UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS SOCIAIS VINÍCIUS PIRES DESCRIÇÕES PORTUGUESAS E FRANCESAS ACERCA DOS NATIVOS DA COSTA BRASILEIRA ENTRE 1549 E 1615: APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS DESSES OLHARES FRANCA 2012 VINÍCIUS PIRES DESCRIÇÕES PORTUGUESAS E FRANCESAS ACERCA DOS NATIVOS DA COSTA BRASILEIRA ENTRE 1549 E 1615: APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS DESSES OLHARES Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como exigência final para obtenção do título de Mestre em História. Área de concentração: História e Cultura. Linha de pesquisa: História e Cultura Social. Orientadora: Profª. Drª. Ana Raquel Marques da Cunha Martins Portugal. FRANCA 2012 Pires, Vinícius Descrições portuguesas e francesas acerca dos nativos da costa brasileira entre 1549 e 1615 : aproximações e distanciamentos des- ses olhares / Vinícius Pires. Franca: [s.n.], 2012. 104 f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências Humanas e Sociais. Orientador: Ana Raquel Marques da Cunha Martins Portugal 1. Índios da América do Sul – Brasil. 2. Brasil – História – Período Colonial – 1500-1822. 3. Relações interculturais. CDD – 981.021 VINÍCIUS PIRES DESCRIÇÕES PORTUGUESAS E FRANCESAS ACERCA DOS NATIVOS DA COSTA BRASILEIRA ENTRE 1549 E 1615: APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS DESSES OLHARES Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como exigência final para obtenção do título de Mestre em História. Área de concentração: História e Cultura. Linha de pesquisa: História e Cultura Social. BANCA EXAMINADORA Orientadora: _______________________________________________________________ Profª. Drª. Ana Raquel Marques da Cunha Martins Portugal Primeiro(a) examinador(a): ___________________________________________________ Segundo(a) examinador(a): ___________________________________________________ Franca, _____ de _______________ de 2012. Para Kátia e Norma. AGRADECIMENTOS À minha orientadora e amiga Ana Raquel Portugal, pelo prazeroso trabalho de orientação ao longo dos seis últimos anos e pelo profissionalismo. Muito obrigado pela paciência e confiança. Aos professores doutores da Universidade do Porto, onde realizei estágio de pesquisa em 2010: Armando Luís Gomes de Carvalho Homem, por acolher nossos estudos no Departamento de História e Estudos Políticos e Internacionais da Faculdade de Letras; Gaspar Martins Pereira por receber a pesquisa no Centro de Investigação Transdisciplinar “Cultura, Espaço e Memória” (CITCEM) e, Amélia Polónia pela carinhosa recepção nas dependências da Faculdade, pela leitura, comentários e sugestões, bibliográficas e teóricas, acerca do projeto de pesquisa e também por supervisionar minhas investigações nas bibliotecas universitárias e de especialidades. Aos professores doutores Ivan Aparecido Manoel e Marisa Saenz Leme pelas contribuições no exame de qualificação. Às professoras doutoras Eliane Deckmann Fleck, Maria Regina Celestino de Almeida e Marina de Mello e Souza, pelos e-mails, encontros e pareceres enriquecedores que auxiliaram a realização deste trabalho. Aos professores doutores Moacir Gigante, Márcia Capelari Naxara que, assim como a professora Marisa Saenz Leme, ministraram aulas durante a graduação e contribuíram para o meu desenvolvimento acadêmico. À Maísa Helena de Araújo, supervisora da Seção Técnica da Pós-Graduação do curso de História, por sempre esclarecer e solucionar as minhas dúvidas em relação aos documentos requeridos e aos prazos estipulados pelo Programa. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e à Pró- Reitoria de Pós-Graduação da UNESP (PROPG) pelo apoio financeiro à pesquisa. De maneira mais que especial, agradeço à minha amiga Norma pelo apoio, conselhos, broncas e sorrisos ao longo de toda a minha vida. Aos amigos da Pós: Cristiane Olegário, Danielle Mércuri, Dominique Monge, Lílian Martins, Maria Emília Granduque e Thiago Simoni. Muito obrigado pelos esclarecedores debates acadêmicos e agradáveis conversas sobre tudo e todos. Aos amigos Ana Renata Assis, Joaquim de Oliveira Neto e Karine de Almeida que, mesmo morando em outras cidades, sempre que podem, aparecem. Essas visitas me trazem alegrias e ânimo para continuar em Franca. Aos amigos francanos e de profissão Carlos Antônio Reis, Luís Otávio Rosa, Melina Limonta e Ricardo Mércuri. Obrigado pela constante companhia e por compartilharem comigo os prazeres e as agonias da prática docente. À Kátia, pelo incentivo, carinho e paciência, como também pelas contribuições a esta pesquisa. Mãe Simone (in memoriam) e vó Nayr (in memoriam)... sempre amarei vocês! Disse Vespúcio, numa passagem que se tornou célebre, que é lícito designar como “novo mundo” as regiões que visitou durante a viagem por duas razões. A primeira, porque ninguém antes soube que existiam; a segunda, porque é opinião comum que o hemisfério Sul estava ocupado somente pelo Oceano. Bem, parece claro que esses dois motivos justificam qualificar as regiões a que se refere Vespúcio como algo “novo” no sentido de recém achadas e não previstas. Mas, por que há de ser lícito considerá-las como um “mundo”? Edmundo O’Gorman, A invenção da América, 1992. PIRES, Vinícius. Descrições portuguesas e francesas acerca dos nativos da costa brasileira entre 1549 e 1615: aproximações e distanciamentos desses olhares. 2012. 104 f. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2012. RESUMO Nosso objetivo principal consiste em mapear os relatos de portugueses e de franceses que se dedicaram a apresentar e narrar os indígenas da costa brasileira e seus costumes para o público europeu, buscando analisar as possíveis aproximações e distanciamentos desses relatos no que diz respeito às descrições sobre tais índios. Depois disso, procuraremos evidenciar, ainda através dos documentos, que as relações estabelecidas entre os nativos e os brancos também foram pautadas pelos interesses, vontades e acordos propostos pelos indígenas, assim, somos levados a repensar a inclusão desses índios na história colonial brasileira não mais como vítimas apáticas e desprovidas de anseios, mas sim como sujeitos que produziram e viveram suas próprias histórias. Os documentos aos quais fazemos referência foram produzidos, majoritariamente, de meados do século XVI, mais especificamente a partir de 1549, o ano da chegada dos jesuítas na jovem colônia portuguesa, até 1615, quando o projeto francês que visava instalar uma colônia no litoral maranhense, a França Equinocial, foi desfeito. Palavras-chave: Brasil; séculos XVI e XVII; narrativas coloniais; contatos interétnicos; europeus; indígenas. PIRES, Vinícius. French and Portuguese descriptions regarding the native people of the Brazilian coast between 1549 and 1615: connections and differences between these views. 2012. 104 p. Paper (Master’s Degree in History) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2012. ABSTRACT Our main goal is to map the reports made by Portuguese and French explorers who devoted themselves to presenting and describing the native inhabitants of the Brazilian coast and their habits to the Europeans, aiming at analyzing the possible connections and differences among these reports concerning the descriptions of such people. Afterwards, we expose, still through these documents, the fact that the relationships established between the native and foreign people were also motivated by the interests, desires, and arguments presented by the indigenous Brazilians. Thus, we are led to reconsider the inclusion of these natives in the Brazilian colonial history no longer as listless and wishless victims, but now as the subject and creators of their own stories. The documents used as our reference were produced in the mid-16th century, specifically from the year 1549, when the Jesuits first set foot in the new Portuguese colony, to 1615, when the French project that aimed at establishing a colony in the coast of Maranhão, the Equinoctial France, was canceled. Key words: Brazil; 16th and 17th centuries; colonial narratives; interethnic contacts; Europeans; indigenous Brazilian people. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO..................................................................................................................11 CAPÍTULO 1 O BRASIL FRANCÊS EM SUAS DUAS FORMAS..................................17 1.1 A França Antártica (1555 - 1560)....................................................................................21 1.2 A França Equinocial (1612 - 1615)..................................................................................27 CAPÍTULO 2 PRIMEIRAS IMAGENS DA NATUREZA E DOS HABITANTES DO BRASIL....................................................................................................................................43 2.1 Exaltação e degeneração da natureza.............................................................................44 2.2 Idealização e degeneração dos nativos............................................................................62 CAPÍTULO 3 A ATUAÇÃO INTERÉTNICA DOS INDÍGENAS SOB A PENA DE PORTUGUESES E DE FRANCESES..................................................................................69 3.1 Perspectivas teóricas de análise.......................................................................................69 3.2 Os interesses, as alianças e os acordos, de guerra ou de paz, entre os índios e os não- índios........................................................................................................................................76 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................94 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................................97 11 APRESENTAÇÃO De início, cabe aqui mencionar que abarcaremos nesta pesquisa relatos de viagens, descrições, tratados, crônicas, sermões, diálogos, cartas portuguesas e francesas acerca da natureza e dos habitantes do Brasil. Estes textos foram produzidos, em sua grande maioria, entre meados do século XVI, mais especificamente a partir de 1549, o ano da chegada dos jesuítas na jovem colônia portuguesa, e o ano de 1615, quando os normandos foram expulsos definitivamente do Maranhão pelas tropas lusas. Deve-se mencionar que, apesar da variedade de gênero, tal produção textual não foi extensa, uma vez que os portugueses não tinham o hábito de escrever textos divulgando as novas terras, bem como não foram muitos os viajantes franceses, nesse período, que passaram pelo Brasil. Variados foram os discursos acerca dos nativos do Novo Mundo durante o século XVI e início do século XVII e, juntamente à colonização territorial, encontramos a conquista espiritual, buscada pelos religiosos, atrelada a um novo modelo literário que conhecerá grande sucesso e eficiência: as cartas.1 Dentre outros religiosos, os relatos dos padres António Blazquez, Jácome Monteiro, Luís da Grã e Manuel da Nóbrega, do qual se destacaram a Informação da Terra do Brasil (escrita em 1549), Diálogo sobre a Conversação do Gentio (escrito em 1557), Informação das Coisas da Terra e Necessidade que há para Bem Proceder Nela (escritas em 1558) e Tratado Contra a Antropofagia (escrito em 1559), encontram-se organizados nas obras do padre Serafim Leite que, consciente da importância destas cartas, continuou o trabalho já iniciado por historiadores do IHGB que, desde 1885, se tinham empenhado em localizar e publicar relatos dos inacianos. Trabalhando nos arquivos da Companhia em Roma, Portugal e Espanha, Serafim Leite localizou cartas perdidas, verificou datas, autores e destinatários, transcreveu e, em seguida, as publicou.2 Utilizaremos em nossa pesquisa a edição: LEITE, Serafim (Org.). Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil. vols. I, II e III. São Paulo: Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, 1954. Também faremos referência a outra organização do jesuíta: LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil, vols. I, II, III, IV e V. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000. Os volumes, de ambas as organizações, foram divididos temporalmente pelo autor de acordo com as datas dos documentos. Para nos referirmos aos textos de José de Anchieta, utilizaremos duas compilações das cartas escritas e recebidas por ele durante toda sua estadia no Brasil, importantes exemplares 1 Cf. CUNHA, Manuela Carneiro da. Imagens de índios do Brasil: o século XVI. Estudos Avançados, vol. 4, nº 10. São Paulo: Edusp, 1990. p. 91. 2 Cf. LONDOÑO, Fernando Torres. Escrevendo cartas: jesuítas, escrita e missão no século XVI. In: Revista Brasileira de História, vol. 22, nº 43. São Paulo: Associação Nacional de História, 2002. p. 52. 12 do conjunto epistolar jesuítico quinhentista, principal vínculo comunicativo entre o missionário, seus superiores e seus subordinados. As edições que utilizaremos são: ANCHIETA, José de. Cartas: correspondência ativa e passiva. São Paulo: Editora Loyola, 1984 e Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1988. Esta versão foi preparada a partir da edição de 1933, com prefácio de Afrânio Peixoto e notas de Alcântara Machado (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira). Além da fauna e da flora, Pero de Magalhães Gandavo relatou acerca dos primórdios da colonização, das distintas tribos indígenas e descreveu as diversas capitanias em que se dividia o território brasileiro. Traçou, por fim, um retrato das potencialidades da colônia portuguesa, bem como a vastidão territorial e seus recursos econômicos; em outras palavras, Gandavo realizou um apelo à fixação dos lusitanos na nova província através de uma espécie de propaganda de incentivo à migração. Ambos os textos foram redigidos na década de 1570, inclusive, a História da Província de Santa Cruz foi impressa, pela primeira vez, em Lisboa por Antônio Gonçalves no ano de 1576 e foi traduzida logo de imediato para o castelhano. Já o seu Tratado da Terra do Brasil permaneceu inédito até o ano de 1826 quando foi publicado no 4º volume da Coleção de Notícias para a História da Geografia das Nações Ultramarinas. Utilizaremos em nosso trabalho a edição: GANDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da terra do Brasil; História da Província de Santa Cruz. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1980. Membro de uma expedição naval que se destinava à África, mas que teve sua rota desviada, Gabriel Soares de Sousa estabeleceu-se na Bahia em 1569 e montou o engenho de Jaguaripe. Voltou a Portugal somente em 1584 para conseguir da corte o privilégio de explorar minérios e pedras preciosas ao longo do rio São Francisco. Enquanto aguardou o consentimento régio, escreveu seu famoso tratado em 1587, dividido em duas partes: Roteiro Geral e Memorial das Grandezas da Bahia, descrevendo informações sobre os costumes indígenas, a agricultura desenvolvida por eles, os animais e as plantas do Brasil. A primeira publicação da obra foi realizada em Lisboa por Francisco Adolfo de Varnhagen no ano de 1851. A edição que utilizaremos é: SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. São Paulo: Companhia Editora Nacional e Edusp, 1971. Esta versão foi preparada a partir da primeira edição. O primeiro relato publicado na França, acerca da França Antártica, foi escrito pelo frade franciscano André Thevet entre 1555 e 1556. Apesar de causar grande discussão e polêmica por causa dos assuntos relatados, como, por exemplo, a antropofagia, a obra alcançou grande difusão na corte e foi impressa em duas edições seguidas, uma em 1557 e http://pt.wikipedia.org/wiki/Flora http://pt.wikipedia.org/wiki/Fauna 13 outra em 1558. Em seguida, no ano de 1561, foi impressa a edição italiana e, posteriormente, em 1568, saiu das prensas a edição inglesa. Utilizaremos em nossa pesquisa a edição: THEVET, André. As singularidades da França Antarctica: a que outros chamam de America. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1978. Entre os protestantes enviados por João Calvino à França Antártica, estava Jean de Léry que permaneceu na baía de Guanabara por quase um ano, de 1557 a 1558. De volta à terra natal, o huguenote concluiu seu primeiro manuscrito no ano de 1563, contudo, a obra se perdeu e foi reencontrada treze anos depois. Dessa maneira, a primeira publicação ficou pronta apenas em 1578. A edição que utilizaremos é: LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. São Paulo: Martins e Edusp, 1972. Esta edição foi preparada a partir da edição de 1580, ampliada e revisada pelo próprio Léry que, por sua vez, referiu-se à primeira edição de 1578. No contexto da França Equinocial, Claude d’Abbeville, em solo brasileiro desde 1612, escreveu Historie de la mission des pères capucins en l'isle de Maragnan et terres circonvoisines em 1614. A publicação da obra em edição luxuosa, assim como as cerimônias solenes e a impressão de gravuras que representavam os índios em posturas que remetiam à servidão, procurou encorajar novos aventureiros e preparar uma possível migração à colônia Equinocial. Utilizaremos em nosso trabalho a edição: ABBEVILLE, Claude d’. História da missão dos padres capuchinhos na Ilha do Maranhão e suas circunvizinhanças. São Paulo: Editora Siciliano, 2002. A obra de Yves d’Evreux, por fim, também conhecida como a Continuação da História das coisas mais memoráveis acontecidas no Maranhão nos anos de 1613 e 1614, foi escrita pelo capuchinho em 1615, contudo, conheceu sua primeira edição apenas em 1874. É um texto importante para o conhecimento da presença francesa no Brasil colonial e dos costumes indígenas da região e da época. A edição que utilizaremos é: EVREUX, Yves d’. Viagem ao norte do Brasil feita nos anos de 1613 e 1614. São Paulo: Siciliano, 2002. Depois de realizar esta sucinta exposição de alguns dos documentos mais referenciados nesta pesquisa,3 pontuaremos, também de forma concisa, os assuntos abordados em cada um dos três capítulos que compõem a dissertação. No primeiro, buscaremos explorar quais os possíveis interesses franceses, tanto da Coroa como de particulares, pelo Novo Mundo e, especialmente, pelo Brasil. Depois, procuraremos apresentar as distintas maneiras 3 Com exceção do primeiro capítulo, onde mantivemos a tradução elaborada por Andrea Daher dos documentos em francês citados em seu livro, Cf. DAHER, Andrea. O Brasil francês: as singularidades da França Equinocial: 1612-1615. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007; as traduções e as atualizações do português realizadas nos segundo e terceiro capítulos foram feitas por nós. 14 utilizadas na formação dos planos de colonização francesa em relação aos territórios brasileiros. Além disso, igualmente buscaremos entender os motivos pelos quais a América deixou de ser um mero caminho para o comércio com o Oriente e se tornou um local para possíveis estabelecimentos normandos. Para isso, priorizaremos quatro contextos que apresentam as relações estabelecidas entre os nativos da jovem colônia portuguesa e os franceses. Acerca da primeira metade do quinhentos, dissertaremos sobre a viagem de Binot Paulmier de Gonneville que, devido a um desvio na rota marítima de sua nau, que estava direcionada para o Oriente, teria aportado no litoral do atual Estado de Santa Catarina em 1504 e também sobre a suntuosa festa, realizada em 1550, que recepcionou o rei da França, Henrique II, e sua esposa Catarina de Médici em Rouen. Além desses eventos, entre 1555 e 1560, a baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, foi o palco de uma tentativa de estabelecimento francês liderado por Nicolas Durand de Villegagnon. Anos depois, entre 1612 e 1615, já no século XVII, uma segunda tentativa de colonização, dessa vez na região norte do território brasileiro, mais especificamente na atual capital do Maranhão, São Luís, foi elaborada por particulares, com a ajuda dos capuchinhos e com o aval da Coroa francesa. Juntamente com os colonos, religiosos e viajantes portugueses, os religiosos e viajantes franceses também registraram suas impressões sobre o Brasil, principalmente em relação à natureza e aos habitantes que faziam parte dela. No segundo capítulo, portanto, apresentaremos as primeiras imagens construídas pelos europeus acerca da natureza, onde a fertilidade do solo, a variedade da fauna, a exuberância da flora e o clima ameno foram, com algumas exceções, uma constante nos relatos do período. Sobre os nativos, no século XVI, é importante ressaltar que eles encontravam-se na porção territorial concedida a Portugal pelo Tratado de Tordesilhas, logo, foram as nações de língua guarani e, principalmente, tupi que contribuíram para a formação das primeiras representações dos indígenas. Os grupos localizados na região do rio Amazonas que, na época, era um rio de posse espanhola, não contribuíram diretamente para a formação dessas imagens. Na primeira carta sobre o Brasil e sobre os brasileiros, a ideia de que os índios não idolatravam coisa alguma é tão forte que Pero Vaz de Caminha acabou por iniciar duradouras e duvidosas imagens. Contudo, foram as cartas do cosmógrafo italiano Américo Vespúcio que tornaram notável a Terra de Santa Cruz e seus habitantes. Foi ele que descreveu pela primeira vez a antropofagia e dissertou acerca da longevidade indígena. A partir da década de 1550, o conhecimento em relação ao Brasil tornou-se mais preciso e uma das características que cada vez mais ganhou evidência no período foi a ausência de bens materiais entre os nativos, e o calvinista francês Jean de Léry foi um dos principais disseminadores dessa ideia. Outra representação amplamente difundida 15 na Europa foi a possível falta de valores políticos e religiosos entre os tupi. Gandavo, de maneira singular, foi o precursor desta ideia ao relatar que os nativos não tinham fé, nem lei, nem rei. Assim, é notável que estas primeiras impressões dos europeus diante da natureza e dos nativos, ao longo do quinhentos e início do seiscentos, passaram por consideráveis transformações. No terceiro e último capítulo, objetivamos destacar que os indígenas manifestaram-se como sujeitos ativos dentro dos processos de colonização, (re)agindo de várias maneiras e movimentando as oportunidades aos seus alcances para conquistarem seus objetivos. Utilizaremos, para auxiliar a leitura dos documentos, estudos históricos, antropológicos e etno-históricos que possibilitam o entendimento acerca das relações de contato entre as duas culturas amplamente distintas e mostram que muitas ocasiões foram possíveis e desabrocharam a partir dos benefícios buscados pelos próprios índios. Partindo dessas considerações, o conceito de “aculturação” transforma-se totalmente e, ao invés de opor-se à adaptação, passa a aceitá-la e a desenvolver-se junto com ela. Dessa maneira, procuraremos considerar que as relações estabelecidas entre índios e europeus também foram pautadas pelos interesses, vontades e acordos, de guerra ou de paz, propostos pelos indígenas e, com isso, somos levados a repensar a inclusão desses nativos na história colonial do Brasil não mais como vítimas apáticas e desprovidas de anseios, mas sim como sujeitos que produziram suas próprias histórias. Por fim, mas não menos importante, também cabe aqui mencionar que, entre os meses de junho e agosto de 2010, a pesquisa foi realizada junto à Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP) e ao Centro de Investigação Transdisciplinar “Cultura, Espaço e Memória” (CITCEM),4 em Portugal, sob a supervisão da professora doutora Amélia Maria Polônia da Silva, principal pesquisadora da equipe portuguesa do “Dynamic Complexity of Cooperation-Based Self-Organizing Networks in the First Global Age” (DynCoopNet), que avalia os mecanismos de cooperação e os modelos de análise de redes informais e auto- 4 O Centro foi criado em 15 de maio de 2007, agregando investigadores de várias proveniências e integrando quatro Unidades de Investigação: Centro Interuniversitário de História da Espiritualidade (CIUHE); Instituto de História Moderna (IHM-UP); Núcleo de Arqueologia da Universidade do Minho (NARQ); e Núcleo de Estudos Literários (NEL). A Unidade tem como instituições de acolhimento a Faculdade de Letras da Universidade do Porto e a Universidade do Minho (Braga) e é composta por cerca de 300 investigadores de História e de outros domínios científicos, como os Estudos Culturais e Literários, a Arqueologia, a História da Arte, a Demografia Histórica, a Ciência da Informação, a Antropologia, a Museologia e a Arquitetura, organizados em cinco grupos de investigação: “História das populações” (Coord.: Carlota Santos, ICS-UM); “Memória, patrimônio e construção de identidades” (Coord.: Gaspar Martins Pereira, FLUP); “Multiculturalidade e diálogo internacional” (Coord.: John Greenfield, FLUP); “Paisagens, fronteiras e poderes” (Coord.: Maria Augusta Lima Cruz, ICS-UM); “Sociabilidades, práticas e formas de sentimento religioso” (Coord.: Zulmira Santos, FLUP). Para maiores informações sobre o CITCEM, seus eventos e conferências, acessar o site . Acesso em 29 jul. 2010. 16 organizadas na época moderna, especialmente no período da expansão marítima e colonial dos países europeus.5 Vale destacar, ainda, que o vínculo do estágio no exterior foi possível devido ao convênio entre o Departamento de História da UNESP/Franca e o Departamento de História e de Estudos Políticos e Internacionais (DHEPI) da Universidade do Porto, que não se restringe apenas ao intercâmbio de docentes e de publicações, mas também é um intercâmbio para os alunos das duas instituições. 5 Cf. POLÓNIA, Amélia (Coord.). Projeto DynCoopNet de Portugal. Disponível em: . Acesso em 29 jul. 2010. http://dyncoopnet-pt.org/ http://dyncoopnet-pt.org/ 17 CAPÍTULO 1 O BRASIL FRANCÊS EM SUAS DUAS FORMAS Na História da Província de Santa Cruz, publicada em 1576, o viajante português Pero de Magalhães Gandavo descreveu que além do “[...] pouco caso que os portugueses fizeram sempre da mesma província [o Brasil], os estrangeiros a tem noutra estima e sabem suas particularidades melhor e mais de raiz que nós”1. Em 1627, Frei Vicente do Salvador, apontado como o primeiro historiador brasileiro2, ainda chamou a atenção para a forma com que os portugueses lidavam com as terras por eles conquistadas: [...] da largura que a terra do Brasil tem para o sertão não trato, porque até agora não houve quem a andasse por negligência dos portugueses, que, sendo grandes conquistadores de terras, não se aproveitam delas, mas contentam-se de as andar arranhando ao longo do mar, como os caranguejos.3 Essas passagens consideram o desamparo, pelos lusitanos, de suas terras no Novo Mundo, graças aos interesses, quase que exclusivos, de comércio, de reflexão e de conhecimento pelas Índias. Ademais, é intenso o alerta que Pero de Magalhães Gandavo faz sobre os grandes perigos e problemas que os estrangeiros, principalmente os franceses, poderiam causar se as terras portuguesas ficassem por mais tempo desamparadas, pois, de maneira geral, com exceção de Portugal, todos os países europeus que estabeleceram contato com o Novo Mundo fascinaram-se de imediato por ele e pelas suas possibilidades, tanto materiais quanto filosóficas: a Espanha dedicou-se ao México e ao Peru, a Inglaterra dedicou-se à Flórida, e a França, sobretudo, dedicou-se ao Brasil.4 Outro argumento que corrobora essa dita desatenção inicial é o de que a primeira carta portuguesa sobre a então Terra de Vera Cruz e seus habitantes, escrita por Pero Vaz de Caminha, permaneceu inédita nos arquivos da Coroa até 1773.5 1 GANDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da terra do Brasil; História da Província de Santa Cruz. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1980. p. 76. 2 Nascido na cidade de Salvador, o franciscano é considerado o “pai” da história brasileira por redigir a primeira obra que versa sobre o passado da então jovem colônia de Portugal, como registra BETHENCOURT, Francisco; CHAUDHURI, Kirti (Orgs.). História da expansão portuguesa: do Índico ao Atlântico (1570-1697), vol. II. Lisboa: Círculo de Leitores, 1998. p. 397. 3 SALVADOR, Vicente do. História do Brasil: 1500-1627. São Paulo: Melhoramentos, 1975. p. 59. 4 Além do Brasil, o Canadá (1535-1543) e a Flórida (1562-1565) deram lugar às outras experiências coloniais francesas na América durante o século XVI. 5 Em relação à escassa divulgação dos novos conhecimentos adquiridos com a expansão e a possível existência de uma política de sigilo acerca dos descobrimentos portugueses, para evitar, entre outros motivos, a concorrência com outros reinos, consultar CORTESÃO, Jaime. A política de sigilo nos descobrimentos. Lisboa: Imprensa Nacional e Casa da Moeda, 1996. Outros historiadores, em contrapartida, defendem a impossibilidade de uma política de sigilo nos séculos XV e XVI, e a ausência de informações sobre os planos de expansão além-mar se justificaria, pois narrar os possíveis descobrimentos não era o principal interesse do 18 Anterior aos escritos portugueses acima expostos, o primeiro navio francês em terras americanas de que se tem notícia foi o de Binot Paulmier de Gonneville, Andrieu de la Maré e Antoine Thiéry6 que, devido a um desvio em sua rota marítima, teria aportado no litoral do atual Estado de Santa Catarina em 1504. Quando retornaram à França, um ano depois, segundo o depoimento que fizeram a um escrivão real,7 Gonneville e seus sócios narram que resolveram armar um navio e partir para o Oriente, após notarem “[...] as belas riquezas de especiarias e outras raridades”8 vindas de Calicute, quando faziam comércio no porto de Lisboa, em Portugal. Isso porque, nessa época, a relação era intensa entre os portos da Normandia e de Lisboa, especialmente na negociação de trigo e de tecidos, da parte francesa, e de especiarias e outras curiosidades, como relatou Gonneville, que os lusitanos traziam de além-mar.9 Segundo o depoimento, depois de obterem informações de navegadores que já haviam feito a viagem para Calicute e de contratar dois pilotos portugueses, Sebastião de Moura e Diogo Coutinho, Gonneville e seus sócios aparelharam somente um navio, carregando-o da maneira que os navegadores lusos recomendaram: com pentes, espelhos, facas, veludo, todo o tipo de quinquilharia e, principalmente, “[...] tudo igual ao que costumam carregar os portugueses, por serem essas coisas, do lado de lá e no caminho, as de melhor tráfico.”10 Não só o carregamento, mas também o trajeto desenhado estava de acordo com a rota que os portugueses haviam estabelecido para chegar às Índias Orientais,11 contornando o continente africano. No entanto, de acordo com os depoentes, após fazer algumas escalas nas Canárias e em Cabo Verde, o navio enfrentou fortes tempestades, dessa maneira, seu percurso foi período, que glorificava os monarcas a partir de outros parâmetros. Sobre o assunto, consultar ALBUQUERQUE, Luís de. Dúvidas e certezas na história dos descobrimentos portugueses. Lisboa: Vega, 1990. 6 Sobre o assunto, consultar PERRONE-MOISÉS, Leyla. Vinte luas: viagem de Paulmier de Gonneville ao Brasil: 1503-1505. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 7 O inventário da viagem do capitão Gonneville, de autoria conjunta, é uma espécie de registro dos artigos perdidos no naufrágio da embarcação ao retornar à França em 1505. É uma obra conjunta porquanto é o depoimento de Gonneville e de seus sócios a um escrivão da coroa, com vistas a receberem uma indenização, uma vez que padeceram diante de piratas ingleses. Por ser um depoimento narrado, o texto foi escrito, pelo escrivão, na terceira pessoa do plural, com os incisos principiados em “dizem que” e outras expressões similares. Cf. Ibid., p. 77. 8 GONNEVILLE, Binot Paulmier de. Relação da viagem do Capitão de Gonneville às Novas Terras das Índias. Disponível em: . Acesso em 14 nov. 2010. 9 Cf. PERRONE-MOISÉS, Leyla. op. cit. p. 38. 10 GONNEVILLE, Binot Paulmier de. op. cit. 11 Sobre o pioneirismo português em relação ao expansionismo marítimo europeu, consultar THOMAZ, Luís Filipe. Expansão portuguesa e expansão europeia: reflexões em torno da gênese dos descobrimentos. In: Id. De Ceuta a Timor. Lisboa: Difel, 1994. 19 alterado e, depois de alguns meses navegando pelo Atlântico, o capitão conseguiu alcançar a foz de um rio desconhecido.12 Interessados em uma possível indenização da Coroa, Gonneville e seus sócios, no depoimento acerca dos seis meses em que permaneceram no litoral do Novo Mundo, se colocaram mais preocupados com o estado da embarcação do que em descrever os nativos e seus costumes ou a natureza exótica do lugar, por isso, o que relataram ao escrivão é um inventário das mercadorias levadas para fazer escambo no Oriente e do carregamento trazido daquele lugar, que foram perdidos num naufrágio após o ataque de piratas ingleses no Canal da Mancha. Entre as mercadorias perdidas, estaria um carregamento de pau-brasil, plumas e animais.13 Destarte, podemos conceber que a primeira passagem de um navio francês por terras americanas teria ocorrido de maneira acidental, ou seja, o objetivo de Gonneville e de seus sócios seria ir em busca das especiarias e das outras fortunas disponíveis no comércio oriental, realizando a mesma rota que Vasco da Gama fizera alguns anos antes, contornando a África. Mas, para que a viagem não se tornasse um grande prejuízo, após os reparos necessários para voltar à França, os normandos carregaram o navio com pau-brasil e outros artigos que eles poderiam vender na Europa. Além de apontar que o interesse dos comerciantes, inclusive dos negociantes franceses, ainda residia no mercado oriental, a viagem de Gonneville é um modelo dos empreendimentos privados das cidades portuárias francesas em relação ao comércio marítimo, que, de maneira geral, permaneceria assim durante a primeira metade do século XVI. Por sua vez, a partir da década de 1530, a Coroa francesa procurou participar mais ativamente das campanhas marítimas agenciadas pelos seus súditos. Os alvos passaram a ser os territórios que poderiam ser explorados sem entrar em conflito com a Espanha ou com Portugal. Para Francisco I, o Tratado de Tordesilhas, firmado entre as nações ibéricas, fazia alusão apenas às regiões por elas descobertas, o que abria espaço para a ação francesa nos territórios descobertos pelos próprios franceses ou já conhecidos dos europeus.14 Mas, a ideia de explorar essas regiões ao norte do Novo Mundo seria, ainda, alimentada pela esperança de chegar ao Oriente por uma passagem situada nessas terras. Outro apontamento, no entanto, que permite afirmarmos com mais garantia a assiduidade das viagens francesas aos territórios portugueses, diz respeito a um evento 12 Provavelmente a foz do rio São Francisco do Sul, localizada no atual Estado de Santa Catarina. 13 Cf. GONNEVILLE, Binot Paulmier de. op. cit. 14 Cf. BONNICHON, Philippe. Los navegantes franceses y el descubrimiento de América: siglos XVI, XVII y XVIII. Madrid: MAPFRE, 1992. p. 72. 20 bastante pitoresco sucedido em 1550 na cidade de Rouen,15 apontado por alguns historiadores16 como o maior episódio representativo do interesse francês pelas terras americanas. Na ocasião, os citadinos de Rouen prepararam um suntuoso festejo para recepcionar o rei da França, Henrique II, e a sua esposa, Catarina de Médici. Somado às solenidades religiosas e às arguições oficiais, os organizadores montaram um espetáculo singular: a exibição do cotidiano indígena do Novo Mundo.17 A interpretação aconteceu às margens do rio Sena, onde pequenos barcos e grandes navios serviram de alegoria para a comercialização entre as naus francesas e os selvagens no litoral americano. Um pouco mais distante do rio, numa espécie de arena, as singelas árvores locais foram ornamentadas com vistosas folhagens e frutas embarcadas da região costeira do Brasil. Macacos, papagaios e outras tantas espécies de aves foram levadas para que representassem toda a grandeza da flora e da fauna do Novo Mundo. No centro da arena, reproduziram uma aldeia indígena, com algumas ocas e diversas redes suspensas nas árvores.18 Nesse cenário, cerca de cinquenta nativos brasileiros eram confundidos com os duzentos franceses, completamente nus e amorenados. Enquanto alguns interagiam com os seus arcos e as suas flechas, outros permaneceram deitados nas ocas e nas redes. Em uma das margens do rio Sena, intérpretes meticulosamente caracterizados faziam alusão ao escambo, carregando troncos de pau-brasil para o interior das embarcações francesas e, em troca, recebiam espelhos e machados. O ápice do espetáculo ocorreu quando a aldeia dos indígenas que comercializava com os franceses foi atacada por uma tribo inimiga, incendiando as suas ocas e dando início a um combate diante dos admirados espectadores europeus.19 Este singular espetáculo realizado pela cidade normanda nos proporciona considerar que a materialização de tal festividade não seria plausível sem alguns intercâmbios anteriores entre a França e o Brasil,20 afinal, agrupar cinquenta indígenas e duzentos franceses, todos despidos como os selvagens americanos, além das plantas e dos animais, e ainda, reproduzir 15 Cf. FRANCO, Afonso Arinos de Melo. O índio brasileiro e a Revolução Francesa: as origens da teoria da bondade natural. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976. p. 48. 16 Dentre os historiadores, destaca-se o artigo de MOLLAT, Michel. As primeiras relações entre a França e o Brasil: dos Verrazano a Villegaignon. In: Revista de História, v. 34, nº 70. São Paulo: Edusp, 1967. p. 343- 358. 17 Torneios e cavalhadas eram festas usuais na época e Henrique II fora festejado em Lion tempos antes, logo, Rouen não mediu esforços para superar a outra cidade em pompa e magnificência. Ademais, os normandos teriam escolhido os nativos do Brasil – e não os do Canadá, do Peru ou do México, com estruturas sociais mais organizadas – porque eles eram os verdadeiros representantes do estado natural de inocência e bondade. Cf. FRANCO, Afonso Arinos de Melo. op. cit. p. 47. 18 Cf. Ibid. p. 50. 19 Com esta apoteose final, onde os tabajara, aliados dos lusitanos, atacaram a aldeia tupinambá, os aliados dos franceses que mesmo diante da surpresa do embate venceram seus inimigos, evidenciou-se também um capítulo da áspera luta que portugueses e normandos travaram em território brasileiro. Cf. Ibid. p. 64. 20 Cf. BONNICHON, Philippe. op. cit. p. 38. 21 um modesto povoado nativo em território europeu em meados do século XVI, só poderia acontecer depois de um precedente acúmulo de relações com os índios e, não menos importante, para uma plateia ávida de informações sobre o Novo Mundo.21 Episódio primordial para alterar as formas de ligação da França com a América, o extraordinário evento realizado em Rouen também é significante para evidenciar o quanto os franceses conheciam do Brasil. Informações conseguidas, possivelmente, através da frequência dos navios franceses nesses terrenos.22 Por isso, não é surpreendente que o Brasil tenha sido o espaço escolhido para sediar a primeira tentativa francesa de colonização na América, com intenções específicas de explorar o Novo Mundo e não de encontrar novos caminhos para o Oriente. Porém, os preparativos para esse estabelecimento, alcunhado de França Antártica, são bem anteriores aos arranjos para a empreitada conduzida por Nicolas Durand de Villegagnon. Quando Francisco I faleceu, em 1547, a navegação francesa perdeu um grande impulsionador, mas, em contrapartida, ganhou Henrique II, seu herdeiro, que estava convicto em melhorar o aparato náutico francês. Além de navios de guerra, ele investiu em novas embarcações para o comércio atlântico, acrescentando às quatros naus e aos três galeões herdados de Francisco I, cinco novos navios e vinte embarcações com boa artilharia no final de 1549.23 Henrique II não teria só atentado para a sua esquadra naval, mas, também, rearranjou a disciplina, o recrutamento e a direção da marinha na França e, por fim, a iniciação da nobreza francesa nas funções marítimas garantiu a instrução de cento e vinte homens destinados a se tornarem oficiais.24 E é dentro dessa perspectiva de incentivo e renovação que os primeiros esboços sobre a França Antártica começaram a ser vislumbrados. 1.1 A França Antártica (1555 - 1560) A pioneira tentativa de instalação francesa no Brasil é bastante conhecida pelos estudiosos que se dedicam à história colonial franco-brasileira do século XVI.25 Em 1551, um ano após a festa em Rouen, Henrique II enviou o piloto e cartógrafo Guillaume Le Testu para 21 Cf. Ibid. p. 45. 22 No final da década de 1540, vários navios franceses foram vistos no litoral do atual Estado do Rio de Janeiro. Em 1547, oito embarcações foram avistadas e, no ano seguinte, sete naus francesas foram vistas. Assim, podemos considerar que mesmo com a expedição portuguesa comandada por Martins Afonso de Souza, que chegou ao Brasil em 1531, os corsários franceses continuaram navegando pelo litoral carioca. Cf. SERRÃO, Joaquim Veríssimo. O Rio de Janeiro no século XVI, vol. I. Lisboa: Comissão Nacional das Comemorações do IV Centenário do Rio de Janeiro, 1965. p. 46. 23 Cf. BONNICHON, Philippe. op. cit. p. 119. 24 Cf. Ibid. p. 121. 25 A bibliografia sobre o assunto é extensa, contudo, as obras mais referenciadas são as de Frank Lestringant, dentre as quais destaca-se LESTRINGANT, Frank. Le huguenot et le sauvage: l’Amérique et la controverse coloniale, en France, au temps des guerres de religion. Paris: Aux Amateurs de Livres, 1990. 22 fazer uma viagem de reconhecimento na região sul do continente americano, buscando verificar e organizar as informações recolhidas anteriormente, tendo em vista inventariar os recursos e as possibilidades para um futuro estabelecimento.26 O frade e cosmógrafo André Thevet era um dos tripulantes desta expedição investigativa. Segundo o relato, o navio saiu em junho do porto de Dieppe, na França, e chegou ao litoral brasileiro somente em dezembro, onde ficaram aproximadamente cerca de seis meses explorando a costa, do Maranhão à região do rio da Prata.27 As principais personalidades da nobreza francesa, como a consorte do regente, Catarina de Médici, foram presenteadas com os raros artigos levados do Brasil por Thevet que, como almejava o religioso, causaram grande admiração e curiosidade. Porém, qualquer projeto mais ousado com relação à América ficou, neste momento, em segundo plano, pois em 1552, Henrique II assinou o Tratado de Chambord com os príncipes alemães e recomeçou o conflito com Carlos V, da Espanha.28 Já em 1553, Nicolas Durand de Villegagnon, o Cavaleiro de Malta, apresentou um plano de colonização na América do Sul ao almirante Gaspard de Coligny,29 mas Henrique II ordenou a elaboração de uma expedição ao Brasil apenas no ano seguinte. Villegagnon, interessado nesse projeto, teria navegado ao Rio de Janeiro, também, para uma viagem investigativa. Tal expedição, camuflada de intenções comerciais e indispensável para conseguir informações relevantes para o futuro do empreendimento, foi rápida se a compararmos com as outras, pois os franceses não queriam despertar a atenção dos portugueses.30 Cabe aqui ressaltar que um plano de estabelecimento na América do Sul agradava a monarquia, mas, agradava principalmente, os mercadores franceses que, constantemente, enviavam seus navios para essas terras em busca do pau- brasil. Esse projeto de colonização poderia, assim, assegurar as iniciativas particulares direcionadas à região. Com o apoio dos principais grupos políticos e religiosos franceses, como o do Cardeal de Lorraine, dirigente da Igreja Católica na França, Villegagnon teria começado os preparativos para a sua campanha. Contudo, segundo o huguenote Jean de Léry, em Viagem à Terra do Brasil, Villegagnon conseguiu esse apoio após anunciar seu projeto de encontrar uma terra de descanso para todos aqueles que eram atormentados na França, além de oferecer 26 Cf. BONNICHON, Philippe. A França Antártica. In: História Naval Brasileira, v. 1. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação Geral da Marinha, 1975. p. 423. 27 Cf. Ibid. p. 425. 28 Cf. MARIZ, Vasco (Org.). Brasil França: relações históricas no período colonial. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2006. p. 54. 29 Cf. BONNICHON, Philippe. op.cit. p. 96. 30 Cf. MARIZ, Vasco. op. cit. p. 77. 23 boa reputação, prestígio e proveito para o reino francês. Propondo esses compromissos, logo foram colocados à sua disposição três navios, armados com artilharia e abastecidos com munições, e cerca de dez mil francos para as despesas com a tripulação e para a construção de um forte.31 Contudo, em busca de “[...] homens crentes, pacientes e de bem, interessados em ver criada uma comunidade a serviço de Deus”, a primeira dificuldade enfrentada teria sido o recrutamento dos viajantes, uma vez que quem mais se predispôs, segundo Léry, foram os “[...] homens rústicos e desprovidos de instrução, de castidade e de civilidade, homens engolfados em vícios, dissolutos e vilões”,32 que, ainda segundo o calvinista, teriam grande culpabilidade em relação aos rumos que a França Antártica tomaria. Da França ao Brasil, a travessia durou aproximadamente três meses e, em 10 de novembro de 1555, a considerável esquadra de Villegagnon, com o corpo expedicionário formado por soldados, artesãos e religiosos, dentre estes o capelão André Thevet, escritor das Singularidades da França Antártica,33 chegou à baía de Guanabara. Depois de passar por várias ilhotas e percorrer a baía, a frota decidiu se instalar. Segundo o cosmógrafo, os viajantes foram recepcionados por aproximadamente quinhentos selvagens, completamente despidos, carregando arcos e flechas. Tais índios lhes receberam muito bem e também lhes ofertaram presentes.34 Thevet ainda relatou que os indígenas lhes arrumaram um “[...] palácio à moda da terra” para que se acomodassem. Diversos víveres chegavam a todo tempo, principalmente alimentos feitos da mandioca e de outros tubérculos. Assim ficaram durante dois meses, até realizarem o reconhecimento local e encontrarem um lugar apropriado para a instalação do forte.35 Temendo a hostilidade dos lusitanos, preocupados em conservar sua hegemonia na região contra quaisquer invasores, os franceses construíram o forte. Porém, o Cavaleiro de Malta perpetrou atitudes e posturas muito rígidas no interior de sua colônia, o que originou a insatisfação de grande parte dos colonos e agravou as divergências religiosas já existentes entre católicos e protestantes. Motins acabaram deflagrando-se, obrigando Villegagnon, no início de 1556, a escrever para Calvino, seu condiscípulo da Faculdade de Direito de Orléans, rogando-lhe que enviasse ao Rio de Janeiro um número considerável de adeptos da fé reformada, visando encontrar uma solução para as agitações que estariam minando, do interior da colônia, seu projeto de estabelecimento na América. Desse modo, quatorze 31 Cf. LÉRY, Jean de. Viagem à Terra do Brasil. São Paulo: Martins e Edusp, 1972. p. 49. 32 Ibid. p. 36. 33 THEVET, André. Singularidades da França Antarctica: a que outros chamam de America. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1978. 34 Cf. Ibid. p. 95. 35 Cf. Ibid. p. 111. 24 huguenotes aportaram em março de 1557 na pequena ilha. No entanto, a chegada dos religiosos, dentre os quais Jean de Léry, seguidos por um razoável número de colonos, mulheres e artesãos foi incapaz de solucionar as desavenças que destroçavam a França Antártica, ocasionando, em vez disso, maior agilidade para a desunião entre os franceses e o desencadeamento de um intenso embate religioso. Na ilha francesa, os debates teológicos gerados entre Villegagnon e os calvinistas versaram sobre a controvérsia eucarística, em torno da questão da presença real do corpo e do sangue de Cristo no pão e no vinho da ceia.36 Em seguida a este conflito, o Pastor Chartier, um dos ministros responsáveis pelos protestantes enviados ao Brasil, reembarcou imediatamente para Genebra, objetivando conseguir um parecer de Calvino sobre as intermináveis rixas que opunham os crédulos da presença real de Cristo na comunhão aos que não a concebiam. Impotentes para lutar contra o ritual católico que Villegagnon se obstinava a praticar e apregoar, e contra a tirania que este exerceu sobre eles, privando-os de víveres, os calvinistas deixaram o Forte de Coligny e buscaram refúgio em terra firme entre os tupinambá: [...] acomodamo-nos na praia [...] à entrada daquele rio da Guanabara [...] e assim como nós lá íamos, íamos e vínhamos, frequentávamos, comíamos e bebíamos entre os selvagens (que nos foram incomparavelmente mais humanos do aquele que, sem que nada lhe tenhamos feito de mal, não nos pode suportar consigo) também eles, por sua vez, trazendo-nos víveres e outras coisas de que necessitávamos, nos vinham com frequência visitar.37 Dessa experiência foi elaborado um dos mais importantes relatos sobre o Brasil e sobre seus habitantes no século XVI. A obra de Léry alcançou considerável sucesso editorial a partir de sua primeira edição, em 1578.38 O desígnio principal da publicação do relato do huguenote foi o de desmentir as inverdades, os exageros e os erros descritos no livro do franciscano André Thevet, publicado em 1557.39 Tal narrativa, também de suma importância, acerca da expedição de estabelecimento francês no Brasil, contém o relato das “singularidades” da 36 Cf. LÉRY, Jean de. op. cit. p. 98. 37 Ibid. p. 126. 38 Depois desta primeira edição, a segunda foi confeccionada em 1580. Cinco anos depois, a obra ganhou uma publicação ampliada. Essas três primeiras edições, em idioma francês, foram realizadas em Genebra por Antoine Chuppin. Os primeiros exemplares em língua latina datam de 1586, seguidos por outra edição em 1594. A tradução para o idioma português, elaborada por Sérgio Milliet, em 1941, foi editada, pela Livraria Martins, em São Paulo. 39 Apesar da maior parte da primeira edição datar de 1557, alguns exemplares traziam 1558 como o seu ano de publicação. Também em 1558 saiu das prensas parisienses uma segunda edição, elaborada por Christophe Plantin. Sobre André Thevet, consultar LESTRINGANT, Frank. André Thevet: cosmographe des derniers Valois. Genebra: Droz, 1991; Id. L’atelier du cosmographe. Paris: Albin Michel, 1991. 25 região escolhida para o empreendimento, que Thevet percorreu em dez semanas por causa, escreveu ele, de uma doença que encurtou a sua estada no continente americano.40 O Cavaleiro de Malta entregou seu posto de comandante do forte de Coligny, dois anos mais tarde, à gerência do sobrinho, Bois-le-Comte, porque retornou à França em busca de reforços para sua colônia. Foi, provavelmente, através da intervenção do Cardeal de Lorraine, tutor da Companhia de Jesus nos domínios franceses, que Villegagnon inicialmente encaminhou, por escrito, uma solicitação de missionários ao padre provincial dos jesuítas de Paris, ao qual prometeu o privilégio exclusivo de assumir o caminho espiritual da colônia.41 A resposta, concedida pelo padre Nicolas Liétard, porta-voz dos religiosos foi, a priori, negativa, uma vez que toda e qualquer partida de missionários dependia do prévio consentimento do superior geral da Companhia em Roma. Além disso, o grupo reduzido de jesuítas em Paris contava apenas com cinco padres e, por isso, dificilmente poderia arcar com uma missão apostólica além-mar.42 Embora a organização de uma missão na França Antártica se apresentasse impossível para os jesuítas, o relatório que Liétard fez de suas conferências com Villegagnon, de maneira geral, não foi desfavorável ao pedido.43 Isso evidencia que os jesuítas franceses ignoravam o passado recente no protestantismo do Cavaleiro de Malta, condição que se alterou somente quando os jesuítas brasileiros alertaram seus confrades parisienses contra a religião reformada de Villegagnon, mas não antes de 1561, um ano depois das negociações, quando o parecer sobre estas questões lhes chegou às mãos por intermédio dos superiores da Companhia de Jesus em Roma.44 Mas a história, ao menos por parte dos católicos, da França Antártica tem continuidade, assumindo certo volume político um tanto quanto inesperado, marcado pela intercessão direta do Rei Francisco II nos pedidos de reforço almejados pelo Cavaleiro de Malta. Em agosto de 1560, o monarca endereçou uma carta45 ao superior do convento dos 40 Cf. THEVET, André. op. cit. p. 19. 41 Cf. JULIEN, Charles-André. Les voyages de découvert et les premiers établissements (XV-XVI siècles). Paris: Presses Universitaires de France, 1948. p. 205. Além disso, Julien também aponta o exagero do Cavaleiro de Malta ao relatar aos jesuítas franceses que sua colônia na América possuía mais de duzentas léguas e, por isso, havia centenas de “selvagens” esperando quem os convertesse. Cf. Ibid. p. 208. 42 Cf. Ibid. p. 204. 43 Cf. LESTRINGANT, Frank. op. cit. p. 201. 44 Cf. Monumenta historica Societatis Jesu: letterae quadrimestres. tomo VI. Madri, 1925 apud JULIEN, Charles- André. op. cit. p. 552. 45 Ao meu caro e bem-amado Padre Guardião dos Franciscanos de Paris. Da parte do Rei. Caro e bem-amado, haveis de ter ouvido sobre a conquista que o nosso falecido Rei, nosso muito honrado Senhor e pai, que Deus o absolva, empreendeu durante a vida em certa parte do Brasil, nomeada desde então França Antártica, e que a principal ocasião de sua empresa foi o desejo que tinha de lá fazer implantar nossa religião cristã e fazer pregar e anunciar a Palavra de Deus, o que desejamos singularmente seguir, como aquele que não pretende apenas ser o herdeiro de seu reino, mas também o executor de todas as suas boas e santas intenções. E porque soubemos que 26 franciscanos de Paris, solicitando a expedição de evangelizadores para pregarem a palavra de Deus em território brasileiro. Decisão inédita tomada pelo convento dos frades menores, franciscanos cuja vocação se direcionava mais para os estudos do que para as missões além- mar: o pedido foi prontamente aceito, por unanimidade, pelo diretório da ordem.46 A urgência da partida de uma segunda expedição justificou-se, como já vimos, pela deterioração da unidade religiosa presente na possessão francesa no Brasil. Contudo, aparentemente, os franceses na Europa desconheciam, até o mês de agosto, data da carta do Rei Francisco II aos frades, que a França Antártica soçobrou diante das armas portuguesas cinco meses antes, mais precisamente em 16 de março de 1560. O aspecto apressado e categórico da intervenção do rei foi uma resposta coesa à evidente persistência do Cavaleiro de Malta, que pareceu ter escolhido, finalmente, o seu lado religioso, ou ainda, a única possibilidade religiosa em que pôde contar com a ajuda da monarquia francesa para acudir a agonizante colônia antártica.47 Em última análise, os tópicos finais do empreendimento colonial, embora passageiro, na baía de Guanabara prefiguraram, de certa maneira, o início do século XVII, onde colonização e religião, na França, desenvolveram-se vinculadas. Com efeito, essa eficácia teológica atrelada à colonização, perceptível nas últimas manobras de Villegagnon, procurou acolher as necessidades político-estratégicas relacionadas, de um lado, à conquista magistral do Novo Mundo pelos países disseminadores do catolicismo e, por outro, à impotência do desígnio colonial do Cavaleiro de Malta, que visava estabelecer um abrigo para todos os que estivessem atormentados, independente do motivo.48 Assim, o reinício dos projetos de instalação francesa no Brasil aguardou meio século e, o segundo Brasil francês, distintamente do primeiro, foi majoritariamente católico. hão de encontrar-se em vossa companhia certos religiosos de boa vida e santa doutrina, que ficarão satisfeitos de seguir para lá a tal propósito, e que receia-se que vós não desejeis conceder-lhes a permissão, caso não obtenham a dispensa do Geral de vossa Ordem, que ora se encontra em Espanha, que jamais chegaria a tempo, visto que o navio que os deve levar lá está pronto a zarpar. Por causa disso, nós vos comunicamos e ordenamos que, sem vos aterdes às dispensas, permitis que os referidos religiosos, até um número de seis ou oito, caso seja de seu desejo seguir para lá, façam a viagem. E se o Senhor de Villegagnon, que é nosso lugar-tenente geral na dita conquista, os levar em seu navio, assim como lhe havemos ordenado. Feito em Fontainebleau, ao décimo sexto dia de agosto de 1560. Assim assinado: François. Cf. POULENC, Jérôme (Org.). Tentatives de Nicolas Durand de Villegagnon en vue d’obtenir un envoi de missionnaires em France Antarctique en 1560. In: Archivum Franciscorum Historicum. vol. 60. Florença: Typographia Ad Claras Aguas, 1967. p. 404 apud LESTRINGANT, Frank. op. cit. p. 296. 46 Cf. Ibid. p. 266. 47 Cf. DAHER, Andrea. O Brasil francês: as singularidades da França Equinocial: 1612-1615. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 38. 48 Cf. LÉRY, Jean de. op. cit. p. 40. 27 1.2 A França Equinocial (1612 - 1615) As terras escolhidas para a segunda tentativa de um plausível empreendimento francês, situadas no extremo norte do território brasileiro, eram, neste período, praticamente desconhecidas dos portugueses e, por isso, os franceses navegavam e comercializavam em seus entornos sem percalços. A história desse estabelecimento colonial teve início em 1594, quando o capitão Jacques Riffault, segundo o capuchinho Claude d’Abbeville em História da missão dos padres capuchinhos na Ilha do Maranhão e suas circunvizinhanças,49 abasteceu três navios e rumou na direção do Brasil com a finalidade de realizar alguma conquista.50 Entretanto, o fracasso da empreitada, devido à desunião e à discórdia entre os membros da companhia, além da perda de sua principal nau em um encalho, desanimou Riffault, que se viu obrigado a regressar para a França. Boa parte da tripulação permaneceu na localidade, dentre os quais, Charles de Vaux que, depois de alongado convívio com os tupinambá, regressou ao seu país natal, onde procurou persuadir e chamar a atenção do Rei Henrique IV para o proveito e para a utilidade de uma campanha colonial na região norte do Brasil. Desconfiado da veracidade das informações narradas por de Vaux, o monarca ordenou ao Senhor de La Ravardière que o acompanhasse de volta em uma viagem de reconhecimento da ilha do Maranhão. 51 Também de acordo com o relato de Abbeville, Daniel de La Touche, o Senhor de La Ravardière, teria sido um homem “[...] muito versado em negócios marítimos”,52 pois serviu, primeiramente, nas forças armadas terrestres para, em seguida, tornar-se marinheiro, continuando a tradicional linhagem de sua família. Protestante, seu nome esteve frequentemente ligado ao dos Montgomery, impulsionadores do protestantismo normando da época, após o seu casamento com Charlotte de Montgomery. La Ravardière, em 1602, foi titulado por René-Marie de Montbarrot seu primeiro coligado como lugar-tenente-general do rei na Guiana. Impedido de deixar seu país, Montbarrot atribui-se o título de lugar-tenente e as honras da companhia, assim como o direito de participação nos lucros e benefícios da operação. Em 1605, o rei ratificou o acordo de associação firmado três anos antes entre La Ravardière e Montbarrot, o que aparentou relativa prosperidade da empresa. Mas foi apenas em 1609 que Charles de Montmorency, almirante da Bretanha, autorizou o Senhor de La 49 ABBEVILLE, Claude d’. História da missão dos padres capuchinhos na Ilha do Maranhão e suas circunvizinhanças. São Paulo: Editora Siciliano, 2002. 50 Cf. Ibid. p. 35. 51 Cf. Ibid. p. 36-37. 52 Ibid. p. 35. 28 Ravardière aparelhar seus navios para empreender uma viagem a fim de comercializar e de traficar pelas costas da África, da América, do rio da Prata, do Brasil, do rio Amazonas, das regiões da Guiana, da ilha de Trindade, de Cuba, de São Domingos, das ilhas e províncias do Peru, do México e da Flórida.53 Dessa expedição originou-se o projeto colonial francês nas terras do Maranhão. Mas a morte do monarca francês, assassinado pelo professor e religioso beneditino François Ravaillac, em 1610, interferiu no retorno de La Ravardière, ocasionando a transferência da retomada do projeto para o ano posterior. Ele teria conseguido, então, convencer a rainha regente, Maria de Médici, da proeminência de um estabelecimento colonial nas terras do norte do Brasil, argumentando que, além da consistente aliança que se constituiu após longos anos de contato entre franceses e tupinambás no Maranhão, a região apresentava-se como um ponto estratégico para alcançarem o mar das Antilhas, o que permitiria interceptar as embarcações carregadas de metais preciosos em seus retornos à Espanha. Neste momento, as concepções do projeto de Henrique IV foram aprovadas pela rainha da França, que nomeou La Ravardière lugar-tenente do rei no Maranhão juntamente com François de Razilly.54 Contudo, opostamente a La Ravardière, François de Razilly foi um conhecido praticante da fé católica. Nascido no castelo da família nos arredores de Chinon, na região de Touraine, François foi um Cavaleiro da Ordem do Rei, Senhor de Razilly, d’Aumelles e de Vaux-en-Cuon. Suas afinidades com a sociedade de corte sempre foram muito convergentes, uma vez que era primo da Condessa de Soissons, esposa de Charles de Bourbon e Soissons, por sua vez primo do último monarca francês, Henrique IV. A essa união, entre Razilly e La Ravardière, veio juntar-se um terceiro particular, Nicolas de Harlay, Senhor de Sancy, Barão de Molle e de Gros-Bois, conselheiro de Sua Majestade nos assuntos particulares e de Estado que, além disso, foi o sócio que entrou com o capital na empresa do Maranhão, onde investiu a quantia de doze mil libras.55 Em um cerimonial solenizado no Louvre, em 1610, cuja data permanece imprecisa, a pavilhão real foi confiado aos três lugares-tenentes do rei que, por sua vez, pronunciaram um juramento de fidelidade à França e assumiram o compromisso de construir um forte que, em homenagem à rainha, seria batizado de Santa Maria.56 Nesta ocasião, pela primeira vez, utilizou-se o termo França Equinocial para designar a futura instalação de uma nova possessão francesa no Brasil. 53 Cf. DAHER, Andrea. op. cit. p. 49. 54 Cf. Ibid. p. 50. 55 Cf. ABBEVILLE, Claude d’. op. cit. p. 41. 56 Cf. Ibid. p. 308. 29 Provavelmente, quem rogou à Maria de Médici evangelizadores capuchinhos para implantarem a fé católica nas terras brasileiras foi François de Razilly, sendo estes religiosos pessoas que muito valorizava desde a sua meninice.57 A preferência do Senhor de Razilly não foi inesperada, uma vez que a ordem dos capuchinhos gozava de vultoso prestígio na França no início do século XVII. O convento de Saint-Honoré58 fora fundado em 1575 por Catarina de Médici e, desde então, os frades menores de Paris foram imediatamente notados por sua ciência farmacêutica, que atendia perfeitamente a sua dedicação caridosa, sobretudo durante os períodos de epidemia. Ademais, seu prestígio junto à população parisiense e, mais especificamente, daqueles que viviam nas esferas da corte, deveu-se às grandiosas e inimagináveis conversões que, durante todo o século XVII, lhes garantiu um evidente destaque no embate contra as heresias. Como exemplos, pode-se citar o caso da conversão do Conde de Bouchage, que se tornou o padre Ange de Joyeuse ao abandonar toda a ostentação da corte e todos os seus cargos militares para dedicar-se à história misericordiosa do convento de Paris. Também o padre Archange de Pembrock, que rejeitou o calvinismo e abandonou o seu país natal, a Escócia, para juntar-se à ordem parisiense. Essas duas conversões, dentre tantas outras, foram descritas em biografias e narrativas que conheceram ampla repercussão por todo o século XVII.59 Em uma das reuniões provinciais dos capuchinhos, o reverendo padre Léonard de Paris, superior do convento Saint-Honoré, iniciou a leitura de uma carta da rainha regente, Maria de Médici: [...] o Senhor de Razilly, lugar-tenente-geral das índias Ocidentais, pelo Sr. Rei meu filho nomeado, disse-me da possibilidade de aí se introduzir a religião cristã, sendo recomendável o envio de alguns religiosos de vossa ordem para ficarem nessas terras e tratar, na medida de suas forças, de estabelecer a fé cristã. Por esse motivo vos dirijo a presente, rogando-vos para lá enviardes até quatro religiosos, entre os que julgardes mais dignos e capazes. Aos quais haveis de ordenar que sigam em companhia de quem o Senhor de Razilly lhes enviar para guiá-los. Estou convencida de que tratando-se de pessoas de grande caráter e devoção, grandes serão os frutos e que sua obra aumentará ainda mais a glória de Deus e a boa reputação de vossa ordem. Não tendo esta outro objetivo, rogo a Deus, Padre Léonard, que vos conserve em sua santa guarda. Escrita em Fontainebleau aos 23 de abril de 1611. Maria Phelypeaux.60 57 Cf. Ibid. p. 40. 58 Em língua portuguesa, Santo Honorato. 59 Cf. DAHER, Andrea. op. cit. p. 53. 60 ABBEVILLE, Claude d’. op. cit. p. 38. 30 Depois da leitura da carta, foi organizada uma votação, ao término da qual os votantes aceitaram, por maioria absoluta – trinta e dois dos trinta e três religiosos –, a solicitação da rainha regente. Em seguida, mais de quarenta pedidos de partida chegaram à assembleia do convento.61 Assim, foi proporcionado aos capuchinhos, em 1611, o ensejo de desdobrarem seu trabalho apostólico para além dos limites territoriais da França e de difundirem-se, pela primeira vez, em missões remotas.62 Quatro religiosos foram selecionados dentre os quarenta e dois pedidos de partida que chegaram ao convento: os padres Yves d’Evreux, autor da Viajem ao norte do Brasil feita nos anos de 1613 e 1614,63 Claude d’Abbeville, Arsène de Paris e Ambroise d’Amiens. Cabe aqui ressaltar que, por algum tempo, a historiografia creditou ao padre d’Abbeville o posto de superior da expedição ao Maranhão, contudo, segundo o texto de obediência assinado por Yves d’Evreux, 64 ainda em 1611, os frades superiores de Paris nomearam este último como provincial da missão ao Brasil. Em agosto, os evangelizadores deixaram o convento parisiense rumo ao porto de Cancale, onde esperavam que as embarcações estivessem prontas para zarpar. Como os navios ainda não estavam preparados, apenas em janeiro de 1612 o padre d’Evreux abençoou as naus. Em março, os principais membros da tripulação juraram obediência aos lugares-tenentes do rei na colônia e, 61 Cf. DAHER, Andrea. op. cit. p. 48. 62 A respeito da missionação europeia no Brasil colonial, os primeiros religiosos pertencentes ao clero regular que aqui desembarcaram, em 1549, faziam parte da Companhia de Jesus, de Portugal. O trabalho desses inacianos não se reduziu apenas à conversão dos indígenas, uma vez que eles também procuraram moralizar o comportamento dos brancos, residentes ou em trânsito, na jovem colônia lusitana. Mesmo mais numerosos e ativos na lida missionária no Brasil, os jesuítas não tiveram exclusividade nessa seara. Dentre as demais ordens religiosas também atuantes, destacaram-se os franciscanos, que instalaram-se formal e definitivamente na América portuguesa em 1585. Contudo, os religiosos de Francisco de Assis estiveram no Brasil desde a celebração da primeira missa, representados pelo frei Henrique Soares. Ademais, como vemos neste capítulo, a presença missionária capuchinha no Maranhão data de 1612 a 1615. Passar-se-iam quase trinta anos para que os frades menores retornassem ao Brasil, e isto só aconteceu quando, em 1642, alguns desses religiosos dirigiam-se para a Guiné e foram aprisionados por holandeses e levados para Pernambuco. Com o apoio de Maurício de Nassau, combateram a difusão das doutrinas calvinistas até 1700, quando, em virtude do rompimento das relações entre França e Portugal, foram expulsos do Brasil. Além dos inacianos e dos franciscanos, a instalação protocolar dos beneditinos em terras brasileiras ocorreu em 1581, embora alguns religiosos dessa ordem já missionassem no Brasil desde os anos 1560. Porém, as atuações dos filhos de São Bento restringiram-se apenas aos núcleos urbanos da colônia, o que impossibilitou o trabalho apostólico junto aos nativos. A ordem do Carmo, que se estabeleceu no Brasil em 1583, foi outra ordem onde o trabalho missionário com os índios se fez pouco significativo, pois os carmelitas dedicaram-se fundamentalmente à administração dos sacramentos aos colonos. Por fim, com um número reduzido de membros e atuando nos núcleos urbanos mais desenvolvidos, outras ordens religiosas fizeram-se presentes no Brasil seiscentista: os mercedários em 1640, os oratorianos em 1662, os carmelitas descalços em 1665, as carmelitas descalças em 1685 e os agostinhos descalços em 1693. Em contrapartida, vale destacar a ausência institucional dos dominicanos durante os dois primeiros séculos da história religiosa do Brasil. Cf. BETHENCOURT, Francisco; CHAUDHURI, Kirti (Orgs.). op. cit. p. 388-402. 63 EVREUX, Yves d’. Viajem ao norte do Brasil feita nos anos de 1613 e 1614. São Paulo: Editora Siciliano, 2002. 64 FARIA, Francisco Leite de. Os primeiros missionários do Maranhão: achegas para a história dos capuchinhos franceses que ai estiveram de 1612 a 1615. Lisboa: Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1961. p. 86. 31 finalmente, em 19 de março de 1612, os três navios ergueram suas âncoras no porto de Cancale em direção ao Brasil.65 Durante nove meses, os capuchinhos parisienses não receberam qualquer informação dos missionários, até que chegou a primeira missiva do padre Claude d’Abbeville, endereçada a um de seus irmãos, chamado Toullon, e ao reverendo capuchinho Martial d’Abbeville, datada do Maranhão, em agosto de 1612. Outras cartas se seguem a essa: também em agosto, os reverendos Abbeville e Arsène de Paris escreveram uma carta ao Senhor Fermanet, habitante de Rouen e, ao que tudo indica, financiador da expedição. A essas missivas seguiu um grupo de quatro epístolas do padre Arsène de Paris, dirigidas ao superior do convento, ao reverendo Custode dos capuchinhos de Paris e a um de seus irmãos. Tais epístolas divulgaram, basicamente, os princípios do estabelecimento da empresa, deixando, para segundo plano, as descrições da cordial recepção realizada pelos indígenas tupinambá.66 Segundo o relato de d’Abbeville, como foram os primeiros que chegaram à “[...] ilha grande”,67 Razilly e La Ravardière se depararam com aproximadamente quatrocentos franceses, juntamente com duas embarcações, uma de Hâvre e outra de Dieppe, guiadas pelos capitães Du Manoir e Gérard. No início do mês de agosto, os capuchinhos rumaram para lá e foram festivamente recebidos pelos índios. Eles realizaram a sondagem do local onde seus conterrâneos construiriam o forte São Luís, bem como o futuro lugar da capela e do convento dos capuchinhos, que os próprios índios preparavam-se para erguer. A cruz foi erigida no Maranhão em setembro, adjacente à localidade selecionada para a construção do forte.68 Os bons frutos do estabelecimento maranhense teriam se multiplicado e o entusiasmo na escrita das narrativas é, visivelmente, simétrico aos obstáculos e dificuldades pelos quais passaram os capuchinhos durante a implementação de suas lidas evangelizadoras diante de um grande número de nativos, desejosos e à espera da conversão.69 A conservação da colônia, assim como do grupo de missionários capuchinhos, passaram a depender, desse momento em 65 Cf. ABBEVILLE, Claude d’. op. cit. p. 43. 66 Não faremos referência direta a estas cartas, pois seus conteúdos, de maneira geral, versam sobre as dificuldades da viagem em alto mar, sobre as primeiras vistas da terra e sobre a chegada na “ilha grande do Maranhão.” 67 ABBEVILLE, Claude d’. op. cit. p. 79 68 Cf. Ibid. p. 101-102. 69 Em outubro de 1612, vítima de uma rigorosa febre, faleceu o reverendo Ambroise d’Amiens, o que teria tornado ainda mais penosos os trabalhos que os franciscanos ainda realizariam. Em sua obra, d’Abbeville escreve sobre o reduzido número de religiosos em comparação com a elevada quantidade de indígenas para serem convertidos. Assim, o missionário pontua que: “[...] magoou-nos muito o coração tão triste notícia, o Reverendo Padre Arsène, eu e o Senhor de Rasilly muito o choramos, não tanto pela ausência corporal do tão bom Padre, embora de fato ela nos sensibilizasse [...] mas sim por vermos em parte interrompidos os nossos projetos em relação ao estabelecimento do cristianismo.” Cf. Ibid. p. 141-142. 32 diante, de um acréscimo nos recursos materiais e humanos, 70 como, por exemplo, soldados e artesãos. Dessa maneira, os comandantes e os religiosos franceses do Maranhão entenderam que era preciso divulgar e empregar na França os escassos resultados obtidos nas regiões do norte do Brasil, caso quisessem auferir os urgentes e indispensáveis apoios à proteção da França Equinocial.71 Destarte, no início do mês de novembro, os membros mais importantes da companhia francesa rubricaram um documento, solicitando a François de Razilly que retornasse à França e procurasse cidadãos distintos para a concretização da obra iniciada no Maranhão. Possivelmente, temia-se que, na Europa, o contrato matrimonial entre Luís XIII e a infanta espanhola Ana d’Áustria apresentasse uma cláusula referente à França Equinocial e que isso motivasse, por parte da política monárquica da Espanha e do partido espanhol na França, coações para persuadir a rainha regente a abandonar os projetos direcionados para o estabelecimento francês. Mas, neste período, os lugares-tenentes do rei ignoravam que o acordo conjugal da realeza havia sido firmado em agosto do mesmo ano, e que não continha sequer uma palavra sobre a colônia francesa no Brasil.72 No último dia de novembro, um documento crucial para os rumos da possessão foi rubricado, ratificando o compromisso assumido por La Ravardière de abandonar o empreendimento assim que Razilly regredisse ao Brasil, pois, segundo Abbeville, a diferença dos comandantes costumava trazer confusão para um Estado, e que as gentes da região poderiam repartir seus afetos entre dois ou três dirigentes.73 No dia seguinte, acompanhados por seis índios tupinambá, o Senhor de Razilly e o Claude d’Abbeville zarparam do Maranhão a bordo de um dos três navios que os trouxeram. Quatro dias depois, aportaram na ilhota de Saint Anne onde, em seis de dezembro, celebraram uma missa. O padre Arsène e La Ravardière permaneceram na pequena ilha com a sua embarcação e, em seguida, o restante da tripulação embarcou rumo à França.74 Apesar de árdua, a travessia marítima findou em março de 1613, quando a nau aportou na cidade do Hâvre. Assim que ancoraram o navio, o Senhor de Razilly, Abbeville e os tupinambá caminharam em procissão direcionados para a igreja principal, enquanto os citadinos lhes proporcionavam uma eufórica acolhida, entoando diversos cânticos religiosos.75 Depois de alguns dias, partiram para Rouen, onde os capuchinhos do convento local, bem como muitos 70 Cf. Ibid. p. 175-176. 71 Cf. DAHER, Andrea. op. cit. p. 56. 72 Cf. Ibid. p. 58. 73 Cf. ABBEVILLE, Claude d’. op. cit. p. 308. Estas passagens evidenciam a preocupação do religioso e, provavelmente, o conhecimento sobre os conflitos que consumiram os franceses na baía de Guanabara alguns anos antes, o que teria ocasionado o fim da França Antártica. 74 Cf. ABBEVILLE, Claude d’. op. cit. p. 309. 75 Cf. Ibid. p. 314. 33 nobres e habitantes da cidade, lhes presentearam com cerimônias igualmente calorosas. Por fim, em abril, deixaram Rouen rumo a Paris, onde foram ansiosamente aguardados por cerca de cento e vinte capuchinhos dos conventos de Meudon e de Saint-Honoré, todos sob a supervisão do primeiro conselheiro geral e delegado, o reverendo Archange de Pembrock, pois o padre superior Honoré de Paris, nesta data, encontrava-se em Roma, participando do Capítulo Geral da Ordem.76 Dando prosseguimento ao protocolo, franciscanos e tupinambás, em procissão, adentraram na igreja de Saint-Honoré e, por causa do furor e da curiosidade da imensa multidão diante dos indígenas, todos os viajantes foram obrigados a recolherem-se no convento capuchinho. A aglomeração das pessoas, inclusive de “[...] muitas nações bárbaras e estranhas”77 nos arredores do convento tornou-se desordem pública, como constatou um religioso da Ordem: [...] os curiosos quebravam tudo para ver esses homens que eles acreditavam ser distintos dos outros; de maneira que foi preciso rogar à Sua Majestade [...] que pra lá enviasse guardas a fim de protegê-los. Nosso convento já não era nosso, mas de toda Paris; já não era um convento, assemelhava-se a uma feira para onde afluía gente vinda de vinte léguas de distância. Se por vezes, quando desejávamos fechar as portas do convento, eles as forçavam, ou mesmo se não as forçavam, ouviam-se murmúrios e chegavam até a lançar- nos injúrias.78 No Palácio do Louvre, alguns dias depois da grande excitação popular, o rei Luís XIII recebeu em uma sessão solene os recém chegados, acompanhados pelo reverendo Archange de Pembrock. Diante do monarca francês, um dos índios tupinambá pronunciou uma alocução, traduzida e transcrita pelo padre Claude d’Abbeville: Grande Monarca, tu te dignaste mandar-nos grandes personagens em companhia de profetas para ensinar-nos a Lei de Deus e sustentar-nos contra os nossos inimigos. Sempre te seremos agradecidos, visto que até hoje temos arrastado uma vida miserável, sem lei e sem fé. Admiro tua grandeza como monarca de tal nação e de tão grande país. Tenho vergonha de me apresentar diante de ti, reconhecendo a diferença que existe entre os filhos de Deus, como vós, e os filhos de Ieropary [diabo] como sempre fomos. Tu te honraste enviando-nos tais profetas e tão valentes cavaleiros, e muito bem fizeste, porquanto não foram pessoas inúteis. Em sinal de gratidão, os principais de nossa terra para aqui nos enviaram, em nome de nossa nação, para prestar, como é de nosso dever, homenagem à tua grandeza e suplicar-te 76 Cf. Ibid. p. 315. 77 Ibid. p. 316. 78 Ephémerides à l’usage des Capucins de la province de Paris. In: Bibliothèque Provinciale des Capucins de Paris apud DAHER, Andrea. op. cit. p. 59. 34 que nos envie maior número de profetas para nos fazerem filhos de Deus, e grandes guerreiros para nos defenderem e sustentarem, jurando que permaneceremos teus súditos e servos muito humildes e fidelíssimos, e fiéis amigos de todos os franceses.79 Acredita-se que, provavelmente por causa do clima parisiense, assim como o estranhamento diante das severas regras disciplinares da vida claustral que os religiosos franciscanos de Saint-Honoré teriam dirigido aos índios, objetivando as suas preparações para o batismo triunfal, três dos seis tupinambás adoeceram. O primeiro enfermo, Carypyra, faleceu aos sessenta ou setenta anos de idade e lhe foi dado o nome de François, após ter sido batizado, em tributo ao Senhor de Razilly. No mesmo dia, Patova, com quinze ou dezesseis anos de idade, foi arrebatado por um estado febril constante que o arrastou para o leito de morte depois de oito dias. Ao receber o batismo, lhe foi concedida a alcunha de Jacques, em lembrança do Cardeal Du Perron, benfeitor dos capuchinhos. O terceiro índio moribundo, Manen, renomeado Antoine em atenção a outro benfeitor dos frades menores, o Senhor de Beauvais Nangy, morreu aos vinte ou vinte e dois anos. Os três tupinambás foram agraciados com os protocolos solenes, não indumentados com seus usuais plumachos, mas envolvidos com os trajes de São Francisco.80 Mesmo diante dessas perdas, na igreja do convento de Saint- Honoré, em junho de 1613, na presença do rei Luís XIII e da rainha sua mãe, Archange de Pembrock, na condição de Vigário Superior, realizou o batizado dos três indígenas sobreviventes. Devido à confirmação do sacramento dos três novos cristãos pelo alto clero e também pela realeza da França, lhes foram dados novos nomes, segundo a vontade de Luís XIII: Itapucu passou a chamar-se Louis-Marie, Uaroyo passou a chamar-se Louis-Henri e Iapuay, por sua vez, passou a chamar-se Louis de Saint-Jean.81 Apesar das dificuldades e das mortes dos tupinambás, esses eventos não alteraram os preparativos para a realização de uma verdadeira campanha que se organizou para angariar fundos e agrupar novos colonos para a França Equinocial. Contudo, o entusiasmo mostrado, sobretudo, pelos cortesãos, sócios financiadores e religiosos não foi totalmente compartilhado por Maria de Médici: ela notificou o Cardeal Borghese, ministro de Estado do Sumo Pontífice Paulo V, que a situação em que se encontravam as finanças da França não lhe permitia bancar uma segunda expedição ao Maranhão e, em consequência dessa notificação, ela propôs ao Papa a autorização de um jubileu, cujos rendimentos seriam utilizados em proveito da campanha dos capuchinhos no Brasil.82 Nesse interim, em Roma, o padre superior Honoré de 79 ABBEVILLE, Claude d’. op. cit. p. 318. 80 Cf. Ibid. p. 321-333. 81 Cf. Ibid. p. 339-344. 82 Cf. DAHER, Andrea. op. cit. p. 61. 35 Paris foi acolhido pelo Pontífice, na presença do Senhor de Brèves, embaixador da França em Roma, ao qual expôs os detalhes da missão no Brasil. Paulo V teria, então, manifestado ao representante da diplomacia francesa o seu contentamento, e teria feito a promessa de verificar “[...] as faculdades concedidas aos religiosos dentre os infiéis” e assegurar que “[...] delas nada tiraremos.”83 Segundo uma decisão tomada pelos capuchinhos de Saint-Honoré, reunidos em um Capítulo Superior no mês de setembro, os curadores do convento parisiense nomearam Archange de Pembrock como o novo Comissário Provincial do Brasil, para onde ele deveria dirigir-se acompanhado por nove missionários e quatro frades, de acordo com o relato abaixo: [...] tendo sido o Reverendo Padre Honoré constituído Comissário Geral da Missão do Brasil, tomou a resolução de enviar às províncias das Índias Ocidentais vários de nossos padres, para irem pregar a fé católica e para dar continuidade à Missão já iniciada pelos de nossa Província [...]. Deputou doze dentre eles para irem, uma vez mais, naquele país e nomeou para Superior o Padre Archange de Pembrock, Comissário Provincial e Superior naqueles domínios, outorgando-lhe uma autoridade semelhante àquela que o Reverendo Padre Léonard de Paris concedera ao Padre Yves d’Evreux, acrescendo-lhe apenas o poder de receber noviços com o Conselho de dois ou três padres, dando-lhe todo o seu poder no que diz respeito ao bem e à expansão do Cristianismo naqueles domínios.84 Ademais, competências particulares foram confiadas aos religiosos, tais como o consentimento do batismo além dos muros dos santuários católicos, a confissão dos pecados e a absolvição dos pecadores, a administração dos sacramentos da eucaristia, do matrimônio e da extrema-unção, a benzedura dos adereços das igrejas, a oficialização matrimonial dos recém-convertidos, a legitimação do batizado das crianças concebidas anteriormente ao casamento e, por fim, a celebração da missa em um altar portátil, que pudesse ser transportado com facilidade para os lugares onde não houvesse templo cristão.85 Interessado na preparação de uma nova investida francesa no Maranhão, Luís XIII, no início do mês de outubro, ordenou que Estienne Puget, tesoureiro da Coroa, liberasse a quantia de dezoito mil libras que deveriam ser direcionadas a Nicolas Boué, comerciante em Paris e servidor real para a gestão dos interesses econômicos dos capuchinhos, a fim de permitir aos missionários equiparem suas embarcações para retornarem às “[...] províncias longínquas”, uma vez que estes religiosos iniciaram a colheita de grandes frutos pela conversão à religião cristã e católica, fazendo com que uma grande quantidade de almas 83 ABBEVILLE, Claude d’. op. cit. p. 319. 84 FARIA, Francisco Leite de. op. cit. p. 212-213. 85 Cf. Ibid. p. 215. 36 idólatras e infiéis fosse batizada. Contudo, as linhas finais desse alvará nos permite perceber a instabilidade do apoio da monarquia francesa em relação à colônia equinocial: [...] desejamos que a quantia de XVIII m. l. [dezoito mil libras] seja passada e destinada à despesa de suas contas [de Nicolas Boué] por vós, pessoal de nossas contas, ordenando-vos também que o façais sem dificuldade. Pois tal é nosso desejo. Não obstante quaisquer prescrições, restrições, mandados e cartas contrários, os quais derrogamos e vimos derrogar pelas referidas presentes.86 No início do ano de 1614, ganhou forma um elemento elaborado, possivelmente, para acelerar os preparativos para a efetivação da segunda empreitada ao norte do Brasil, em outras palavras, foi publicada a Histoire de la Mission des Pères Capucins en Isle de Maragnan, escrita por Claude d’Abbeville. A obra apresenta fortes traços que, a todo momento, procuram justificar e glorificar a presença francesa no Brasil e que também buscam alertar os leitores para a importância da continuidade do trabalho apostólico iniciado pelos capuchinhos junto aos tupinambá. A História da missão... de Abbeville narra a viagem, de Cancale ao Maranhão, o descobrimento das singularidades naturais e humanas da região, até a volta para o seu país natal, acompanhado do senhor de Razilly e dos seis selvagens, que foram recepcionados euforicamente pela população e que receberam o sacramento do batismo em ocasião solene. Porém, nas últimas páginas do livro, onde consta, majoritariamente, a descrição espetacular da conversão dos tupinambás na França, não encontramos as dificuldades pelas quais passaram os defensores da colônia brasileira para assegurar-lhe a sobrevivência. Assim, com mais este incentivo, proporcionado por Abbeville, iniciaram-se os preparativos para a arrancada de uma segunda expedição, com data fixada para o princípio do mês de março. Em suas despedidas, crucifixos ornamentados, com o desenho em alto relevo de um lírio, foram oferecidos aos três tupinambás convertidos, em fevereiro de 1614, pelo monarca francês e por sua mãe. No entanto, esses donativos não supririam as necessidades financeiras da empresa. A conjuntura se tornou ainda mais delicada quando Maria de Médici, que prometera um auxílio de vinte mil escudos durante a primeira audiência concedida aos missionários, em abril de 1613, não pôde manter sua promessa e, dessa forma, reduziu sua doação para seis mil escudos.87 Na verdade, a segunda expedição contou, fundamentalmente, com o apoio de benfeitores privados, dentre os quais o Cardeal de Joyeuse, que dedicou uma 86 GENTIL, Georges le. Un document inédit sur la seconde expédition des Capucins au Maragnan en 1614. In: Revue d’histoire franciscaine, tomo II apud DAHER, Andrea. op. cit. p. 64. 87 Cf. FARIA, Francisco Leite de. op. cit. p. 216. 37 parte de suas economias para que fosse erguido um seminário no Maranhão. François de Razilly, acreditando que os defensores da aliança franco-espanhola praticavam forte influência sobre a monarca da França, investiu dez mil escudos de sua riqueza pessoal para não ver definhar a obra iniciada no Brasil.88 Em fevereiro, ele se encontrava no Hâvre, onde procurou reunir a quantia de fundos necessários à partida da segunda companhia para somar aos valores que já contabilizava. No dia dez do mesmo mês, o Senhor de Razilly recebeu uma carta do Senhor de Baulieu-Boujou, administrador da empresa do Maranhão, anunciando o envio de gêneros alimentícios, bem como uma ajuda em espécie no valor de quinhentos escudos, dos quais trezentos foram ofertados de sua própria parte, e os outros duzentos doados pelo padre Archange. A missiva versava, ainda, que o reverendo Claude poderia contribuir com até dois mil e quinhentos escudos e, por sua vez, o Cardeal du Perron poderia oferecer em torno de cem escudos.89 Conduzindo Claude d’Abbeville em companhia de mais dez missionários, todos sob a supervisão de Archange de Pembrock, além dos indígenas e de suas esposas, juntamente com cerca de mil e trezentos homens, o navio deixou o porto do Hâvre no mês de abril de 1614.90 Ancorando no litoral do atual Estado do Ceará, os franceses receberam uma acolhida um tanto quanto ríspida, o que deixou pressagiar as ofensivas portuguesas que estariam por vir. Com efeito, uma fortificação fora edificada na região pelo capitão português Martim Soares Moreno, que partira de Pernambuco em inícios de 1614, levando consigo alguns combatentes de ofício e um padre jesuíta. Uma narrativa acerca das relações iniciais estabelecidas entre franceses e portugueses encontra-se na Chronologie Historique des Capucins, redigida pelo padre Philippe de Paris, em 1630: [...] após navegarem durante dois meses e meio, os tripulantes chegaram a uma ilha no domingo, 15 de junho, onde alguns soldados desembarcaram; e encontraram obstáculos que não nos prenunciaram nada de bom; eram alguns portugueses e um padre secular que incitava os índios contra os franceses, e houve choque, e nossos soldados entenderam que os portugueses, mais fortes que os franceses, tinham o propósito de apropriar-se da costa do Maranhão e de rechaçar os franceses, o que fez com que nossos padres vislumbrassem que não haveriam de lograr grandes frutos nessa 88 Em documento datado em 1618, o Senhor de Razilly pontua que “[...] a facção espanhola, vendo os grandes progressos e vantagens que a França poderia obter naquela região, tanto para a proteção dos nativos franceses quanto para o comércio que lá se pode estabelecer, fez todos os esforços para arruinar essa empresa, isso acrescido do fato de que a referida Senhora Rainha encontrava-se então zelosa e tão solenemente comprometida que não podia, de sã consciência e justiça, recuar.” Ibid. p . 206. 89 Cf. RAZILLY, Marquis de. Généalogie de la famille Razilly apud DAHER, Andrea. op. cit. p. 67. 90 Cf. MORENO, Diogo de Campos. Jornada do Maranhão: por ordem de Sua Majestade feita o ano de 1614. São Paulo: Editora Siciliano, 2002. p. 29. 38 Missão, já que havia duas Nações desejosas de assenhorear-se dessas regiões.91 Uma troca de epístolas entre o “padre secular” supracitado, o inaciano português Balthasar João, e o provincial da missão dos capuchinhos, o reverendo Archange de Pembrock, marcou esse primeiro embate no Ceará: o jesuíta enviou uma missiva em latim aos missionários embarcados, na qual acusou os franceses de virem ao Brasil para trazer a guerra.92 Em sua réplica, Archange de Pembrock alegou que eles não vinham exercitar-se em batalhas, destacando, para tornar o diálogo menos agressivo, que o navio francês trazia religiosos capuchinhos da ordem de São Francisco.93 O navio aportou, três dias depois, em uma paragem chamada, pelos portugueses, de Toca das Tartarugas,94 onde os referidos lusos se instalaram sob o comando de Manoel de Sousa Dessa, vindos de Pernambuco dez dias antes, com o intuito de interromper o curso da expedição francesa.95 A ação jurídica que descreveu o embate travado nesse mesmo dia, aponta perdas expressivas do comboio francês e a retirada da companhia, no dia seguinte, para o Maranhão.96 Quando os franceses desembarcaram na “ilha grande”, no dia vinte e dois de junho, eles se depararam com uma conjuntura ainda mais difícil e delicada daquela que viram ou foram noticiados pela última vez em 1612: além das ameaças lusitanas, o padre Arsène de Paris apresentava todos os membros de seu corpo paralisados. Já o reverendo Yves d’Evreux, também adoentado graças à misteriosa paralisia, embarcara de volta para a sua terra natal pouco antes da chegada do segundo contingente expedicionário.97 Com a intenção de que seu alerta chegasse às mãos do embaixador da França em Londres, o viajante francês Adolphe Poyeras redigiu a missiva transcrita abaixo, bastante elucidativa no que diz respeito aos supostos perigos apresentados aos franceses, destacando, principalmente, a suspeita movimentação das forças do exército lusitano nas bordas do território brasileiro: 91 FARIA, Francisco Leite de. op. cit. p. 227-228. 92 Cf. STUDART, Guilherme de (Org.). Documentos para a História do Brasil especialmente a do Ceará: 1608-1625, vol. I. Fortaleza: Typographia Studart, 1904. p. 114-115. 93 Cf. Ibid. p. 116. 94 A atual praia de Jericoacoara, localizada no litoral oeste cearense. 95 Cf. STUDART, Guilherme de. op. cit. p. 184-190. 96 Diogo de Campos Moreno, capitão das forças armadas portuguesas no Rio Grande do Norte, rapidamente informou aos seus superiores os resultados favoráveis alcançados no Ceará e em Jericoacoara no combate com os franceses, enviando-lhes transcrições das missivas trocadas entre os religiosos Balthasar João e Archange de Pembrock, além da ação jurídica que versava sobre a luta ocorrida dias depois. Cf. Ibid. p. 68-82. 97 Cf. Ibid. p. 84. 39 Meu Senhor, os serviços e a obediência que devo ao meu rei e à minha pátria obrigam-me a ousar vir a vossa presença; é por isso que tão logo desembarquei neste porto, chegado do Brasil com navios ingleses, não desejei atardar-me em fazer-vos ouvir o relato que se segue. Estando na referida costa do Brasil, por volta do terceiro dia de setembro, fui informado por um certo português, que partira quinze dias antes da cidade da Bahia de Todos os Santos, cidade capital do referido país, dizendo que havia chegado de Portugal certo novo Capitão ou Governador Geral, enviado ao referido país e conforme certa incumbência particular do rei de Espanha, estava lançando rapidamente o exército contra nossos amigos do Maranhão no Brasil, pois ele já havia saído de Pernambuco e enviado por terra quatro mil índios e um número de fragatas por mar expressamente feitas. Temo que eles venham a surpreender nossos amigos ou que possuam algum informante dentre os índios aliados de nossos amigos. Quanto mais não seja porque, há cerca de um ano, certo navio francês, tendo aprisionado certos portugueses de Pernambuco levou-os cativos entre os índios do referido Maranhão, de onde escaparam sem demora para aqui, fugindo por terra até a sua região onde relataram amplamente todas as suas particularidades. Pareceu-me requerido e necessário este relato a fim de que façais a gentileza de levar dele conhecimento a Sua Majestade, uma vez que me pareceu dizer respeito ao seu Estado, considerando-se que os Senhores de La Ravardière e de Razilly fizeram esse descobrimento e estabelecimento por incumbência expressa de Sua Majestade e para outras considerações que são de alta competência caso percamos aquele lugar, pois já havíamos iniciado um caminho que os portugueses e espanhóis não esquecerão nem perderão por nada: era isso, portanto, que me cabia dizer-vos, detendo-me aqui para saudar humildemente vossas graças e rogando a Deus, como se espera de vosso muito obediente e humilde servidor.98 Como advertiu Poyeras, principiaram-se as retaliações portuguesas. No mês anterior ao desembarque da segunda companhia francesa, o capitão