Alfa, São Paulo, 34:63-68,1990 ENSINO DAS L E T R A S : (DES)ENCONTROS DO 3º GRAU* A l c e u Dias L I M A * * RESUMO: Utilização da métrica latina e de algumas noções de semiótica na leitura de hexá­ metros virgilianos. UN1TERMOS: Forma, substância, plano da expressão, plano do conteúdo; hexámetro, bucóli­ ca, métrica. A quem se destina esta fala? A o s que entram n u m curso de letras c o m a intenção de adqui r i r os conhecimentos necessários à reflexão sobre a l inguagem verbal tomada como objeto do saber, do saber humano. E claro que, ao entrar no curso, não se tem idéia mui to precisa do que venha a ser isso. E ao sair? Não sei. Mas sei que será uma grande e irreparável frustração se isso não ocorrer nos quatro anos do curso. Esta fala não se destina a quem entrou no curso porque "adora inglês", se por inglês se entende a simples competência para a troca de mensagens, entendida esta, por sua vez, como o simples t ransmit i r e receber informações. Isso os que não têm condições intelectuais para estudar também fazem e mu i to bem. Para tanto não há necessidade de nenhum curso de letras. Até os cursos de línguas que pu lu l am por aí na sociedade de consumo, e na fal ta de coisa melhor , o fazem de modo satisfatório. Para ser aluno do curso de letras a que me re f i ro , é necessário que na lgum momento se tenha intuí­ do , ainda que obscuramente, aqui lo que todos podemos ler e por isso mesmo não o fazemos c o m a devida atenção no mais precioso e injustiçado dos l i v ros de lingüísti­ ca, os PROLEGÓMENOS de Hje lmslev: " A l inguagem - a fala humana - é uma inesgotável r iqueza de múltiplos valores. A l inguagem é inseparável do homem e o segue em todos os seus atos. A l inguagem é o instrumento graças ao qual o homem dá forma ao seu pensamento, seus sentimentos, suas emoções, seus esforços, sua * O texto é a versão escrita das idéias que coligi e, em parte, expus ao participar duma mesa-redonda coorde­ nada pelo prof. José Luiz Fiorin no V I Seminário Regional de Literatura, no IBILCE-UNESP, S. J. do Rio Preto-SP. 1985. ** Departamento de Lingüística-Faculdade de Ciências e L e t r a s - U N E S P - 14800-Araraquara-SP. 64 vontade e seus atos, o instrumento graças ao qual ele inf luencia e é inf luenciado, o último e o mais alicerçado fundamento da sociedade humana. Mas é também o derra­ dei ro , o indispensável recurso do homem, seu refúgio nas horas solitárias em que o espírito lu ta c o m a existência e em que o conf l i to se resolve no monólogo do poeta e na meditação do pensador" ( 1 , p . l ) . O texto de Hje lms lev prossegue nesse t o m como que profético, como o de u m fundador que ele é, mas ao meu propósito basta o que l i . O que eu pretendo é agarrar-me aos fundamentos de uma vocação humana — a do homem que trabalha c o m a l inguagem, defendendo-a c o m ardor e coragem de todos os embustes c o m que o consumismo procura corrompê-lo. E uma das formas de cor­ romper é justamente essa de fazer crer que a tarefa do curso de letras é levar as pes­ soas a decifrarem frases n u m inglês qualquer e c o m isso arranjarem u m emprego. O curso não tem que pensar em emprego, mas em preparar bons profissionais para o ensino. Q u e m tem que f icar c o m a preocupação de arranjar-lhe emprego é a socieda­ de em suas necessidades educacionais. Se queremos dar cont inuidade à vocação a que a lud i ao c i tar Hje lmslev , será preciso i rmos além de todas as preocupações que tenham como objeto o signo o u mesmo os sistemas de signo tomados como expressão e conteúdo. Porque aqui há sempre o r isco de nos enganarmos enredando-nos nas malhas do significante o u plano da expressão. O que quero dizer não é que tenhamos que abandonar o trabalho c o m o significante. Se nós não o fizermos, quem se encar­ regará disso? O que deve ficar mui to claro é que o significante é meio e não f i m . Nosso trabalho será truncado e, por isso, frustração, se não chegar, custe o que cus­ tar, àquela dimensão simbólica da l inguagem de que fala Hje lms lev . N o fundo, nós queremos que o nosso trabalho chegue ao homem e não apenas ao nosso aluno. E não é porque, ao trabalharmos u m texto poético — uma semiótica de conotação —, homologamos a ela o mesmo aparato teórico que ut i l izamos para estudar os sistemas denotados, que podemos parar aí. A s teorias que se baseiam na semiose b ip lana dão sempre os mesmos resultados, seja qual fo r a validação que se busque. E esse resul­ tado é truncado, por força do próprio método, ou seja, dos conceitos operatórios por que se fo rmulam, cujo efeito é a desmontagem termo por termo, elemento por ele­ mento, dos sistemas de signos que analisa. Ora , a le i tura singela, a le i tura de textos de qualquer espécie visa à verdade una e indivisível, seja ela de que natureza fo r , científica, filosófica o u poética, à qual não interessam as preocupações c o m os siste­ mas de signos enquanto tais. A té , pelo contrário, " a l inguagem quer ser ignorada: é seu destino natural o de ser u m meio e não u m f i m , e é só ar t i f ic ialmente que a pes­ quisa pode ser d i r i g ida para o próprio meio do conhec imento" ( 1 , p .3 ) . Cumpre não esquecer que o outro sujeito impl icado no poema em seu fleri, o u seja, o próprio poeta no afã de revelar o ser, procura o mais das vezes apagar os seus rastos semióti­ cos, para dar-nos apenas a verdade. A ponto de dizermos convictamente: não há d is ­ curso mais verdadeiro do que o poético. O que se está a i af irmando é que não há na­ da mais humano do que a poesia. Mas , se esse é o nosso ponto de par t ida, nada i m ­ pede que venha a ser também o nosso ponto de chegada. É tão r u i m a le i tura semiótica dos textos que os de ixa por conta dos seus disiecta membra quanto a que se contenta c o m apontar metáforas saltuárias. Isso só pode Alfa, São Paulo, 34: 63-68,1990. 65 querer dizer o u que o que se encontra entre essas belas imagens não t em valor poéti­ co o u que o le i tor não f o i capaz de ler a poesia. E m qualquer das hipóteses, o traba­ lho terá que ser considerado como incompatível c o m o texto objeto. Nesse caso, mui to do que lemos e ouvimos sobre poesia tem que ser considerado como impostu­ ra, já que impostor é em pr ime i ro lugar "aquele que abusa da confiança, da c redul i ­ dade de outrem por meio de discursos mentirosos, c o m a intenção de t irar provei to disso" . E posto que estou sendo tão categórico nas minhas afirmações, será b o m que não termine esta fala sem dar alguma mostra do que entendo po r estudo de poesia, a f i m de que se possa j u lga r se por acaso não estão diante de u m impostor a mais. Vamos ter que fazer u m trato: vocês e eu vamos fazer de conta que todos aqui t i ­ veram uma escolaridade de l 9 e 2 2 graus que lhes subministrou os conhecimentos de gramática e história antiga necessários, exigidos pelo que me cabe dizer aqui . Faça­ mos de conta que todos sabemos passavelmente l a t im e lat inidade o suficiente para fazerem-se certas transferências de natureza metalingüística em que estejam contem­ pladas noções de fonética, fono log ia , morfossintaxe e semântica do l a t i m e mais a l ­ guns dados da história política e social de Roma n u m determinado momento: a se­ gunda metade do 1- século a . C , quando essa metrópole se debate c o m seus proble­ mas de classes, em que os pequenos proprietários de terras se vêem de repente acos­ sados pelos ex-combatentes das guerras c iv i s . O sofrimento dos expropriados parece ter inf luenciado e, mais que isso, despertado em poetas como Virgílio a necessidade de dar voz à dor desses infelizes. É nesse contexto que devem ser po r nós situados os 83 versos da égloga n e 1 da coletânea de dez poemas que const i tuem o l i v r i n h o chamado BUCÓLICAS, clássico da poesia pas tor i l , famoso em toda a cul tura ocidental , editado em boa apresentação, ninguém sabe por que, pela Melhoramentos e m apresentação bilíngüe no ano de 1982. Supondo então que a abordagem singela do poema já f o i fei ta, graças à le i tura pessoal em que as dificuldades lingüísticas, estilísticas e em relação aos dados de c i ­ vilização e história de nível escolar fo ram previamente superadas em sala de aula e na consulta oportuna a obras de referência básicas, e que, portanto, a carga poética da égloga pôde ser sentida por todos na sua força simbólica, não como u m conjunto numeroso, mas pouco orgânico de elementos de erudição a que os estudos clássicos muitas vezes são reduzidos, vamos tentar falar da composição de Virgíl io como ex­ pressão da verdade poética: Melíboeus: Tityre, tu patulae recubans sub tegmine fagi siluestrem tenui rrmscan meditaris auena; nos patriae finis et dulcia linquimus arua; nos patriam fugimus; tu, Tityre, lentus in úmbra, formosam resonare doces Amaryllida siluas (2, B u c . I , 1-5) Alfa, São Paulo, 34:63-68,1990. 66 " M e l i b e u : Títiro, t u deitado à sombra de frondosa faia ensaias, na delgada f lauta, uma canção silvestre; nós fugimos da pátria e dos seus doces campos. Nós fugimos, t u , Títiro, tranqüilo à sombra, ensinas as selvas a ressoarem: Amarílis be la . " Reproduziram-se aí os 5 pr imeiros dos 83 versos da égloga I , c o m uma quase l i t e ­ ra l tradução. Essa tradução o que pretende é repetir em português o que cada frase lat ina u t i l izada por Virgíl io para compor essa fala de uma das personagens d i z . Não existe a pretensão de t raduzir a poesia, mas o id ioma la t ino em seu componente léxi­ co e morfossintático, a f i m de ajudar o le i tor de língua portuguesa a entendê-la no id ioma o r ig ina l . Isso s ignif ica , em última instância, que essa traduçãozinha faz parte da metal inguagem, ou seja, ela também é comentário, ao passo que uma tradução de poema deve ser, por sua vez, poema. Quando mu i to , "tradução" como a que aí está ajuda a recompor a fábula, não o poema, pois tanto a fábula, caso haja fábula, quanto as referências históricas, bem como as de língua e esti lo pertencem à matéria-prima o u à substância e não à forma. E o poema é a sua forma. Entenda-se: a afirmação da forma não impl i ca , por absurda, negação da substância, pois esses dois conceitos são solidários — estão em relação de pressuposição biunívoca — o u seja, uma forma é l o ­ gicamente a forma de uma substância. O pr imado da forma o que s igni f ica é que, por exemplo, a poesia de Virgíl io é a porção da substância — Roma - que a fo rma de Virgílio , o seu hexâmetro, recorta e expr ime. Sem o hexâmetro de Virgí l io , R o m a é história, civilização, língua la t ina, metrificação até, mas não poema, pelo menos, não como o lemos nas BUCÓLICAS e na ENEIDA! Centrar a explicação n u m único ver­ so, como será fe i to , não quer dizer isolá-lo do poema de que faz parte, mas tomá-lo como momento p r iv i l eg iado do fazer poético pela faci l idade c o m que se podem ex­ pl icar mui tos dos procedimentos lingüísticos ut i l izados para construir a forma. Mas é preciso insist ir : por mais que devam ser conhecidos os dados da substância, a verda­ deira forma só emerge da le i tura singela do poema, nunca de nenhuma explicação matalingüística por mais erudita que seja. O verso em questão, como quase tudo que no ocidente chamamos poema, é uma realidade de natureza sonora e não gráfica nem de outra natureza. A s letras do alfabeto e outros sinais que traçamos no papel o u no quadro negro para representar, sempre por convenção, fenômenos lingüísticos e mé­ tricos não fazem parte do verso enquanto elemento do poema. A experiência dos poetas ditos impropriamente concretistas, no seu compromet imento c o m aspectos grá­ ficos do produto , i lustra , por oposição, esse fato. C o m o ente sonoro e concreto, por­ tanto, embora não-gráfico, pode-se até postular para a prolação do verso que tenta­ mos analisar este o u aquele sotaque como sendo mais apropriado à sua interpretação qual artefato cul tura l envolvendo, no caso, a visão greco-lat ina de quem, po r ter v i d a ci tadina, ideal iza a v ida campestre. E assim que se ouvirão, quem sabe, os sons gra­ ves da voz rouca e rude, por mais que terna e chorosa, do ve lho pastor hirsuto a d i ­ zer no seu dialeto helenizante do sul da Itália: Tityre, tu patulae recubans sub tegminefagi em que a barreira entre o arbítrio e a Alfa, São Paulo, 34: 63-68,1990. 67 motivação é vencida para que o s ignif icado convencional dê lugar ao simbólico: tu o signo da língua lat ina na qual s ignif ica por convenção "aquele que me o u v e " , " o a quem me d i r i j o fa lando" , " o não e u " e, por conseguinte " o oponente" , reiterado i n ­ tegralmente o i to vezes no hexámetro, quatro por aliteração do componente conso­ nantico [ t ] e outras quatro por assonância da velar [ u ] , além dos efeitos acústicos das vogais e consoantes homorgânicas apicais, converte-se em índice sonoro da música de que fala o hexámetro seguinte. Desse modo , ao mesmo tempo em que o diálogo verbal se instaura v i a língua la t ina e m tu, — e, — ris (voca t ivo e 2- pessoa), ouve-se por imitação o som da melodia a que M e l i b e u alude. O não-signo (a f igura) do plano da expressão, uma vez transformado pela repetição rítmica em índice sonoro, confere o va lor poético ao não-signo do plano do conteúdo que lhe corresponde, e ao sentido novo resultante desse j o g o — a poesia é sempre lúdica — se chama poema. Por outras palavras, aquelas entidades acústicas que do ponto de vis ta do i d i o m a la t ino são figu­ ras da expressão, reiteradas e interpretadas metalingüisticamente por outros signos passam de não-signos verbais a signos indic ia is de u m sentido que adquire, dessa forma, estatuto poético. L i d o pela língua la t ina, tu é u m signo, signo da segunda pes­ soa do singular e pode ser t raduzido , por exemplo , pelo português, "você". L i d o pelo hexámetro, o u seja, pela poética la t ina , tu é apenas som, o som [ tu ] acustica­ mente perceptível, podendo, por isso, ser elemento, unidade const i tu t iva do pé e do verso lat inos. Nestec aso, tu será explorado pelo poeta em suas vir tualidades acústi­ cas: quantidade, altura, t imbre . L i d o pelo poema v i r g i l i a n o , tu é sentido. Não o sen­ t ido que a língua pode fornecer enquanto sistema de signos na utilização de qualquer u m , traduzível em qualquer outro id ioma quer no seu valor denotat ivo quer conotat i ­ vo e equivalente a qualquer outra unidade que possua idêntica estrutura métrica. O poema enquanto forma é infenso à existência prévia de qualquer sistema estatuído. O seu sentido consiste no efeito de sentido segundo o qual nada existe antes dele. Ne le , no poema, a distância que separa o significante do s ignif icado, o social do i n d i v i ­ dual , se anula. Daí a sensação de que o poeta cr ia ex nihilo a verdade. E não é po r termos consciência, uma consciência sujeita ao entendimento especulativo e à memó­ r ia , de que o sentido poético é, na verdade, efeito de sentido, o u seja, algo obt ido , em última instância, mediante a organização do significante, que poderemos renun­ ciar a falar dele sem ser c o m as suas próprias palavras. T o d a e qualquer fala sobre poema visa ao sentido. Não ao que se alcança pela mediação do código, pouco i m ­ porta se o lingüístico o u o da poética, cuja face visível é sempre o significante cu l tu ­ ralmente construído e, por isso, confundido com a substância. A forma do poema corresponde a verdade que se i n t u i , se realiza e se esgota inteira no instante da per­ cepção pelos sentidos e pela mente, n u m só e mesmo ato. O que sobra depois disso e pode ser gravado em fita magnética, impresso em papel, outros materiais, e até retido na memória, não é poema, assim como sons não enformados pela vontade de organi­ zação não são música. Alfa, São Paulo, 34: 63-68,1990. 68 L I M A , A . D . - L'Enseignement des Lettres: (dé)convenues du 3ème degré. Alfa, São Paulo, 34: 63-68,1990. RÉSUMÉ: Il s'agit, dans cet petit article, de l'utilisation de quelques concepts de la métrique latine, ainsi que dune ou autre notion de sémiotique dans la lecture d hexamètres de Virgile. UNITERMES: Forme, substance, expression, contenu; hexamètre, métrique latine. R E F E R Ê N C I A S B I B L I O G R Á F I C A S 1. HJELMSLEV, L . - Prolegómenos a uma Teoria da Linguagem. São Paulo, Editora Perspectiva, 1975. 2. V I R G I L E - Les Bucoliques. Paris, "Les Belles Lettres", 1963. Alfa, São Paulo, 34: 63-68,1990.