impetrados às crianças, vale esclarecer, considerando os pressupostos da Psicologia histórico-cultural, que tais dificuldades e problemas, quando realmente existem, não tem origem apenas na própria criança, mas nelas se instalam e, sim, passam a fazer parte de sua existência e vida escolar. Não obstante, a origem de tais problemas e dificuldades, encontra-se nas relações sociais e familiares, nas estratégias de ensino dos professores, nas relações construídas em sala de aula e outros espaços e relações estabelecidos pelas crianças na escola. Vários autores como Souza (1997); Ragonesi (1997); Tanamachi (1997); Viotto Filho (2001, 2005); Moyses e Collares (1996, 1997); Meira (2012a, 2019); Franco (2009); Asbahr (2012); Tuleski e Franco (2019); Facci, Leonardo e Souza (2019); Salomão, Viotto Filho e Nunes (2022) dentre outros autores, têm estudado os processos e fenômenos presentes na educação e na psicologia, que levam a estigmatização e psicopatologização dos estudantes. Assim, reconhecem a forma a-histórica e descontextualizada como são compreendidas e avaliadas, por professores, gestores, pedagogos e psicólogos, as chamadas queixas escolares. Desde o ano de 1984, Maria Helena de Souza Patto, com a publicação do seu livro “Psicologia e ideologia: uma introdução crítica a psicologia escolar”, realizou críticas severas 20 a forma como a Psicologia entendia as dificuldades escolares apresentadas pelas crianças presentes nas escolas públicas. A autora identificou que as causas das dificuldades e problemas escolares de aprendizagem e comportamento eram justificadas, pela psicologia, como decorrentes de conflitos emocionais, problemas orgânicos ou falta de incentivo e cultura dos familiares, fenômeno psicológico que atingia, principalmente, as crianças filhos e filhas da classe trabalhadora que estudavam nas escolas públicas de nosso país. Tais explicações demonstravam um reducionismo de análise resultante de concepções naturalizantes, psicologizantes e biologizantes sobre o processo de desenvolvimento do psiquismo humano. O movimento de crítica implementado por Patto (1984) e amplamente discutido por outros autores, demonstrou a necessidade da Psicologia escolar e educacional rever seu objeto de estudo e métodos de atuação, tal como destacam Machado e Souza (1997); Ragonesi (1997); Tanamachi (1997, 2002); Bock (1999); Antunes (1999); Tanamachi, Proença e Rocha (2000); Viotto Filho (2001, 2005); Bock, Gonçalvez e Furtado (2001); Meira e Antunes (2003a, 2003b); Asbahr (2012); Souza (2014) dentre outros, o que levou à uma ruptura com as concepções tradicionais e conservadoras acerca do processo de aprendizagem e desenvolvimento dos estudantes e a sistematização de novas formas de compreensão e atuação da psicologia escolar frente as queixas escolares. Nosso interesse em pesquisar e defender um processo de intervenção psicológica avaliativo-formativo de natureza ludopedagógica de estudantes com queixas de dificuldades de aprendizagem e problemas de comportamento, que não reproduza os princípios e pressupostos hegemônicos presentes na avaliação psicológica tradicional, surgiu dos estudos e pesquisas realizados no interior do GEIPEE (Grupo de Estudos, Intervenção e Pesquisa em Educação Escolar) da UNESP-Presidente Prudente, e por atuar desde 2005, no cargo de psicóloga no CAA (Centro de Avaliação e Acompanhamento) da Secretaria Municipal de Educação de Presidente Prudente/SP. No decorrer de minha atuação como psicóloga escolar tenho acompanhado o aumento no número de estudantes encaminhados para avaliação, situação preocupante, pois me deparo com graves pseudodiagnósticos que imprimem às crianças rótulos e estigmas que os perseguirão por toda a sua vida escolar, além de submetê-las a intervenções clínicas psicopatologizantes e tratamentos medicamentosos prejudiciais aos seu processo de desenvolvimento, tal como vários autores têm nos mostrado (Collares, Moyses, 1996; Asbahr, 2012; Eidit, Martins, 2019; Franco, Mendonça, Tuleski, 2020). Sobre a minha atuação como psicóloga escolar na Secretaria da Educação de Presidente Prudente/SP, temos discutido criticamente a avaliação psicológica tradicional e 21 proposto novos caminhos metodológicos que tem sido construído de longa data e que culminam com a proposição para esta tese de doutoramento de um processo de intervenção avaliativo- formativo respaldado em atividades lúdicas e educativas (ludopedagógicas). No que se refere a compreensão de atividades ludopedagógicas nos respaldamos nas reflexões de Viotto Filho (2018) e também nas reflexões sobre a atividade do brincar no desenvolvimento da consciência da criança presente em Nunes (2013; 2019) e Nunes e Viotto Filho (2016), assim como em Moura (2010) ao discutir atividade pedagógica histórico-cultural. O conceito de atividade ludopedagógica foi inicialmente cunhado por Viotto Filho (2018), quando o autor se propôs a avançar ao conceito de atividade recreativa que se limita a realizar atividades lúdicas para ocupar o tempo livre da criança na escola. A atividade ludopedagógica por sua vez, supera por incorporação a atividade recreativa, e enfatiza a realização de atividades lúdicas, intencionalmente planejadas pelo professor, com objetivos educativos críticos e estruturadas coletivamente, no sentido de favorecer a aprendizagem e desenvolvimento dos estudantes numa direção humanizadora, pois os jogos e brincadeiras são reconhecidos como atividade vital da criança em idade pré-escolar e escolar inicial. Esclarece o autor que atividades lúdicas planejadas de forma consciente e realizadas sob a orientação do professor e, acrescentamos, na atuação da psicóloga escolar, proporcionam situações educativo- formativas diferenciadas e tornam-se possibilidades concretas de construção de relações sociais e apropriações culturais essenciais para o processo de aprendizagem, desenvolvimento e avaliação dos sujeitos na escola (Viotto Filho, 2018). Ao sistematizar sobre o conceito de atividade ludopedagógica o autor afirma que, A atividade ludo-pedagógica configura-se por ações de ensino de natureza lúdica e coletiva, orientadas intencionalmente pelo professor [e também pelo psicólogo], com objetivo de proporcionar a apropriação de objetos culturais (materiais e simbólicos), vivência de relações sociais significativas e expressões prático-teóricas que engendrem s de aprendizagem e desenvolvimento numa direção crítica e humanizadora (Viotto Filho, 2018, p. 35). Defendemos, portanto, a atividade ludopedagógica como instrumento mediador do processo de intervenção e avaliação-formativa de crianças em idade pré-escolar e escolar, pois, ao lado de outros autores histórico-culturais e principalmente Nunes (2019). Reconhecemos que a atividade do brincar é humanizadora, pois vital para as crianças, sobretudo quando disponibilizada àqueles estudantes que têm sido estigmatizados como “alunos-problema”, por conta das queixas de dificuldades de aprendizagem e problemas de comportamento durante a sua escolarização. 22 No movimento de apropriação crítica incorporado no interior do GEIPEE, consegui avançar teórica e metodologicamente na direção da superação de explicações biologizantes, naturalizantes e psicopatologizantes sobre as dificuldades de aprendizagem e problemas de comportamento de crianças na escola; explicações essas que se mantêm presentes até hoje na boca dos professores e gestores da escola, e possibilitam o encaminhamento de crianças a consultórios de médicos clínicos, psiquiatras, neurologistas, assim como, a clínicas de psicologia e psicopedagogia, como constatamos desde a nossa pesquisa de mestrado (Souza, 2017), quando realizamos, descrevemos e analisamos um processo de intervenção-formativo em psicologia escolar, efetivado junto à uma escola pública municipal de Presidente Prudente/SP. O citado processo de pesquisa do mestrado contou com a colaboração dos membros pesquisadores do GEIPEE, da equipe interdisciplinar do CAA, uma professora supervisora e dois estagiários do curso de psicologia de uma universidade particular da cidade. Naquela dissertação demos início à sistematização e conceituação sobre o processo interventivo- formativo em psicologia escolar, vez que realizamos um trabalho coletivo de formação e conscientização dos sujeitos por meio da Psicologia histórico-cultural em intermediação com a Pedagogia histórico-crítica e desde o interior da escola. A pesquisa de mestrado teve como objetivo, apresentar possibilidades de atuação da psicóloga e equipe interdisciplinar na educação em uma perspectiva crítica de atuação, e materialista histórico-dialética de ser humano, educação e sociedade. Os objetivos específicos daquele trabalho circunscreviam-se à promoção de reflexões a respeito dos problemas vividos no cotidiano da escola junto a professores e gestores, especialmente sobre as queixas escolares e a necessidade de superação de concepções naturalizantes sobre tais queixas dirigidas ao processo de aprendizagem e comportamentos dos estudantes da escola. Para a realização do processo de pesquisa intervenção-formativa que resultou na minha dissertação, desenvolvemos atividades e reflexão coletiva junto aos professores e gestores da escola, com a proposição de mudanças nas concepções cristalizadas e presentes na sala de aula, assim como, junto a direção da escola e relacionadas às queixas de aprendizagem e problemas de comportamento dos estudantes. Com o grupo de educadores (professores e gestores) realizamos ao longo de um ano letivo, encontros semanais para estudos teóricos, discussão de casos de estudantes com dificuldades escolares, assistimos e debatemos filmes e documentários ligados à escola e educação escolar, dentre outras atividades educativas de natureza crítica. 23 A pesquisa intervenção-formativa do mestrado estendeu-se aos estudantes de uma sala de aula do 3o. ano do Ensino Fundamental, considerada difícil e problemática pelos gestores da escola, sala que continha muitos estudantes com queixas de dificuldade de aprendizagem e problemas de comportamento. Foram realizados encontros semanais de intervenção-formativa de natureza ludopedagógica junto aos estudantes, com intuito de possibilitar a aprendizagem e desenvolvimento por meio de atividades coletivas lúdicas e educativas que avançassem ao modelo hegemônico de atuação clínico-terapêutico individualizante e psicologizante presente na psicologia do escolar (Meira, 2012). Os resultados da pesquisa intervenção realizada no mestrado, conforme Souza (2017), apontaram a necessidade de avanço na proposição, discussão, definição e sistematização da metodologia de pesquisa interventivo-formativa de natureza ludopedagógica, fato que possibilitou a proposição do projeto de pesquisa desta tese de doutoramento que ora apresento, o qual volta-se para a defesa de um processo de intervenção psicológica avaliativo- formativo respaldado na metodologia de pesquisa intervenção-formativa de Viotto Filho (2018). Nossa tese, portanto, desenvolve-se pela efetivação uma intervenção avaliativo- formativa da psicóloga escolar, por meio de atividades ludopedagógicas junto a estudantes que apresentam queixas escolares. Na efetivação da intervenção psicológica, as atividades ludopedagógicas tornam-se instrumentos educativos mediadores da relação psicóloga-sujeito, sendo que orientações verbais e exemplos práticos da psicóloga edificam situações interativas que engendram a aprendizagem e desenvolvimento das crianças envolvidas no trabalho. Esclarecemos, ainda, que as intervenções avaliativo-formativas acontecem individual e coletivamente, a depender das necessidades dos sujeitos participantes do processo de intervenção. Para a efetivação desse processo, há que se considerar as queixas de dificuldades de aprendizagem e problemas de comportamento, sendo que os jogos e brincadeiras, devidamente planejados e orientados pela psicóloga, engendram condições diferenciadas de avaliação, aprendizagem e desenvolvimento dos sujeitos da intervenção. É importante salientar que no movimento teórico-filosófico, epistemológico e metodológico realizado no interior do GEIPEE e integrado com a minha atuação como psicóloga escolar, que fez nascer a minha dissertação de mestrado (Souza, 2017) e avançou para a elaboração desta tese de doutorado, tenho reconhecido o fenômeno da queixa escolar se constituindo a partir de múltiplas determinações e dimensões individuais, familiares, pedagógicas, políticas, históricas, sociais e culturais, dentre outras relações humanas e institucionais presentes na sociedade, como enfatiza Souza (2009, 2010), situações que devem 24 ser levadas em conta no planejamento e realização do processo de intervenção psicológica avaliativo-formativo ora apresentado e defendido. O processo de intervenção psicológica ora proposto, considera a unidade dialética avaliação-formação, e considera que o fenômeno da queixa escolar precisa ser compreendido desde a sua raiz social, histórica e cultural, para que a psicóloga, ao intervir junto aos sujeitos, engendre condições para a crítica e superação desse fenômeno que gera implicações estigmatizantes e imputa às crianças na escola, verdadeiros vereditos de lesa a escolarização desses sujeitos, como salienta Patto (2000), ao criticar as avaliações, diagnósticos e laudos adaptativos e estigmatizantes corroborados pela psicologia de base tecnicista e conservadora. Para enfrentarmos o desafio colocado para a defesa de uma tese de doutoramento, nos ancoramos, sobretudo nos estudos Marxianos que respaldam a nossa discussão teórico- filosófica epistemológica e metodológica, assim como, nos estudos da Psicologia histórico- cultural e Pedagogia histórico-crítica como já afirmamos. No entanto, e sobretudo, ancoro-me fortemente na atuação e experiência acumulada em 19 anos de trabalho como psicóloga escolar na SEDUC-Presidente Prudente e como psicóloga-pesquisadora do GEIPEE da UNESP- Presidente Prudente desde 2014. Torna-se importante salientar que desde a chegada no GEIPEE, tive a oportunidade de participar de várias pesquisas de natureza interventivo- formativa, tais como os trabalhos de Bezerra (2015); Borella (2016); Zago (2016); Souza (2017); Félix (2018); Nunes (2019), Superti (2023), os quais indicaram caminhos teóricos e metodológicos importantes para aprofundarmos a discussão e defendermos a tese da necessidade de construção de um processo de intervenção avaliativo-formativo de base histórico-cultural e permeado por atividades ludopedagógicas e orientado pela psicóloga escolar. No encaminhamento do nosso trabalho de tese, ressaltamos a importância de uma reflexão rigorosa e de totalidade, sobre a relação dialética entre teoria e prática no processo de intervenção psicológica, enfatizando o caráter avaliativo e educativo-formativo direto e intencional do trabalho da psicóloga escolar, ao implementar, simultaneamente, situações de orientação teórica, ensino direto e intencional, formação crítica e avaliação processual dos sujeitos no âmbito da atuação em psicologia escolar numa perspectiva crítica. Por avançarmos em nossa reflexão teórico-filosófica e metodológica sobre a psicologia escolar numa direção crítica, encontramos as condições para a efetivação do processo de intervenção psicológica avaliativo-formativo que não se limite ao diagnóstico dos sujeitos, mas sim, avance na construção do prognóstico, processo que estruturado pela 25 psicóloga, possibilita a atividade do brincar como atividade vital no movimento de avaliação, aprendizagem e desenvolvimento dos estudantes. Considerando esses pressupostos críticos e ludo-pedagógicos, a atuação da psicologia escolar contribuirá para a superação das dificuldades encontradas pelas crianças na escola ao enfrentar as queixas escolares e, simultaneamente, engendrará condições para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores desses sujeitos, sobretudo no plano da qualidade dos pensamentos e sentimentos, dentre outras funções psíquicas humanas. Esse processo se efetivará por meio da criação de novas necessidades engendradas pela psicóloga, por meio de atividades educativas-formativas lúdicas, que possibilitem às crianças aprender e se desenvolver, caracterizando, assim, um processo de intervenção psicológica que seja avaliativo e formativo, pois favorece a apropriação-objetivação dos sujeitos e, simultaneamente, investe no enriquecimento, complexificação e avanço qualitativamente superior do seu psiquismo numa direção humanizadora. Diante da problemática apresentada, propomos a tese da necessidade de edificação de um processo de intervenção psicológica avaliativo-formativo de base histórico-cultural, por meio de atividades ludopedagógicas, que possibilite situações de avaliação do desenvolvimento efetivo e, simultaneamente, possibilite aprendizagens potenciais de crianças e engendre novas ações e práticas sociais para o enfrentamento do fenômeno das queixas escolares e resgate do processo de humanização na escola. Torna-se notório afirmar que nossa tese não limita a avaliação apenas ao que falta, àquilo que ainda não foi desenvolvido, tal como acontece junto às visões positivistas, tecnicistas e conservadoras de avaliação, mas sim, proporciona, pela mediação da psicóloga escolar, situações ludopedagógicas e, portanto, educativas, formativas e avaliativas que favorecem a relação entre o desenvolvimento psicológico efetivo e o potencial de aprendizagem de crianças submetidas ao fenômeno das queixas escolares, com vistas ao enfrentamento desse fenômeno e favorecimento de situações humanizadoras para esses sujeitos no interior da escola. Temos claro que essa forma histórico-crítica de avaliação supera os testes e provas avaliativas tradicionais positivistas, os quais, além de imediatistas e estáticos, evidenciam somente os ‘produtos’ e não o ‘processo’ de construção de respostas efetivado pelos sujeitos, tal como evidenciam Patto (1997), Leontiev (1991), Machado (2000) e Beatón (2001). A utilização de testes avaliativos positivistas e tecnicistas, torna-se uma atividade enfadonha, pois abstrata e distante das necessidades e motivações das crianças. Entretanto, quando esses sujeitos são avaliados por meio de atividades lúdicas, intencionalmente planejadas pela psicóloga, eles movimentam funções psíquicas (memória, atenção, pensamentos, imaginação, sentimentos, 26 emoções e outras funções), assim como, realizam ações e expressões corporais, apreendem conceitos, manifestações verbais, dentre outras qualidades motoras, psicomotores e psicológicas; suas ações ganham em significado social e evidenciam os sentidos pessoais, mobilizando-os para a efetivação de sua aprendizagem e desenvolvimento, tal como tenho identificado em minha atuação como psicóloga escolar junto ao CAA (Centro de Avaliação e Acompanhamento) da Prefeitura Municipal de Presidente Prudente, e como pesquisadora do GEIPEE (Grupo de Estudos, Intervenção e Pesquisa em Educação Escolar) da UNESP- Presidente Prudente. Nosso objetivo principal com esta tese é contribuir para a produção de conhecimentos teórico-práticos que possam respaldar o trabalho da psicóloga ao realizar avaliações psicológicas e, ao mesmo tempo, auxiliar o trabalho do professor na escola que se depara com crianças que são objeto de queixas escolares e, sobretudo, aquelas queixas relacionadas a dificuldades de aprendizagem e problemas de comportamento dos estudantes. Além dessa contribuição teórica e prática relacionada aos profissionais que se encontram na educação escolar, temos a intenção de alimentar a crítica aos processos sociais de construção de preconceitos, discriminação, marginalização e exclusão dos sujeitos oriundos da classe trabalhadora e setores empobrecidos da população, os quais, dada sua vulnerabilidade social, tornam-se submetidos à alienação social e consequente dominação por parte da classe dominante. Para enfrentarmos o desafio de construção de nossa tese, assumimos os caminhos metodológicos oferecidos pela pesquisa teórico-bibliográfica e documental, e ilustramos a discussão teórica com situações exemplo de crianças que atendemos no serviço de psicologia escolar do CAA da Secretaria da Educação de Presidente Prudente/SP, e aprofundamos a análise teórica a partir do estudo de caso de uma criança também atendida nas dependências do CAA. Os estudos teórico-bibliográficos que realizamos versaram sobre a teoria e a prática de avaliação psicológica tradicional e histórico-cultural e, considerando o resultado desses estudos, identificamos a necessidade de construção de um processo de intervenção da psicologia que seja avaliativo-formativo. Ao sistematizarmos as reflexões dessa pesquisa de doutoramento, além de considerarmos os resultados de trabalhos identificados na revisão bibliográfica, discorri sobre a minha experiência e atuação como psicóloga escolar há 19 anos na SEDUC-Presidente Prudente/SP. Além da pesquisa a livros impressos, realizei levantamento de dissertações e teses que abordam o tema da avaliação psicológica numa perspectiva tradicional e também trabalhos que discutem a avaliação numa perspectiva histórico-cultural e 27 dirigi a pesquisa a Programas de pós-graduação em educação e psicologia de universidades públicas brasileiras. Nossa decisão teórica e metodológica para a elaboração da citada tese respalda-se em Lessa e Souza (2019, p. 271), ao constatarem que existem poucos trabalhos que se propõem entender o processo de escolarização de estudantes com queixas escolares e que abordam “uma proposta de orientação metodológica para o desenvolvimento de processos e construção de avaliação psicológica na perspectiva histórico-cultural”. Assumimos, portanto, o desafio de sistematizar e defender um processo de intervenção psicológica que seja avaliativo e formativo de base histórico-cultural e engendrado por atividades lúdicas-educativas (ludopedagógicas) planejadas intencionalmente pela psicóloga escolar, com a finalidade de avaliar e, simultaneamente, criar condições de aprendizagem e desenvolvimento de crianças objeto de queixas de dificuldades de aprendizagem e problemas de comportamento na escola e, ato contínuo, elaborar crítica e superação do fenômeno social da queixa escolar que se apresenta na escola especificamente e na sociedade de forma geral. Desta forma, definimos três objetivos específicos para o nosso trabalho de tese: 1) Discutir e analisar criticamente a teoria e a prática presente no processo de avaliação psicológica tradicional por meio de estudos teórico-bibliográficos; 2) Discutir e apresentar as possibilidades do processo de intervenção psicológica avaliativo-formativo baseado na Psicologia histórico- cultural e Pedagogia histórico-crítica; 3) Enfatizar as atividades ludopedagógicas como mediadores prático-teóricos na efetivação de um processo de intervenção psicológica que seja avaliativo e também formativo, pois realizado por meio da intervenção da psicóloga e estruturado como práxis científica-educativa que, além de criar condições de avaliação da aprendizagem, possibilita situações educativas que visam atender as necessidades formativas das crianças objeto de queixas escolares. Para realizar o processo de intervenção psicológica avaliativo-formativo nos respaldamos em Vygotski (1995), seguindo as premissas do método instrumental, e nos propomos analisar o processo e não o objeto, buscando explicar e não apenas descrever os fenômenos humanos. Por meio da análise genética, procuramos entender a origem das queixas escolares, identificar possíveis dificuldades e problemas encontrados pelos sujeitos, como também, definir as atividades ludopedagógicas mediadoras do processo de intervenção. No bojo do movimento histórico-social compreendemos a situação social de desenvolvimento da criança, suas conquistas e desenvolvimento efetivo, assim como, trabalhamos para o desenvolvimento de suas potencialidades em direção ao humano-genérico, tal como afirma Duarte (2013). 28 O estudo documental abarcou o período de 2019 a 2023, resgatando os conteúdos dos prontuários do CAA (Centro de Avaliação e Acompanhamento), também conhecido por Centrinho, que se caracteriza como um serviço especializado nas áreas de psicologia, fonoaudiologia, assistência social, terapia ocupacional da Secretaria Municipal de Educação de Presidente Prudente/SP, no qual trabalho como psicóloga desde o ano de 2005. O CAA avalia e acompanha estudantes da Educação Infantil e Ensino Fundamental do ciclo I, os quais são encaminhados pelas escolas por apresentarem queixas de dificuldades de aprendizagem, problemas de comportamento e/ou são estudante público-alvo da Educação Especial (Masuyama; Salomão, 2019). Esclarecemos que o CAA foi implantado pela SEDUC de Presidente Prudente/SP no ano de 1999, estruturado por uma equipe interdisciplinar composta por psicóloga, fonoaudióloga, terapeuta ocupacional e assistente social, além de equipe de apoio com cozinheira, recepcionista e serviços gerais. Inicialmente, tratava-se de um projeto em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde, trato rompido em 2003, ano em que o projeto passou a ser realizado em sede própria na SEDUC, sendo que em 2006 tornou-se um serviço regulamentado dentro da estrutura do Departamento de Organização e Coordenação Pedagógica (DOCP), de acordo com a Lei 6.524/2006, com a nomeação dos profissionais em caráter exclusivo e definitivo na educação. Esclareço que os registros que sistematizo em ‘diário de atuação’ como psicóloga escolar no CAA foram utilizados como dados documentais para corroborar a discussão acerca da importância da construção de um processo de intervenção avaliativo-formativo e ludopedagógico de base histórico-cultural. Tomei exemplos de minha prática ao realizar intervenções histórico-culturais junto a estudantes com queixa escolar que frequentam ou frequentaram o Centrinho da SEDUC de Presidente Prudente/SP. Esclareço também que os dados encontrados nos prontuários das crianças por mim atendidas no CAA, foram utilizados como amostras da problemática das queixas escolares presentes na realidade de escolas da cidade de Presidente Prudente/SP e que, certamente, tornam-se similares aos de outras escolas de nosso país. Ressaltamos que a identidade dos estudantes citados em nossa pesquisa, seus familiares e as informações das escolas onde estudam ou estudaram, foram mantidos em sigilo, respeitando os princípios éticos e normas de uma pesquisa científica e do código de ética do psicólogo. Destacamos que o projeto de pesquisa que deu origem à esta tese, foi devidamente autorizado pela Secretaria Municipal de Educação de Presidente Prudente/SP (SEDUC) e pelo 29 Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), tendo como número de protocolo CAEE: 53108521.8.0000.5402, parecer número 5.349.646. Em tempo, é importante esclarecer que o CAA surgiu de uma necessidade apontada por professores e gestores de escolas municipais de Presidente Prudente/SP, que solicitavam avaliação e atendimento de crianças com queixas de dificuldades de aprendizagem e problemas de comportamento. Também os profissionais da equipe de coordenadores pedagógicos, supervisores de ensino, psicólogos e assistentes sociais da SEDUC, acreditavam que as crianças precisavam de um trabalho clínico-terapêutico, por serem diagnosticados com problemas psicológicos. Assim, o CAA foi implantado, sendo notório apontar que tais demandas apresentavam uma concepção de tratamento clínico, enviesadas por concepções psicologizantes e biologizantes de psicologia escolar. Entretanto, ao longo do desenvolvimento de meu trabalho como psicóloga escolar do CAA, e considerando os estudos de autores críticos da psicologia e pedagogia, participação em eventos da área e autoavaliação crítica dos resultados do trabalho realizado, eu e minha equipe, fomos identificando limites teóricos e metodológicos na atuação, e construindo motivos para planejar e efetivar mudanças em nossa dinâmica de atendimento aos estudantes, familiares e outros sujeitos da escola, avançando numa direção histórico- cultural. Desde essa tomada de consciência de minha atuação, seus limites e possibilidades críticas, tenho me distanciado de uma atuação clínico-psicológica para, cada vez mais, desenvolver ações educativas e emancipadoras de natureza histórico-cultural junto aos estudantes, familiares, professores e gestores das escolas de Presidente Prudente/SP com quem tenho atuado na condição de psicóloga escolar. Enfatizo mais uma vez que a participação no GEIPEE possibilitou o conhecimento dos fundamentos da Psicologia histórico-cultural, o que representou um marco e engendrou mudanças significativas em meu olhar para as queixas escolares e, consequentemente, no tocante à metodologia de avaliação psicológica que, paulatinamente, à medida que me aprofundava nos estudos histórico-culturais, deixou de ser apenas “avaliação” e passou a ser vista por mim e pelos membros do GEIPEE, como um “processo de intervenção psicológica avaliativo-formativo”. Essa é a tese que nos propomos a defender para a conquista do título de Doutora em Educação mas, sobretudo, nossa maior motivação efetiva-se diante da possibilidade de sistematização de conhecimentos que transformaram minha atuação como psicóloga e, de certa forma, a minha própria vida e o meu olhar sobre o gênero humano, a sociedade e cada indivíduo na sua singularidade, afinal, como psicóloga, não posso perder de vista o sujeito, o indivíduo, 30 o ser humano com quem trabalho. Embora o indivíduo constitua-se como síntese de muitas determinações, é ele, individualmente, quem vivencia o sofrimento psíquico de ser objeto de queixas escolares, ou por ter vivido situações de preconceito, discriminação, marginalização e exclusão social, por isso, a preocupação da psicologia deve voltar-se para o indivíduo, reconhecendo o processo histórico-social e cultural de sua constituição. Ressalto que minha atuação e da minha equipe do CAA na estrutura de uma Secretaria de Educação de Presidente Prudente/SP, não tem trilhado caminhos fáceis, sobretudo em decorrência da falta de compreensão das atribuições e papel do psicólogo, fonoaudiólogo, assistente social, terapeuta ocupacional e psicopedagogo que trabalham com questões escolares, por parte dos profissionais da pedagogia (tradicional) da Secretaria da Educação. Frequentemente, somos vistos como profissionais da saúde e que, por isso, não deveríamos atuar na educação, ou então, que deveríamos trabalhar por meio de um modelo clínico medicalizante, situações que nos incomodam, mas que, ao mesmo tempo, nos estimulam a continuar a defender o lugar do psicólogo na educação e na escola como um sujeito crítico, que compreende a dimensão educativa da psicologia e a dimensão psicológica da educação, tendo em vista que a psicologia em interface com a pedagogia tem mostrado resultados bastante positivos para o de desenvolvimento humano no interior da escola, conforme Martins (2012). Contra as concepções descritivas, fragmentadas, imediatistas e superficiais de natureza positivista e conservadora, tenho respondido com uma atuação crítica, dialética, materialista histórica e processual, cada vez mais relacionada com a realidade vivida pelos sujeitos da escola. Em minha atuação como psicóloga escolar, realizamos visitas, reuniões, momentos de formação, contribuindo com os conhecimentos teórico-práticos da psicologia, pedagogia e outras áreas do conhecimento, indo ao encontro das necessidades da escola como instituição educacional e dos sujeitos que dela participam, com objetivo de possibilitar condições concretas de aprendizagem e desenvolvimento e humanização na escola. Encontram- se em nosso espectro de atuação, os estudantes, como também seus professores e gestores escolar e, certamente, os pais e familiares de estudantes com queixa de aprendizagem escolar e problemas de comportamento e, nesse movimento de atuação, tomamos a psicologia numa perspectiva crítica, dialética e transformadora dos indivíduos que poderão transformar a sua própria realidade e a realidade do contexto e da sociedade em que estão inseridos. Para finalizar, esclarecemos que a proposta inicial desta pesquisa de doutoramento, contava com a realização de um de pesquisa intervenção-formativa tal como defendido por Viotto Filho (2018) e outros pesquisadores do GEIPEE, que seria realizado com estudantes de escolas municipais de Presidente Prudente com queixa escolar e encaminhados ao CAA, o que 31 não pôde ser realizado devido ao distanciamento social e outras implicações decorrentes da Pandemia do COVID-19 instalada no Brasil durante os anos 2020 e 2021, principalmente, e os desdobramentos negativos desse em nossa vida forma geral e em nossa vida acadêmica na pós- graduação e na elaboração desta tese especificamente. A discussão presente na tese inicia-se com reflexões introdutórias no capítulo um que abordam a chegada ao tema e as possibilidades de desenvolvimento engendradas em um processo de intervenção da psicologia diante de queixas escolares dirigidas a crianças em idade escolar e pré-escolar e sobre a reedição do fenômeno do fracasso escolar. Em seguida, no segundo capítulo intitulado “Por que ainda falamos sobre o fracasso escolar?” contextualizamos a problemática atual das queixas escolares, apresentamos os dados alarmantes de resultados de provas de larga escala em que estudantes apresentam déficits no movimento de apropriação dos conhecimentos de leitura e cálculos, demonstrando que tais problemas são históricos em nosso país. Problematizamos as queixas escolares pós-pandemia e utilizamos os encaminhamentos feitos pelas escolas ao CAA para ilustrar as críticas às práticas de culpabilização e estigmatização dos estudantes. Expomos o agravamento do processo de medicalização e nos referenciamos em autores como Meira (2012b, 2019), Souza (1997, 2005), Facci (2007) e Collares e Moysés (1994, 2001, 2011) para alinharmos nossas concepções acerca dos problemas de escolarização e formas de enfrentamento dos mesmos. Por criticarmos a naturalização das queixas escolares e compreendermos que os problemas educacionais são desdobramentos de determinações histórico-sociais, realizamos um estudo da história das queixas escolares e forma como a psicologia escolar baseou sua prática em concepções biologizantes, naturalizantes e psicopatologizantes. No terceiro capítulo denominado “Entendendo as raízes históricas das queixas escolares e sua relação com a Psicologia escolar e avaliação psicológica”, analisamos os mecanismos de exclusão inerentes a sociedade capitalista e como o lema de ‘igualdade e liberdade’ dos sujeitos esconde, perversamente, a desigualdade social e engendra processos de culpabilização dos indivíduos. Avançamos para as reflexões acerca da forma como a Psicologia escolar incorporou à sua prática, tais concepções meritocráticas, validando cientificamente o preconceito e a desigualdade, por meio da psicometria e outros instrumentos diagnósticos padronizados e tecnicistas de avaliação do psiquismo humano. Nos baseamos em Patto (1984), Antunes (1999), Massimi e Guedes (2004), Pfrom Netto (2008), Firbida e Vasconcelos (2018) dentre outros autores, para compreendermos suas contribuições sobre o estudo do movimento histórico da Psicologia, com objetivo de demonstrarmos o quanto alguns aspectos de sua constituição ainda persistem nas concepções e 32 na atuação de profissionais da Psicologia e da educação nos tempos atuais. Expomos as raízes históricas da avaliação psicológica, nas quais identificamos a pretensão de “matematizar” o psiquismo humano, abordamos as contribuições de Binet e Simon (1905/1916c) para medir a inteligência e como tais instrumentos influenciaram a criação de testes que continuam sendo utilizados até hoje, como o WISC IV. Neste terceiro capítulo também apresentamos estudos bibliográficos realizados por Guaragna e Asbahr (2022) e ainda Leonardo, Leal e Rossato (2012) a respeito das pesquisas sobre os temas “fracasso escolar”, “avaliação psicológica” e “atuação da Psicologia escolar”, dentre outros temas pertinentes entre a relação da Psicologia com a educação. Encerramos o capítulo discutindo alguns avanços teórico-práticos e limitações no que se refere a compreensão da dinâmica da forma de avaliar no processo de avaliação assistida ou mediada, proposto por Lidz (1987) e Linhares (1996). No quarto capítulo, intitulado “Lógica formal e lógica dialética: compreendendo as diferenças entre avaliação psicológica tradicional e avaliação psicológica histórico-cultural”, abordamos as origens da forma de pensar e entender a dinâmica dos s psíquicos a partir de uma lógica que isola e fragmenta os elementos, para outra forma de pensar, considerando a totalidade dos fenômenos e entendendo a inter-relação entre seus elementos (Vigotski, 1996). Para iluminar nossas reflexões, nos respaldamos em Saviani (2013; 2019), Galvão, Lavoura e Martins (2019) e ainda em Bock (1999), tendo como fundamento filosófico o Materialismo histórico-dialético de Karl Marx e Friedrich Engels, devidamente esclarecido por Paulo Netto (2011) e outros autores. Contextualizamos nossa concepção acerca do papel da educação escolar como transmissora dos conhecimentos historicamente produzidos pela humanidade e discutimos a importância em pesquisar e atuar na educação não apenas seguindo os fundamentos teóricos da Psicologia, mas buscando sua intermediação com uma teoria pedagógica de natureza crítica não reprodutivista como a Pedagogia histórico-crítica. Dada a identidade epistemológica, teórica e metodológica, assim como os objetivos ético-políticos, assumimos como base de nossas reflexões e ações como psicóloga escolar, a relação entre a Psicologia histórico-cultural e a Pedagogia histórico-crítica, tal como defendem Martins (2013) e Saviani e Duarte (2021), dentre outros autores que têm pensado essa importante relação para o desenvolvimento da educação escolar e dos sujeitos que participam da escola. No quinto capítulo, discutimos “contribuições da Psicologia histórico-cultural para o processo de intervenção psicológica avaliativo-formativo” e apresentamos as contribuições de autores clássicos da escola Vigotskiana como, Leontiev, Luria, Elkonin e Davidov, para discutirmos o citado processo de base histórico-cultural. Expomos nossa compreensão do 33 movimento histórico social de aprendizagem e desenvolvimento da criança, tendo os conceitos de zona de desenvolvimento potencial e o mecanismo de internalização de significados por meio das atividades sociais como imprescindível para a promoção do desenvolvimento do psiquismo humano. É neste capítulo que descrevemos nossas propostas acerca da tese de doutorado que defendemos a realização do processo de intervenção psicológica avaliativo- formativo realizado por meio de atividades ludopedagógicas, tal como as reflexões sistematizadas por Viotto Filho (2018) e Nunes, Viotto Filho e Salomão (2022) ao discutirem os princípios da pesquisa intervenção-formativa. No sexto capítulo intitulado “Contribuições da Pedagogia histórico-crítica para o processo de intervenção psicológica avaliativo-formativo” enfatizamos princípios fundamentais oriundos da PedHC para entendermos a natureza e especificidade da educação e os princípios do método de ensino histórico-crítico, como caminhos importantes para a efetivação de um processo de intervenção psicológica de natureza histórico-cultural permeado por atividades educativas lúdicas orientadas pela psicóloga escolar. No sétimo capítulo apresentamos o “processo de intervenção psicológica avaliativo-formativo”, articulando os fundamentos teóricos e metodológicos da Psicologia Histórico-cultural e Pedagogia histórico-crítica e, iluminados pelo método Materialista histórico dialético, utilizamos os dados coletados de casos de estudantes encaminhados ao CAA, e apresentamos o estudo de caso de um estudante (O caso Leonardo), para ilustrarmos e apresentarmos as possibilidades reais de construção e efetivação de um processo de intervenção de base histórico-cultural que compreenda a queixa escolar para além das manifestações aparentes, avance na compreensão das relações entre estudantes, família, escola e reconheça as múltiplas determinações envolvidas no movimento histórico e social de sua constituição. Nas considerações finais, apresentamos nossas reflexões acerca do “processo de intervenção psicológica avaliativo-formativo” e encerramos a tese ressaltando as possibilidades de atuação e intervenção da psicóloga na educação, com a regulamentação da Lei nº 13.935/2019, uma conquista histórica para nós, com a garantia da atuação da psicologia e do serviço social na educação básica. 34 2 POR QUE AINDA FALAMOS SOBRE O FRACASSO ESCOLAR? A árvore que não dá fruto É xingada de estéril. Quem examinou o solo? O galho que quebra É xingado de podre, mas Não haveria neve sobre ele? Do rio que tudo arrasta Se diz que é violento Ninguém diz violentas As margens que o cerceiam. (Bertolt Brecht) Neste capítulo inicial, partiremos da problemática das queixas escolares, pois entendemos que elas representam a manifestação caótica do todo complexo das inter-relações estabelecidas entre professores, estudantes, gestores, familiares e outras tantas determinações que existem no âmbito escolar e ainda demonstraremos neste trabalho de tese. Para abordarmos o tema da avaliação psicológica, precisamos discorrer sobre o fenômeno social da queixa escolar e elucidarmos a forma como ele se manifesta para o compreendermos fidedignamente e agirmos para a sua superação desde o interior da escola. Importante salientar que entendemos a queixa escolar não de forma individualizante, mas como consequência de dificuldades construídas durante o processo de escolarização do estudante, como ressaltam Leonardo, Leal e Rossato (2012; 2015). Outro aspecto a ser destacado deve-se ao fato que o estudo sobre a queixa escolar não é recente e tem sido objeto de investigação e produção de diversos autores da psicologia como Souza (1997, 2005); Franco (2009); Souza (2007, 2020); Machado e Souza (1997); Machado (1997); Leonardo, Lemes e Facci (2014); Facci e Souza (2019); Vieira (2020); Salomão, Viotto Filho e Nunes (2022); Leonardo, Silva, Leal e Negreiros (2020); Dazzani, Cunha, Luttigards, Zucoloto e Santos (2014), tema que foi inicialmente pesquisado desde a década de 1980 por Maria Helena de Souza Patto (Patto, 1990, 1997, 2000). Isto revela o compromisso ético-político da psicologia em construir explicações acerca dos problemas de aprendizagem e desenvolvimento que desloquem as explicações do plano individual e culpabilizante, para outras dimensões mais amplas presentes na vida objetiva e no movimento histórico e cultural dos sujeitos. Mas, por que ainda falamos sobre o fracasso escolar? 35 Este tema foi amplamente discutido e criticado ao longo das últimas décadas, mas ainda se faz presente na vida de muitas crianças e jovens que se encontram na escola. Trazemos ainda este tema, por identificarmos que muitas escolas apresentam queixas de problemas de aprendizagem de estudantes e que especialistas continuam compreendendo e avaliando estas queixas no plano individual, ou seja, limitando o olhar ao estudante, levando a continuidade do processo de culpabilização e patologização. Mesmo com avanços teórico-práticos de autores da psicologia escolar, muitos psicólogos continuam avaliando os estudantes de forma fragmentada e desconsiderando as determinações histórico-sociais no processo de constituição das queixas escolares. Esta prática baseada em concepções biologizantes e naturalizantes sobre o ser humano, não possibilita que os estudantes aprendam e desenvolvam suas potencialidades e, assim, não conseguindo romper com os estigmas e rótulos, a produção do fracasso escolar continua, como vemos nos dados a seguir. Dados alarmantes apontam que os problemas de escolarização são históricos em nosso país, como destaca Meira (2012) ao avaliar os resultados do IDEB (Índice de desenvolvimento da Educação Básica), criado pelo INEP (Instituto Nacional de Estudos e de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira). A autora comenta Essas provas são aplicadas a cada dois anos. Tendo como referência uma escala de 0 a 10, o IDEB calculado para 2007 foi de 4,2 para as séries iniciais do Ensino Fundamental, 3,8 para as últimas séries do Ensino Fundamental e 3,5 para o Ensino Médio. Apesar de melhores do que aqueles verificados no IDEB de 2005, esses resultados revelam um evidente quadro de dificuldades no sistema educacional brasileiro (MEIRA, 2012, p.76). Martins e Marsiglia (2015) ressaltam que dos índices atingidos no IDEB entre 2005 e 2013, nos anos iniciais do Ensino Fundamental, houve um aumento nos resultados, partindo de 3.8 no ano de 2005, chegando a 5.2 no ano de 2013. No entanto, as autoras destacam que nos últimos anos do Ensino Fundamental ocorre um declínio nos resultados dos estudantes, se comparados aos anos iniciais; temos, respectivamente, o valor de 3.5 em 2005 e 4.1 no ano de 2013. As autoras chamam atenção que no Ensino Médio as diferenças aumentam e verifica-se um declínio dos índices no decorrer do processo de escolarização, pois em 2005 o índice era de 3.4 e, em 2013 apenas 3.7 pontos. Souza (2010) comenta os resultados obtidos com a Prova Brasil, avaliação nacional realizada pelo Ministério da Educação em escolas da rede pública e ressalta que os resultados indicam a existência de uma defasagem significativa em relação ao ano/série que o aluno estuda 36 e a apropriação dos conteúdos estudados. Tais resultados retratam a grave situação que se encontram os estudantes presentes na escola pública brasileira, demonstrando que aos mesmos tem-se oferecido o mínimo; apenas o suficiente para a aquisição de habilidades básicas de leitura, escrita e cálculos elementares, para que, ao final do de escolarização tenham condições de se adaptar ao mercado de trabalho assalariado, situação que compromete, sobremaneira, aspectos relacionados ao desenvolvimento de funções psicológicas essenciais como o pensamento teórico-conceitual, a consciência crítica, emoções e sentimentos desses sujeitos, assim como, comprometido o desenvolvimento de valores ético-universais essenciais, dentre outras características necessárias a construção de sua consciência crítica e personalidade numa direção humano-genérica Heller (1978), Duarte (2013). Temos visto que o problema do baixo rendimento escolar não tem apresentado melhora e, desta maneira, alimentado cotidianamente o fenômeno do fracasso escolar. Franco e Martins (2021, p.24) destacam um fragmento do documento que propõe a Política Nacional de Alfabetização (2019) e identificam que, Segundo os resultados da Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA), de 2016, 54,73% de mais de 2 milhões de alunos concluintes do 3º ano do ensino fundamental, apresentaram desempenho insuficiente no exame de proficiência em leitura. Desse total, cerca de 450 mil alunos foram classificados no nível 1 da escala de proficiência, o que significa que são incapazes de localizar informação explícita em textos simples de até cinco linhas e de identificar a finalidade de textos como convites, cartazes, receitas e bilhetes (p.10). Em escrita, 33,95% estavam em níveis insuficientes (1, 2 ou 3). Embora o número não seja tão alto em comparação com leitura, percebe-se a gravidade do problema diante da descrição desses níveis: aproximadamente 680 mil alunos de cerca de 8 anos estão nos níveis 1 e 2, o que quer dizer que não conseguem escrever palavras alfabeticamente ou as escrevem com desvios ortográficos. Quanto à escrita de textos, ou produzem textos ilegíveis, ou são absolutamente incapazes de escrever um texto curto (Brasil, 2019, p. 10). Os resultados mais recentes do IDEB e do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) de 2021, demonstram o acirramento das desigualdades educacionais apontados por pesquisas sobre a educação no brasil e corroboram com a problemática apresentada pelas autoras. Em 2019, 15% das crianças do 2º ano do ensino fundamental não conseguiam ler e escrever e esse quadro dobrou, pois os dados do SAEB de 2021 mostram que 34% das crianças não sabem ler e escrever. quanto a matemática, vou identificado que 2 de cada 10 crianças não conseguem somar e subtrair. Os dados impressionam, pois 38,9% dos estudantes do 5º ano do ensino fundamental não conseguem nomear figuras geométricas. Tais resultados nos chamam a atenção, mas precisam ser analisados de forma crítica, considerando a vida das crianças mais vulneráveis, filhos da classe trabalhadora, oriundos de extratos pobres da população, 37 predominando cor de pele preta ou parda e que moram nas periferias, como expõe o artigo da Folha de São Paulo de setembro de 2022, intitulado de “atenção às desigualdades e à cultura do fracasso”. Os autores alertam sobre os impactos da pandemia e de como essas crianças enfrentaram diversos problemas e inclusive a falta de conexão para acompanharem as aulas online e ressaltam a importância em considerar a desigualdade social nos indicadores do IDEB. Esses resultados expostos demonstram o quadro preocupante que se encontra instalado, o qual foi denominado por Patto (1984) de produção do fracasso escolar, fato que revela os problemas no processo de escolarização dos estudantes e que levam ao encaminhamento de queixas escolares aos serviços de psicologia públicos ou privados, fenômeno esse, como afirmamos, que permanece resistente desde a década de 1980 e adentrou às últimas décadas mantendo-se presente na educação escolar e especificamente nas escolas públicas de nosso país forma generalizada. Os resultados dessas avaliações chamam a atenção em relação a situação de exclusão que vivem os estudantes da escola pública. Esta exclusão que estamos nos referindo não se trata da dificuldade de acesso à escola, mas sim do que Soares (1997) e Meira (2012), baseando-se nas reflexões de Pierre Bourdieu (1930-2002) denominam de “exclusão do interior”, “eliminados sem exame” ou “marginalizados por dentro” e outras denominações sobre o sujeito das classes populares que são excluídos, ainda que participando do sistema escolar. Temos identificado o quanto as escolas públicas, na sua maioria, têm sido vilipendiadas pelo Estado e tornam-se um espaço de instabilidade profissional, dado o desmonte anual do corpo docente por conta da precária política de permanência na escola e não contratação de professores efetivos. Ao mesmo tempo, torna-se espaço de sofrimento psíquico tanto de professores diante das dificuldades de ensinar pelas condições precárias das escolas para manter a sala de aula em ritmo de aprendizagem, assim como, dos estudantes, que têm um aprendizado limitado que compromete o seu desenvolvimento, ficando à margem do processo educativo. Diante deste cenário, destacamos a pergunta feita por Meira (2012, p. 78) “por que os alunos continuam na escola, mas não aprendem?” A psicologia tradicional, com viés psicologizante e biologizante, respondeu essa questão das causas dos problemas de aprendizagem localizando-as nos distúrbios, transtornos, conflitos emocionais e problemas orgânicos dos estudantes, além de causas oriundas das famílias, os culpabilizando, assim como, seus familiares, sem realizar a devida análise histórico-social dos fenômenos e situações que levam ao chamado fracasso escolar. A autora salienta a necessidade de desenvolvimento de uma perspectiva crítica de psicologia que compreenda a escola nas suas múltiplas determinações, assim como as queixas de dificuldades, para que os alunos possam avançar no 38 seu processo de aprendizagem e desenvolvimento de forma consciente e crítica, superando assim, o fenômeno do fracasso que ronda a sua vida escolar. Ao nos remetermos à atualidade, se os dados sobre o baixo rendimento escolar das crianças e jovens já eram alarmantes em nosso país antes da pandemia de Covid19 (2020 a 2021), este cenário se torna muito mais preocupante com as consequências do isolamento social imposto a população brasileira, fato que levou ao fechamento das escolas e a instituição de aulas remotas por meio eletrônicos para manter o distanciamento entre professor e alunos e evitar a transmissão do vírus Sars Cov2 transmissor da Covid19. Considerando o cenário de distanciamento, sabemos que muitas crianças não participaram das aulas remotas durante a pandemia e não tiveram contato e apropriação de conteúdos escolares, muitos deles por não possuírem computador, celular e aparelhos eletrônicos e o acesso à rede de Internet. Segundo dados do relatório do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), "Resposta Educacional à Pandemia de Covid-19 no Brasil", as escolas brasileiras ficaram 279 dias fechadas no ano de 2020. Como resultado, houve um grande retrocesso educacional evidenciado nos resultados recentes do SARESP (Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo), que revelaram que o estudante matriculado na rede estadual paulista apresenta uma defasagem de quase seis anos em matemática e, quatro anos em língua portuguesa, ao concluir o Ensino Médio em 2021. O relatório aponta que As primeiras avaliações também mostram que o impacto foi mais acentuado nas crianças em fase de alfabetização ou concluindo o último ano do ensino fundamental. Ainda de acordo com os dados do SARESP, as crianças concluintes desta etapa tiveram um retrocesso em matemática equivalente aos resultados de 2013. Para se ter uma ideia mais tangível, 61,6% dos estudantes do quinto ano não sabem resolver uma simples questão de subtração. Outra questão fundamental ao discutirmos o cenário da Pandemia de Covid19, evidencia-se na extrema desigualdade social, que já era marcante em nosso país, e foi escancarada e intensificada durante a Pandemia, fato que impactou as condições de vida da maioria da população e no acesso dos estudantes oriundos das classes populares e trabalhadoras a escola. Verificamos no documento “Cenário da Exclusão Escolar no Brasil: um alerta sobre os impactos da pandemia da COVID-19 na Educação”, dados publicados no site da estratégia Busca Ativa Escolar (buscaativaescolar.org.br) do UNICEF e parceiros (2021) que, em novembro de 2020, portanto ao final do ano letivo, 5.075.294 crianças e adolescentes de 6 a 17 https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2022/03/96-dos-alunos-da-rede-estadual-de-sp-concluiram-ensino-medio-sem-saber-resolver-equacao-de-1o-grau.shtml https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2022/03/96-dos-alunos-da-rede-estadual-de-sp-concluiram-ensino-medio-sem-saber-resolver-equacao-de-1o-grau.shtml https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2022/02/sobe-para-41-fatia-das-criancas-de-6-a-7-anos-que-nao-sabem-ler-e-escrever.shtml https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2022/02/sobe-para-41-fatia-das-criancas-de-6-a-7-anos-que-nao-sabem-ler-e-escrever.shtml https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2022/03/alunos-do-ensino-medio-de-sp-tem-desempenho-mais-baixo-da-historia.shtml 39 anos estavam fora da escola ou sem atividades escolares, o que corresponde a 13,9% dessa parcela da população em todo o Brasil (BRASIL, 2020, p. 44). Expomos essas informações e dados decorrentes das consequências da Pandemia de COVID-19 em nosso país, pois tem nos preocupado, sobremaneira, a forma como os gestores de escolas (Diretores, Vice-diretores e Coordenadores pedagógicos), professores, assistentes sociais, pedagogos e psicólogos, dentre outros profissionais que atuam na educação escolar, interpretaram e tem interpretado as “defasagens” de aprendizagem e desenvolvimento apresentadas pelos estudantes após o seu retorno as aulas presenciais na escola. Na maioria dos casos, atribuem aos estudantes, isoladamente, as dificuldades atuais, sem realizar uma análise da situação de distanciamento dos conhecimentos escolares provocada pela Pandemia de COVID-19. Muitos desses dados avaliativos descontextualizados, segundo nossa avaliação, tem sido utilizados como elementos ou indícios, para alimentar mais queixas escolares; a falta de acesso à internet, os baixos índices de participação nas aulas, atividades domiciliares que não foram realizadas, a falta de vivência do contexto escolar, os problemas particulares que cada família enfrentou, as condições concretas de vida da população sob a Pandemia, dentre outros determinantes, não têm sido considerados na avaliação das dificuldades de aprendizagens dos estudantes e, perversamente, como afirmamos, tem alimentado queixas escolares. Diante dessa situação, reiteramos que identificamos a repetição do fenômeno social do fracasso escolar que culpabiliza os próprios indivíduos pelas dificuldades encontradas no processo de aprendizagem, sem considerar o processo histórico de sua constituição e, sobretudo, a recente situação que os estudantes viveram em decorrência da Pandemia de Covid- 19 em nosso país. Como afirmar que o estudante apresenta certa(s) dificuldade(s), por ele não ter aprendido o que, na verdade, não lhe foi ensinado? Essa é a questão que precisa ser respondida claramente ao invés dos estudantes serem culpabilizados. Considerando esta problemática, apresentamos na tabela a seguir, alguns exemplos de encaminhamentos realizados pelas escolas ao CAA, dos quais destacamos a informação da escola sobre a participação do estudante no período de distanciamento social da Pandemia Covid19, com objetivo de ilustrar nossas reflexões críticas. Os encaminhamentos foram realizados no ano de 2021, no período marcado pelo retorno às aulas presenciais, mas ainda durante a Pandemia Covid-19. No período, foram encaminhados 92 estudantes ao CAA, sendo que destacamos 20 casos como amostra da problemática de que poucas famílias deram devolutivas das atividades realizadas em casa, seja pelo celular ou apostila impressa. 40 Quadro 1 - Encaminhamentos ao CAA no ano de 2021 durante a Pandemia de COVID-19 Menina 3º ano A família não acessou a plataforma, realizou atividades impressas 90% Menino 3º ano Falta de aparelho celular, computador e internet. Devolveram “o mínimo” de atividades Menino 5º ano Não acessou plataforma 0% Menina 3º ano A família não devolveu nenhuma atividade Menino 2º ano A família não retirou e não devolveu nenhuma atividade Menina 2º ano Devolutiva de 20% das atividades Menina 2º ano Devolutiva de 15% das atividades Menina 1º ano Escola não informou Menino 3º ano Escola não informou Menino 2º ano Usou plataforma e atividades impressas devolutiva de 100% no 1º semestre e de 25% no 2º semestre Menina 3º ano Escola não informou Menino Pré I Dificuldade para acessar a plataforma, 100% das atividades não feitas por ele Menina 2º ano Celular incompatível com a plataforma, optou por atividades impressas, devolutiva de 100% Menina 1º ano Fez atividades impressas 100% Menino 3º ano Dificuldade para acessar a plataforma, devolutiva de 60% das atividades Menino 1º ano Fez atividades impressas 98% de devolutiva Menino 4º ano Sem acesso a internet, fez 20% das atividades impressas Menino 1º ano Busca ativa, não acessou a plataforma, não devolveu nenhuma atividade impressa Menino Maternal I Retirou 2 blocos de atividades e devolveu apenas 1 Menino Maternal I Não consegue parar para fazer atividades, 0% devolutiva Fonte: Elaborado pela pesquisadora. Fonte: Encaminhamentos ao C.A.A. Dos 20 exemplos apresentados, vemos que apenas 05 deram devolutiva de mais de 50% das atividades propostas pela escola; se analisarmos, além do critério de retorno de atividades feitas, e considerarmos como estas atividades foram realizadas, se foram realizadas pelo estudante e em quais condições, levantaremos outras questões que colocam a avaliação sob dúvidas. Entendemos, portanto, diante dessa situação, que devemos analisar criticamente a forma como psicólogos e profissionais da educação avaliaram e tem avaliado estas queixas escolares e os desdobramentos dessa avali