Fábio Evangelista da Silva A INTER-RELAÇÃO DE SENSAÇÕES PARA A PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO EM TORNO DA CARTA SOBRE OS CEGOS, DE DENIS DIDEROT Marília 2022 Câmpus de Marília Fábio Evangelista da Silva A INTER-RELAÇÃO DE SENSAÇÕES PARA A PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO EM TORNO DA CARTA SOBRE OS CEGOS, DE DENIS DIDEROT Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Filosofia como parte das exigências para a obtenção do título de Mestre em Filosofia pela Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de Marília. Área de Concentração: Filosofia Orientador (a): Prof.ª Dr.ª Ana Maria Portich Marília 2022 Fábio Evangelista da Silva A INTER-RELAÇÃO DE SENSAÇÕES PARA A PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO EM TORNO DA CARTA SOBRE OS CEGOS, DE DENIS DIDEROT Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Filosofia Área de concentração: Filosofia Linha de pesquisa: Conhecimento, Ética e Política Banca Examinadora Profª. Drª. Ana Maria Portich UNESP – Câmpus de Marília Orientador Prof. Dr. Fernão de Oliveira Salles dos Santos Cruz UFSCar – São Carlos Prof. Dr. Luís Fernandes dos Santos Nascimento UFSCar – São Carlos Marília, 04 de Maio de 2022. Àqueles que, apesar de todas as adversidades, sempre acreditaram que eu seria capaz de atingir meus objetivos. AGRADECIMENTOS Durante esses anos que se seguiram de muito estudo e dedicação, e também de muitas incertezas e desafios, gostaria de agradecer principalmente à professora Ana Portich, por quem tive a honra de ser orientado, por seu apoio e carinho, e por ter acreditado no meu trabalho e me incentivado a prosseguir mesmo nos momentos mais difíceis. Seus conselhos e sugestões deram um toque de Midas nesta dissertação. Sem a sua ajuda eu sequer teria conseguido completar a minha graduação. Ana Portich foi muito mais do que uma orientadora, é uma pessoa a quem tenho o privilégio de ter conhecido e uma das poucas a quem posso chamá-la de amiga para a vida. Agradeço também aos professores doutores que participaram da minha qualificação, ao professor Luís Fernandes do Nascimento e ao professor Kleber Cecon, cujas considerações e sugestões acerca do meu trabalho foram bastante úteis na continuação do projeto. Agradeço a toda a equipe gestora da UNESP de Marília, que me ajudou a completar cada uma das etapas para a realização desse trabalho, principalmente durante esses anos difíceis de pandemia. Agradeço também aos colegas Danielly Lima dos Santos e Élcio Pedroso, que me ajudaram a conseguir textos e outros materiais fundamentais à minha pesquisa. Também não poderia deixar de agradecer a minha família, em especial aos meus pais, que sempre me guiaram pelo caminho correto e me apoiaram em minhas escolhas. Porque ese cielo azul que todos vemos, ni es cielo ni es azul. ¡Lástima grande que no sea verdad tanta belleza! 1610 - Bartolomeu e Lupércio Leonardo de Argensola RESUMO O objetivo do trabalho é investigar se Denis Diderot defende a inter-relação dos sentidos, em especial a visão e o tato, na sua Carta sobre os Cegos para Uso dos que Veem. Para isso, tentamos investigar a gênese progressiva das discussões debatidas na obra, o que nos levou a estudar a polêmica sobre o problema de Molyneux, que teve início com John Locke em seu Ensaio sobre o Entendimento Humano. O problema resume-se à seguinte indagação: um cego de nascença que tenha aprendido a diferenciar pelo tato as formas de uma esfera e de um cubo, ao ter sua visão restituída na idade adulta, iria reconhecer e nomear esses objetos pela visão antes de tocá-los? A discussão se estendeu pela obra de Berkeley e Condillac, até ser sintetizada por Diderot na Carta sobre os Cegos, que explana sobre aquilo que podemos perceber diretamente através dos sentidos, sobre a possibilidade da interação entre os sentidos, sobre o papel que a razão exerce na percepção e sobre a relação entre sensações visuais e táteis na definição das formas, questões que culminam na polêmica sobre a existência do mundo exterior. Palavras–chave: Denis Diderot; Carta sobre os Cegos; O problema de Molyneu. ABSTRACT The objective in this work is to investigate whether Denis Diderot defends an interrelation of the senses, especially vision and touch, in his Letter on the Blind for the Use of Those Who Can See. For this, we tried to investigate the progressive genesis of the discussions in the work that led us to study the controversy over the Molyneux problem, which began with John Locke in his An Essay Concerning Human Understanding. The problem boils down to the following question: would a born blind who has learned by touch the difference between the shape of a sphere and a cube, having his sight restored at adult age, recognize and name these objects by sight before touching them? The discussion extended through the work of Berkeley and Condillac, until it was synthesized by Diderot in the Letter on the Blind, which explains about what we can perceive directly through the senses, about the possibility of interaction between the senses, about the role that reason plays in perception and about the relation between visual and touch sensations on the definitions of the forms, issues which culminate in the controversy over the existence of the external world. Keywords: Denis Diderot; Letter on the Blind; The Molyneux’s Problem. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 – Esquema do estereoscópio criado por Charles Wheatstone. 54 Figura 2 – Cego segurando bastões que se cruzam 63 Figura 3 – Imagem ampliada da página 704, tomo I, de obras filosóficas por Descartes, de 1963 Figura 4 – Esquema para realizar cálculo no ábaco de Saunderson Figura 5 – Representação de formas geométricas no ábaco de Saunderson 66 103 104 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 11 2 O PROBLEMA DE MOLYNEUX 21 3 A TESE DE BERKELEY 33 4 AS CONSIDERAÇÕES DE CONDILLAC 46 5 A CARTA SOBRE OS CEGOS, DE DIDEROT 59 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS 90 7 BIBLIOGRAFIA 117 11 INTRODUÇÃO O principal objetivo da presente dissertação consiste em investigar se Denis Diderot defende a inter-relação dos sentidos, mais especificamente entre a visão e o tato. Para isso, tentaremos compreender o eixo temático em que se engendra sua Carta sobre os Cegos para Uso dos que Veem, o que nos levou a investigar sua gênese progressiva, desde o final do século XVII com o Ensaio sobre o Entendimento Humano, de John Locke (1689). Inspirado pelas elucidações feitas por Locke na primeira edição de seu Ensaio sobre como a mente retém informações dos objetos do mundo exterior e passa a formar ideias e exercer a imaginação, o irlandês William Molyneux, autor de um tratado de óptica intitulado Dioptrica Nova, formula uma questão em carta endereçada ao filósofo inglês. O problema de Molyneux, como ficou conhecido, pode ser resumido da seguinte forma: um cego de nascença que tenha aprendido a diferenciar pelo tato as formas de uma esfera e de um cubo, ao ter sua visão restituída na idade adulta, iria reconhecer e nomear esses objetos pela visão antes de tocá-los? Locke avaliou a relevância da questão e decidiu incluir o problema em seu Ensaio a partir da segunda edição, tornando-o acessível para um público muito mais amplo. Numa tentativa de elucidar e resolver o problema de Molyneux, Berkeley escreve Um Ensaio para uma Nova Teoria da Visão (1709), no qual ele desenvolve sua tese de uma completa heterogeneidade entre os dados de nossos sentidos. Como foi salientado por Ernst Cassirer na obra A Filosofia do Iluminismo, George Berkeley tenta realizar um completo desenvolvimento sistemático e elucidação do problema de Molyneux. No livro O Problema de Molyneux – Três Séculos de Discussão sobre a Percepção das Formas, Marjolein Degenaar assinala que a filosofia de Berkeley só pode ser verdadeiramente conhecida quando geminada à questão de Molyneux. Passamos então para Condillac que levantou algumas objeções contra os argumentos de Berkeley no seu Tratado das Sensações (1754) e no Ensaio sobre 12 a Origem dos Conhecimentos Humanos (1746), principalmente no que diz respeito à dependência do tato para que a visão possa perceber a profundidade do mundo tridimensional. Finalmente chegamos à Carta sobre os Cegos (1749), na qual Diderot resume a discussão que se estendeu desde a segunda edição do Ensaio de Locke, onde o problema de Molyneux foi exposto. Na Carta, Diderot se contrapõe a algumas posições defendidas por Locke e por Berkeley, acreditando que a inter-relação entre os sentidos possa existir, mesmo que se trate de uma ilusão criada pelo hábito de usar nossos sentidos em conjunto desde o nascimento, no caso dos videntes, e por isso é impossível para os cegos de nascença formarem a imagem visual de qualquer objeto. Diderot também comenta os relatos de um cirurgião da época cujas operações de remoção de cataratas foram divulgadas na França por Voltaire. Acredita-se que esses relatos tenham fornecido os primeiros dados empíricos ao problema de Molyneux. Na abordagem do Ensaio sobre o Entendimento Humano, de Locke, nós nos valemos de obras como Locke e o Materialismo Francês e John Locke e o Caminho das Ideias, ambos de John Yolton, além dos comentários de Marc Parmentier, John Davis, Jorn Schosler e Jean-Michel Vienne. Nos capítulos dedicados a Diderot foram utilizadas pesquisas mais específicas sobre o tema desta dissertação, tais como as de Colas Duflo (Diderot Filósofo), de Véronique Le Ru (A Carta sobre os Cegos e o Bastão da Razão), Maria das Graças de Souza (Natureza e ilustração: Sobre o Materialismo de Diderot) e Edna Amaral de Andrade Adell (A questão de Molyneux em Diderot). Os estudos realizados sobre o tema da pesquisa incluíram a leitura das obras Estudos sobre Diderot, de Yvon Belaval, A Formação das Ideias Estéticas de Diderot, de Jacques Chouillet, Ação e Reação: Vida e Aventuras de um Casal de Jean Starobinski, e Cinco lições sobre Diderot, de Herbert Dieckmann, autores de referência sobre a filosofia de Diderot. 13 1- O PROBLEMA DE MOLYNEUX. No ano de 1688 o filósofo irlandês William Molyneux formulou uma questão que teve grandes implicações na epistemologia e na teoria da linguagem, o que é detalhado por Marjolein Degenaar em sua obra intitulada O Problema de Molyneux – Três Séculos de Discussão sobre a Percepção das Formas. O problema de Molyneux mostrou ao longo dos anos ter íntima ligação com questões filosóficas concernentes à teoria da percepção e do conhecimento, provocando discussões sobre o que podemos perceber diretamente através dos sentidos, sobre uma possível interação entre os sentidos, sobre o papel que a razão exerce na percepção e sobre a relação entre sensações visuais e táteis na definição das formas. William Molyneux interessou-se por óptica possivelmente devido ao fato de sua esposa ter ficado cega no primeiro ano de seu casamento, vítima de um derrame. Degenaar considera que o clima intelectual do século XVII tenha favorecido o seu interesse pelo assunto: durante aquele século, o telescópio e o microscópio haviam sido inventados; Descartes havia formulado a lei da refração da luz, Huygens tinha descoberto a forma ondulatória da luz e Newton provou que a luz visível (luz branca) consistia em uma mistura de cores. Além disso, em 1604 Johannes Kepler havia demonstrado que o cristalino do olho não era sensível à luz, mas sim uma lente de refração, sendo capaz inclusive de aumentar de grau para focalizar imagens de perto, por acomodação. Essa descoberta evidenciava que as imagens formadas na retina são invertidas e planas, e que a mente ou cérebro as endireitam, confrontando a ideia vigente de que uma pessoa com olhos perfeitos poderia perceber profundidade. Começaram a surgir questões como por que vemos os objetos de maneira correta e a distância? No Ensaio sobre o Entendimento Humano (1689), John Locke estabelece uma distinção entre as ideias que só podem ser obtidas através de um dos sentidos e aquelas que dependem de uma interação entre vários sentidos. Desse modo, obtemos ideias de cores somente através dos olhos e de sons somente 14 pelos ouvidos, o que leva à noção de que qualquer pessoa que não tenha um desses sentidos jamais possuirá as ideias pertencentes a esse sentido: [...] há ideias que são admitidas por um único sentido, peculiarmente adaptado por recebê-las. Luzes e cores como branco, vermelho, amarelo e azul, e seus muitos graus, tons e misturas, como verde, roxo, rosa, verde-mar e outros, entram apenas pelos olhos; os gêneros de ruídos, som e tonalidade, pelos ouvidos; os muitos sabores e perfumes, por paladar e nariz, respectivamente. E, se um desses órgãos ou nervos, que são os túneis que introduzem ideias de fora para audiência no cérebro, o salão da mente, é desordenado e não desempenha suas funções, não há nenhuma porta de fundos por onde admiti-las, nenhuma outra via para serem vistas e percebidas pelo entendimento.1 Outras ideias, tais como a percepção da forma e do espaço e seus modos como movimento e descanso, seriam obtidas graças à inter-relação de dois ou mais sentidos. Molyneux leu a obra de Locke, e em 1688 escreveu uma carta endereçada ao autor dos Ensaios sobre o Entendimento Humano. A carta original foi redigida da seguinte forma: Dublin, 7 de julho de 1688 Um problema proposto ao autor do Ensaio Filosófico sobre o Entendimento. Um homem, tendo nascido cego, e carregando em sua mão um globo e um cubo feitos do mesmo metal e do mesmo tamanho, e, tendo sido ensinado ou dito a ele, qual é chamado de globo e qual o cubo, de modo que ele pudesse facilmente distingui-los pelo tato ou sensação; então ambos são tirados dele e colocados sobre uma mesa, e vamos supor que sua visão seja restaurada. Poderia ele, através da visão e antes que ele esticasse sua mão, de modo que não pudesse alcançá-los, uma vez removidos a 20 ou 1.000 pés dele? Se o autor instruído e engenhoso do tratado mencionado acha que esse problema merece consideração e resposta, ele pode, a qualquer momento, dirigi-lo a alguém que o 1 LOCKE, John. Ensaio sobre o Entendimento Humano. Tradução de Pedro Paulo Garrido Pimenta. São Paulo: Martins, 2012, Livro II, p.117 (grifo do autor). 15 estima e é Seu humilde servo William Molyneux High Ormonds Gate, Dublin. Irlanda2. O problema de Molyneux abordava mais precisamente uma das ideias centrais de Locke, a saber, a forma dos objetos, uma vez que na carta ele sequer cogitou a possibilidade de o cego recém-curado dizer a cor dos objetos que ele veria pela primeira vez. Embora cego de nascença, ele certamente teria um conceito das diferenças entre as formas de um globo e de um cubo, aprendidos anteriormente pelo tato. Por razões desconhecidas, a carta original de Molyneux nunca foi respondida por Locke. No entanto, em 1692, Molyneux publica o seu trabalho Dióptrica Nova, considerado o primeiro livro substancial em inglês sobre óptica. Na publicação, o autor faz uma dedicatória à Royal Society, incluindo fervorosos elogios a Locke: Mas a ninguém devemos um maior avanço nesta parte da filosofia do que ao incomparável Sr. Locke, que em seu Ensaio sobre o Entendimento Humano retificou mais erros adquiridos e transmitiu verdades mais profundas, estabelecidas na experiência e observação [...] do que deve ser encontrado em todos os volumes dos antigos. Ele claramente derrubou todas as extravagâncias metafísicas que infectavam os cérebros dos homens com uma espécie de loucura, onde fingiram um conhecimento onde não havia nenhum3. Locke recebeu uma cópia da Dióptrica Nova, leu as palavras lisonjeiras do autor e lhe agradeceu: "se minha bagatela pudesse ser uma ocasião de vaidade para mim, o senhor fez muito para que isso acontecesse". E acrescentou: "Meu caro, o senhor fez grandes avanços de amizade em relação a mim e vê que eles não estão perdidos em mim"4. 2 MOLYNEUX, William. Letter to Locke, 1688. Apud DEGENAAR, Marjolein. Molyneux’s Problem – Three Centuries of Discussion on the Perception of Forms. In International Archives of the History of Ideas, Vol. 147. Tradução de Michael J. Collins. Alphen aan den Rijn: Kluwer Academic Publishers, 1996, p. 17. 3 MOLYNEUX, William. Dioptrica Nova. Londres: Benj. Tooke, 1692. Fac-símile disponível em https://www.e-rara.ch/zut/doi/10.3931/e-rara-46787, p.11. 4LOCKE, J. Letter to Molyneux, 1692. Apud DEGENAAR, M. Molyneux’s Problem, p.21 https://www.e-rara.ch/zut/doi/10.3931/e-rara-46787 https://www.e-rara.ch/zut/doi/10.3931/e-rara-46787 16 A partir de então os dois filósofos começaram a trocar correspondência. Em uma dessas cartas, Molyneux apresenta novamente o seu problema a Locke, dessa vez de maneira um tanto alterada, referindo-se à sua proposta como “jocosa”, demonstrando que ele mesmo tratava o seu problema com certa simplicidade, perguntando ao correspondente se ele poderia encontrar algum lugar em seu Ensaio para dizer algo a respeito. Locke avaliou a relevância do problema e respondeu a Molyneux que “seu engenhoso problema merecia ser publicado para o mundo”5. E a partir da segunda edição do Ensaio (a de 1694), Locke incluiu o problema de Molyneux em sua totalidade, tornando-o assim acessível para um público muito mais amplo, gerando uma discussão filosófica entre empiristas, naturalistas e sensacionistas que durou três séculos: Suponha-se um homem adulto, cego de nascença, que tenha aprendido a distinguir, pelo tato, um cubo de uma esfera, feitos do mesmo material e com tamanhos próximos. Suponha-se agora que o homem recobra a visão, e que se ponha, diante dele, numa mesa, o cubo e a esfera que seu tato distinguia. A questão é: poderia ele distinguir, com a mera visão, de dizer, antes de tocá-los, qual é o globo, qual é o cubo? Ao que respondo: não. Pois, apesar de sua experiência de afetação do tato pelo globo e pelo cubo, não tem experiência que aquilo que afeta seu tato desta ou daquela maneira deve afetar sua visão da mesma maneira, ou que o ângulo protuberante do cubo que pressiona desigualmente sua mão deve aparecer para os olhos tal como para o tato6. Nessa segunda versão do problema, a questão da distância é omitida. Degenaar supõe que talvez Molyneux acreditasse que a resposta referente à distinção e nomeação do cubo e da esfera já implicasse a questão da distância, ou ainda porque na Dióptrica Nova ele houvesse afirmado que a estimativa da distância era mais uma função de nossa capacidade de julgamento do que da nossa visão, e que, portanto, era uma habilidade adquirida através da experiência e comparação, e não algo inato, o que deixa claro que a questão da distância não poderia ser inferida pelo cego que passou a enxergar. 5Ibidem, p.21. 6 LOCKE, J. Ensaio sobre o Entendimento Humano, Livro II, p. 144-145 (grifo do autor). 17 Em todo caso, a resposta negativa dada por Molyneux ao seu próprio problema confirma essa suposição, pois, para ele, a distância é percebida principalmente por meio de corpos interjacentes, como montanhas, árvores e casas, e pela estimativa que fazemos da magnitude comparativa dos corpos e da clareza de suas cores. Como se acreditava que fosse impossível restaurar a visão de uma pessoa nascida cega, o problema de Molyneux foi considerado como um tipo de experimento mental, suscetível de solução apenas pelo raciocínio. Em seu artigo O Problema de Molyneux, John Davis afirma que a pergunta que Molyneux fez a Locke era na verdade de natureza dupla: se o cego passasse a enxergar, seria capaz de distinguir os objetos pela vista sem a ajuda do sentido do tato, e seria capaz de nomeá-los? A resposta dada por Locke foi a seguinte: Eu não apenas concordo com a resposta [negativa] oferecida pelo cavalheiro [Molyneux] ao problema, como sou da opinião de que o homem cego que começa a enxergar não poderia, de início, dizer com certeza, pela mera visão, qual seria o globo, qual o cubo, mesmo sabendo nomeá-los inequivocamente pelo tato e distingui- los certamente pela diferença entre as figuras tocadas.7 A experiência ensinou ao homem cego que um cubo tem ângulos projetados que exercem uma pressão desigual em sua mão, enquanto uma esfera provoca a mesma sensação sobre toda a sua superfície. No entanto, ele ainda não havia tido a experiência das impressões feitas por esses ângulos e por esse objeto em seus olhos, e assim ele não saberia se o que estava vendo era uma esfera ou um cubo. Em resumo, Molyneux acreditava que a relação entre sensações táteis e visuais das formas dos objetos não seriam imediatamente percebidas, mas que precisaria ser aprendida. John Locke, em seu Ensaio, expressou concordância com a resposta de Molyneux, mas ele não parecia interessado particularmente no elo entre os sentidos do tato e o da visão. No capítulo sobre percepção (Livro II, IX), Locke usou o problema de Molyneux para ilustrar a tese de que frequentemente temos 7 Ibidem, p.145. 18 falsas crenças sobre a maneira pela qual percebemos, sem que tenhamos conhecimento disso. Locke afirmou, por exemplo, que quando observamos uma esfera uniformemente colorida, a ideia que obtemos dela é a de um círculo plano com uma variedade de tonalidades de cores. No entanto, por experiência, aprendemos que esse tipo de ideia é provocada por uma esfera e, portanto, interpretamos a ideia do círculo com cores desiguais com a ideia de uma esfera de cores uniformes. Devido ao hábito de enxergar desde o nascimento, isso acontece tão rapidamente em nosso entendimento que dificilmente conseguimos perceber. Para tornar esse processo mais claro, Locke afirma que sempre que uma pessoa lê ou ouve algo com atenção e compreensão, ela não toma ciência das letras ou dos sons das palavras, mas sim dos conceitos que evocam. Assim como os sons articulados e as palavras grafadas são sinais de conceitos, o círculo visual é sinal ou representação da esfera tátil. A passagem em que Locke colocou sua opinião sobre julgamentos inconscientes é a seguinte: Considere-se ainda, acerca de percepção, que muitas vezes o juízo de pessoas já adultas altera, inadvertidamente, ideias recebidas de sensação. A ideia que imprime na mente o globo de cor uniforme posto diante de nós é um círculo liso, variadamente sombreado, com muitos graus de luz, cujo brilho salta aos olhos. O uso acostuma- nos a perceber como corpos convexos aparecem para nós e como a diferença entre figuras sensíveis dos corpos altera os reflexos de luz. O costume habitual prontifica o juízo a alterar as causas das aparições de tal maneira que a variação de sombras ou de luz a incidir na figura passa por marca da figura. O juízo constrói assim, para si mesmo, a percepção de uma figura convexa uniformemente colorida, enquanto a ideia que dela recebemos é de um plano variadamente colorido.8 É nesse ponto que Locke introduz o problema de Molyneux: “transcrevo a seguir o problema que o mui perspicaz e estudioso promotor do conhecimento, o erudito e valoroso Sr. Molyneux gentilmente me enviou em carta, há alguns 8 Ibidem, Livro II, p.144 (grifo do autor). 19 meses atrás.”9 Segundo Degenaar, Locke aparentemente esperava que sua declaração pudesse ser testada com a ajuda de uma pessoa nascida cega que tivesse adquirido o poder da visão. Tal pessoa não seria prejudicada pelo hábito como os adultos dotados de visão normal. Como observa a autora, desde 1728 o problema de Molyneux passou a ser geralmente associado ao relatório do cirurgião Cheselden, que removeu as cataratas de alguns cegos de nascença. Aqueles que já acreditavam nos fundamentos da teoria de que uma pessoa nascida cega seria incapaz de distinguir uma esfera de um cubo consideraram o relatório como uma confirmação de suas ideias. John Davis reforça essa confirmação ao citar as considerações do zoólogo e neurofisiologista inglês John Young sobre as operações de remoção de cataratas realizadas no início do século XX. Durante o presente século, a operação (ou seja, a remoção de catarata) foi feita com frequência suficiente para que relatos sistemáticos e precisos fossem coletados. O paciente, ao abrir os olhos pela primeira vez, tem pouco ou nenhum prazer; na verdade, ele acha a experiência dolorosa. Ele nota apenas certa massa móvel de luzes e cores. Ele se mostra incapaz de distinguir objetos pela vista, reconhecê-los ou nomeá-los. Ele não tem nenhuma noção de um espaço com objetos nele, embora saiba tudo sobre objetos e seus nomes pelo tato.10 Por muitas semanas ou meses após começarem a ver, essas pessoas puderam com a maior dificuldade distinguir formas simples, tal como um triângulo e um quadrado. Esses relatos confirmam a posição de Locke, que respondeu à pergunta de Molyneux de forma negativa, acreditando que uma pessoa cega de nascença não seria capaz de dizer imediatamente com certeza qual era a esfera e qual era o cubo. Se ao cego recém-curado fossem apresentados os dois objetos simultaneamente, e com toda a probabilidade esse foi o propósito de Molyneux 9 Ibidem (grifo do autor). 10 DAVIS, John W. “The Molyneux Problem”. In Journal of History of Ideas, Vol. 21 nº 3. Filadélfia, University of Pennsylvania Press, 1960, p. 408. 20 ao formular a questão, seria um pouco mais difícil, porque, como veremos mais adiante, ele ainda não tem noções visuais de números, e não saberá se está vendo um ou dois objetos. Locke supunha que somos capazes de ver as formas somente em duas dimensões, e que, por isso, um homem nascido cego que tenha adquirido a visão deverá obter de uma esfera a ideia de um círculo e de um cubo a ideia de um quadrado ou algum tipo de hexágono, dependendo do ângulo de sua visão. Talvez o cego suspeitasse que o quadrado ou o hexágono tivesse algo a ver com um cubo, e o círculo com uma esfera, mas ele não saberia dizer com certeza. Para poder nomear o cubo e a esfera corretamente, ele primeiro precisaria aprender que certas projeções bidimensionais dos objetos que ele está observando correspondem de alguma forma a objetos tridimensionais tangíveis. Apesar de citar o problema na íntegra e de dizer algumas palavras a respeito, Locke não o aborda diretamente e dedica apenas algumas linhas do Ensaio para discuti-lo, limitando-se a concordar com o autor do problema. Veremos no próximo capítulo as possíveis razões disso. 21 2- A RESPOSTA DE LOCKE. Em seu artigo Locke e Intencionalidade: o Problema de Molyneux, Jean- Michel Vienne tenta encontrar uma explicação no Ensaio de Locke para a resposta negativa dada ao problema de Molyneux, uma vez que o filósofo inglês apenas o expõe e se limita a concordar com o autor do problema, não fazendo nenhuma reflexão adicional sobre ele. Para Vienne, o problema de Molyneux foi um experimento mental que testou um dos pontos sensíveis do empirismo: a intencionalidade da ideia. A primeira formulação da pergunta de Molyneux enviada a Locke (a de 1688), difere consideravelmente daquela dada em uma segunda carta, e que foi repetida quase palavra por palavra na segunda edição do Ensaio. Essa versão, que se tornou oficial, na verdade retira uma das duas questões iniciais, que dizia respeito à percepção da distância, em que se perguntava não só se um cego de nascença recém-curado poderia distinguir visualmente o cubo e a esfera que aprendeu a diferenciar pelo tato, mas também se era capaz de saber, pela vista, e antes de estender a mão, se poderia alcançar aqueles objetos que estariam de 20 a 1.000 pés de distância. A versão oficial adiciona uma justificativa, a de que o novo vidente não poderá, segundo Molyneux, distinguir e dizer qual é a esfera e qual é o cubo, pois, apesar de ele ter a experiência de como esses objetos afetam o seu tato, ele ainda não adquiriu a experiência de como tais objetos afetam sua visão. Daqui em diante, a distância e qualquer apreensão de volumes são ignoradas. Como a resposta de Molyneux é repetida por Locke no Ensaio (II, IX, p. 8), isso significaria que a resposta de Locke seria então semelhante à solução proposta por Molyneux em todos os pontos? Vienne afirma que a primeira versão do Ensaio, a que instigou Molyneux a enviar uma carta a Locke, não continha o capítulo sobre a percepção: Seria o acréscimo do capítulo sobre a percepção responsável por modificar a questão e seria significativa a diferença entre as duas formulações de Molyneux?1 1 VIENNE, Jean Michel. “Locke et L’Intentionnalité: Le Problème de Molyneux”. In Archives de Philosophie 55. Nantes: Université de Nantes, 1992, p. 663. 22 O primeiro argumento de Locke para justificar a resposta negativa à questão é baseado na inexistência de uma relação comum entre os vários sentidos, o que torna impossível transferir a ideia de um sentido para outro. Portanto, o cego não pode associar imediatamente as sensações recém- adquiridas com as noções que ele já tem. O segundo argumento estaria relacionado ao statuto do objeto mental, pois não há imagens mentais que representariam seu objeto no pensamento do cego recém-curado, de tal forma que duas imagens resultantes de sentidos distintos não podem ser identificadas por ele. Apesar das protuberâncias visíveis num cubo, um ângulo visual não pode ser imediatamente identificado com um ângulo tocado, pois ainda não há correlação de ideias visuais no cego recém- operado. O terceiro argumento também estaria relacionado ao statuto da ideia, mas de forma negativa: [...] a ideia só é adequada se não for adquirida, mas inata, que as ideias de sensação não estão, portanto, na semelhança da coisa, mas que, pelo contrário, as ideias de expansão e o pensamento tem alguma semelhança com a realidade; mas essa justificativa recusaria o inatismo e, com ela, a adequação absoluta de todas as ideias.2 O quarto argumento consistiria em rejeitar a possibilidade de um cálculo geométrico espontâneo, que seria realizado mais ou menos de forma inconsciente e que só seria possível se os princípios de cálculo fossem inatos e o próprio cálculo inconsciente.3 O quinto argumento transporia o anterior para o campo da linguagem, e assim o cego curado só poderia dizer qual é o cubo se a palavra “cubo” fosse imediatamente ligada à sensação visual, portanto, se o cego pudesse passar da “palavra-sinal” daquilo que é tocado para a “palavra-sinal” daquilo que é visto, o que para Vienne é impossível. Sendo assim, o cego que passa a enxergar ainda não pode nomear o cubo e a esfera. O sexto argumento está voltado à consciência do cego. Assim como o 2 Ibidem. 3 Essa ideia também é defendida por Berkeley, na § 42 de Um Ensaio para uma Nova Teoria da Visão. 23 recém-nascido não pode reconhecer nenhuma forma, porque se depara com um amálgama de cores e luzes, a descoberta imediata das formas dos objetos implicaria, no primeiro ato de ver do cego recém-curado, que ele reconhecesse imediatamente as sombras ou o gradiente de cores presentes nos objetos a ponto de lhe sugerirem a ideia visual de volume. começar exclusivamente do que aparece ao entendimento do cego curado implica que a ideia não seja inata nem intencional, e que não haja geometria implícita na visão; a primeira visão seria a de manchas de cores diferentes e luminosas, cujo significado surgiria apenas gradualmente.4 Na relação entre as sensações e a qualidade objetiva que define um objeto qualquer, a impressão física e a percepção da distância não intervêm em primeiro lugar, o que concordaria com a correção feita por Molyneux na segunda carta, ao omitir a questão da distância. É com base naquilo que aparece à consciência do cego que a resposta de Locke é justificada, e não a partir de um conhecimento objetivo do mecanismo das sensações e de suas relações. Isso nos ajuda a entender por que esse texto tão exíguo dado em resposta ao problema de Molyneux no Ensaio de Locke (uma simples meia página) adquiriu tamanha importância a partir de então. Esse experimento mental permite questionar a intencionalidade a partir de sua origem sensível e, com isso, consegue validar todo o empirismo. O primeiro aspecto a ser observado é a afirmação de que o cego recém- curado não poderia nomear os objetos, pois ainda não tem ideias comuns às sensações do tato e da visão. A ausência de um nome é explicada pela ausência de uma ideia simples, nesse caso luzes e cores. Locke confirma sua objeção recorrendo à teoria da linguagem. O nome não é apenas um dispositivo arbitrário, destinado a associar certas fantasias mentais para o cálculo do raciocínio, mas deve ser baseado em ideias realmente presentes, porque raciocinamos apenas em termos de ideias. É o próprio julgamento que abstrai a multiplicidade de qualidades em uma única ideia, recorrendo à memória e ao hábito que ensinou a mente a formar 4 VIENNE, J. M. “Locke et L’Intentionnalité”, p.664. 24 padrões e a reconhecê-los. O objeto é, portanto, constituído pela mente ao realizar a associação das várias sensações em torno de uma substância. Para Vienne, A ideia central de todo o empirismo reside no fato de que o complexo depende do dado simples. Se tivéssemos quatro sentidos, ou inversalmente, se tivéssemos seis, sete ou oito, nossa forma de entender a coisa, ou seja, sua essência nominal, seria diferente (II, I, 3). Uma conclusão que o Diderot da Carta sobre os Cegos não refutaria, para quem o conteúdo de nossa metafísica depende de nosso estado de como ser cego ou de como ser vidente.5 O Ensaio sobre o Entendimento Humano realiza uma análise e depois recompõe o conhecimento para garantir sua certeza. A ideia simples não é dada imediatamente à consciência crítica, justamente porque ela é fruto da análise, mesmo a análise mais elementar. Devemos abandonar o bom senso e a influência do pensamento adulto para perceber a simplicidade que já perdemos ou esquecemos. A distinção feita pelo filósofo não diz respeito à diversidade de ideias de cada sentido, mas sim à diversidade de ideias do mesmo sentido, Visão e tato muitas vezes tomam, do mesmo objeto, ao mesmo tempo, ideias diferentes, como quando um homem vê simultaneamente movimento e cor, ou a mão experimenta a cera quenta e suave; e, no entanto, ideias simples unidas num mesmo objeto são, para a mente, tão distintas entre si quanto as recebidas de ideias de outros sentidos. A frieza e dureza que o homem experimenta num pedaço de gelo são, na mente, ideias tão distintas quanto o perfume e o branco do lírio ou o paladar do açucar e o perfume da rosa.6 É pelo exercício da reflexão que conseguimos transformar a esfera que estamos vendo na figura de um círculo plano bidimensional, fazendo o caminho inverso de quem está aprendendo a enxergar. Todo homem tem consciência de 5 Ibidem, p.665. 6 LOCKE, John. Ensaio sobre o Entendimento Humano. Tradução de Pedro Paulo Garrido Pimenta. São Paulo: Martins Fontes, 2012, p. 114. 25 que está pensando e para que serve sua mente quando pensa. Qualquer impressão feita sobre as partes externas do corpo que não seja levada em consideração internamente não é uma percepção. O fogo pode queimar o corpo sem despertar nenhuma reação, exceto se a sensação de calor, ou a ideia de dor, for produzida na mente. A ideia chamada de aparência deve ser entendida no duplo sentido como aparência da coisa e consciência do sujeito. O fenomenismo de Locke implica a consciência [...]: sua intenção não é ocupar-se das alterações dos corpos ou dos movimentos dos espíritos animais, causas físicas ou fisiológicas das ideias, mas das “faculdades de discernimento, tais como são aplicadas em seus próprios objetos [ideias] e como o entendimento chega às noções das coisas.”7 Como depende apenas da aparência consciente da coisa, o cego não pode passar daquilo que tateou para aquilo que de repente começa a ver, pois não há nenhum vínculo consciente entre duas ideias simples imediatas que justificaria a transferência do saber. Uma vez que não chegamos ao conhecimento da essência das coisas, somente a coexistência observada de certas qualidades justifica a unidade de um corpo. Nas palavras de Locke, [...] nossas ideias de substâncias, porquanto sejam supostas cópias referidas a arquétipos fora de nós, devem ser tomadas de algo existente, e não consistir de ideias postas juntas a bel-prazer pelo pensamento sem nenhum parâmetro real, por mais que a combinação não nos pareça inconsistente. Desconhecemos a constituição real das substâncias, da qual, enquanto causa da estrita união entre algumas e da exclusão de outras, dependem todas as nossas ideias simples; e só temos certeza de eventual consciência, no caso das poucas que alcançam a experiência e a observação sensível. E nisto funda-se a realidade de nosso conhecimento de substâncias: todas as suas ideias complexas devem necessariamente ser 7 VIENNE, J. M. “Locke et L’Intentionnalité”, p.667. 26 feitas de ideias simples cuja coexistência se descobre na natureza.8 Isso implica que qualquer relação seja externa, introduzida de fora para o entendimento, de acordo com a experiência adquirida. Sem essa experiência acumulada, o entendimento não consegue associar as sensações recebidas da visão e muito menos associar essas sensações visuais com as já adquiridas pelo tato. Uma vez que as sensações são atômicas, visto que estão ligadas apenas por uma atividade da mente que não tem nenhuma garantia ou necessidade de experiência, e visto também que as definições que a consciência confere às ideias são fenômenos que não carregam em si a causa que as produziu e não podem ser designadas como idênticas, por todas essas razões, não é possível transferir para a visão a aprendizagem adquirida pelo tato, principalmente a noção de perspectiva e distância. O cego que tocou o cubo e a esfera tem a memória de uma série de ideias simples que são específicas para o tato, e como não há senso comum entre as ideias simples em Locke, tais ideias não podem ser transferidas de um sentido para outro. É necessário que haja uma experiência, assim como uma composição mental, uma atividade da mente que combine as referências de cada ideia simples em uma única ideia complexa que será a essência nominal (mas não real) do objeto. De acordo com a teoria lockeana, a figura é uma qualidade primária, não importando se a ideia que temos dela vem por meio do tato ou da visão. As ideias que deparamos em mais de um sentido são as de espaço, extensão, figura, repouso e movimento. Impressionam perceptivelmente tanto os olhos quanto o tato; recebemos, aceitamos e transmitimos à mente ideias de extensão, figura, movimento e repouso de corpos, tanto vendo quanto tateando.9 Assumimos que tais ideias deveriam ser idênticas. Devemos assim tomar 8 LOCKE, J. Ensaio sobre o Entendimento Humano, p. 623-624. 9 Ibidem, p.123-124. 27 a definição da ideia simples e refiná-la, ou então dar outra justificativa para a resposta ao problema de Molyneux. Se a ideia representa o objeto do qual é signo, de maneira que possa ser reconhecida imediatamente, é certo que a representação dada por um sentido deveria ser idêntica à representação dada pelo outro. Para que a resposta negativa ao problema tenha sentido em Locke, a ideia teria que ser, portanto, não-representativa. Mas o que é uma ideia não representativa? Na exposição da ideia simples, um dos primeiros argumentos diz respeito à cor em comparação com o paladar. Se alguém pode imaginar um gosto que seu paladar nunca sentiu (um abacaxi, dirá Locke mais tarde), a conclusão é que um cego pode ter ideias de cores. Vienne observa que o problema de Molyneux não é abordado no capítulo sobre as ideias que são comuns a vários sentidos (livro II, cap. 5), como deveria ser, caso a justificativa da resposta negativa envolvesse uma comparação entre as ideias da visão e do tato, mas sim no capítulo que se refere à percepção (livro II, cap. 9). Esse capítulo faz uma análise da ideia simples, cuja descrição paradoxalmente não teve lugar no capítulo que tratou da ideia simples (II, 2). Locke não cita o problema de Molyneux para provar a simplicidade da ideia consciente, seu caráter atômico, sua impossibilidade de ser transferida para outro sentido, nem para provar a exterioridade total da relação, mas para provar outra coisa. O problema serve para revelar os mecanismos insuspeitos que complicam o statuto da ideia simples [...]; a figura não é uma ideia inata nem uma ideia evidente e, no entanto, é indubitável, diferentemente das ideias secundárias.10 O problema de Molyneux é um meio de renovar no leitor a experiência do recém-nascido que descobre as primeiras sensações, e de marcar as diferenças dessa descoberta com o que se acredita ser o bom senso dos adultos. A diferença está na presença de um juízo que reúne as ideias simples e constrói a percepção de uma ideia mais complexa. 10 VIENNE, J. M. “Locke et L’Intentionnalité”, p. 670. 28 A desconsideração desse julgamento é então explicada pela idade e pela rapidez adquirida com o hábito de ver. Isso explicaria o erro do bom senso, pois por causa do hábito e da rapidez com que julgamos os objetos complexos, tomamos por sensação a percepção, que é uma ideia formada pelo julgamento. O capítulo 9 do livro II do Ensaio é inteiramente dedicado à percepção. Logo nas primeiras linhas, Locke a define: A percepção, primeira faculdade da mente a exortar-se sobre nossas ideias, é também nossa primeira e mais simples ideia de reflexão. Alguns a chamam de pensamento em geral – ainda que, propriamente, na lingua inglesa, pensamento signifique a sorte de operação da mente sobre suas ideias em que considera com certo grau de atenção voluntária, e é, portanto, ativa. Mas, ao contrário, na mera percepção a mente é, no mais das vezes, passiva: é-lhe inevitável perceber aquilo que percebe.11 Já a ideia de sensação serve simplesmente como um sinal para a ideia de julgamento, o qual transforma as aparências em sua causa. Desse modo, o julgamento perceberia as alterações feitas em nós ao observarmos um corpo convexo, transformando as ideias simples de luminosidade e cor em ideias complexas de espaço e volume, como se tal corpo fosse conhecido pelos seus efeitos observados. Se o cego não pode responder, é porque sua visão não pode descobrir sozinha (pelo menos não imediatamente) o volume dos objetos. Ele teria que apelar para as sensações do tato, que por si só poderiam dar a ideia de volume. Outros obstáculos peculiares à visão são suficientes para justificar a resposta negativa de Locke ao problema de Molyneux. Não se trata de revelar que a passagem da ideia simples ao julgamento da perspectiva requeira experiência, mas, ao contrário, de enfatizar que o que se passa por uma ideia simples é na verdade efeito do juízo. A figura da coisa não é percebida imediatamente, pois apenas luz e cores são percebidas. É necessário que o entendimento interprete as variações de cores e luminosidade em termos de volumes e de perspectiva para formar a ideia de 11 LOCKE, J. Ensaio sobre o Entendimento Humano, p.141-142. 29 figura tridimensional. Isso não pode ser feito instantaneamente, pois outras impressões são necessárias. Desse modo, o cego não pode fazer imediatamente esse julgamento, por falta de experiências visuais anteriores. Para Vienne, caso a resposta de Locke tivesse sido positiva, a intencionalidade da ideia estaria implícita, pois, ao contrário, como o cego não pode reconhecer o objeto desde a sua primeira sensação, as ideias não representam o seu objeto: não dispondo de nenhuma geometria inata, não sendo capaz de decifrar pela sensação isolada a essência da causa da qual só alcança a existência, o indivíduo, segundo Locke, só dispõe de um efeito e não consegue decifrar a natureza da causa.12 Essa afirmação, que está implícita na solução do problema de Molyneux, parece contradizer a tese de um conhecimento certo, real e adequado das ideias simples. Certamente a primeira ideia simples de branco nos dá uma ideia real e adequada do branco, pois nossas ideias simples são todas reais e verdadeiras, uma vez que correspondem aos poderes que as coisas têm para produzi-las em nossa mente. Sobre poderes, Locke os define da seguinte maneira: Dizemos que o fogo pode derreter o ouro, ou seja, que pode destruir a consistência de suas partes insensíveis e, em consequência, destruir sua dureza e torná-lo fluido; que o ouro pode ser derretido; que o sol pode branquear a cera; que a cera pode ser branqueada pelo sol. Nesses e em outros casos, poder refere-se à mudança de ideias perceptíveis. [...] Poder é, nessa consideração, criador ou perceptor de mudança.13 Isso é suficiente para torná-los reais e não ficções vazias ou forjadas. Porém as características de realidade e adequação dadas por Locke dizem respeito à existência de uma causa, e não à natureza da ideia. A partir de uma única ideia, podemos ter certeza da existência de uma causa que torna essa ideia real. 12 VIENNE, J. M. “Locke et L’Intentionnalité”, p.675. 13 LOCKE, J. Ensaio sobre o Entendimento Humano, II, 21, p. 241. (grifo do autor) 30 Desse modo, a figura de um objeto é para a consciência um artifício, um signo colocado pela própria consciência como efeito de uma realidade externa. Percebemos que a ideia tem uma causa externa – é o que Locke chama de intencionalidade – embora não seja possível estabelecermos a correspondência desse objeto intencional no mundo real. Estamos cientes do azul que nos é dado numa ideia única, mas enquanto o azul não for encontrado em outra sensação, não podemos ter ideia abstrata, que é o único lugar real de conceituação. Distinguimos as coisas por ideias, supondo que sejam apenas efeitos produzidos em nós por poderes, como se fossem representações: associamos o cheiro a uma violeta, ou o sabor a um pêssego. O prazer que esses poderes causam em nós parece algo tão real e certo para serem apenas efeitos, como se a verdadeira semelhança desses poderes estivesse na flor ou no fruto, e não nas impressões de nossos sentidos. A confusão só aparece quando há a necessidade de nomear (e o propósito do problema de Molyneux é o de que o ex-cego deva nomear) ou distinguir duas ideias diferentes, algo que acontece quando a mente percebe uma diferença de relação entre elas. O cego recém-curado não consegue distinguir, à primeira vista, o vermelho do azul, embora ele possa ver o vermelho e o azul sem exatamente entender o que está vendo, assim como os videntes não o entendem, ao se depararem com um objeto estranho, diferente de tudo o que eles tenham visto até então. Isso vale para qualquer ideia simples, a de qualidade primária, luz e cores, e a de qualidade secundária, o objeto colorido. A solução dada ao problema de Molyneux parece incompatível com a distinção entre qualidades primárias e secundárias: se dividirmos um corpo, ele deve conservar cada uma das qualidades primárias: a divisão nunca pode tirar a solidez, a extensão, a figura ou a mobilidade de um corpo.14 A contradição com a solução proposta para o problema de Molyneux vem do fato de que a figura não aparece desde a primeira sensação – mesmo depois de raciocinar sobre o que está implícito nessa sensação – mas somente 14 VIENNE, J. M. “Locke et L’Intentionnalité”, p.677. 31 após a coleta de um conjunto de observações. Vienne observa que as ideias de qualidades primárias são na verdade compostas. No caso apresentado por Molyneux, a figura da esfera é composta por um julgamento de duas figuras diferentes que aparecem sucessivamente na mente. [Locke] até mesmo distingue (II, IX, 8) duas figuras diferentes que aparecem sucessivamente no espírito: primeiro a figura plana (um círculo colorido de maneira variada é imediatamente produzido pela esfera), e depois a figura do volume (pelo julgamento que interpreta as variações das cores).15 A própria figura plana é um efeito indireto das ideias simples de luzes e cores. Como a figura é apreendida imediatamente, é verdade que apreendemos de imediato uma ideia simples de qualidade primária, porém a designação reflexiva não é objeto de sensação, e sim de inferências. A distinção entre qualidades primárias e secundárias, como Locke a apresentou, é uma hipótese posterior ao conhecimento sensível, em vez de algo dado ou conhecido no momento da percepção sensorial. Ainda que a ideia da figura apreendida à primeira vista seja simples e semelhante, para a consciência que a experimenta é apenas indistinguível, desnecessária ou sem semelhança. Somos, portanto, levados a pensar que, para Locke, o essencial no problema de Molyneux não é a comparação entre o tato e a visão, nem a comparação da esfera e do cubo, mas a passagem da sensação pura para a percepção reflexiva. A resposta dada ao problema não contradiz a teoria das qualidades primárias compreendidas fenomenalmente, em vez disso tem a função de especificá-la. O que o problema mostra é que mesmo as ideias de qualidades primárias são objeto de julgamento e não de uma percepção imediata. Quando Locke afirma que a mesma água pode produzir sensação de calor para uma mão e de frio para outra (o que seria impossível se essas qualidades estivessem na água)16, o mesmo não pode acontecer com a figura, que nunca 15 Ibidem, p. 678. 16 Cf. LOCKE, J. Ensaio sobre o Entendimento Humano, Livro II, p. 137. 32 produz um quadrado para uma mão e uma esfera para a outra. Um círculo ou um quadrado são os mesmos, tanto em ideia como em existência. Quanto à afirmação de Locke de que a temperatura da água é relativa para cada mão, isso muito provavelmente remete a um experimento conhecido em que temos três recipientes, um contendo água fria, outro contendo água quente e o último contendo água à temperatura ambiente. O experimento consiste em colocarmos uma mão na água quente e a outra na água fria e as deixarmos imersas por cerca de um minuto em cada recipiente. E então colocamos ambas as mãos ao mesmo tempo na água que está em temperatura ambiente. A mão que estava imersa na água quente experimentará a sensação de que a água está fria, enquanto a mão que estava no recipiente com água fria experimentará a sensação de que a água está quente. Para Vienne, Locke deixa claro que temos certeza de que nossas ideias têm uma causa na realidade. As qualidades primárias se parecem com algo no corpo, porque tais qualidades não são inatas, mas observadas e induzidas. A referência à figura no problema de Molyneux tem uma função inversa àquela que lhe é atribuída. Trata-se de mostrar que o juízo intervém não só nas qualidades secundárias, mas também nas qualidades ditas necessárias, simples e semelhantes, isto é, ideias de qualidades primárias: [...] enquanto ideias de qualidades primárias de corpos são semelhantes a eles, e seus parâmetros realmente existem nos corpos mesmos, ideias produzidas em nós por qualidades secundárias não tem nenhuma semelhança a eles. Não existe nada como nossas ideias nos corpos mesmos. Há nos corpos, e denominamo-lo a partir deles, o poder de produzir sensações em nós. Aquilo que é doce, quente ou azul, em ideia, é apenas, nos corpos mesmos, volume, figura e movimento de partes imperceptíveis.17 Assim como Molyneux, Locke admitia que as ideias visuais e táteis das formas tivessem alguma relação entre si, estabelecida pela experiência, ainda que pelo hábito não demos mais atenção à sua constituição progressiva. 17 LOCKE, J. Livro II, p.134. 33 3- A TESE DE BERKELEY. Berkeley deu ao problema de Molyneux um papel central em sua filosofia. Ernst Cassirer chegou a afirmar que a obra Um Ensaio para uma Nova Teoria da Visão, que forma o prelúdio da filosofia de Berkeley e implica implicitamente seus resultados, “nada mais é do que a tentativa de um completo desenvolvimento sistemático e elucidação do problema de Molyneux".1 Como assinala Degenaar, “a filosofia [de Berkeley] só pode ser verdadeiramente conhecida quando geminada à questão de Molyneux”.2 Já de acordo com John Davis, nas primeiras anotações de Berkeley – nos Comentários Filosóficos que o autor escreve entre 1707 e 1708 – há treze referências específicas ao problema de Molyneux, usadas principalmente com o propósito de ilustrar sua defesa da heterogeneidade entre o sentido da visão e do tato: [...] é aqui [nos Comentários Filosóficos] que Berkeley faz suas observações mais completas e interessantes sobre o problema; em outros lugares ele apenas se refere a esses trabalhos sobre a visão ou recapitula seu argumento, sem adicionar novo material.3 Na obra Um Ensaio para uma Nova Teoria da Visão (1709) Berkeley assume uma posição imaterialista, negando a existência do mundo físico exterior à nossa mente.4 Para Berkeley, os objetos próprios da visão constituem uma linguagem universal da natureza que serve para nos instruir e regular nossas ações no mundo, a fim de alcançar as coisas que são necessárias à nossa preservação e bem-estar, assim como evitar aquilo que seja danoso ou prejudicial à nossa existência. Os órgãos dos sentidos nos servem, antes de tudo, para a preservação da nossa vida. Segundo Degenaar, o filósofo estava interessado em teorias da visão porque a existência do mundo visível é geralmente – e, segundo ele, sem 1 CASSIRER, Ernst. A Filosofia do Iluminismo. Tradução de Álvaro Cabral. Campinas: UNICAMP, 1997, p.145. 2 DEGENAAR, Marjolein. Molyneux’s Problem – Three Centuries of Discussion on the Perception of Forms. In International Archives of the History of Ideas, Vol. 147. Tradução de Michael J. Collins. Alphen aan den Rijn: Kluwer Academic Publishers, 1996, p. 29. 3 DAVIS, John W. “The Molyneux Problem”. In Journal of History of Ideas, Vol. 21 nº 3. Filadélfia, University of Pennsylvania Press, 1960, p. 395. 4 Essa posição é mais evidente nas obras Tratado Sobre os Princípios do Conhecimento Humano (1710) e Três Diálogos Entre Hilas e Filonous: em Oposição aos Céticos e Ateus (1713). 34 nenhuma justificativa – usada como argumento para a existência de um mundo material. Logo na introdução do seu Ensaio, Berkeley deixa claro que seu objetivo é mostrar a maneira pela qual percebemos pela vista a distância, a grandeza e a posição dos objetos, e também considerar a diferença que há entre as ideias da visão e as do tato, e se há alguma ideia comum a esses dois sentidos.5 A demonstração dessa tese consiste em três argumentos. No primeiro, ele emprega uma de suas próprias versões do problema de Molyneux, alegando que um homem nascido cego não poderá pensar, no momento em que experimenta sua primeira percepção após começar a enxergar, que as coisas que ele vê são da mesma natureza dos objetos que ele toca, ou que tenham alguma coisa em comum com o sentido do tato. O segundo argumento diz que, por conta das aparências visuais dos objetos serem qualitativamente diferentes das aparências táteis, não pode haver nada comum a ambos os sentidos; esse argumento é parecido com o terceiro, no qual ele diz que o visível e o tangível não são sensações homogêneas, e por isso não podem ser equivalentes. Na seção 132, Berkeley apresenta a solução de Locke e Molyneux para o problema como uma “confirmação adicional de nossa tese”6. Na seção seguinte, o autor ainda sustenta que as soluções dadas por Locke e Molyneux requerem, para serem válidas, a heterogeneidade total entre a visão e o tato, a qual Locke havia negado, porque, para ele, existem ideias simples que podem ser concebidas por mais de um sentido, tais como o espaço e a extensão, ideias que nossa mente pode conceber tanto através da visão quanto pelo tato. A resposta de Berkeley, assim como a de Locke e de Molyneux, é negativa, mas essa negação é muito mais abrangente que a de seus predecessores. Para Berkeley, o cego não irá sequer entender a pergunta; deverá parecer para ele “uma questão ininteligível”.7 John Davis afirma que a heterogeneidade entre a visão e o tato é a 5 BERKELEY, George. Um Ensaio para uma Nova Teoria da Visão. In Clássicos da Filosofia: Caderno de Tradução nº 16. Campinas: IFHC-UNICAMP, 2008, p.13. 6 Ibidem, p.63. 7 Ibidem, p.65. 35 contribuição mais original de Berkeley para a psicologia da visão, tal como foi exposta em Um Ensaio para uma Nova Teoria da Visão: A extensão, as formas e os movimentos percebidos pela vista são especificamente distintas das ideias do tato chamadas pelos mesmos nomes, e não existe nenhuma ideia ou espécie de ideia comum a ambos os sentidos.8 Berkeley afirma ainda que o juízo que fazemos de objetos a distância resulta inteiramente da experiência: Se não tivéssemos verificado que certas sensações provenientes das várias disposições dos olhos estão constantemente acompanhadas de certos graus de distância, jamais faríamos, a partir delas, esses rápidos juízos acerca das distâncias dos objetos; do mesmo modo que não poderíamos pretender julgar os pensamentos de um homem que pronuncia palavras que nunca ouvimos antes.9 Toda a teoria berkeliana repousa na tese de que não percebemos a distância, nem de maneira direta nem por meio de qualquer outra coisa. Dentre os fatores que contribuem para a formação da ideia de distância, ele menciona a quantidade, o tamanho e a natureza dos objetos que percebemos. Assim, uma pessoa nascida cega e que esteja adquirindo a experiência da visão, no começo não terá nenhuma ideia da distância. O sol e as estrelas, objetos próximos e distantes, pareceriam estar todos estampados em seus olhos – ou melhor, em sua mente. Os objetos introduzidos pela visão lhe pareceriam (como de fato o são) apenas um novo conjunto de pensamentos ou sensações, cada um dos quais está tão próximo a ele quanto suas sensações de dor e prazer, ou as mais íntimas paixões de sua alma. Isto porque nosso juízo de que os objetos percebidos pela vista estão a alguma distância, ou fora da mente, é (cf. a seção 28) inteiramente um efeito da experiência, que alguém naquelas 8 Ibidem, p. 61-62. 9 Ibidem, p.19. 36 circunstâncias ainda não poderia ter obtido.10 Somente depois de uma longa experiência, em que certas ideias derivadas do sentido do tato sejam ligadas a certas ideias derivadas da visão, é que podemos concluir de maneira imediata quais ideias táteis são seguidas de tais ideias visuais. Ideias visuais sugerem ideias táteis assim como um rosto corado sugere constrangimento ou vergonha e um rosto pálido sugere medo. É preciso ter a experiência de ver muitos rostos corados e pálidos em outras pessoas e em si mesmo para entender o sentimento que eles sugerem e assim fazer a ligação entre a tonalidade da cor e a emoção que ela indica, e o mesmo acontece com as ideias visuais: É evidente que, quando a mente percebe alguma ideia de forma não imediata e não pela ideia em si própria, deve fazê-lo por meio de alguma outra ideia. Assim, por exemplo, as paixões que estão na mente de um outro são em si próprias invisíveis para mim. Posso, entretanto, percebê- las pela vista, embora não imediatamente, mas por meio das cores que elas produzem no rosto. Vemos muitas vezes vergonha ou medo no semblante de um homem, ao perceber que sua face torna-se vermelha ou lívida.11 Para evitar confusão, Berkeley distingue dois tipos de objetos da visão, primários e secundários. Por meio de objetos visuais primários e diretos (luz e cores), somos capazes de perceber objetos secundários, indiretos em relação ao sentido da visão, pois pertencem mais propriamente ao sentido do tato. Assim como Locke entendeu superfícies planas como sinais das formas de objetos tridimensionais que elas representam e comparou a percepção visual dessas formas com a compreensão de símbolos linguísticos, Berkeley relacionou a percepção dos objetos secundários da visão com o significado das palavras. Sempre que ouvimos uma linguagem familiar, recebemos simultaneamente os sons e o significado correspondente das palavras e, através da experiência, ambos tornam-se tão fortemente unidos que parece que estamos 10 Ibidem, p.27. 11 Ibidem, p.17. 37 ouvindo não sons, mas significados. O tamanho e a distância são percebidos de maneira indireta, consequentemente, considera-se o tamanho de figuras visuais não como um objeto primário da visão, mas como secundário ou impróprio, pois o tamanho da figura visual de um objeto pode mudar dependendo do ângulo ou da distância entre ela e o observador, enquanto o seu tamanho tátil é sempre o mesmo. Assim, as estimativas que fazemos do tamanho visual dos objetos dependem inteiramente da experiência. Por isso, ao enxergar pela primeira vez, a avaliação de tamanho feita por uma pessoa nascida cega seria totalmente diferente da avaliação feita pelos videntes, habituados a julgar tamanhos visuais desde o nascimento. Berkeley considera útil tentar colocarmo-nos no lugar do cego, a fim de nos livrarmos de nossas experiências visuais e dos preconceitos que esse sentido nos traz, algo que Diderot faria alguns anos mais tarde ao conceber sua Carta sobre os Cegos. A fim de desembaraçar a mente de quaisquer preconceitos que possa entreter com relação ao assunto em pauta, nada parece mais apropriado do que considerar o caso de um cego de nascença que, mais tarde, já adulto, adquire a visão. E embora talvez não seja fácil despojarmo-nos inteiramente da experiência obtida pela vista, de modo a podermos colocar nossos pensamentos exatamente no lugar desse homem, devemos nos esforçar, todavia, na medida do possível, para formar uma idéia correta do que se pode razoavelmente supor que se passa em sua mente.12 O cego de nascença recém-curado, disse Berkeley, a princípio não pensaria que aquilo que ele vê está acima ou abaixo, ou com a perspectiva correta ou invertida. Como as imagens que vemos estão invertidas na retina, somente depois de ter tido alguma experiência com o novo sentido é que ele aprenderia que os objetos retratados na parte inferior do olho estavam acima, uma vez que os veria claramente ao mirar o olhar para cima. Termos relacionados à posição de objetos tangíveis tais como "posição 12 Ibidem, p. 48-49. 38 correta" e "de cabeça para baixo" nunca seriam transferidos para as ideias que pertencem à visão, pois Berkeley considera errôneo imaginar que as imagens da retina sejam representações de objetos externos, já que para ele não há nada em comum entre as ideias da visão e as do tato. Além disso, os objetos diretos da visão não existem fora da mente. A mente, ao perceber o impulso de um raio de luz na parte superior do olho, considera esse raio como provindo em linha reta da parte inferior do objeto, e, da mesma maneira, ao rastrear o raio que atinge a parte inferior do olho, é conduzida à parte superior do objeto. Isto é ilustrado concebendo-se um cego que, segurando em suas mãos duas bengalas que se cruzam, toca com elas as extremidades de um objeto colocado em posição perpendicular. É certo que esse homem julgará que a parte superior do objeto é aquela que ele toca com a bengala da mão que está mais baixa, e que a parte inferior é a que toca com a bengala da mão que está acima. Essa é a explicação mais comum para a aparência ereta dos objetos [...]13 Todas as coisas visíveis estão equidistantes na nossa mente e não ocupam espaço algum no mundo exterior. Desse modo, um cego de nascença, ao ter sua visão restituída, não iria entender o que estaria vendo, nem conseguiria relacionar as novas informações com os objetos próprios do tato: [...] um cego de nascença, na primeira vez que empregasse sua vista, não iria pensar que as coisas que via fossem da mesma natureza que os objetos do tato, ou tivessem qualquer coisa em comum com estes, mas julgaria que se tratava de um novo conjunto de ideias, percebidas de uma nova maneira, e inteiramente distintas de tudo que percebera anteriormente;14 Cubo, esfera, mesa, sala, dentre outros, são ideias que ele conheceu através do tato, e por isso ele jamais poderá conceber ideias de coisas que estão distantes de si, inalcançáveis. Palavras expressas por outros homens, tais como 13 Ibidem, p. 48-49. 14 Ibidem, p. 62. 39 Lua, montanha ou horizonte, lhe trazem à mente ideias de corpos próximos e coisas sólidas percebidas pela resistência que oferecem ao toque dos dedos. Mas a visão não percebe nenhuma resistência ou solidez. Essas percepções lhes são absolutamente novas, por isso ele não saberá nomeá-las nem ao menos distingui- las. Isso nos leva à tese central de Um Ensaio para uma Nova Teoria da Visão, que é a defesa da hipótese da heterogeneidade completa entre a visão e o tato. [...] a questão que resta é se extensão, formas e movimentos particulares percebidos pela visão são da mesma espécie que as extensões, formas e movimentos particulares percebidos pelo tato. Para respondê-la, aventuro-me a propor o seguinte: A extensão, as formas e os movimentos percebidos pela visão são especificamente distintos das ideias do tato chamadas pelos mesmos nomes, não existe tal coisa como uma ideia ou tipo de ideia comum a ambos os sentidos.15 Um dos argumentos usados por Berkeley em uma tentativa de sustentar essa afirmação é que apenas quantidades do mesmo tipo podem ser somadas. Como parece ser impossível somar uma linha visível com uma tangível, o autor conclui que elas são heterogêneas. Se uma superfície quadrada percebida pelo tato fosse do mesmo tipo que uma superfície quadrada percebida pela visão, a pessoa nascida cega a reconheceria imediatamente ao vê-la pela primeira vez, pois não seria nada além de "introduzir em sua mente, por uma nova entrada, uma ideia com a qual ele já estava bem familiarizado".16 Devemos assumir, portanto, que as formas visuais diferem das formas táteis. Ao recuperar a visão, o cego de nascença teria os nomes dos objetos anteriormente conhecidos pelo tato, mas seria incapaz, no momento seguinte após a cirurgia, de atribuir esses mesmos nomes a objetos que agora ele percebe pela visão: 15 Ibidem, p.61-62. 16 Ibidem, p.64. 40 Cubo, esfera, mesa, são palavras que ele conheceu enquanto aplicáveis a coisas percebidas pelo tato, mas jamais a coisas perfeitamente intangíveis. Essas palavras, em sua aplicação habitual, sempre lhe trouxeram à mente corpos ou coisas sólidas percebidas pela resistência que oferecem, mas a visão não percebe nenhuma solidez, nenhuma resistência ou protrusão. Em suma, todas as ideias da vista são percepções novas, às quais ainda não há nomes anexados em sua mente; e, por isso, ele não pode entender o que lhe dizem sobre elas. E perguntar qual dos dois corpos que ele viu postos sobre a mesa era a esfera e qual o cubo seria para ele um puro gracejo, uma questão ininteligível, pois nada do que ele vê é capaz de sugerir a seu pensamento a ideia de corpo, distância, ou, em geral, qualquer coisa que ele já conhecesse.17 Para fornecer uma resposta à pergunta de por que as formas visuais e táteis recebem o mesmo nome, embora não sejam do mesmo tipo, Berkeley demonstra que as palavras não são entidades em si mesmas, mas sinais das coisas que elas representam. Berkeley vai muito além da questão de Molyneux em suas investigações, não só afirmando que o cego não conseguirá diferenciar o globo do cubo, como tampouco entenderá o que está vendo. Ao adquirir a visão, o cego de nascença não terá imediatamente nenhuma ideia de distância por meio desse sentido, pois o juízo que as pessoas videntes fazem da distância dos objetos é meramente ilusória e provinda estritamente da experiência. Além do mais, não é absolutamente necessário ter visão para perceber distâncias, pois ela também pode ser intuída perfeitamente pela audição, a exemplo de momentos em que alguém esteja trancado dentro de casa e percebe se uma carroça que passa na rua está próxima ou distante de si, dependendo do som que ela faz. Não podemos ver a carroça na rua, mas sabemos, pelo som que ela provoca, se está indo ou vindo, se está se aproximando ou se afastando, se está devagar ou veloz, pois a ideia de distância e posição é um fenômeno da mente sem qualquer correlação com os objetos visíveis do mundo exterior. Nem a distância, nem a sua ideia, são verdadeiramente percebidas pela 17 Ibidem, p.64-65. 41 visão: quando a Lua está situada próxima ao horizonte, parece ser muito maior do que quando está alta no meridiano. Isso acontece porque, no primeiro caso, podemos comparar seu tamanho com montanhas e vales distantes, coisas que sabemos por experiência que são grandes, diferentemente de quando ela está alta no meridiano e não há nada com que possamos fazer essa comparação. Ora, um modo pelo qual estimamos a distância de alguma coisa é pelo número e extensão dos objetos intermediários. Quando, portanto, a Lua é vista no horizonte, a variedade de campos, casas etc., juntamente com o vasto panorama da extensão de terra ou de mar que se situa entre o olho e a última orla do horizonte, sugerem à mente a ideia de uma maior distância e, consequentemente, aumentam a aparência.18 Essa explicação parece confirmar sua teoria de que tudo o que vemos de maneira imediata são apenas luzes e cores em variadas tonalidades e graus de debilidade e clareza. Todos esses objetos visíveis, tais como casas, montanhas, campos etc. estão apenas na mente do observador e não sugerem nada de externo, seja distância ou grandeza, a não ser por uma conexão habitual, assim como as palavras sugerem coisas. Berkeley conclui que um homem nascido cego e que tenha a visão restituída na idade adulta não suporia que existe alguma conexão entre a visão e o tato. Como a sua concepção das ideias da visão é aquilo que ele está vendo imediatamente, ele não pode julgar as formas dos objetos nem como grandes ou pequenas. É evidente que alguém nessas condições julgaria que o tamanho de seu polegar, com o qual pode ocultar uma torre e impedi-la de ser vista, é igual ou maior àquela torre. As pessoas videntes desenvolvem, ao longo de uma vasta experiência de enxergar, uma conexão estreita em suas mentes entre os objetos da vista e os do tato. As diferentes ideias desses dois sentidos ficam tão misturadas a ponto de serem erroneamente tomadas por uma mesma coisa. Um homem nascido cego só pode dar significação às palavras “alto” e “baixo” àquilo que está mais próximo ou mais distante do solo. Se esse homem 18 Idem, p.42. 42 adquirisse a visão, ele não iria pensar à primeira vista que as coisas que estivesse vendo estariam no alto ou embaixo, nem eretas ou invertidas, pois ele não consideraria que estivessem a qualquer distância dele, ou melhor, fora de sua mente. Tudo o que ele entende por distância foi de algum modo percebido pelo tato, enquanto os objetos da visão constituem para ele um novo conjunto de ideias que de modo algum podem se fazer perceber pelo tato, e por isso ele jamais poderá conceber ideias de objetos que estão distantes de si, intocáveis, inatingíveis, tais como montanhas, horizonte ou Lua. Por isso, nada poderia induzi-lo a pensar que esses termos fossem aplicáveis às novas percepções adquiridas, até o momento em que viesse experimentar sua conexão com os objetos tangíveis. [...] se supusermos que ele [o cego] adquira subitamente a vista, e contemple um homem de pé diante de si, é evidente que nesse caso ele não julgará o homem que vê como estando ereto nem invertido, pois como nunca encontrou esses termos aplicados senão a coisas tangíveis, ou que existem no espaço fora dele, e como a coisa que ele vê não é nem tangível nem se percebe como existindo exteriormente, ele não poderia saber que esses termos são, na linguagem, corretamente aplicados a essa coisa.19 Poderiam objetar que o cego consideraria, pelo simples ato de ver, que um homem está em posição ereta se os seus pés estiverem próximos ao chão, e invertido se for a cabeça que está próxima ao solo. No entanto, as ideias da visão são totalmente novas para ele, e por isso o cego não saberá o que são a cabeça ou os pés dos homens, ou mesmo o chão onde ele está parado. [...] tampouco é possível, apenas por meio da faculdade visiva, sem a suplementação de nenhuma experiência do tato e sem alterar a posição do olho, chegar jamais a saber, ou mesmo a suspeitar, que haveria alguma ligação entre elas.20 19 Ibidem,p.50. 20 Ibidem,p.52. 43 Ainda poderiam argumentar que o cego saberia, por experiência do tato e de seu próprio corpo, que os pés são dois, e que por isso ele saberia diferenciá- los da cabeça, que é uma. Berkeley responde a isso que o número dois que o cego entende foi uma ideia introduzida em sua mente por meio do tato, por isso ele não terá de imediato nenhuma ideia de número através das sensações visuais. Como o cego recém-curado poderia saber, então, antes de aprender pela experiência, que as pernas visíveis, por serem duas, estão conectadas às pernas tangíveis, ou que a cabeça visível, por ser uma, conecta-se à cabeça tangível? Os objetos da visão são para ele apenas uma multiplicidade de luzes e cores, enquanto os objetos do tato são as sensações que nos permitem dizer se algo é duro ou macio, frio ou quente, áspero ou liso. A inter-relação desses dois sentidos deve ser apreendida pela experiência, pois não encontramos conexão necessária entre uma qualidade tangível e uma cor qualquer, e muitas vezes percebemos cores onde não há nada para ser tateado, como o azul do céu. Berkeley alega ainda que a ideia de número não é algo fixo e concreto, que exista nas coisas mesmas, mas sim um conceito abstrato adquirido pela observação. Uma janela ou uma chaminé é uma unidade, uma casa também é uma unidade, não importando quantas janelas e chaminés ela tenha. A ideia de número é, portanto, criação pura da mente, e tudo o que a mente considera ser um é uma unidade, representada e associada por um símbolo ou um nome. Disso resulta que um homem nascido cego e que tenha a visão restituída na idade adulta não conseguiria reunir todas as ideias particulares que compõem um homem parado a sua frente tais como pés, cabeça e braços em uma única ideia complexa de homem. As ideias que compõem o homem amontoam-se em sua mente junto com todas as outras ideias visíveis que ele estaria experimentando no mesmo momento, e por isso ele não seria capaz de numerá- las, abstraí-las ou integrá-las num único conceito. Tampouco o cego recém-curado poderá, a princípio, denominar a posição de algo visual, se está à direita ou à esquerda, acima ou abaixo. É preciso considerar que a localização de um objeto seja determinada apenas em relação a objetos percebidos por um mesmo sentido, pois a posição e localização de 44 objetos próximos também podem ser detectadas pela audição, como foi demonstrado anteriormente com o exemplo do homem dentro de sua casa que ouve uma carroça passar pela rua e infere sua distância. Berkeley assume a heterogeneidade entre o tato e a visão tendo em vista que toda a aparente correlação entre esses dois sentidos é uma ilusão construída pelo hábito de ver e tocar as coisas à nossa volta, algo que é aprendido naturalmente durante a infância dos videntes: [...] quando nos lembramos de que houve um tempo em que [os signos] não estavam conectados em nossas mentes com essas coisas que agora tão prontamente sugerem, e que sua significação foi aprendida com os passos lentos da experiência, tudo isso nos impede de confundir os signos e as coisas que eles significam.21 Perguntar ao cego qual é o cubo e qual é a esfera seria semelhante a perguntar a um completo analfabeto qual palavra escrita representa cubo e qual a esfera, palavras estas que ele conhece pelo som, mas que ainda não aprendeu a identificá-la pela sua forma visual. O quadrado percebido pelo tato tem quatro lados distintos, bem como quatro ângulos distintos, o que implica um conhecimento implícito de geometria, adquirido pela experiência. Desse modo, a forma visível mais apropriada para servir de marca ao quadrado deve também conter quatro lados distintos, e isso vale para todos os demais objetos táteis e seus respectivos representantes visuais. Berkeley faz um exercício de imaginação, invertendo a ordem da questão de Molyneux, considerando uma inteligência ou espírito incorpóreo que tenha a capacidade de ver perfeitamente bem, mas que não possua o sentido do tato. Segundo Degenaar, Thomas Reid (1710-1796) aprofunda essa ideia em seus trabalhos referentes à filosofia berkeliana, chegando mesmo a dar um nome para esse ser incorpóreo, chamando-o de Idomeniano. O ser que supomos não teria noção de terceira dimensão, suas figuras visíveis teriam comprimento e largura, de fato; mas a espessura não está incluída nem excluída, sendo uma coisa 21 Ibidem, p. 68. 45 da qual ele não tem nenhuma noção. Portanto, figuras visíveis, embora tenham comprimento e largura, como superfícies, ainda não são superfícies planas nem superfícies curvas.22 Tal ser hipotético não poderia ter nenhuma ideia de algo sólido, da exterioridade ou profundidade das coisas, ou mesmo a capacidade de perceber a terceira dimensão, donde se pode concluir que ele não seria capaz de calcular ou julgar distâncias. Estamos acostumados a pensar que é pela visão que recebemos a ideia de espaço e dos corpos sólidos, o que nos dá a noção de que podemos determinar a distância relativa entre os objetos à nossa volta. Para Berkeley, isso é uma ilusão que ocorre quando estamos aprendendo a ver e tatear o mundo, ocasionada por uma inter-relação aparente (e somente aparente) entre os objetos do tato e os da visão que vai nos acompanhar para o resto de nossas vidas. Os objetos do mundo tridimensional, supostamente considerados entidades físicas afetam apenas o tato, e toda ideia visual que se tem deles é uma representação da mente. Essa opinião está baseada no que se observa nas pinturas, cujas ideias impressas no plano bidimensional sugerem à mente, por um julgamento da razão, qualidades tridimensionais como solidez e profundidade, pois evocam essas ideias que estão previamente gravadas em nossa mente pelo longo hábito de ver e tocar. 22 REID, Thomaz. An Inquiry into the Human Mind. Apud DEGENAAR, M. Molyneux’s Problem – Three Centuries of Discussion on the Perception of Forms, p. 37. 46 4- AS CONSIDERAÇÕES DE CONDILLAC. Fortemente impregnado pela obra lockeana, Étienne Bonnot de Condillac publica o seu Tratado sobre as Sensações em 1754, a fim de “mostrar como todos os nossos conhecimentos e todas as nossas faculdades mentais vêm dos sentidos, ou melhor, das sensações”1. A obra de Condillac parece tentar preencher as lacunas deixadas por Locke, principalmente no que diz respeito à gênese do conhecimento. As relações entre prazer e dor é que nos fazem conhecer o mundo exterior, e para sustentar tal afirmação, Condillac imagina uma estátua de mármore que aos poucos vai ganhando órgãos funcionais dos sentidos, começando com o olfato, que seria o nosso órgão mais primitivo. Em seguida acrescenta o paladar, a audição, a visão e, por último, o tato. Ao analisar mais detalhadamente o sentido da visão separada do tato, Condillac elabora argumentos bastante semelhantes aos de Berkeley, o que o faz duvidar que esse órgão sozinho fosse capaz de enxergar a profundidade ou mesmo a figura dos objetos exteriores. Para Marc Parmentier, em seu artigo O Problema de Molyneux de Locke a Diderot: É provável que Condillac tenha conhecido a obra de Berkeley por intermédio dos Elementos da Filosofia de Newton, publicado por Voltaire em 1738. De fato, no capítulo II, Voltaire segue de perto a teoria apresentada em [Um Ensaio para uma] Nova Teoria da Visão, a ponto de às vezes traduzir as teses principais quase palavra por palavra.2 Em todo caso, Berkeley não é citado em nenhum momento no Tratado das Sensações. Condillac afirma que, uma vez que criamos nossos hábitos de julgar os objetos do mundo exterior com o uso de todos os nossos sentidos, torna-se difícil separar o que pertence a cada um deles. No entanto, seus domínios são bem distintos: 1 CONDILLAC, Étienne Bonnot de. Tratado das Sensações. Tradução de Denise Bottmann. Campinas: UNICAMP, 1993, p. 31. 2 PARMENTIER, Marc. “Le problème de Molyneux de Locke à Diderot”. Recherches sur Diderot et sur l'Encyclopédie. Nº 28, 2000, p. 20. 47 Só o tato tem em si aquilo que pode transmitir as ideias de grandeza, figura etc., e a visão, privada do auxílio do tato, envia à alma apenas modificações simples que se chamam cores, assim como o olfato lhe envia apenas modificações simples que se chamam odores.3 Condillac tenta analisar o sentido da visão separado dos demais, a fim de verificar o que é possível conhecer através desse sentido. O olho por si só não é capaz de enxergar qualquer espaço fora dele, pois para isso seria necessário o auxílio do tato: Considerando as propriedades do tato, reconhecer-se-ia que ele é capaz de descobrir esse espaço [externo] e ensinar aos outros sentidos a relacionar suas sensações com os corpos distribuídos por esse espaço.4 Condillac posiciona-se do seguinte modo diante do problema de Molyneux: Ele comunicou seu pensamento a um filósofo, era o único meio de conseguir um partidário. Locke concordou com ele que um cego de nascença, cujos olhos se abrissem à luz, não distinguiria pela visão entre um globo e um cubo. Essa conjectura foi depois confirmada pelas experiências de Cheselden, por elas ocasionadas, e parece-me que hoje é possível distinguir quase totalmente o que pertence aos olhos e o que eles devem ao tato.5 Já no caso da audição, isso seria mais problemático, devido ao hábito que temos de ouvir os ruídos como se estivessem fora de nós. Para Condillac, ao contrário do que afirma Berkeley, não somos capazes de julgar distâncias e posições dos objetos exteriores pela audição, pelo menos não imediatamente. Ao experimentar efeitos sonoros, num primeiro momento a estátua 3 CONDILLAC, Tratado das Sensações, p.44. 4 Ibidem, p. 101. 5 Ibidem, p. 102. 48 julgaria que os sons estivessem nos próprios objetos próximos a ela, pois observa que seu ouvido se modifica apenas por ocasião desse corpo. Ao agitar um chocalho, irá ouvir sons, e não ouvirá mais nada se deixá-lo parado. Julga então que esses sons foram produzidos pelo chocalho. Ouvir esses sons e julgá-los fora dela são duas operações que não mais distingue. Assim, em vez de percebê-los como suas próprias maneiras de ser, ela os percebe como maneiras de ser do corpo sonoro. Numa palavra, ela os ouve nesse corpo.6 Quanto ao sentido da visão, a estátua de Condillac, que ainda está aprendendo a ver, terá à sua frente um amálgama de cores misturadas no primeiro instante, mas irá dar atenção provavelmente a uma única cor enquanto seus olhos são exercitados. Sobre o número das cores que a estátua conseguiria contar, para Condillac não passaria de três, pois a ideia que ela possui de número não é mais ampla com o sentido da visão do que foi com o olfato. A estátua dotada apenas com o sentido do olfato poderia ainda assim conceber a ideia de números. Bastaria, para isso, possuir memória. Enquanto a estátua está sentindo determinado odor, ela jamais poderá suspeitar que essa sensação vem do exterior, e assim ela seria o próprio odor no momento em que estivesse experimentando essa sensação. Se ela se lembrar de “ter sido” diferentes tipos de odores, uns mais prazerosos que outros, ela então conseguirá distinguir esses estados e assim poderá conceber a ideia de número. Para Condillac, alguém nessas condições poderia contar até três, e um número maior pareceria, para a estátua que somente sente cheiro, uma infinidade, ou, nas palavras do autor, uma “multidão indefinida”7, pois foi ao uso dos signos (e muito provavelmente também aos nossos dedos) que devemos à soma ou contagem de números muito maiores, algo que uma estátua com apenas o sentido do olfato jamais conseguiria conceber. Sobre a ideia de extensão, as cores podem oferecê-las à mente, tornando a própria mente extensa ao avistar uma cor. Nesse caso, a extensão não sugere exterioridade, visto que só o tato ou as ideias compostas por esse sentido em conjunto com os demais podem proporcionar essa sensação. 6 Ibidem, p. 168. 7 Ibidem, p. 83. 49 Condillac chega à mesma conclusão de Berkeley de que uma inteligência, ou uma estátua, que dispusesse apenas do sentido da visão não teria nenhuma ideia de externo. Ao perceber uma ou várias cores extensas, a própria mente do observador torna-se extensa. Esse é um fato que não se pode colocar em dúvida, pois “é tão impossível conceber uma cor sem extensão quanto conceber um som extenso”.8 Essa extensão, no entanto, é uma ideia bastante vaga, pois seria para a estátua uma extensão sem limites, sem fim. Também não pode ser uma superfície nem outra grandeza determinada qualquer, pois isso suporia necessariamente a ideia de sólido, algo que a estátua não concebeu e nem pode vir a conceber enquanto não adquirir o sentido do tato. Se ela está diante da cor vermelha, o pensamento da estátua é a própria vermelhidão que está experimentando no momento, ou a lembrança de ter sido essa vermelhidão. Não conhecendo nada além das cores que julga ser, ela é para si algo imenso que está em todas as partes. Nós, pessoas videntes, não percebemos todos os juízos que utilizamos para identificar o conjunto de dados que forma um círculo ou um quadrado, e também não notamos os juízos que nos permitem ver as cores como fora de nós mesmos. Esta aparência é efeito de vários juízos, cujo hábito nos tornou familiar. Tal hábito nos permite identificar figuras com tanta rapidez que não percebemos o uso dos juízos que usamos. É razoável supor que nossos olhos, quando ainda não estavam exercitados, precisariam se conduzir e percorrer os objetos mais simples para conseguir vê-los. A mente da estátua precisará passar pelo mesmo processo de aprendizagem para formar esses juízos e enfim adquirir o hábito. Para isso ela precisará do tato: Se é ao tato, como provaremos, que cabe fazer- nos observar grandezas circunscritas ou figuras nas cores, é a ele também que cabe fazer-nos observar posições e movimento nas cores. Não tendo senão uma ideia confusa e indeterminada da extensão, privada de qualquer ideia de figura, 8 Ibidem, p.106. 50 de lugar, de posição e de movimento, a estátua sente apenas que existe de muitas maneiras9. A estátua, quando está limitada apenas ao sentido do tato, passa a descobrir seu próprio corpo e aprende que existem objetos fora de si mesma. O princípio da impenetrabilidade é invocado como uma propriedade comum a todos os corpos, mas essa propriedade não é uma sensação. Não sentimos que os corpos sejam impenetráveis, no entanto julgamos que eles assim o sejam. Nosso julgamento seria uma consequência direta das sensações que os corpos exercem sobre nós, sendo a principal delas a solidez. A resistência que os corpos oferecem para se excluírem mutuamente ao tentar ocupar o mesmo lugar no espaço é o que provoca essa sensação, pois se dois objetos pudessem se interpenetrar, eles se tornariam um. “Aí está, pois, uma sensação por meio da qual a alma passa de si para fora de si, e começamos a compreender como ela descobrirá corpos”.10 Quando a estátua passa a mão sobre um objeto qualquer, não poderá manejá-lo sem notar sua extensão e o conjunto das partes que o compõem, formando a ideia de figuras. A mão circunscreve o objeto, e para isso basta que ela sinta sua solidez. Num cubo ela sentirá ângulos que não percebe numa esfera, e assim ela começará a distinguir as formas das coisas sólidas e passará a compará-las. Quando a estátua estava restrita ao sentido da visão, as cores eram percebidas como uma extensão sem limites e sem exterioridade, pois não havia como demarcar os contornos de uma figura colorida. As cores ficariam misturadas, e sua mente as conceberia como um modo de ser próprio dela. Com o auxílio do tato, no entanto, as cores passaram a se estender sobre os objetos, e a estátua contraiu o hábito de julgá-las sobre uma superfície. Há uma distinção entre aprender a ver e aprender a olhar: Se oferecermos à sua visão uma grande parte do horizonte, a superfície que ela vir em seus olhos poderá representar um vasto campo, variegado com as cores e as formas de uma multidão incontável de objetos. A estátua vê, pois, todas 9 Ibidem, p.109. 10Ibidem, p. 125. 51 essas coisas: ela as vê, repito, mas não tem nenhuma ideia delas, e nem sequer pode ter.11 Ver e olhar são operações distintas e, no entanto, a maioria das pessoas parece ignorar essa diferença. Não formamos ideias no mesmo momento em que vemos, e prova disso seria o fato de que quando estamos diante de um objeto estranho, não sabemos imediatamente identificar o que ele seja. As ideias são formadas apenas quando olhamos para determinado objeto com ordem e método, pois é preciso que nossos olhos analisem cada uma de suas partes separadamente antes de captar o conjunto da figura, e certamente estaríamos dispostos a tocá-la para melhor compreendê-la. Nossos olhos veem necessariamente tudo o que causa impressão em nós, mas como não basta ver para formar ideias, é preciso que eles aprendam a olhar. Sobre a questão da distância, Condillac chega à mesma conclusão de Berkeley, de que julgamos distâncias por meio dos objetos intermediários. Levando a mão sucessivamente dos olhos para os corpos e dos corpos para os olhos, ela mede as distâncias. A seguir, aproxima e afasta alternadamente esses mesmos corpos. Estuda as diversas impressões que seu olho recebe a cada vez; e, tendo-se acostumado a ligar essas impressões às distâncias conhecidas pelo tato, ela vê os objetos ora mais perto, ora mais longe, porque os vê onde toca-os.12 Sua estátua, ao ver o espaço adquirindo profundidade diante de seus olhos, contaria com mais um meio para conhecer as distâncias, dirigindo a visão para os objetos que estão entre ela e o objeto fitado. Esse argumento é parecido com o de Berkeley, quando ele tenta explicar o tamanho aparente da Lua. Numa citação direta ao problema de Molyneux, Condillac mostra como sua estátua aprenderia a ver uma esfera: Na primeira vez em que dirige a vista para um globo, a impressão recebida representa apenas um círculo mesclado de sombra e luz. Portanto, ainda não vê um globo: pois seus olhos não aprenderam 11 Ibidem, p. 172. 12 Ibidem, p. 175. 52 a julgar o relevo sobre uma superfície em que a sombra e a luz estão distribuídas numa certa proporção. Mas ela toca, e como aprendeu a ter com a visão os mesmos juízos que tem com o tato, esse corpo assume sob seus olhos o relevo que tem sob suas mãos.13 Ao reiterar essa experiência e repetir os mesmos juízos, as ideias de rotundidade e convexidade serão ligadas às impressões das sombras e luzes. A seguir, a estátua tentará julgar uma esfera que ainda não tocou, e de início encontrará certa dificuldade. Mas todas as incertezas deverão ser corrigidas pelo tato. Já em relação à diferença entre ver uma esfera e ver um cubo, A estátua aprenderá igualmente a ver um cubo no momento em que, tendo seus olhos estudado as impressões que recebem no momento em que a mão sente os ângulos e as faces dessa figura, ela contrair o hábito de notar os mesmos ângulos e as mesmas faces nos diferentes graus de luz, e só então discernirá um globo de um cubo.14 Nossos olhos só passam a ver as figuras distintamente porque nossas mãos lhes ensinam a captar seu conjunto. Se os olhos não estudassem separadamente cada parte de um objeto complexo, jamais veriam a figura inteira, mas somente suas superfícies planas. Para captar esse conjunto é fundamental o uso da memória. Condillac também acredita que o tato é o responsável por dar o posicionamento dos objetos. O tato ensina os olhos a ver os objetos onde estão, e não onde deveriam estar, levando em consideração suas posições invertidas na retina. Não é a mente que inverte as imagens captadas pelos olhos, mas sim o hábito de vê-los em suas posições corretas. a inversão da imagem não coloca nenhum obstáculo a isso, porque, enquanto não tiverem sido instruídos, não existe para eles [os olhos] nem a parte de cima nem a de baixo. O tato, único que pode descobrir esses tipos de relações, é o 13Ibidem. 14Ibidem. 53 único também que pode ensinar-lhes a julgar a respeito.15 Ao adquirir o sentido do tato, a estátua deixaria de ver os objetos duplicados, pois o próprio tato corrigiria essa duplicação ao manusear os objetos. Assim como as imagens invertidas não são impedidas de serem vistas em suas posições corretas, a mesma imagem, embora dupla, não impediria os olhos de os verem como uma unidade simples, pois a mão obriga a visão a julgar de acordo com o que ela sente em si mesma. Isso parece implicar que um cego que tenha adquirido a visão de ambos os olhos ao mesmo tempo veria inicialmente os objetos duplicados, e que só com a ajuda do tato é que essa duplicação seria corrigida. A respeito dessa questão da visão duplicada, Degenaar observa que na primeira metade do século XIX, um físico e inventor chamado Charles Wheatstone conseguiu providenciar uma resposta: Wheatstone [...] mostrou, com a ajuda de um estereoscópio que ele mesmo inventou, que a percepção de profundidade é alcançada pela ação conjunta de pontos retinianos não correspondentes. Para demonstrar isso, Wheatstone desenhou duas linhas para um mesmo objeto: uma para o ângulo de visão do olho esquerdo e outra para o ângulo de visão do olho direito. Quando estes dois desenhos foram vistos através do estereoscópio, produziram uma impressão inconfundível de um objeto sólido tridimensional.16 15Ibidem, p. 177 16 DEGENAAR, Marjolein. Molyneux’s Problem – Three Centuries of Discussion on the Perception of Forms. In International Archives of the History of Ideas, Vol. 147. Tradução de Michael J. Collins. Alphen aan den Rijn: Kluwer Academic Publishers, 1996, p.104. 54 Para Degenaar, “a descoberta de Wheatstone foi um duro golpe para a teoria da visão de Berkeley.17 Porém, mesmo antes dessa descoberta, Condillac já desconfiava que as teses de Berkeley não poderiam ser sustentadas em toda a sua plenitude, pois ele acredita que os olhos do cego recém-curado acabariam assimilando o espaço tridimensional visível sozinhos, após uma longa experiência da visão. A exigência de que os dois corpos sejam do mesmo material e do mesmo tamanho, no problema de Molyneux, é algo supérfluo, pois a visão, no momento seguinte à operação e sem a ajuda do tato, jamais poderia ter ideias de grandezas. Condillac considera que Uma outra consequência que não deveria ter escapado a Locke é que os olhos sem experiência veriam a luz e as cores apenas neles mesmos, e que o tato pode ensiná-los a ver no exterior. Por fim, Locke deveria ter notado que a todas as 17 Ibidem, p.105. 55 nossas sensações mesclam-se juízos, seja qual for o órgão pelo qual elas são transmitidas à alma.18 No entanto, o próprio Locke afirmou o contrário: Homens acostumados ao uso de conectivos pronunciam, em muitas sentenças, sons que eles mesmos não escutam nem notam, mas que os outros percebem. Não admira, portanto, se, sem nos darmos conta, nossa mente muitas vezes mude a ideia de sensação em ideia de juízo e sirva-se da primeira apenas para excitar a segunda.19 No Tratado das Sensações há um capítulo intitulado “Como observar um cego de nascença a quem fossem removidas as cataratas”. Como o próprio título sugere, ele é inteiramente dedicado a resolver de forma empírica o pr