UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JÚLIO DE MESQUITA FILHO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS SAN TIAGO DANTAS RODRIGO JORGE DE LIMA Política Externa Brasileira em Tempos de Transformação: modernização e inserção internacional (1889-1912) SÃO PAULO 2013 RODRIGO JORGE DE LIMA Política Externa Brasileira em Tempos de Transformação: modernização e inserção internacional (1889-1912) Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (PUC-SP, UNESP e Unicamp) para obtenção do título de mestre em Relações Internacionais. Área de Concentração: Instituições, Processos e Atores. Orientador: Prof. Dr. Tullo Vigevani. SÃO PAULO 2013 Lima, Rodrigo Jorge de. L732 Política externa brasileira em tempos de transformação : modernização e inserção internacional (1889-1912) / Rodrigo Jorge de Lima. – São Paulo, 2013. 87 f. ; 30 cm. Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais) – UNESP/UNICAMP/PUC-SP, Programa San Tiago Dantas de Pós-graduação em Relações Internacionais, 2013. Orientador: Tullo Vigevani. 1. Brasil – Relações exteriores. 2. Brasil – História – República Velha – 1889-1930. 3. Rio Branco, José Maria da Silva Paranhos – 1845-1912. 4. Diplomacia. I. Autor. II. Título. CDD 327.81 BANCA EXAMINADORA ______________________________________________ Prof. Dr. Tullo Vigevani ______________________________________________ Prof. Dr. Clodoaldo Bueno ______________________________________________ Prof. Drª. Lívia de Carvalho Borges AGRADECIMENTOS Muitas são as pessoas que merecem ser lembradas e que foram muito importantes para que esse trabalho fosse realizado. Agradeço ao professor Reginaldo Mattar Nasser, que esteve presente ao longo da maior parte da pesquisa, sobretudo no que diz respeito à agenda de pesquisa inicial, contribuindo para meu amadurecimento como pesquisador. Agradeço a todos os membros do corpo docente e discente do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas, que sempre impulsionaram grandes debates e contribuíram para minha formação intelectual e pessoal. Agradeço à professora Suzeley Mathias Kalil pelo apoio, suporte e compreensão no semestre que antecedeu a finalização da dissertação e ao professor Tullo Vigevani por aceitar minha orientação. Agradeço a Giovanna Vieira e Isabela Silvestre, na secretaria acadêmica, sempre eficientes e prontas para ajudar. Agradeço a Graziela, bibliotecária, solidária e prestativa nas indicações e orientações referentes ao acervo e à normatização do trabalho. Agradeço a Alexandre Jorge de Lima e Paulo Gustavo Pellegrino Corrêa pela leitura e comentários valiosos, nesta etapa final e aos demais amigos que compartilharam desta etapa da minha vida, proporcionando momentos de apoio, descontração e alegria. Agradeço aos meus pais, Nelio e Angela, e meus irmãos Alexandre e Renata, minha família querida que sempre está ao meu lado. Por fim, um agradecimento especial para Amanda, minha esposa. Obrigado pela compreensão nesse período intenso de estudos e pelo apoio de forma incondicional e carinhosa. Resumo A presente pesquisa pretende analisar as imbricações entre a agenda de política externa e aspectos de transformação no Brasil, tendo em vista o cenário político e econômico e o ambiente intelectual do país na virada do século XIX para o XX. Para tanto, busca-se compreender a modernização como um valor que integra a atividade diplomática no que tange aos objetivos de política externa e, portanto, a inserção internacional do Brasil nas primeiras décadas republicanas. Palavras-chave: Política Externa. Modernização. Primeira República. Abstract This research aims to analyze the intersection between the foreign policy agenda and aspects of transformation in Brazil, considering the political and economic scenario and the intellectual environment of the country at the turn of the nineteenth to the twentieth century. It seeks to understand the modernization as a value that shapes diplomatic activity, in light of the foreign policy objectives and, therefore, the international insertion of Brazil in the first two decades of the Republic. Keywords: Foreign Policy. Modernization. First Republic. LISTA DE TABELAS Tabela 1 Composição das principais exportações brasileiras, 1889--1918 (% do total) 51 Tabela 2 Estoque monetário no Brasil, 1888-1892 (contos de réis) 52 Sumário 1 Introdução .................................................................................................... 8 2 Contexto Internacional................................................................................ 16 2.1 O Mundo Europeu ...................................................................................... 17 2.2 Estados Unidos .......................................................................................... 22 2.3 O Brasil no Final do Século XIX ................................................................. 24 3 A Questão Nacional e as Relações Exteriores do Brasil ............................ 27 3.1 Formação Nacional e Inserção Internacional ............................................. 28 3.2 A Questão Nacional: a ideia de Brasil moderno ......................................... 32 3.3 A Questão Nacional e as Relações Exteriores do Brasil ............................ 35 4 A Agenda de Política Externa na Primeira Década Republicana (1889-1899) ......................................................................................................................... 42 4.1 Brasil Fin de Siècle ..................................................................................... 43 4.2 Relações Econômicas Internacionais ......................................................... 50 4.3 “Americanização” e Modernização da Agenda de Política Externa ............ 54 5 A Agenda de Política Externa no Tempo do Barão (1902-1912) ................ 61 5.1 Brasil Belle Époque .................................................................................... 62 5.2 Relações Econômicas Internacionais ......................................................... 65 5.3 Rio Branco e a Modernização das Relações Exteriores do Brasil .............. 73 6 Considerações Finais ................................................................................. 79 Referências Bibliográficas ................................................................................ 82 8 1 Introdução No Brasil, os efeitos da ampliação da pesquisa acadêmica e do debate público sobre Relações Exteriores são notórios, interferindo positivamente seja na renovação das formulações teóricas, seja na abertura intelectual das discussões acerca da História da Política Externa Brasileira. Neste trabalho, a ação de política externa será analisada da perspectiva de um elemento particular presente na história do país: a modernização. Trata-se de uma abordagem que tem por objetivo apresentar e discutir os aspectos de modernização na agenda de política externa no início da Primeira República. Em torno de acontecimentos que marcaram a cena nacional a partir da passagem do Império para República, serão analisados os temas da agenda de política externa concatenados com as grandes transformações em curso em matéria de política internacional e do ideário de civilização e progresso do período. Nesse sentido, discutir as lições do passado assinala a importância de aprofundar o conhecimento acerca de um traço característico da política externa na história do país que se preserva até os dias de hoje: a modernização. A fim de melhor situar a agenda de política externa, combinada à projeção internacional e ao projeto de desenvolvimento do Brasil no período, neste trabalho optou-se por revisitar a discussão no contexto da temática sobre a questão nacional, campo de debate tradicional das Ciências Sociais no Brasil. Ademais, o escopo de análise está delimitado ao período de 1889 até 1912, o qual compreende importantes ações em matéria de política externa desenvolvidas pelo Itamaraty, que marcaram profundamente o legado diplomático do país. *** No Brasil, em termos históricos, a pesquisa sobre política externa e desenvolvimento reabre o debate sobre a questão nacional e sobre as 9 manifestações mais complexas e abrangentes que expressam aspectos da realidade política do país.1 A este propósito, deve-se levar em conta tanto as transformações de ordem econômica, quanto o papel das ideias ou processo ideológico sobre os quais se constituíam a formação da nação, as relações de poder e o modo pelo qual se expressavam em matéria de organização da vida política. Ao tratar dos aspectos e condições do processo político brasileiro, a discussão repousa sobre explicações e interpretações, em termos de circunstâncias históricas, intimamente associadas à modernização como via de desenvolvimento e progresso.2 No entanto, é relevante notar, como destaca Raymundo Faoro, uma distinção entre modernização e modernidade, a qual possibilita uma formulação de problemas e apresentação adequada dos processos históricos nos quais se inserem as instituições políticas e as relações entre os atores aqui analisadas. Diga-se, por enquanto, que a modernidade compromete, no seu processo, toda a sociedade, ampliando o raio de expansão de todas as classes, revitalizando e removendo seus papeis sociais, enquanto que a modernização, pelo seu toque voluntário, se não voluntarista, chega à sociedade por meio de um grupo condutor, que, privilegiando-se, privilegia os setores dominantes. Na modernização não se segue o trilho da “lei natural”, mas se procura moldar, sobre o país, pela ideologia ou pela coação, uma certa política de mudança. Traduz um esquema político para uma ação, fundamentalmente política, mas economicamente orientada, para usar a língua de Weber. A ação social que dela decorre, não parte da economia, como expressão da sociedade civil (FAORO,1992, p.8). E acrescenta: Na modernidade, a elite, o estamento, as classes – dizemos, para simplificar, as classes dirigentes – coordenam e organizam um movimento. Não o dirigem, conduzem ou 1 Para um exame geral e panorama das diferentes contribuições acerca da produção intelectual brasileira empenhada em compreender a questão nacional e as condições de modernização do país, ver, entre outros: Octavio Ianni, A Ideia de Brasil Moderno (1996); Benjamin Abdala Jr. E Salete de Almeida Cara, Moderno de Nascença – figurações críticas do Brasil (2006); e Alberto da Costa e Silva, O Itamaraty na Cultura Brasileira (2002). 2 Sobre o emprego e discussão dos conceitos de modernidade, modernização, desenvolvimento e progresso, a pesquisa seguiu como linha principal os estudos sociológicos. As referências deste debate estão em T. B. Bottomore, Introdução à Sociologia (1970). 10 promovem, como na modernização. A modernização, quer se chame ocidentalização, europeização, industrialização, revolução passiva, via prussiana, revolução do alto, revolução de dentro – ela é uma só, com um vulto histórico, com muitas máscaras, tantas quantas as diferentes situações históricas. Talvez se possa dizer, ainda, que a modernização, ao contrário da modernidade, cinde a ideologia da sociedade, inspirando-se mais na primeira do que na segunda (FAORO,1992, p.9). Avançar, portanto, sobre o papel do setor externo do país como agente de modernização, é compreender como a ação diplomática permite uma interpretação e caracterização da própria formação nacional do Brasil. Assim, a questão nacional, revisitada à luz das relações exteriores, adquire um caráter relevante, pois sem prejuízo ou desvantagem para a pesquisa sociológica abre espaço para uma perspectiva de análise que, a partir de diferentes aspectos, também contribui para a compreensão das condições e possibilidades do Brasil moderno. Desafio este que é a própria marca das Ciências Sociais no Brasil, como destaca Octavio Ianni, A história do pensamento brasileiro está atravessada pelo fascínio da questão nacional. No passado e no presente, são muitos os que se preocupam em compreender os desafios que compõem e decompõem o Brasil como nação. Todos, a despeito das diversidades de perspectivas e propostas, pensam o Brasil moderno. A questão nacional está sempre presente, como desafio, obsessão, impasse ou incidente (IANNI, 2004, p. 24). Deste modo, o acumulado histórico da diplomacia brasileira é revelador das diversidades e antagonismos presentes no universo de atores e instituições (estatais ou não) que se expressam no âmbito da formulação de política externa e, sobretudo, daquilo que se apresenta por “interesse nacional”. Note-se, contudo, que, para Raymond Aron (2002, p. 64), o “interesse nacional” corresponde ao objetivo de uma busca, não a um critério de ação. Deste modo, torna-se, portanto, imperativo à tarefa do analista explorar o conjunto de intencionalidades que conferem significado à ação política dos atores envolvidos na inserção internacional do país, evitando-se representações e interpretações que não guardem correspondência com as condições econômicas, forças políticas e relações sociais, ou seja, com a realidade histórica na qual se formam. 11 A partir de uma abordagem teórica que integre à discussão os desdobramentos dos impulsos modernizadores presentes na ação de política externa, a análise pretende explorar como a diplomacia esteve relacionada ao projeto político de modernização e projeção internacional do país no início da Primeira República. Para tanto, busca-se compreender a correlação de forças e direção política que se expressam na condução da política externa brasileira, bem como as condições presentes no sistema internacional do período. A este propósito, o estudo das Relações Internacionais figura como campo de compreensão de fatores externos, bem como de análise das circunstâncias e condicionamentos da conjuntura internacional, sobre a qual os Estados atuam, haja vista a extensa e antiga bibliografia dos trabalhos tributários do paradigma realista ou liberal neste campo do conhecimento científico.3 Ademais, explora ainda o campo dos valores que compõem a mentalidade do tomador de decisão em matéria de política externa. Tal debate correspondeu a uma nova abordagem em Relações Internacionais: o pós- positivista.4 Dentro do conjunto de perspectivas teóricas que emergiam do contexto do “terceiro debate”, a abordagem construtivista estabeleceu um diálogo mais estreito com a Sociologia e demais ciências sociais. Neste sentido, ao lado das vertentes mais tradicionais (foco da análise sobre as relações de poder), a perspectiva sociológica, em sua dimensão ampla (valores, classes, símbolos, preferências, estrutura, identidade, interesses), permitiu um questionamento mais sólido sobre o papel das ideias e dos valores nas análises de Relações Internacionais, inclusive em matéria de segurança e defesa. O horizonte intelectual construtivista, por sua vez, está distante de um consenso, pois há uma pluralidade de vertentes teóricas que integram esta abordagem.5 Existem, entretanto, determinados pressupostos centrais que 3 Ver MESSARI & NOGUEIRA (2005) Teoria das Relações Internacionais: correntes e debates. Rio de Janeiro: Elsevier. 4 Conferir LAPID (1989) “The third debate: on the prospects of international theory in a post- positivist era”. In International Studies Quaterly, 33, 235-254. Naquele momento, a disciplina foi alvo de questionamentos e revisão dos marcos conceituais e teóricos que orientavam a sua agenda de pesquisa. As críticas de ordem metodológica, epistemológica e ontológica ampliaram as opções teóricas disponíveis para a explicação dos assuntos tradicionais (guerra, paz, segurança, comércio), bem como recepcionaram um novo conjunto de temas (identidade, meio ambiente, cultura, gênero). 5 Em 1992, Alexander Wendt publica seu texto clássico do construtivismo “Anarchy is what states make of it: the social construction of power politics” e, a partir deste, o construtivismo 12 conferem alguma unidade ao construtivismo, entre os quais: i) a interpretação do mundo como uma construção social (toda realidade é construída socialmente); ii) não há antecedência ontológica aos agentes e à estrutura (trata-se de uma relação de co-constituição); iii) ideias e valores desempenham uma função importante na produção do conhecimento, (os processos de comunicação e as normas são condicionantes da relação sujeito-objeto). É justamente sobre este último que repousam as críticas mais contundentes apresentadas pelo construtivismo. Este reposicionamento do construtivismo como “meio termo” permite avançar sobre o papel da identidade como elemento constitutivo dos interesses e ações dos atores, bem como destaca a importância da percepção na interpretação dos fatos sociais. Neste sentido, a agenda de pesquisa construtivista introduziu algumas importantes problematizações em Relações Internacionais, quais sejam: i) noção de soberania, a qual deixa de ser um dado imanente, tratando-se de uma cultura/identidade dos atores políticos; ii) interesse nacional, que passa a ser interpretado como uma representação de uma determinada correlação de forças domésticas e, também, como um instrumento retórico que apaga a pluralidade e as contradições dos atores e discursos que compõem a formulação de política externa de um país; iii) as políticas e comportamentos em matéria de segurança e defesa, as quais não derivam exclusivamente de um impulso de sobrevivência inerente às unidades decisórias, mas são em parte reflexos da identidade ou percepção que os atores têm sobre a realidade. Para Goldstein e Keohane (1993), o papel das ideias na formulação da política externa se expressa pelos tomadores de decisão. Neste sentido, as ideias (crenças e visões de mundo) figuram como condicionantes importantes no entendimento de determinado posicionamento no tocante à política externa. Segundo Wendt (1999; p. 7), a definição das identidades e dos significados atribuídos pelos atores aos fatos sociais precede as ações e a consecução dos objetivos em política internacional. Logo, a construção da identidade é anterior à formação do interesse nacional, essa compreende um conjunto de valores e se subdivide em duas vertentes: a wendtiana, que busca estabelecer uma conexão entre o racionalismo e os reflexivistas, e a corrente construtivista crítica, da qual fazem parte Nicholas Onuf e Friedrich Kratochwil. 13 padrões de cultura, modos de viver e trabalhar que se criam na trama das relações sociais. Tal perspectiva permite a formação de uma abertura teórico- metodológica que afirma a relevância das ideias e valores na interpretação do comportamento político-estratégico e, ao mesmo tempo, não ignora as demais condicionantes e forças materiais que integram as análises de política externa em Relações Internacionais. Neste trabalho, o impacto das transformações em curso – econômicas, políticas, científicas e culturais – é objeto de discussão no que tange ao direcionamento da política externa no período entre o advento da República (1889) e o fim da gestão do Barão do Rio Branco em (1912). Pretende-se, portanto, demonstrar a evolução da agenda de política externa em alinhamento a uma vertente de atuação internacional do país, qual seja: a modernização e a formação da identidade internacional brasileira. Para tanto serão examinados com especial atenção os seguintes fatos históricos e seus desdobramentos em matéria de modernização do país: os principais aspectos das relações econômicas internacionais do Brasil e o conjunto de valores relacionados à atmosfera cultural do período: civilização, progresso e cosmopolitismo. Cumpre ressaltar, ainda, que repousam sobre este período de transformações valores e diretrizes de política externa que passaram a integrar o rol dos princípios do comportamento internacional do país, tais como: solução pacífica de controvérsias, autodeterminação, não- intervenção e juridicismo (CERVO, 2008, p.27). Cabe destacar que não é parte do escopo da pesquisa discutir o conjunto dos fatos históricos, a fim de reconstruir as linhas de causalidades e cadeias de acontecimentos. Trata-se antes de uma pesquisa cujo foco de análise se propõe a debater os elementos de modernização nas relações exteriores do Brasil durante as primeiras décadas republicanas, tendo como marco referencial dois diferentes polos: Estados Unidos e Europa. Para tanto, serão examinados como comércio, finanças, progresso e cultura estiveram associados à reflexão acerca de modelos civilizatórios presentes em matéria de política externa brasileira e, no limite, sobre a própria formação da identidade internacional do país. 14 Ante o exposto, o trabalho estará dividido em quatro capítulos. O primeiro capítulo apresenta as principais linhas da conjuntura internacional do período, tendo em vista a revolução industrial e as mudanças decorrentes da ação internacional das grandes potências com as quais o Brasil travou relações no período. Neste sentido, busca-se apresentar o ambiente internacional ao qual a ação de política externa do Brasil esteve integrada, sobretudo no que diz respeito às transformações em curso associadas ao dinamismo do comércio e dos fluxos financeiros, bem como da expansão imperialista da Grã-Bretanha, Alemanha, França e Estados Unidos. O segundo capítulo tem por objetivo delimitar a discussão acerca da questão nacional brasileira em relações exteriores durante as primeiras décadas republicanas, bem como apresentar os principais elementos e processos históricos associados a este debate. Trata-se de caracterizar os imperativos de modernização em nossa formação político-social, com ênfase atribuída à relação entre política externa brasileira e modernização no que tange à inserção internacional do país. O terceiro capítulo, por sua vez, tratará dos principais aspectos do contexto histórico presentes na agenda de política externa, desde a Proclamação da República até os episódios que antecederam a ascensão de Rio Branco ao posto de Ministro das Relações Exteriores em 1902. Serão objeto de atenção os grandes eixos de inserção internacional no período, os fatos marcantes da economia brasileira, assim como o novo papel do sistema interamericano para modernização da agenda de relações exteriores do Brasil. Por fim, no quarto capítulo serão objeto de análise diferentes interfaces da agenda de modernização sobre a organização e formulação da política exterior brasileira durante a aurora do século XX. Trata-se de um exame do quadro no qual a atividade diplomática ao longo da gestão do Barão do Rio Branco se desenvolveu, atribuindo-se destaque maior à formação da identidade brasileira sob os auspícios de valores internacionais vigentes no período: civilização, ciência e progresso, bem como o alinhamento ou o ajuste de projetos aos padrões e ritmos de desenvolvimento da economia internacional. Desta forma, o presente trabalho pretende contribuir para a literatura que trata de um tema recorrente acerca das relações internacionais do país, a 15 saber, política externa como vetor de modernização. Trata-se de investigar o papel do setor externo do país como agente de modernização no início da República, a fim de compreender como a ação diplomática contribuiu para a caracterização da própria identidade internacional do Brasil e para a formação do legado da política externa brasileira em matéria de posicionamento do país face às questões acerca de sua inserção internacional. 16 2 Contexto Internacional A partir da década de 1870, uma nova época emergia nas relações internacionais, cujo resultado desencadeou processos irreversíveis sobre a economia e a política mundiais no período (BERSTEIN, 2007, p.72). A consolidação da segunda revolução industrial, bem como a redistribuição progressiva de poder entre as grandes potências6 europeias face à fundação do Império Alemão e da Itália, constituiu um novo cenário que transformou radicalmente o sistema de equilíbrio em vigor desde 1815.7 Os efeitos decorrentes do processo de modernização e do progresso industrial alcançaram igualmente dois outros países que ascenderam como potências mundiais no período: Estados Unidos e Japão (BERSTEIN, 2007, p. 28). De fato, a intensificação dos intercâmbios comerciais e financeiros promoveu a integração cada vez maior da economia mundial, tornando mais complexas as diretrizes de política externa dos Estados europeus, os quais, após um longo período de estabilidade diplomática, enfrentariam a constituição de um novo equilíbrio de poder mundial. Para a política externa do Brasil, a supremacia europeia, particularmente britânica, inconteste ao longo de todo Império, desempenhava um papel fundamental sobre as grandes linhas de sua inserção internacional. Tal quadro, no entanto, sobretudo após o advento da República em 1889, foi objeto de 6 As possibilidades de discussão sobre grandes potências e capacidade de direção política do(s) sistema(s) internacional são aspectos de um debate tradicional em Relações Internacionais, sobretudo quando examinados à luz do conceito de hegemonia, apresentado pelo filósofo italiano Antonio Gramsci (1891-1937), ainda que aplicado em diferentes áreas do conhecimento, por diferentes autores e linhas de interpretação. De um modo geral, a perspectiva geopolítica de sua análise destaca uma hierarquia entre os Estados pautada em elementos materiais, a saber: território, força militar e potencial econômico. Importa saber que, para este autor, tais componentes conferem a grande potência capacidade de imprimir a sua atividade política uma direção autônoma, garantindo independência e altivez a sua diplomacia. A grande potência, no entanto, acrescenta Gramsci, prescinde de um sistema de alianças, onde possa exercer sua capacidade de liderança de modo a preservar a correlação de forças favorável a seus interesses e de seus aliados, em tempos de guerra e paz. 7 O Congresso de Viena (1814-1815) inaugurou um período de equilíbrio de poder acordado entre as potências europeias que combateram e derrotaram as tropas francesas sob liderança de Napoleão Bonaparte. O princípio da legitimidade foi uma das bases do projeto europeu de reorganização das fronteiras nacionais e da correlação de forças entre os Estados. 17 transformação com o incremento das relações Brasil-Estados Unidos (BURNS, 2003; BUENO, 1995; PEREIRA, 2006), bem como pelo fim da predominância britânica face à crescente e cada vez mais intensa concorrência de outras nações (GRAHAM, 1973, p. 309). Diante da ação internacional de Grã-Bretanha, França, Alemanha e Estados Unidos – ações de cunho imperialista, muitas vezes –, o Brasil perseguiu seus objetivos internacionais e estruturou sua agenda de relações exteriores. Entre os polos de poder tradicionais e os novos polos em ascensão no contexto internacional, a política externa da jovem república esteve integrada ao avanço do processo geral de modernização desencadeado pela segunda revolução industrial. Concomitantemente, a transformação pela qual passou o Brasil foi resultado da adoção de ideias e procedimentos estrangeiros o que não impediu o desenvolvimento de uma consciência nacionalista, resultado da conjugação de forças externas e internas, que contribuíram para que o país fosse lançado numa trajetória modernizadora (GRAHAM, 1973, p. 333). Neste sentido, a agenda de política externa correspondeu ao entrelaçamento do Brasil às transformações em curso no mundo, cujo dinamismo do comércio internacional, dos fluxos financeiros e da imigração impulsionou mudanças internas que, por fim, tornaram possíveis no início do século XX a formação de um novo paradigma de política externa. Neste capítulo, apresentam-se as principais linhas comerciais e financeiras que caracterizam o processo de modernização e as transformações da ação internacional das grandes potências com as quais o Brasil travou relações no período. Para tanto, a primeira seção trata do mundo europeu, notadamente Grã-Bretanha, Alemanha e França. A segunda seção dedica-se ao exame da ascensão e participação dos Estados Unidos no cenário internacional do período. A terceira seção apresenta os efeitos das transformações em curso sobre a inserção internacional do Brasil no contexto republicano. 2.1 O Mundo Europeu 18 Após 1871, o período de desenvolvimento e avanço da segunda revolução industrial rendeu ao sistema europeu de Estados a consolidação do ciclo de formação nacional que resultou no aumento das rivalidades econômicas internacionais (BURNS, 1999, p. 611). A este propósito destaca-se a ascensão do Império Alemão ao rol das grandes potências europeias do período, numa disputa imperialista por territórios e áreas de influência na África e na Ásia. Naquele momento, as cinco grandes potências europeias eram Alemanha, França, Grã-Bretanha, Rússia e Áustria-Hungria. As mudanças econômicas lastreadas no progresso da industrialização resultaram em transformações políticas, sociais e culturais, cujo exame é revelador sobre a dinâmica da ação internacional de Grã-Bretanha, França e Alemanha, seja no contexto continental da Europa, seja no aspecto imperialista sobre as outras partes do mundo. Para estes países, a palavra de ordem era expansão e consolidação dos impérios coloniais (BURNS, 1999, p. 614). A partir do avanço técnico e científico proporcionado pelas atividades industriais, intercâmbio comercial e aporte de capitais, a concorrência e a rivalidade entre Grã-Bretanha, Alemanha e França estendiam-se à maior parte do mundo. No final do século XIX, o imperialismo econômico, político e militar acirrou as rivalidades e a composição de alianças políticas internacionais sobre as quais se sustentou a paz precariamente ao longo das duas décadas que precederam a eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914 (BERNSTEIN, 2007, p. 73). O equilíbrio pluripolar do sistema europeu, fundado em 1815 a partir dos arranjos diplomáticos do Congresso de Viena, serviu como moldura para a expansão da economia industrial e para a consolidação de um mercado mundial (CERVO, 2008, p. 49). No centro deste sistema encontrava-se a Grã- Bretanha, maior potência econômica e militar do período, cuja hegemonia e instauração da pax britannica foi diretamente beneficiada pela arquitetura diplomática que garantiu estabilidade até a última década do século XIX. Grã-Bretanha No início do século XX, a influência e a preponderância da Grã-Bretanha passaram a enfrentar os reveses e desafios postos por Alemanha e Estados 19 Unidos no que diz respeito à sua hegemonia e liderança na dianteira industrial, domínio comercial e financeiro (GRAHAM, 1973, p. 329). Conquanto beneficiado pela notável estabilidade monetária e comercial que renderam a Londres o status de praça financeira mundial e banqueiros do globo, este país experimentava os anos derradeiros da pax britannica.8 De meados do século XIX ao início da Primeira Guerra Mundial, a economia do mundo tornou-se mais pluralista, isto é, a hegemonia britânica sobre o mercado mundial recuou. O que desmontou o domínio britânico do mercado foi, sobretudo, o crescimento da Alemanha e os processos de industrialização na Rússia e em alguns pequenos Estados europeus. No plano econômico mundial, isso ocorreu em virtude da transformação dos Estados Unidos. A participação britânica no comércio mundial caiu de 28,4% para 17,5%, entre 1875 e 1913. A sua parcela na produção mundial de produtos industrializados reduziu-se aproximadamente de 33% em 1870 para 14% em 1913. No período ora estudado, a Grã-Bretanha já se transformava de “oficina do mundo” em “banco do mundo” (DOPCKE, 2008, p. 86). O mercado de capitais londrino e os investimentos no exterior tornaram- se cada vez mais importantes para definir a preponderância financeira e comercial dos ingleses sobre áreas como a América do Sul e China e, no limite, na economia mundial (SINGER, 1997, p. 372). Os investimentos de capitais nos países novos promoviam pressões financeiras, interferindo muitas vezes sobre a linha de política externa de determinados países sul-americanos (BERNSTEIN, 2007, p. 63). Para o Brasil, somavam-se a este quadro os fortes vínculos herdados do período colonial português, bem como os laços institucionais entre a monarquia brasileira e a coroa britânica ao longo do Império. França Na prática, com um império colonial que se estendia por quatro continentes, os interesses políticos e econômicos franceses foram exercidos por políticas muito particulares. A organização do império colonial admitiu, por 8 Segundo Graham (1973, p.330), embora o total do capital britânico já empregado no Brasil fosse ainda ligeiramente superior ao americano até o ano de 1930, este ganhava terreno rapidamente e logo sobrepujaria a centenária vantagem inicial gozada pelos ingleses. 20 exemplo: protetorados (Marrocos, Tunísia), colônias (Guiana, Cochinchina) e departamentos (Argélia) (BERNSTEIN, 2007, p. 56). No que diz respeito à presença da França na América Latina, tratava-se de uma posição secundária, quando comparada à força dos capitais britânicos, bem como ao crescimento da participação dos Estados Unidos e Alemanha. Se parte das explicações do imperialismo estiveram fundamentadas sobre argumentos econômicos, especialmente associados à necessidade que tinham os países industrializados da Europa Ocidental em investir capitais excedentes e ampliar a busca por mercados e garantir o fornecimento de matérias-primas, para a França, este fator, embora importante, assumiu peso diferente. O império colonial francês, até 1914, absorveu não mais de 13% das exportações de produtos franceses. Além disso, mais da metade desse percentual destinava-se à Argélia, uma colônia de imigrantes conquistada em 1830, isto é, antes da fase imperialista, Em 1905, aa África Subsaárica forneceu 0,8% das importações francesas e recebeu 0,5% das exportações. A África ocidental francesa, vale dizer, uma das principais regiões conquistadas pela França no final do século XIX, forneceu, por volta de 1910, somente 0,07% de todas as importações francesas (DOPCKE, 2008, p. 87). Os capitalistas franceses concentravam a maior parte de seus investimentos externos no Oriente Médio, Rússia e África, enquanto as aplicações britânicas somente na América correspondiam a 41% e no império chegou a 47% do total deste país. França e Alemanha, que dispunham de menos capital para investir, optaram em concentrá-lo em atividades não imperialistas. No caso da França, o investimento em colônias representava um quinto do capital disponível, o aporte de capitais na Rússia (tendo em vista estabilizar este aliado contra os alemães) era superior ao capital aplicado em todas as suas colônias (BURNS, 1999, p.616). Em meio a fatores de ordem geopolítica (sistema de alianças internacionais), humanitária e cultural, associados ao fator político-econômico, a França buscou reforçar sua presença internacional. Tal projeção internacional, no entanto, sofreria grave inflexão a partir da ascensão da Prússia e, mais tarde, da formação do Império Alemão calcados na afirmação da força e vitalidade do nacionalismo alemão que repercutiu tanto sobre a França, quanto junto às demais potências europeias no período. 21 Alemanha Como um dos principais fatores de transformação da política internacional do período, a Unificação Alemã de 1871 promoveu os primeiros sinais de erosão dos pilares de equilíbrio de poder entre as potências europeias desde o Congresso de Viena (1815). Sob a liderança da Prússia, a formação do Império Alemão modificou profundamente o curso das rivalidades e concorrência internacionais no período (BURNS, 1999, p. 612). No centro do continente europeu, o crescimento da influência da Alemanha, associado a fortes índices de aumento da produção industrial metalúrgica e à formação de um exército moderno, anunciavam novo foco de instabilidade que rapidamente corroeria a estabilidade europeia. A produção de hulha, ferro, aço, produtos químicos e material elétrico transformava a Alemanha em uma das primeiras potências industriais do mundo. O comércio exterior no período de 1890 a 1900 teve um aumento de mais de 3 mil marcos. A tonelagem da Marinha mercante foi triplicada. O almirante von Tirpitz, depois de 1898, levou a Armada da Alemanha a uma posição mundial só superada pela britânica. A partir de 1898, os alemães estavam no firme propósito de erigir seu país em grande potência naval, inclusive em razão da necessidade de expansão comercial, pois o crescimento da produção levava à busca de matérias-primas e de novos mercados. Fatores econômicos, portanto, ao lado de geopolíticos e do sentimento nacional, informavam a agressiva política externa alemã (BUENO, 2003, p. 34). A escalada vertiginosa da Alemanha unificada como potência econômica líder na Europa, a relativa estagnação da Grã-Bretanha e o enfraquecimento da França foram em grande parte responsáveis pelo abalo do equilíbrio europeu. A Alemanha passou a dominar o mercado, especialmente nas áreas inovadoras da segunda revolução industrial: aço, produtos químicos, e construção de máquinas (BERSTEIN, 2007; BURNS, 1999). A este propósito, os números do comércio exterior atestam a força da economia da Alemanha. A participação alemã no comércio mundial cresceu de 11,8% em 1875, para 12,5% em 1913; no mesmo período, a da França baixou 22 de 12,7% para 7,6% e a da Grã-Bretanha passou de 28% para 17,5% . No que tange à parcela alemã nos investimentos estrangeiros mundiais, houve uma elevação de 5% para 13%, no mesmo período, enquanto a presença de investimentos estrangeiros da França recuou de 33% para 20% (DOPCKE, 2008, p. 87). Neste sentido, a Unificação Alemã desferiu um golpe mortal no equilíbrio de poder europeu. Não obstante a habilidade diplomática de Bismarck9, a partir de 1891, avolumavam-se as tensões com a França e a Rússia. A “agressiva política externa alemã”, desenvolvida sob os auspícios de Guilherme II, precipitou o surgimento de uma coalizão anti-alemã. Pouco depois da aposentadoria do antigo chanceler, franceses e russos concluíram um pacto que prefigurava o sistema de alianças da Primeira Guerra Mundial. Ao quadro geral do comércio mundial e das grandes potências internacionais do período, somavam-se, no ocidente, os Estados Unidos, cuja ascensão promoveu sensível alteração nas relações internacionais desde então, com impactos e efeitos importantes sobre as relações exteriores do Brasil. 2.2 Estados Unidos Se a chave para compreensão da política internacional das décadas que antecedem a Primeira Guerra Mundial está na diplomacia europeia a partir de 1870, as transformações da ordem mundial que marcaram profundamente o século XX, bem como o próprio paradigma de política externa brasileira, passariam a corresponder à presença e à ação internacional dos Estados Unidos como potência mundial. Ao contrário da longa tradição imperialista e atividades coloniais dos Estados europeus, o imperialismo dos Estados Unidos do fim do século XIX foi um fenômeno novo. Como explica Dopcke (2008, p. 105), apesar da influência 9 As relações dos Estados europeus, entre 1871 e 1890, foram marcadas pelas concepções políticas de segurança do chanceler alemão Otto von Bismarck. Após vencer a França em 1871, a Alemanha exerceu sua influência a fim de garantir uma ordem internacional favorável aos interesses do Império Alemão. Para tanto, a política exterior de Bismarck tinha entre seus objetivos: isolamento diplomático da França; preservar o equilíbrio de poderes entre as principais potências europeias; e manter o status quo territorial europeu. 23 financeira e informal na América Latina, os Estados Unidos eram decididamente anti-imperialistas, com as suas origens na luta anticolonial contra a Grã-Bretanha. No entanto, consolidado um longo período de expansionismo territorial, justificado com base no ideário denominado Destino Manifesto10, bem como a expensas do México e do território das nações indígenas e via negociações diplomáticas com Rússia, França, Grã-Bretanha e no primeiro momento Espanha, os Estados Unidos consolidaram suas fronteiras (MAGNOLI, 2008, p. 71). Uma vez garantida a base territorial, a concepção expansionista contou com importantes marcos de política externa, cujos desdobramentos se fizeram sentir durante a fase de expansionismo oceânico: Doutrina Monroe e Corolário Roosevelt. A fidelidade à doutrina de Monroe (1823) faz com que ele [Estados Unidos] se volte primeiro para a América Latina e as zonas marítimas do “hemisfério ocidental”: os Estados Unidos constroem, assim, um império no Caribe e no Oceano Pacífico. À velha doutrina “a América para os americanos” presidentes como Taft ou Theodore Roosevelt acrescentam um complemento imperialista: cabe aos Estados Unidos garantir a ordem em todo o continente americano. É a política do big stick (grande porrete), que se tornou possível graças ao crescente dinamismo da marinha de guerra dos Estados Unidos entre 1890 e 1911 (BERSTEIN, 2007, p.68) Tendo como ponto de partida o Caribe, os Estados Unidos anexaram inicialmente as ilhas do Havaí, em seguida entraram em guerra contra a Espanha (1898), libertando Cuba, enquanto Porto Rico, Filipinas e Guam tornavam-se suas colônias. Um ano depois, anexaram a ilha de Samoa (MAGNOLI, 2008; BUENO, 2003). Ademais, a partir de 1900, o imperialismo americano exerceria sua influência e passava a manter sua posição hegemônica no continente americano e domínios no oceano Atlântico e Pacífico via intervenções militares e presença comercial, econômica e financeira (DOPCKE, 2008, p.106). 10 Destino Manifesto foi o conjunto de crenças nacionalistas e expansionistas embevecidas pela religião e pela ética protestante, serviu de princípio legitimador para a ocupação e anexação de territórios do Oeste dos Estados Unidos durante o século XIX. A referência é RAMOS, André L. A., MIRANDA, Augusto R. A. “Religião Civil, Destino Manifesto e Política Expansionista Estadunidense”. Ameríndia, vol. 4, número 2/2007. 24 Segundo Bernstein (2007, p.69), entre 1897 e 1914, os ativos americanos são multiplicados por sete nas Antilhas, por quatro no México e por dez na América do Sul. Na China, eles ampliam seus investimentos e sustentam a nova República contra o expansionismo japonês.11 Na América do Sul, estavam em concorrência direta com a hegemonia britânica. A política exterior dos Estados Unidos, portanto, iniciava uma fase de concorrência internacional caracterizada pelo intuito de o país ingressar no rol das grandes potências. Para tanto, buscou afirmar sua área de influência sobre o continente americano face à ameaça imperialista europeia contra os interesses norte-americanos. 2.3 O Brasil no Final do Século XIX No último quarto do século XIX, o efeito das transformações do sistema internacional europeu e americano sobre o Brasil e, particularmente, sobre sua relação com o espaço econômico de outras sociedades, pode ser considerado significativo para a inserção internacional do país na Primeira República. O crescimento da economia brasileira, notadamente a integração do setor externo nacional na dinâmica da economia internacional, ocorreu, no entanto, duas décadas mais tarde, após o início das rivalidades imperialistas, em meados de 1880/90. Os principais produtos responsáveis pelo aumento do comércio externo do Brasil foram a borracha e o café (SINGER, 1997, p. 350). Por sua vez, chamam atenção para o período, além da participação brasileira no comércio internacional – crescente, mas modesta: inferior a 1% em 1913 –, os números referentes ao investimento estrangeiro. Segundo Gustavo Franco, O valor do estoque de capital estrangeiro no Brasil em 1913, incluindo-se aí os investimentos ingleses, franceses, alemães e norte-americanos, diretos e de carteira, atingia a cifra de 514 milhões de libras, o que representava cerca de 30% do total para América Latina e 5,4% do total mundial. É importante 11 Desde a Revolução Meiji, o Japão experimentou um processo de modernização e igualmente entrou na era do imperialismo. Desprovido de matérias-primas e com uma população numerosa, a aliança entre as castas tradicionais, o exército e o mundo dos negócios permitiu o início do expansionismo territorial japonês. Em 1894, o Japão ocupa o sul da Manchúria e toma posse de Formosa derrotando a China. Em 1904, o expansionismo russo sobre a mesma região é contido pela ação militar da marinha japonesa. Por fim, em 1910, o Japão anexa a Coreia. 25 notar que o grosso desses investimentos teriam lugar durante o período 1902-1913: o valor da dívida externa federal, por exemplo, cresceria de 30,9 milhões de libras em 1890 para 44,2 milhões de libras em 1900, mas em 1913 atingiria a cifra de 144,3 milhões de libras (FRANCO, 1992, p. 12). No contexto brasileiro, o envolvimento cada vez maior da dinâmica da economia agroexportadora com os mercados financeiros internacionais expõe a necessidade crescente do financiamento para compensação da instabilidade da receita comercial. Ademais, a este quadro deverão ser somados o significado e o impacto da abolição da escravidão e do advento da República sobre as transformações da economia e política do período. Para Singer (1997, p. 352), os acontecimentos de 1888/1889 alçaram o Brasil a uma posição de maior destaque na divisão internacional do trabalho e no caminho dos fluxos de capital e mão-de-obra internacionais. Tal fato gerou efeitos sobre a agenda de política externa e sobre a própria organização e funcionamento da pasta de relações exteriores brasileira face às mudanças e condições históricas decorrentes da dinâmica da economia mundial criada pela revolução industrial. Ademais, a nova conjuntura internacional, que emergiu junto à expansão imperialista, atingiu o Brasil já no final do século XIX, aprofundando questões que apontavam em direção à consolidação do espaço nacional e ao peso dos compromissos financeiros para a estabilização político-institucional e econômica interna, bem como dos anseios de desenvolvimento e progresso do Brasil para formação de sua identidade internacional preconizada pela modernidade e racionalidade (SCHWARCZ, 2012, p. 35). Os grandes temas de política externa brasileira nas primeiras décadas republicanas, relacionados à soberania territorial e economia, estiveram essencialmente integrados ao conjunto de processos que foram desencadeados pela revolução industrial e recomposição de forças das grandes potências internacionais do período entre a década de 1870 e o início da Primeira Guerra Mundial, em 1914 (DORATIOTO, 2012, p. 134). O governo brasileiro esteve envolvido em diferentes episódios diplomáticos associados às grandes potências do período, entre eles: a ocupação britânica da Ilha de Trindade (1895), a questão do Amapá sobre os limites da Guiana Francesa (1897), a viagem para Iquitos da canhoneira dos 26 Estados Unidos Wilmington (1899) sem licença do Brasil, a questão do Acre (1903) envolvendo consórcio anglo-americano com sede em Nova Iorque, a questão dos limites territoriais da Guiana Inglesa (1904), o Incidente do Panther (1905) sobre violação da soberania brasileira pelos oficiais do navio da Alemanha em decorrência da busca por desertor alemão em Santa Catarina (GARCIA, 2005, pp. 108-116). As relações exteriores brasileiras, no quadro das condições históricas surgidas nesta conjuntura internacional e nacional, dão conta de aspectos de modernização cujo reflexo e concepções recaíram igualmente sobre a ação de política externa no início da Primeira República. Em razão da força deste debate em finais do século XIX – resumida na “questão nacional” (ou formação da “identidade internacional do Brasil”) – parece oportuno, portanto, revisitar a agenda de política externa do período a partir desta perspectiva, qual seja, a modernização. 27 3 A Questão Nacional e as Relações Exteriores do Brasil Existe vasta bibliografia acerca da questão nacional no Brasil.12 Em geral, os autores concordam que o processo de formação da sociedade nacional está intimamente relacionado a variáveis políticas, econômicas e culturais de ordem doméstica, bem como a fatores externos decorrentes do enquadramento brasileiro no sistema internacional. A este propósito, chama atenção o quarto de século compreendido entre o advento da República (1889) e o início da Primeira Guerra Mundial (1914). Face a uma época caracterizada, tanto no plano internacional quanto no plano nacional, por mudanças de ordem política, econômica, social e cultural, a inserção internacional do Brasil esteve associada aos efeitos desencadeados pelo avanço da produção industrial do período, pelo novo equilíbrio de poder entre as grandes potências europeias e pela emergência dos Estados Unidos como potência internacional. Tais fatos promoveram uma readequação da política externa brasileira, bem como da própria identidade internacional do país. Mediados pelas categorias analíticas de tradição/modernidade, particular/universal ou nacional/estrangeiro, os dilemas de desenvolvimento de um país periférico no quadro das relações internacionais são objeto de debate por gerações nos segmentos político e acadêmico brasileiros (IANNI, 2004, p. 29). Ao mesmo tempo, em matéria de política externa, discutir a questão nacional, qual seja, a agenda de desenvolvimento do país é contribuir para um tipo de reflexão que põe em evidência elementos pouco abordados em análises de Relações Internacionais no Brasil, entre os quais: a ideia de identidade nacional (LAFER, 2002, p. 10). No Brasil, este tradicional campo de discussão das Ciências Sociais caracteriza-se não só por destacar os imperativos de modernização em nossa 12 Ver, por exemplo: Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil (2006); Caio Prado Júnior, Evolução Política do Brasil (2012); Gilberto Freyre, Casa-grande & Senzala (2006); Raymundo Faoro, Os Donos do Poder (2001). 28 formação político-social, como também pela importância da dimensão internacional neste processo (LAFER, 2002, p. 11). No entanto, pouca ênfase tem sido atribuída à relação entre política externa brasileira e modernização no que tange a inserção internacional do país.13 O propósito deste capítulo é delimitar a discussão acerca da questão nacional brasileira em relações exteriores durante as primeiras décadas republicanas, bem como apresentar os principais elementos e processos históricos associados a este debate. Para tanto, a primeira seção apresenta um panorama de importantes fatos históricos sobre os quais se organizaram a vida política, econômica e social do país a partir da segunda metade do século XIX até a eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914. A segunda seção é dedicada ao debate sobre a questão nacional na história do Brasil. A terceira mostra como os temas de política externa se associam a esta dimensão de modernização. 3.1 Formação Nacional e Inserção Internacional Se entre 1822 e 1844, a agenda de Estado tinha a seu cargo a legitimação e garantia do Estado monárquico, é possível identificar nas décadas seguintes um momento de inflexão no quadro de desenvolvimento do país. A partir da segunda metade do século dezenove, o desenvolvimento interno impulsionado pela expansão da economia cafeeira condicionou e tornou possível uma substituição gradual do antigo modelo de produção, caracterizado pelo regime servil e mão-de-obra escrava, pela introdução do trabalho livre (COSTA, 2007, p. 253). As exportações de café proviram o combustível para o aceleramento constante que impulsionou as mudanças sociais e econômicas no Brasil do período em tela (GRAHAM,1973, p. 59). Diante de um novo dinamismo, uma fase de intensa modernização e ampla difusão de novas 13 Em virtude do centenário da posse do Barão do Rio Branco como Ministro de Estado das Relações Exteriores, a Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG) e o Instituto Rio Branco (IRBr) organizaram o seminário “Rio Branco, América do Sul e a Modernização do Brasil”, em 2002, cujos textos apresentados por acadêmicos e especialistas resultaram em publicação sob o mesmo título. 29 técnicas, valores e instituições sociais foi incorporada ao desenvolvimento econômico, cultural e político da sociedade brasileira.14 Se, a caminho da modernização capitalista, o café foi motor propulsor de um conjunto de aprimoramentos, no plano de política externa a Guerra do Paraguai marcaria igualmente os rumos de desenvolvimento do Brasil. Conforme explica Francisco Doratioto (2002): Para o Império do Brasil, a Guerra do Paraguai expôs sua fragilidade militar, em grande parte estrutural, devido ao regime escravocrata. O Império foi capaz, porém de superar essa fragilidade, de mobilizar todos os seus recursos e de atingir o apogeu de seu poder no Prata. Saiu vitorioso militarmente e fortaleceu, nessa região, sua hegemonia, que se iniciou na década de 1850 e se prolongou até 1875. No plano interno, o conflito foi o ponto de inflexão que deu início à marcha descendente da monarquia brasileira (DORATIOTO, 2002, p. 483-484). O desfecho do conflito em 1870 não somente significou o fim das hostilidades e a garantia de um quadro geopolítico favorável aos interesses de Estado brasileiro, mas também teve como consequência maior a afirmação do Exército como instituição com fisionomia e objetivos próprios. Instituição esta que esteve no centro do quadro de crises que surgiram, a partir da década de 1870, entre o governo imperial e o próprio Exército, a Igreja e outros setores da vida nacional (FAUSTO, 2004, p. 216).15 Ademais, segundo Richard Graham, O atraso tecnológico do país, a imensidão das áreas esparsamente habitadas do oeste e os frágeis meios de comunicação, que ligavam estes extremos com os centros do leste mais desenvolvidos e povoados, a forma antiquada de seu sistema de trabalho, a ineficiência de uma burocracia cheia de favoritismos e todos os outros defeitos de uma comunidade 14 Destacam-se, no ano de 1850: a extinção do tráfico de escravo, a promulgação da Lei de Terras e a aprovação do primeiro Código Comercial. 15 O vínculo entre o Império e o Exército manteve-se graças aos militares, cujo símbolo será duque de Caxias, homens dea guerra e políticos, com a carreira dentro do estamento. Quando este padrão desaparecer, o predomínio do elemento popular, conjugado este com o alijamento da força armada da camada dominante, os desajustes virão à tona. O Exército depois de meados do século XIX, eleva o oficial, projeta seu status, mas não o aristocratiza, nem lhe confere ingresso no palco político. A Regência indica a ruptura, em nove anos somente dois senadores vestem farda. Na década de 1840, quatro militares ingressam no Senado, contra três nos últimos 30 anos do Império. [...] A guerra do Paraguai não criou as incompatibilidades, senão que apenas as revelou (FAORO, 2001, p. 537) 30 atrasada eram realçados e inculcados na mente não somente dos jovens oficiais de classe média, mas também na população urbana que sustentava as despesas do financiamento do Exército Brasileiro. A guerra também estimulou as forças com inclinações modernistas. Muitos escravos foram libertados para lutarem na guerra. Partidários da construção de estradas de ferro receberam financiamento para dar andamento a estudos de estradas de importância estratégica. A produção de material de guerra atraiu capitais e estimulou o desenvolvimento fabril. O contato com instituições republicanas em outros países da América incrementou sentimentos antimonárquicos entre muitos jovens brasileiros (GRAHAM, 1973, p. 36). Neste período de crise do Segundo Reinado, o movimento republicano, o abolicionismo e a recepção e influência do positivismo nos meios militares contribuíram para acirrar o flagrante descontentamento entre determinados setores da vida política nacional e o governo imperial (FAUSTO, 2004, p. 232). As bases de sustentação da monarquia estavam em processo de erosão irreversível, a instauração da República era iminente. No final da década de 1880, as campanhas abolicionista e republicana concluíam processos de mudanças que estiveram presentes nos debates da agenda do Estado brasileiro em 1822 (COSTA, 2007, p. 50). A abolição da escravatura (1888) e a Proclamação da República (1889) figuravam como aspectos de um processo de modernização que alinhavam o Brasil ao ritmo da história. O país liberou forças econômicas e políticas interessadas na indústria e comércio; favoreceu a imigração, a europeização. Houve ampla fermentação de ideias e movimentos culturais nos principais núcleos e centros urbanos (IANNI, 2004, p. 21). Para os intelectuais da virada do século, estava em curso um singular processo de desenvolvimento do país. As perspectivas de modernização da República apontavam para uma modificação ou rearranjo dos grupos e diretrizes do poder estatal e da concepção de projeto nacional (COSTA, 2007, p. 453). O liberalismo econômico e a maior abertura intelectual seguiam, no entanto, lado a lado à economia primária exportadora e ao patrimonialismo em assuntos privados e públicos.16 16 A acelerada urbanização das cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, bem como a industrialização incipiente, por exemplo, marcaram a formação e a promoção de novas formas e estilos de vida mais modernos. Na esfera da política, movimentos de trabalhadores, partidos políticos e correntes de opinião pública passavam a integrar as relações entre Estado e Sociedade, ainda que fortemente orientadas pelos interesses 31 As forças de mudança liberadas em 1889 trilhavam um caminho lento, gradual e desigual. As primeiras décadas da Primeira República foram marcadas pelos contrastes multifacetados da realidade brasileira. A formação nacional guardava distorções caracterizadas pelos diferentes estágios de modernização experimentados pelos grupos e setores da vida econômica e política dispersos sobre o território do Brasil.17 Os episódios da Guerra de Canudos (1896) e da Guerra do Contestado (1912) eram interpretados, em parte, como obstáculos ao progresso e à promessa civilizatória do Estado.18 Em matéria de relações exteriores, a República aprofunda tendências e introduz modificações que, por sua vez, recriam a imagem externa do país (DORATIOTO, 2012, p. 133). Tendo em vista a conjuntura internacional do período, notadamente caracterizada pelo acirramento da ação imperialista das potências europeias, bem como pela ascensão dos Estados Unidos como potência internacional, a chancelaria brasileira buscou explorar as possibilidades e potencialidades de desenvolvimento para o Brasil. Os segmentos político e intelectual brasileiros defrontavam-se com novas realidades e buscavam contribuições na cultura europeia, norte- americana e brasileira (IANNI, 2004, p. 25). A industrialização incipiente e o desenvolvimento das maiores cidades criavam outros horizontes para o debate político e cultural, que ganhariam contornos mais nítidos após o processo de desenvolvimento e modernização promovidos a partir da Revolução de 1930. O debate sobre as perspectivas de inserção internacional do país recolocava necessariamente os aspectos de crescimento econômico e modernização na agenda de Estado brasileiro. Em grande parte, as contribuições intelectuais ampliavam a questão nacional, ao discutir os obstáculos de ordem econômica, política e cultural para impulsionar o desenvolvimento do país. econômicos do setor cafeeiro. Consultar Florestan Fernandes, Aspectos de Mudança Social no Brasil (1974). 17 Para Lilian Schwarcz (2012, p. 22), havia algo incômodo e díficil para este novo contexto que preconizava a urbanidade, o progresso e a modernização, estava em curso um processo inédito de acelerada transformação do espaço da cidade e sua eleição como lócus das representações e identidades, a despeito desse processo de modernização não alcançar de modo homogêneo todo o país. 18 Consultar, entre outros, Nísia Trindade Lima, Um Sertão Chamado Brasil (1998). 32 3.2 A Questão Nacional: a ideia de Brasil moderno A história do Brasil – suas origens e desdobramentos – compreende a própria reflexão sobre os modelos de desenvolvimento e as formas de modernização do país. A questão nacional, por sua vez, é reveladora do debate que evidencia as formas de organização e condições de transformação da vida nacional, a partir de análises empenhadas em aprofundar e explicar a ideia de Brasil moderno (SOUZA, 1996, p. 9). Entre o arcaico e o moderno, o nacional e o estrangeiro, o desenvolvimento do país foi objeto de reflexão, sob as mais diferentes perspectivas, por gerações ao longo da história. Estadistas, literatos, intelectuais, religiosos refletiram sobre os dilemas da situação política, econômica e social brasileira. A história do pensamento brasileiro está atravessada pelo fascínio da questão nacional. No passado e no presente, são muitos os que se preocupam em compreender os desafios que compõem e decompõem o Brasil como nação. E essa preocupação se revela particularmente acentuada nas conjunturas assinaladas pela Declaração de Independência em 1822, Abolição da Escravatura e Proclamação da República em 1888-89 e a Revolução de 1930 (IANNI, 2004, p. 24). No século XIX, a reflexão sobre as possibilidades de modernização do país ganhou forma, conteúdo e ação por meio da atividade política e intelectual de figuras como José Bonifácio, Frei Caneca, Mauá, Alves Branco e Tavares Bastos. A participação na vida moderna significava realizar reformas institucionais e sociais insuportáveis para as estruturas herdadas do colonialismo português. Para Octavio Ianni (2004, , p. 24), o regime monárquico e a escravidão eram a expressão do atraso e anacronismo presentes na realidade brasileira que impediam o crescimento econômico, o desenvolvimento industrial e os avanços civilizatórios. Ademais, em 1850, com o fim do tráfico internacional de escravos, e especialmente depois de 1871 com a aprovação da Lei Rio Branco/Ventre Livre, por volta da década de 1880, era óbvio que a abolição estava iminente (COSTA, 2007, p. 364). A perspectiva de abolição da escravidão apontava para novas relações de trabalho e, consequentemente, um novo dinamismo 33 econômico e imigratório. A contínua expansão cafeeira, já então avançando sobre o oeste paulista, demandava uma crescente rede de infraestrutura capaz de assegurar as atividades de cultivo, transporte, comércio e exportação do produto, desencadeando um forte impulso de melhoramentos. Neste período, uma fase de intensa modernização e ampla difusão de técnicas e valores foi incorporada ao crescimento econômico; abria-se caminho para uma nova atmosfera cultural e política da sociedade brasileira (COSTA, 2007, p. 254). Importantes intelectuais do Império revelam em seus escritos o clima intelectual e social predominante, como destaca Ianni, Essa é uma parte importante da história que se revela nos escritos e nas atuações de Tavares Bastos, Sílvio Romero, José Veríssimo, Joaquim Nabuco, Machado de Assis, Raul Pompéia e outros. Dedicaram-se a refletir sobre o que era o século 19 brasileiro, e como ele estava deslocado, atrasado, quando visto em contraponto com os países capitalistas mais desenvolvidos e a partir das potencialidades das forças sociais regionais e nacionais (IANNI, 2004, p. 17). As primeiras décadas republicanas abriram espaço para um novo ambiente cultural. Os intelectuais da virada do século, entre eles: Euclides da Cunha, Machado de Assis e Manoel Bomfim, foram precursores de uma nova abordagem sobre a questão nacional brasileira, revelando horizontes que décadas depois ganhariam um contorno mais nítido. O debate dos intelectuais da época, conforme destaca Flavia Ré (2010, p. 10), voltava-se também para o lugar do Brasil no contexto americano, com especial atenção para diferenças e semelhanças entre a América Hispânica e os Estados Unidos.19 A partir da década de 1930, foram formuladas as principais interpretações do Brasil moderno (CANDIDO, 2006, pp. 9-21). Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil; Caio Prado Júnior, Evolução Política do Brasil; e Gilberto Freyre, Casa-grande e Senzala, representaram as principais matrizes de interpretação do Brasil. Como proposto por Ianni, 19 Em geral, a representação desse distanciamento ou diferença quanto aos países hispânicos foi, de certa forma, incorporada pela sociedade e pelos intelectuais brasileiros. Ao mesmo tempo, o modelo anglo-saxão institucional e civilizacional representado pelos Estados Unidos exerceu maior atratividade entre os intelectuais a partir do advento da República. 34 Essa é a época em que desabrocham algumas das interpretações fundamentais, ou mesmos clássicas, da história da sociedade brasileira. Dizem respeito às sugestões teóricas desenvolvidas pelo pensamento europeu e norte-americano, onde se encontram tanto Simmel e Weber como Boas e Marx, dentre muitos outros. Mas também [os intelectuais brasileiros] estão mais preparados para refletir sobre os dilemas da sociedade. Parecem mais contemporâneos do seu tempo e lugar. Explicam as tradições, as heranças portuguesas, as marcas do escravismo, os obstáculos e as possibilidades de formação do povo, enquanto coletividade de cidadãos (IANNI, 2004, p. 25). A esta tradição intelectual, associada às perspectivas e aos indícios de modernização presentes no processo de desenvolvimento do Brasil, sucede-se toda uma nova geração de escritos alinhados às matrizes do pensamento social brasileiro, discutindo: a formação do povo, os problemas da cultura, o militarismo, a democracia, o capitalismo, o Estado e a nação. Destacam-se, entre outras, as obras de Raymundo Faoro, Antonio Candido, Florestan Fernandes, Celso Furtado, Nelson Werneck Sodré e Hélio Jaguaribe (IANNI, 2004, p. 26). Tomadas em conjunto, as obras explicavam as bases da formação nacional, desvendavam as instituições, atores e valores e, paralelamente, construíam as perspectivas e concepções acerca do projeto nacional. A reconstrução histórica proporcionou uma visão múltipla da nação, discutindo o presente, exorcizando o passado e imaginando o futuro do país. Cada um a seu modo, todos se empenharam em explicar as condições e possibilidades do Brasil moderno (IANNI, 2004, p. 31). Na perspectiva de nossa tradição intelectual, o debate político-cultural e institucional de nossa formação histórica procura, na dimensão internacional, o lugar do Brasil no concerto das nações. Trata-se de um intricado conjunto de elementos que conferem especificidade ao processo de desenvolvimento do país; tema essencial e complexo que posiciona a modernização como valor de fundação da nacionalidade (FELDMAN, 2009, p. 536). Neste sentido, em matéria de política externa, Flavia Ré propõe uma leitura do pan-americanismo a partir das questões de raça e civilização, para alguns intelectuais brasileiros, no contexto da Primeira República. 35 A escolha desses intelectuais por uma maior aproximação com os Estados Unidos, em detrimento de uma aproximação com os demais países americanos, passava também por uma escolha ancorada na questão racial que via na solidariedade e na estreita proximidade com o país do norte do continente a possibilidade de se equiparar com aquela civilização, tendo em vista contribuir para os processos associados de construção do Estado-nação e de modernização do Brasil (RÉ, 2010, p. 13). A ideia de Brasil moderno é reveladora do próprio exercício político- institucional convertido no direcionamento dos projetos de inserção internacional presentes no país. Vista da perspectiva da atividade diplomática, a ação de política externa pode expressar e, não raro, vislumbrar os imperativos de modernização (FELDMAN, 2009, p. 537). No caso do setor externo brasileiro, trata-se de identificar na consecução dos objetivos nacionais o modo pelo qual a atividade de política externa esteve associada ao processo de modernização do Brasil. 3.3 A Questão Nacional e as Relações Exteriores do Brasil Para Feldman (2009, p. 3), o dilema atraso-modernidade constitui linha- forte capaz de oferecer um retrato dos fatores explicativos sobre a história do Brasil associada aos contextos históricos internacionais. Em matéria de atividade diplomática, a questão nacional põe em evidência como um profundo sentido de progresso se estabelece nos projetos e modelos de inserção internacional brasileira que se prolongam e alcançam nosso tempo. No caminho da compreensão das condições de modernização, a consolidação das instituições políticas do Estado e da nação viu-se submetida a controvérsias que modelavam o interesse nacional a partir das relações travadas em matéria de relações exteriores (CERVO, 2008). A política externa configura, no limite, uma política entendida como a serviço do desenvolvimento nacional. A este respeito, é preciso reconhecer que entre 1864 e 1945, as transformações que o Brasil conhece em matéria de relações exteriores deixariam marcas expressivas e igualmente relevantes na conformação do espaço nacional e da promoção do interesse nacional na tradição política do 36 país.20 A rigor, não se pode compreender este intenso processo de inovações institucionais e mecanismos de intervenção do Estado sem discutir o peso do quadro internacional na redefinição do projeto nacional de desenvolvimento. Dentre os poucos trabalhos e análises que abordam o assunto, as contribuições de Lafer (2002), Ricupero (2000) e Feldman (2009) referem-se à construção de uma nação moderna, cuja política externa assumiria o papel de definidora de valores nacionais. Para tanto, a experiência do Brasil como parte integrante do concerto cultural internacional necessariamente vincularia o futuro do país ao progresso civilizatório inspirado nos modelos europeus e norte-americano. O contraponto internacional, portanto, foi convertido em alavanca da construção nacional, logo materializado em estratégias de desenvolvimento e modernização (LAFER, 2002, p. 17). Na ideia de Brasil moderno, Estado e nação compõem uma relação que implica avaliar as diferentes possibilidades de projeto político e projeção do país no cenário internacional. As enormes vulnerabilidades históricas do país em matéria econômica e financeira internacionais são variáveis-chave das fortes restrições ou instabilidades aplicadas ao seu processo de desenvolvimento (FURTADO, 2007, p. 225). Nesta perspectiva, cooperação e conflitos são vistos como impactantes para as pretensões de maior ou menor implementação de uma agenda de Estado comprometida com a estabilidade institucional no plano doméstico. Por outro lado, tais dimensões modelam valores importantes que atravessam a condução histórica do Brasil no que tange aos objetivos de política externa, a saber: soberania e modernização (FELDMAN, 2009). No caso das relações exteriores, pode-se afirmar que a atividade diplomática brasileira oferece um vasto campo de compreensão e interpretação dos elementos de modernização na história do país (CARDIM, ALMINO, 2002; FELDMAN, 2009; RÉ, 2010). Nesse caso, cabe identificar em que medida a modernização esteve presente nas formulações e concepções de política externa. No Brasil oitocentista, onde guerras e conflitos armados produziram estímulos de modernização, o poder de controle sobre o espaço nacional 20 Entre elas, a crescente participação militar nos quadros da direção política do país. 37 esteve sob ameaça em diversos episódios. Já em 1825, ainda como consequência do quadro geopolítico anterior à Independência brasileira, a Guerra da Cisplatina constituía o primeiro indicador das graves fragilidades de ordem política e estratégico-militar que se impunham ao país.21 Em termos de metas nacionais, cumpria ao governo garantir a integridade territorial e a soberania. Para um país de dimensões continentais, a proteção da navegação nacional era fator imprescindível para manter a unidade de suas províncias. Como destaca a análise de Boris Fausto, A guerra foi um desastre militar para os brasileiros, vencidos em Ituzaingó (1827), e uma catástrofe financeira para as duas partes envolvidas. A paz foi alcançada com a mediação da Inglaterra, interessada em restaurar as transações comerciais normais que o conflito aniquilara. O tratado que pôs fim ao conflito garantiu o surgimento do Uruguai como país independente e a livre navegação do Prata e seus afluentes. Este último ponto interessava às potências europeias, e também ao Brasil. No caso brasileiro, às razões econômicas mesclavam-se razões de natureza geopolítica, pois a navegação fluvial era a principal via de acesso à região de Mato Grosso (FAUSTO, 2004, p. 156). Na construção de sua política de limites e garantia de suas posses territoriais, o Império brasileiro deparou-se com questões sensíveis relacionadas a seus dois principais estuários de navegação. Ao sul, o Rio da Prata; ao norte, o Amazonas. A defesa da Amazônia, no entanto, colocou em rota de colisão Brasil e Estados Unidos (CERVO, 2002, p. 102). De fato, ao longo das décadas de 1850 e 1860 a discussão envolvia a abertura do Amazonas à navegação e ao comércio internacional na região norte; enquanto ao sul tratava-se de exercer uma hegemonia sobre o Prata em oposição às ambições geopolíticas de Buenos Aires. Em ambos os casos, a política externa brasileira buscava resistir às pressões externas no terreno político e econômico exercidas, particularmente, por Estados Unidos, Inglaterra e França. O recurso às soluções de força, no entanto, ocorreu em duas 21 Em 1822, o Brasil herdou os problemas gerados com a ocupação da Banda Oriental, por parte da Coroa portuguesa. Em 1825, uma rebelião regional proclamou a separação da Província Cisplatina do Brasil e a sua incorporação às Províncias Unidas do Rio da Prata – futura Argentina, fato que desencadeou o conflito armado entre Brasil e Buenos Aires. 38 ocasiões: a Guerra contra Rosas (1852) e, posteriormente, contra Solano Lopez (GARCIA, 2007, p.73). Amado Cervo realiza a seguinte avaliação do posicionamento brasileiro face às relações externas brasileiras do período no que diz respeito aos objetivos nacionais de controle e soberania territoriais: O período que vai de 1844 a 1876 caracterizou-se por ascensão, apogeu e declínio de uma política brasileira de potência periférica regional, autoformulada, contínua e racional, na medida em que se guiava por objetivos próprios, aos quais subordinavam-se os métodos e os meios. O Prata foi a área em que ocorreu solta a política de potência do Estado-Império brasileiro, ensaiada internacionalmente a partir de 1844, com a resistência interna da Inglaterra e às pretensões norte- americanas no Amazonas, com a elaboração do projeto industrial e a determinação de assegurar o território disponível (CERVO, 2002, p. 111). A década de 1860 deu abrigo a um dos episódios mais significativos da história militar brasileira e sul-americana. A Guerra do Paraguai representou um momento emblemático das questões de soberania e modernização do Estado brasileiro. Conforme descreve Octavio Ianni (2004, p. 16), a guerra do Paraguai foi um choque de amplas proporções para o conjunto do país, revelando na prática o anacronismo de tudo que se sintetizava no escravismo e na monarquia. Todos os setores da vida nacional se revelaram inadequados, bem como os recursos econômicos, as instituições políticas e a capacidade militar. José Veríssimo (apud IANNI, 2004) registraria ainda certos efeitos inesperados da guerra do Paraguai, como o surdo conflito que fora desencadeado entre a tropa e a Monarquia. As referências atribuídas à dimensão daquele conflito, portanto, indicam a emergência de um debate que, naquela época, era sintetizado sob a denominação de progresso. A guerra, enquanto objeto propulsor do Brasil moderno, gestava aspectos de mudança e modernização que atingiriam seu ciclo de maturação em fins do século XIX 39 com o fim do trabalho escravo e a queda da monarquia (GRAHAM, 1973, p. 37).22 A Abolição da Escravidão (1888) e a Proclamação da República (1889) produziram um momento de inflexão da vida nacional. As características e interesses dos grupos organizados ao redor do núcleo de poder político enfrentavam uma realidade de transição. Para além da posição de destaque assumida pelos militares, mudanças de ordem social, econômica e cultural já criavam mais complexidade para o manejo dos impasses abertos pelo processo de modernização em curso no Brasil. Uma vez mais, o desafio de recriar as bases de legitimidade e soberania do regime instaurado seria incorporado à agenda de relações exteriores brasileira. Em matéria de política externa, as primeiras décadas republicanas registram importantes acontecimentos. A Revolta da Armada (1891-1894), ainda que se tratando de insurreição de parte da esquadra brasileira contra o governo Floriano Peixoto, envolveu a presença militar estrangeira para sua resolução (GARCIA, 2007, p. 119). Nos anos seguintes merecem destaque particular a ação diplomática do Brasil e, em especial de Rio Branco, na condução das questões de limites; bem como, em 1906, o programa de rearmamento da Marinha brasileira (BUENO, 2002, p. 196). Ademais, teve início a crescente atuação político-militar e comercial da Alemanha junto ao governo brasileiro.23 A participação brasileira em conferências internacionais ganhava importância nos marcos das estratégias de âmbito regional, hemisférico e mundial do país (FELDMAN, 2009, p. 29). Para o período anterior à eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o Brasil tomou assento na III Conferência Internacional Americana em 1906, com sede no Rio de Janeiro. No ano de 1907, com delegação chefiada por Rui Barbosa, o governo brasileiro participou da Segunda Conferência da Haia, ocasião na qual Rui tanto se opõe à aprovação de uma representação seletiva no Tribunal de Justiça Arbitral, 22 Cabe destaque, no período em tela, a crescente participação da propaganda e penetração do movimento republicano nos círculos de poder brasileiros. Consultar Adriana Marques, Concepções de Defesa Nacional no Brasil: 1950-1996 (2001). 23 A referência é Luiz Felipe de Seixas Corrêa, O Barão do Rio Branco: missão em Berlim – 1901/1902. Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 2009. 40 como defende o princípio da igualdade jurídica entre os Estados (GARCIA, 2007, p.118). Quanto à decisão brasileira de abandonar a neutralidade e declarar guerra ao Império alemão, em outubro de 1917, pesaram a favor da participação no esforço de guerra, para além do intenso debate interno entre germanófilos e pró-aliados, os ataques alemães contra navios mercantes brasileiros (BUENO, 2002, p. 208). A colaboração brasileira foi modesta, abrangendo alguns pilotos, o envio de uma missão médica e a formação de uma Divisão Naval em Operações de Guerra (DNOG), composta por dois cruzadores e contratorpedeiros, a qual, no entanto, atrasada em virtude de uma epidemia de gripe espanhola, entrou em operação um dia antes da assinatura do armistício, em 18 de novembro de 1918, que finalizou a Primeira Guerra Mundial (BUENO, 2002, p. 210). Dentre os principais ativos políticos conquistados pelo Brasil, em razão de seu engajamento no esforço de guerra, estão as propostas de cooperação aérea e naval realizadas pela Itália, a oferta britânica de instalação de arsenais modernos e estaleiros e o crescente intercâmbio militar brasileiro com França e Estados Unidos via missão militar destes países (BUENO, 2002, p. 211). Cabe, ainda, registro particular da participação brasileira na Liga ou Sociedade das Nações. Assegurado o assento brasileiro na Conferência de Paz, bem como na organização da Liga das Nações, o Brasil, na promoção de uma política de prestígio, buscou assegurar um posto permanente no Conselho Executivo da Liga a partir de 1921. A frustração, como destaca Clodoaldo Bueno (2002, p. 226), foi resultado de uma visão equivocada acerca do lugar do Brasil entre as demais potências, a qual não se coadunava com o peso geopolítico do país no concerto internacional. O presidente Artur Bernardes e seu chanceler Félix Pacheco conduziram a questão do assento permanente com os olhos voltados para a opinião interna, vale dizer, para angariar prestígio, conforme bem perceberam os diplomatas estrangeiros. Mas a posição do Brasil no conceito da Liga não era compatível com a sua pretensão de forçar sua entrada no Conselho como membro permanente. Até os governos latino- americanos não concordavam com a reivindicação brasileira e chegaram mesmo a trabalhar contra (BUENO, 2002, p. 227). 41 Por fim, a despeito dos resultados inesperados no que tange ao assento permanente na Liga das Nações, em termos de projeção internacional, a política externa nas duas primeiras décadas republicanas fortaleceu-se e oscilou, no entanto, na obtenção dos ativos políticos esperados. Uma vez mais, foram positivas ao interesse brasileiro as questões remanescentes relativas às fronteiras, aos temas econômicos e comerciais, bem como um alinhamento estratégico aos Estados Unidos sem prejuízo à autonomia decisória em política externa (BUENO, 2002, p. 229). Característica essa que será mais amplamente mobilizada a partir da década de 1930, com Getúlio Vargas. Revisitar, por sua vez, a agenda brasileira de relações exteriores à luz da questão nacional expõe, consequentemente, pontos de vista diferentes, e não raro divergentes, sobre as condições e fatos históricos do processo de modernização do Brasil. Nos capítulos seguintes, serão aprofundados temas em matéria de política externa que desafiaram o Estado brasileiro, demandando, em diferentes ocasiões, respostas, comportamentos e visões sobre o direcionamento político adotado e que expressaram a ideia e projeto de Brasil moderno ao longo das primeiras décadas republicanas. 42 4 A Agenda de Política Externa na Primeira Década Republicana (1889-1899) No início da Primeira República, parte do que se referiu à contextualização do período e à avaliação da política externa foi apresentado da perspectiva de solidariedade hemisférica, com especial aproximação dos Estados Unidos, e a busca pelo distanciamento da herança do Império em matéria de relações exteriores (CERVO, 2008; BUENO, 1995; BURNS, 2003). A este propósito tais autores destacam, no entanto, que o advento da República representou um período de transição das relações exteriores do Brasil que ora provocavam desencontros, ora convergências com o legado de política externa do Império. De fato, a Proclamação da República não representou uma reversão dos processos econômicos que correspondiam às grandes linhas de ação internacional do Brasil. Neste sentido, a agenda de política externa brasileira, e do próprio Estado republicano, constituía-se, do ponto de vista doméstico, pelos interesses da grande propriedade agroexportadora e da consolidação do novo regime; do ponto de vista internacional, pelo efeito das transformações do sistema internacional europeu e americano sobre o Brasil (ALMEIDA, 2012) O presente capítulo tem por objetivo examinar os principais aspectos do contexto histórico presentes na agenda de política externa a partir da Proclamação da República até os episódios que antecederam a ascensão de Rio Branco ao posto de Ministro das Relações Exteriores em 1902. Para tanto serão analisados fatores de ordem política e econômica que mobilizaram a ação do corpo diplomático brasileiro. A primeira seção propõe-se a realizar uma caracterização do período, discutindo os principais eixos de inserção internacional da agenda de política externa brasileira. A segunda seção apresenta um exame das relações econômicas internacionais do Brasil. A terceira seção analisa o novo papel do sistema interamericano e a modernização da agenda de relações exteriores do Brasil. 43 4.1 Brasil Fin de Siècle Segundo Carvalho (2007), tornar o Brasil um interlocutor qualificado e preferencial do mundo civilizado, revestido das credenciais do progresso, não era projeto restrito do Império ou da República, tratava-se, antes, de valores compartilhados por uma classe política e intelectual.24 A partir de diferentes perspectivas políticas, a marcha do progresso tornava-se cada vez mais ascendente sobre a agenda de política externa do país e, portanto, sobre a forma pela qual o projeto de inserção internacional atenderia as transformações ora em curso. Conforme aponta Feldman (2009, p. 2), a enunciação do posicionamento brasileiro em matéria de relações exteriores no período do Segundo Reinado e Primeira República pode ser interpretada como uma concepção de mundo caracterizada pelas antíteses particular/universal e civilização/barbárie. Ao examinar os imperativos de modernização presentes nos debates do Conselho de Estado em diferentes episódios relacionados à agenda de política externa, o autor identificou a compatibilização entre instituições e valores europeus e a sociedade brasileira como argumento legitimador da ação de política externa, tendo em vista integrar o país a um padrão exemplar de civilização e progresso. Para tanto, Feldman analisa os termos das relações bilaterais no âmbito das negociações (i) com os Estados Unidos, entre 1850 e 1866, sobre tratados comerciais e abertura do rio Amazonas à navegação estrangeira; e (ii) com a Grã-Bretanha, sobre a abolição do tráfico de escravos africanos e os direitos civis e criminais dos súditos britânicos no Brasil. Ademais, são objeto de análise os termos multilaterais, no período republicano, da participação brasileira na III Conferência Internacional Americana, em 1906, e na II Conferência da paz, em 1907, ambas voltadas à normatização de práticas e costumes internacionais (FELDMAN, 2009, p. 2). 24 No Brasil, conforme análise de José Murilo de Carvalho (2007, p. 234), a unidade ideológica dos setores dominantes prevaleceu sobre a natureza limitada das divergências intra-elites que eram fontes de conflitos potenciais acomodados em rebeliões locais e na constituição da ideologia dos partidos. A dinâmica da política nacional ilustra a ideia da “dialética da ambiguidade”, onde a elite era simultaneamente instrumento de manutenção e transformação das estruturas sociais que sustentavam o Estado. 44 Nesta linha de argumentação, o dilema atraso-modernidade propõe uma abordagem, em matéria de agenda de política externa, reveladora da busca pela conciliação entre o nacional e o estrangeiro, tendo como marco referencial dois diferentes polos de modernização: o europeu e o americano. Em ambos, podem ser identificadas diretrizes que estiveram presentes na ação de política externa do período, notadamente: cidade, ciência, civilização, cultura, comércio, finanças, imigração, federalismo, progresso, soberania e território (BUENO, 1995; CERVO, 2008; BURNS, 2007, RÉ, 2010).25 Para Raymundo Faoro, diante do quadro político-institucional presente ao final do Império, as reformas ou soluções possíveis estavam relacionadas a descentralização administrativa e a federação política. Os monarquistas e federalistas, Joaquim Nabuco e Rui Barbosa, só por meio da mudança radical viam a salvação do Império. A maioria monarquista, entretanto, acanhadamente sensível aos novos tempos, limitava-se a descentralização, como Ouro Preto, convencida de que um passo a mais sacrificaria o trono. Os republicanos, de outro lado, não percebiam a possibilidade de associar o trono à federação, certos da incompatibilidade entre os dois sistemas, cada um deles voltados para conteúdos antagônicos (FAORO, 2001, p. 525). Por razões bastante diversas – que incluem as ambiguidades de um regime republicano recém instituído e uma realidade pós-escravidão, bem como os condicionamentos do quadro internacional – era promovido um reordenamento da política doméstica e da ação internacional. Como se fizera à época da Independência, era necessário para o Estado obter o reconhecimento formal da República pelos países e, principalmente, assegurar a imagem externa do Brasil a fim de evitar prejuízo político e econômico à agenda de desenvolvimento do país (BUENO, 1995, p.32). Proclamada a República, o processo de consolidação e estabilização do regime exigiu participação ativa do corpo diplomático brasileiro. As incertezas e inovações provocaram diferentes reações, ora favoráveis, ora contrárias à 25 O estudo sobre o processo de modernização pelo qual o Brasil atravessa, no fim do século XIX, e os impactos dessas transformações no arranjo político, social e econômico do Distrito Federal, é discutido por Nicolau Sevcenko em Literatura como missão Missão – tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1989. 45 queda da monarquia no Brasil (BUENO, 1995, p. 33). Nesta direção, o debate intelectual em torno do Pan-americanismo no Brasil e a aproximação com os Estados Unidos foram objeto de reflexão e análise de intelectuais do período como Eduardo Prado, Rui Barbosa, Oliveira Lima e Joaquim Nabuco (PEREIRA, 2006; RÉ, 2010).26 As características e interesses dos grupos organizados ao redor do núcleo de poder político do Governo Provisório (1889-1891), tendo o Marechal Deodoro da Fonseca como chefe de governo, enfrentavam uma difícil transição. Para além da posição de destaque assumida pelos militares, mudanças de ordem social, econômica e cultural criavam mais complexidade para o manejo dos impasses abertos com o novo regime. À frente do Ministério da Fazenda, Rui Barbosa colocou em prática uma política econômica emissionista, tendo em vista favorecer o surgimento de novos empreendimentos, num contexto de expansão do mercado de trabalho e grave penúria de numerário (FRANCO, 1992, p. 15). A especulação financeira desencadeou uma bolha no mercado de capitais brasileiro e, ao mesmo tempo, o lançamento de ações das mais diferentes companhias impulsionou o florescimento de diferentes atividades e setores econômicos. No seio do liberalismo político vibra o liberalismo econômico, com a valorização da livre concorrência, da oferta e da procura, das trocas internacionais sem impedimentos artificiais ou protecionistas (FAORO, 2001, p. 567). Do ponto de vista jurídico, as transformações consolidadas na Constituição sancionada em 1891 sinalizavam o conjunto de diretrizes que passariam a vigorar como resultado da projeção de determinados atores políticos no cenário nacional. A consagração do federalismo, garantindo autonomia e independência aos estados em matéria legislativa e tributária (renda sobre impostos de exportação) e na organização de sua própria força de segurança pública, além da capacidade de contrair empréstimos internacionais, caracterizava a ascendência do setor agroexportador sobre o governo federal (MATTOS, 2012, p. 92). 26 A mais forte reação à presença e à aproximação do Brasil com os Estados Unidos partiu de Eduardo Prado, cuja obra emplemática foi A Ilusão Americana, publicada em dezembro de 1893. 46 Ainda sobre a Carta de 1891, muitos críticos apontavam se tratar de uma importação extravagante. Rui Barbosa esteve entre os apontados como meros importadores de fórmulas vazias de índole francesa, inglesa ou norte- americana. No caso, a redação da Constituição, esteve a cargo de uma comissão de cinco pessoas e submetida a profunda revisão por parte de Rui Barbosa, o texto final, promulgado em 24 de fevereiro de 1891, inspirado no modelo norte-americano, consagraou as instiuições da Federação, dos três poderes e do presidencialismo (FAUSTO, 2008, p. 249). No esforço de modernização, que cobria o Império e despertava o entusiasmo dos construtores da República, procurava-se ajustar o país aos modelos importados, uma preocupação civilizatória, pedagógica, de associar o Brasil às estruturas cultas (FAORO, 2001, p. 534). Em matéria de relações internacionais, os anos iniciais já registravam acontecimentos que maculavam a imagem externa do país. Ainda em dezembro de 1889, a “grande naturalização” dos estrangeiros residentes no Brasil configurou-se como um decreto no mínimo controverso, conferindo ao estrangeiro residente no Brasil, em 15 de novembro de 1889, automaticamente a naturalidade brasileira, a menos que se reportasse de modo contrário às autoridades competentes (BUENO, 1995; DORATIOTO, 2012). Por se tratar de contexto pós-abolição, no qual o volume de imigrantes era expressivo no país, o período foi marcado por uma acentuada política imigratória a fim de fomentar a vinda de europeus para o Brasil. Destacava-se especialmente a vinda de italianos, que se fixaram em zonas de produção de café; era intensa também a chegada de alemães, que se detinham nas áreas mais meridionais do país (PETRONE, 1997). Face aos protestos e às reclamações de alguns países, circular de 23 de maio de 1890, assinada pelo primeiro Ministro das Relações Exteriores da República, Quintino Bocaiúva, dava as seguintes instruções às legações brasileiras: O governo provisório não teve a intenção de impor a nacionalidade brasileira aos estrangeiros a quem se refere o decreto. Entretanto, a alguns governos e, em primeiro lugar ao da república francesa, pareceu que a naturalização era obrigatória [...] O decreto n. 58 A, de 14 de dezembro do ano próximo passado, concebido no espírito de larga hospitalidade, 47 tem por fim abrir a família brasileira a todos os que nela quiserem entrar, sem o menor constrangimento. (CIRCULAR, 2005, p. 20) Desde 1850, o processo de adoção de leis de extinção do tráfico e abolição gradual da escravidão tornou a imigração um tema regular da agenda de Estado e, consequentemente, de política externa. A necessidade de mão- de-obra estrangeira mobilizou os agentes diplomáticos em diferentes países com vistas a promover uma ação assertiva de estímulo de imigração para o Brasil, política que esbarrou nas condições de trabalho penosas e nas frágeis garantias jurídicas de proteção aos bens de estrangeiros residentes no Brasil (PETRONE, 1997, p. 111). Tal tema foi objeto de mensagem aos Presidentes e Governadores dos Estados que abrigavam contingente de imigrantes sobre garantias às pessoas e bens estrangeiros no Brasil. A situação dos estrangeiros no Brasil constitui uma séria preocupação do governo federal. Do concurso destes indivíduos, que de diversos países vêm aqui estabelecer-se em busca de trabalho, depende em grande parte, como sabeis, a prosperidade da república. Já recebemos não pequeno número deles, mas convém atraí-los constantemente para a obra fecunda do povoamento do nosso território e do aumento da produção e da riqueza nacionais. Nenhum meio será mais eficaz para conseguir-se tão vantajoso desiderato do que convencê-los de que se acham completamente amparados nas garantias que as leis brasileiras prometem e asseguram aos seus direitos individuais, sobressaindo entre elas a defesa pronta das suas pessoas e bens. Entretanto, por diferentes vezes, se tem reclamado contra a ineficácia da proteção a eles devida. A União, como representante da soberania nacional perante as demais nações, é responsável em todo o território da república pela falta daquelas garantias, da qual resultam constantemente graves embaraços que, para não perturbarem as relações internacionais, resolvem-se em compensações onerosas para a Fazenda federal. Para obviar todos estes inconvenientes, cujas consequências, não só do ponto de vista moral como do material, escuso apontar-vos, encarregou-me o sr. presidente da República de invocar o vosso auxílio, certo de que seu apelo será patri