161 M Leite, L. R. Marcial e o livro. VitóRia: eDUFeS, 2011 (135 .). ISBN: 978-85-7772-076-7 Joana Junqueira Borges* Universidade Estadual Paulista arcial (Marcus Valerius Martialis), poeta latino do século I de nossa era, é o expoente máximo do gênero epigramático nas letras romanas. Deixou- nos nada menos do que quinze livros, sendo o conjunto de quatorze deles nomeado de Epigrammata (“Epigramas”) e o décimo quinto, contendo 33 epigramas, chamado de Spetacula (“Espetáculos”). Uma vez que publicou mais de mil epigramas, pôde percorrer todas as temáticas caras ao gênero e, além disso, aprofundar e aperfeiçoar esse tipo de produção em Roma. Sua poesia, ainda que bastante divulgada e traduzida em diversas línguas, encontrou muitos entraves à sua expressão, e foi, por vezes, “moralizada”, como no caso da tradução do Abade de Marolles na França do século XVII, na qual, além da alteração no conteúdo, percebem-se também epigramas que foram simplesmente excluídos da publicação. Atualmente, no entanto, tem havido uma retomada dos estudos e das traduções de Marcial, principalmente no contexto acadêmico brasileiro, o que se verifica, por exemplo, desde a dissertação de mestrado do Prof. Dr. José Dejalma Dezotti, O epigrama latino e sua expressão vernácula, de 1990. Essa atenção dada à obra de Marcial toma lugar em um momento em que há espaço para publicações de poemas mais licenciosos num cenário editorial mais livre e multicultural como o nosso. * joana.jb@gmail.com ** brunnovgvieira@gmail.com Brunno Vinicius Gonçalves Vieira** Universidade Estadual Paulista p nuntius antiquus 162 Belo Horizonte, v. X, n. 1, jan.-jun. 2014 ISSN: 2179-7064 (impresso) - 1983-3636 (online) No entanto, ainda que o poeta de Bílbilis seja amplamente conhecido por seus epigramas obscenos e por sua linguagem, muitas vezes, baixa, não é para essa faceta que Leni Ribeiro Leite volta seu olhar na recente obra Marcial e o livro, fruto de pesquisa de doutorado sobre o autor. Seu recorte busca investigar o tratamento metaliterário sobre o “livro” na obra de Marcial e sua função para a compreensão do conjunto dos epigramas. Uma vez que quase nunca há informações biográficas documentais mais seguras sobre os poetas antigos, é bastante comum que estudiosos e autores modernos se apoiem na obra do próprio poeta para traçar sua biografia. É o que comumente acontecia a Marcial, talvez pelo fato de sua produção ser bastante voltada para o cotidiano, o que levava a uma leitura biografista de seus escritos. Leni Ribeiro Leite aborda de maneira bastante cuidadosa esse tema, contrapondo diversos autores (uma vez que apresenta uma fortuna crítica extensa e diversificada) e trazendo argumentos em defesa de uma visão ficcional da obra de Marcial. Há em Marcial e o livro um zeloso cuidado da autora para não cair em uma leitura literal do poeta latino; ainda que, às vezes, isso pareça difícil, devido à própria natureza dos epigramas, Leite sempre busca apresentar elementos extraliterários para corroborar seus apontamentos. Em sua busca por definir a presença do livro na obra de Marcial, a autora se depara com a necessidade de compreender a relação do livro com os leitores e também com os autores na Antiga Roma. Essa compreensão é amplamente satisfeita no capítulo “O livro em Roma”, em que a autora não só comenta como o livro era formatado entre os romanos, como descreve os materiais utilizados na escrita, tanto aqueles voltados a livros mais elaborados quanto os destinados ao manuseio diário. Dessa forma, Leni Ribeiro Leite traz para o leitor não especializado uma noção exata da apresentação do livro para os antigos romanos, o que também é de grande serventia, especialmente para um estudante de Letras Clássicas. Há, entre os epigramas de Marcial, mais de duzentos poemas em que se apresenta o livro como referência, seja aludindo aos materiais de escrita, seja à própria leitura ou ao leitor. A partir desses epigramas Leite define as funções dos usos da figura do livro na obra de Marcial. A primeira delas é a de “pertencimento literário”, ou seja, Marcial se inclui nesses poemas como um escritor de epigramas; a segunda função é a de “pertencimento social”, Marcial se coloca como “poeta pobre e dependente de caridade” (p. 88), persona defendida pela autora como pertencente à tradição literária; a última função é a de “persona autoral”, que é apresentada nos epigramas em que Marcial fala de si e com os leitores (p. 93). Todas essas definições, utilizadas pela autora para definir Marcial e seu projeto poético, são apresentadas em cada uma das traduções dos 163 BORGES, Joana Junqueira; VIEIRA, Brunno Vinicius Gonçalves. Leite, L.: ..., p. 161-163 epigramas de Marcial. Cada poema vem acompanhado de sua versão em latim, língua que é muitas vezes explorada por Leite para sua argumentação, no entanto, o uso desse idioma é feito de maneira bastante clara (quase sempre acompanhado de uma tradução, quando há a necessidade, e quando não, trata-se de um termo cognato), de modo que mesmo o leitor que não esteja ambientado no latim consegue compreender totalmente suas associações e comentários. A utilização de autores modernos, de suas próprias traduções, da comparação com outros autores antigos como Horácio, Juvenal, Plínio e Catulo fazem com que o livro traga para os leitores, sejam ou não especialistas, uma noção da amplitude e da importância de Marcial como fonte de informações sobre estrutura, circulação e uso do livro em Roma. Além desse valor histórico-documental, Marcial e o livro passa a ser essencial para quem pretende se aprofundar no gênero epigramático, uma vez que ao tratar do livro na obra de Marcial, Leni Ribeiro Leite trata da própria essência desse perspicaz e divertido poeta romano.