SIMONI SAGAZ A Participação da Mulher Sem Terra na Construção da Reforma Agrária Popular: Experiência da Regional Porto Alegre (RS) São Paulo – SP 2024 SIMONI SAGAZ A Participação da Mulher Sem Terra na Construção da Reforma Agrária Popular: Experiência da Regional Porto Alegre (RS) Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe (TerritoriAL), do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI) da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), como exigência para obtenção do título de Mestre em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe (área de Geografia), na área de concentração “Desenvolvimento territorial”, na linha de pesquisa “Território, educação e cultura”. Orientadora: Profa. Dra. Silvia Beatriz Adoue São Paulo – SP 2024 IMPACTO POTENCIAL DESTA PESQUISA Esta pesquisa evidencia a participação e protagonismo das mulheres Sem Terra nos mais diferentes espaços organizativos, os impactos e desafios das mulheres em Movimento na busca de construir novas relações de gênero que rompam com as correntes da sociedade patriarcal e machista em vista de construir a emancipação feminina e a emancipação humana. POTENTIAL IMPACT OF THIS RESEARCH This research highlights the participation and protagonism of landless women in the most different organizational spaces, the impacts and challenges of women in Movement in the search to build new gender relations with the chains of patriarchal and sexist society that break in order to build female emancipation. and human emancipation. IMPACTO POTENCIAL DE ESTA INVESTIGACIÓN Esta investigación destaca la participación y protagonismo de las mujeres Sin Tierra en los más diversos espacios organizativos, los impactos y desafíos de las mujeres en Movimiento en la búsqueda de construir nuevas relaciones de género que rompan con las cadenas de la sociedad patriarcal y sexista para construir la emancipación femenina y la emancipación humana. Às mulheres Sem Terra da Região Metropolitana de Porto Alegre, que mesmo diante da catástrofe climática em que foram atingidas estão nas frentes de solidariedade e reconstrução de casas, territórios, cooperativas e nas cozinhas solidárias. AGRADECIMENTOS O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações aqui expressas são de responsabilidade dos autores e não necessariamente refletem a visão da CAPES. Nesta trajetória contei com a contribuição e apoio de muitas pessoas as quais gostaria reconhecer e agradecer. Agradeço por acreditar, incentivar e por me apoiarem a tanto tempo. Agradeço a minha orientadora, professora Drª. Silvia Adoue, pela leitura atenta, pelas contribuições, compreensão e disponibilidade nesta jornada que se estendeu além do previsto. Reconheço e agradeço com profundo respeito e emoção a contribuição das camaradas Sandra Rodrigues e Silvia Marques pela disposição e contribuição neste neste processo. Agradeço a todas as mulheres entrevistadas que prometi manter seus nomes em sigilo, obrigada por compartilhar a vida, os desafios e os sonhos. Agradeço ao Instituto de Educação Josué de Castro e todas as trabalhadoras e trabalhadores que possibilitaram que eu estudasse. Agradeço o conjunto desta coletividade pelo exercício diário sobre participação e protagonismo. Keli Dandara e Gabriel Sagaz que cotidianamente dividem comigo o amor de mãe-filha-filho, os aprendizados, as dificuldades, os anseios e sonhos, certamente meus maiores incentivadores. A vocês todo meu amor. O processo de escrever foi dificultoso, reconheço e agradeço a contribuição das minhas amigas confidentes Diana Daros e Louise Löbler pelas leituras atentas, pelos longos debates e pela paciência com meus desvaneios. Ao Anderson pela camaradagem, a partilha de amor e sonhos, por acreditar e lutar comigo por um mundo mais justo. A minha família Eliane Sagaz e Viviane Onuczak obrigado pelo apoio e por estarem comigo desde sempre. Aos meus amigos de uma vida toda Evandro de Carvalho e Miguel Stedile por todo o apoio, agradeço pelo incentivo e pelas contribuições. A amiga Elaine Pretto pela paciência e escuta sobre os dilemas mais pessoais e profundos que atravessei. As mulheres de minha vida, meus amores, aquelas que dividimos os problemas, os medos, as angustiamos, que me seguraram e incentivaram nesta trajetória. Lhes admiro tanto, pela alegria de vocês, pela determinação, por tornar momentos tão alegres, pelos risos, bebidas, comidas e sonhos que partilhamos. Diana Daros, Cilone Zang, Marli Zimermam, Simone Rezende, Daiane Paz, Mariana Arante, Camila Celeste. A vida e luta são mais bonitas e mais forte com vocês ao meu lado. RESUMO A presente pesquisa busca discutir a participação das mulheres Sem Terra na construção da Reforma Agrária Popular (RAP), a partir da experiência no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na regional metropolitana de Porto Alegre (POA) no estado do Rio Grande do Sul (RS). Para esse estudo, o Programa Agrário do MST foi um documento basilar. Buscou-se ao longo do trabalho apresentar as linhas políticas e estratégicas, os desafios e as expressões concretas de processos construídos de emancipação feminina, trazendo presente autoras e discutindo conceitos que possibilitem as reflexões necessárias sobre as questões do feminismo, da organização do trabalho feminino nos assentamentos abordando trabalho produtivo e trabalho reprodutivo, suas concepções e o papel das mulheres na Reforma Agrária Popular. Para isso, a presente dissertação está organizada em três capítulos. A metodologia utilizada teve caráter qualitativo, com um embasamento na pesquisa bibliográfica acerca dos principais temas abordados como gênero, classe, feminismo, protagonismo e emancipação. A pesquisa de campo foi realizada em diversos espaços organizativos do MST, com a utilização de um questionário com questões semiestruturadas, com mulheres de diferentes idades, inseridas em diferentes processos de trabalho como as cooperativas, as padarias, hortas e dirigentes do Movimento. Para compreender tais questões, se fez necessário apresentar elementos da trajetória das mulheres no conjunto da organização nesses 40 anos de história do MST, identificando os avanços por elas construídos e os desafios resultantes dessa sociedade patriarcal que ainda precisam ser superados. Este trabalho traz presente a inserção e protagonismo das mulheres Sem Terra que tem suas ações articuladas e podemos observar em sua concretude que as experiências organizativas e produtivas da região estão articuladas ao projeto de Reforma Agrária Popular, perpassando pela participação, protagonismo e emancipação das mulheres. Palavras-chave: mulheres; emancipação; reforma agrária popular; feminismo camponês popular. ABSTRACT This research sought to discuss the participation of Landless women in the construction of the Popular Agrarian Reform (RAP), based on the experience in the Landless Rural Workers Movement (MST) in the metropolitan region of Porto Alegre (POA) in the state of Rio Grande do Sul. South (RS). For this study, the MST Agrarian Program was a basic document. Throughout the work, we sought to present the political and strategic lines, challenges and concrete expressions of constructed processes of female emancipation, bringing authors present and discussing concepts that enable the necessary reflections on the issues of feminism, the organization of female work in settlements addressing productive work and reproductive work, their conceptions and the role of women in Popular Agrarian Reform. To this end, this dissertation is organized into three chapters. The methodology used was qualitative in nature, based on bibliographical research on the main themes covered such as gender, class, feminism, protagonism and emancipation. The field research was carried out in different MST organizational spaces, using a questionnaire with semi- structured questions, with women of different ages, involved in different work processes such as cooperatives, bakeries, vegetable gardens and leaders of the Movement. To understand these issues, it was necessary to present elements of the trajectory of women throughout the organization in these 40 years of MST history, identifying the advances made by them and the challenges resulting from this patriarchal society that still need to be overcome. This work brings to mind the insertion and protagonism of Landless women whose actions are articulated and we can observe in its concreteness that the region's organizational and productive experiences are linked to the Popular Agrarian Reform project, encompassing the participation, protagonism and emancipation of women. Keywords: women; Emancipation; popular agrarian reform; popular peasant feminism. RESUMEN Esta investigación buscó discutir la participación de las mujeres Sin Tierra en la construcción de la Reforma Agraria Popular (RAP), a partir de la experiencia del Movimiento de Trabajadores Rurales Sin Tierra (MST) en la región metropolitana de Porto Alegre (POA) en el estado de Río. Grande del Sur (RS). Para este estudio, el Programa Agrario del MST fue un documento básico. A lo largo del trabajo, buscamos presentar las líneas políticas y estratégicas, los desafíos y las expresiones concretas de los procesos construidos de emancipación femenina, acercando autoras presentes y discutiendo conceptos que permitan las reflexiones necesarias sobre las cuestiones del feminismo, la organización del trabajo femenino en los asentamientos que abordan Trabajo productivo y trabajo reproductivo, sus concepciones y el papel de la mujer en la Reforma Agraria Popular. Para ello, esta tesis se organiza en tres capítulos. La metodología utilizada fue de carácter cualitativa, basada en investigaciones bibliográficas sobre los principales temas tratados como género, clase, feminismo, protagonismo y emancipación. La investigación de campo se realizó en diferentes espacios organizacionales del MST, mediante un cuestionario con preguntas semiestructuradas, con mujeres de diferentes edades, involucradas en diferentes procesos de trabajo como cooperativas, panaderías, huertas y líderes del Movimiento. Para comprender estas cuestiones, fue necesario presentar elementos de la trayectoria de las mujeres a lo largo de la organización en estos 40 años de historia del MST, identificando los avances logrados por ellas y los desafíos resultantes de esta sociedad patriarcal que aún deben ser superados. Este trabajo recuerda la inserción y protagonismo de las mujeres sin tierra cuyas acciones se articulan y podemos observar en su concreción que las experiencias organizativas y productivas de la región están vinculadas al proyecto de Reforma Agraria Popular, abarcando la participación, protagonismo y emancipación de las mujeres. Palabras clave: mujer; emancipación; Reforma agraria popular; Feminismo popular campesino. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS APA Área de Preservação Ambiental ATES Assistência Técnica, Social e Ambiental CLOC Coordenadora Latino Americana de Organizações Camponesas COOPAN Cooperativa de Produção Agropecuária de Nova Santa Rita Ltda COOTAP Cooperativa de Assentados da Região de Porto Alegre Ltda ENFF Escola Nacional Florestan Fernandes IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IEJC Instituto de Educação Josué de Castro INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária IRGA Instituto Rio Grandense do Arroz ITERRA Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária LGBTQIA+ Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queers, Intersexuais e Assexuais e outras MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra NB Núcleo de Base POA Porto Alegre PRONERA Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária RAP Reforma Agrária Popular RMPA Região Metropolitana de Porto Alegre SUS Sistema Único de Saúde UFFS Universidade Federal da Fronteira Sul SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ......................................................................................... 12 1.1 As mulheres Sem Terra ......................................................................... 13 1.2 Caminhos metodológicos ..................................................................... 17 1.3 Organização dos capítulos .................................................................... 19 2 BREVES APROXIMAÇÕES SOBRE O FEMINISMO E AS MULHERES NA SOCIEDADE DE CLASSES .............................................................. 21 2.1 O patriarcado: sustentação do sistema capitalista ............................. 26 2.2 As mulheres, o trabalho doméstico e a família.................................... 27 2.3 Emancipação humana e social das mulheres...................................... 31 2.4 Feminismo Camponês e Popular .......................................................... 34 3 AS MULHERES NA CONSTITUIÇÃO DO MST ..................................... 40 3.1 Agronegócio: que explora a terra e a vida das mulheres ................... 51 3.2 As lutas do 8 de março: mulheres Sem Terra contra o Capital .......... 54 3.3 O tema do trabalho feminino no campo sob o olhar das mulheres .. 56 3.4 A diversidade no MST ............................................................................ 63 4 AS MULHERES NA CONSTRUÇÃO DA REFORMA AGRÁRIA POPULAR ................................................................................................ 66 4.1 Reforma Agrária Popular: um breve panorama ................................... 67 4.2 As mulheres Sem Terra e Reforma Agrária Popular ........................... 74 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................... 91 REFERÊNCIAS ........................................................................................ 96 12 1 INTRODUÇÃO Para discutir a organização e a participação das mulheres na implementação da Reforma Agrária Popular nos territórios de assentamento, foco dessa pesquisa, é necessário compreendê-las articuladas com a trajetória e as definições históricas e conjunturais do setor de gênero e do conjunto do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O objetivo desta pesquisa é analisar a participação das mulheres Sem Terra assentadas da regional metropolitana de Porto Alegre (RS) na construção e imple- mentação da Reforma Agrária Popular (RAP). Apresentamos e discutimos as ques- tões sobre participação, protagonismo, emancipação feminina desde as experiências organizativas e produtivas e, um breve resgate histórico sobre a participação das mu- lheres no MST, abordando questões referentes a construção do feminismo camponês e popular. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra1 (MST) é um Movimento popular, de massa, autônomo, que traz em seus objetivos a luta pela terra, a constru- ção da Reforma Agrária Popular e a transformação social. O MST na região metropo- litana de Porto Alegre (POA) está organizado em três microrregiões, sendo elas: mi- crorregião de Viamão, microrregião de Eldorado do Sul e Encruzilhada do Sul e a microrregião de Nova Santa Rita. A região conta com aproximadamente 1300 famílias assentadas. O objeto da pesquisa foi estudar a participação das mulheres em processos organizativos e produtivos nas hortas, padarias e cooperativas. A escolha dos territó- rios analisados foi feita em diálogo com a coordenadora regional para garantir maior diversidade organizativa nas três microrregiões citadas. A opção por esse tema tem uma dimensão que está relacionada à minha traje- tória pessoal como mulher, mãe, educadora, militante do Movimento e o desejo de discutir e compreender os temas gênero, feminismo e a questão da participação das 1 O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra nasce junto com a luta pela democracia. Após os 20 anos de ditadura empresarial-militar no Brasil, em meio ao clima das campanhas das “Diretas Já”, a mobilização pelo direito da população em eleger o Presidente da República, a discussão em torno da Reforma Agrária é retomada. (História do MST, p. 34). Surgiu da necessidade real da luta pela terra, tendo em vista a falta de solução à questão agrária brasileira, e como ela contribui com o subdesenvolvimento do país, na sua relação de dependência. É tomando esses elementos que o MST se forja na luta dos camponeses apartados da terra em todo o Brasil, configurando-se como um movimento social de caráter nacional. 13 mulheres no MST. Pesquisar, ler, conhecer, entrevistar, ouvir e aprender é parte im- portante desse processo formativo. A escolha do tema também se justifica na relevância de pesquisar e conhecer as contradições enfrentadas pelas mulheres Sem Terra, de compreender como está organizada a participação nos espaços sociais, políticos, produtivos e econômicos da região. Sistematizar e discutir a participação das mulheres Sem Terra, implica em pesquisar sobre a trajetória, a história, memórias e lutas feministas atuais e históricas. Outro aspecto relevante diz respeito, a discutir as desigualdades de gênero nos as- sentamentos, apresentando o que as mulheres estão construindo e compreendendo como feminismo camponês e popular ao longo da trajetória. 1.1 As mulheres Sem Terra As mulheres sempre estiveram presentes e atuantes como protagonistas na trajetória dos 40 anos do MST. Para compreender este protagonismo é importante apresentar a trajetória por elas construída, os processos e debates internos nos assentamentos, acampamentos, coletivos e instâncias que permitissem avançar na participação efetiva, nas decisões políticas e na definição e implementação da estratégia da organização. Na atualidade discutir gênero e feminismo tem sido uma questão de resistência em uma sociedade que busca impor referências e padrões retrógrados e patriarcais. Particularmente, o tema gênero e feminismo sempre me desafiou, busco constantemente avançar na análise e compreensão para fortalecer minha atuação como educadora, militante e pesquisadora. Para além do desafio pessoal, é um tema de extrema relevância quando está ancorado em um movimento social que busca a transformação da sociedade. É importante articular o posicionamento do Movimento Sem Terra em cada período histórico e a organização das mulheres. Entender como elas vão tensionando temas, articulando, recolocando e discutindo seu papel na construção do MST. Para esta reflexão é necessário buscar as referências históricas de luta pela emancipação das mulheres, e como estas questões influenciaram a trajetória das mulheres do MST e do setor de gênero, relacionando com o território em discussão na pesquisa. As mulheres do MST constroem sua história coletiva ao longo dos 40 anos, inclusive tensionando para além da visibilidade do papel histórico, mas também 14 colocando em debate a emancipação das mulheres. Assunto que também está aportado no conceito de feminismo camponês e popular construído pela via Campesina e CLOC e assumido pelas mulheres Sem Terra como definição de suas proposições políticas e ideológicas. O Feminismo Camponês e Popular é a expressão do acúmulo histórico das mulheres, que reconhece as teorias feministas já construídas como contribuições importantes, fruto das lutas históricas pelos direitos das mulheres. Contudo, diante destas diversas teorias é no feminismo revolucionário que está calcada a fundamentação do feminismo camponês e popular. Nesta elaboração teórica bastante atual, ainda que em processo de construção de uma literatura mais ampla, apresenta- se a luta e defesa das mulheres como intrínsecas a luta pela emancipação humana. No desafio da construção de novas relações de gênero, temos acumulado processos no sentido de demarcar um posicionamento político na perspectiva de um Movimento Feminista das Trabalhadoras, das Camponesas, das Indígenas e, portanto, um Feminismo articulado com a Classe Trabalhadora. Reconhecemos a existência de muitos Feminismos e de sua contribuição histórica. No entanto, nos posicionamos como mulheres feministas que têm a consciência que a igualdade substantiva nas relações de gênero não é possível ser alcançada plenamente nos marcos do capital. Lutamos pela destruição de todas as formas de dominação e de exploração deste nefasto modelo. (Feminismo Camponês e Popular, 2015). A elaboração do Feminismo Camponês e Popular busca romper com uma tradição feminista eurocêntrica e apresentar uma teoria que dialogue com a diversidade das mulheres de outros países e regiões, principalmente da América Latina, que considera a questão da raça, gênero e classe e o patriarcado como estruturantes na sociedade de classes. Estes temas serão apresentados adiante neste trabalho, assim como o conceito de emancipação. Conforme apontado por Mafort (2013), no capitalismo, não é possível construir a emancipação humana e a igualdade plena das mulheres, entretanto, a luta pela transformação da sociedade está vinculada também às lutas dos sujeitos envolvidos contra a exploração e o patriarcado, buscando garantir o protagonismo feminino na construção de processos de transformação. A construção da emancipação feminina traz consigo o debate sobre o lugar historicamente construído para as mulheres na sociedade de classes e as relações patriarcais que colocam a mulher vinculada a família, ao trabalho reprodutivo não pago das mulheres, aos trabalhos mais desvalorizados e assim por diante. Discutir o tema do trabalho reprodutivo na esfera camponesa implica em compreender a dupla 15 dominação que as mulheres enfrentam, não apenas as camponesas, mas todas as mulheres, porém, no campo o machismo encontra um terreno propício para proliferar. O MST defende e luta por uma sociedade justa e igualitária e incorpora em suas definições o debate do feminismo. A luta pela emancipação das mulheres está vinculada a luta pelo direito à terra e ao território, a luta contra o capital e todas as formas de opressão e de exploração. Entretanto, precisamos compreender quais são os desafios concretos que as mulheres enfrentam na prática e como estes desafios se refletem na implementação da RAP na perspectiva feminista. A Reforma Agrária Popular nasce a partir da leitura da realidade do campo brasileiro no século XXI. Ela se transformou em luta de classe contra o modelo do capital na agricultura, denominado agronegócio. Em seu V Congresso Nacional em 2007 o MST apresentou uma mudança de estratégia, dada as condições da luta de classe no campo, expressa no Programa Agrário. A saída de cena da chamada reforma agrária clássica e sua superação pela Reforma Agrária Popular foi o resultado do debate coletivo promovido nacionalmente. Foi desta forma que se identificou que a luta pela terra e pela emancipação possuíam novas determinações. Agronegócio é um modelo de agricultura que reconfigura a composição de classe no campo, incluindo a participação direta de empresas transnacionais, bancos e do capital financeiro. É um inimigo muito mais complexo do que o latifúndio atrasado que inclusive era improdutivo. O agronegócio produz commodities e não comida, concentra terra, destrói a natureza e os agroecossistemas, expulsa os povos do campo. Em 2014, em seu VI Congresso Nacional, o MST oficializou o lema “Lutar construir Reforma Agrária Popular”. Está consolidação da estratégia numa nova consigna foi o resultado da consolidação da compreensão das contradições do modelo do capital na agricultura, e a necessidade da mudança da matriz produtiva e tecnológica. A proposta da Reforma Agrária Popular, pelo MST, propõe mudanças estruturais sobre a propriedade privada da terra e sua função social e, desta forma, resgatar as tarefas históricas dos trabalhadores e trabalhadoras do campo: Os camponeses, trabalhadores/as do campo e povos tradicionais (indígenas, extrativistas, quilombolas) têm sido protagonistas de práticas de um modo de fazer agricultura que representa um contraponto à agricultura capitalista e se constituem na resistência e nas lutas de enfrentamento direto ao capital. Portanto, pode protagonizar um novo modelo de produção agrícola sob controle dos trabalhadores e voltado a suprir necessidades e direitos de todo o povo. (Programa Agrário, 2014, p. 33). 16 Considerando o contexto mais amplo e a estratégia de construir a RAP, as mulheres discutem, nesta perspectiva, a produção de alimentos saudáveis e as demais linhas de ação do programa. Também incorporam e recolocam o papel do feminismo camponês popular na implementação deste projeto de desenvolvimento co campo no âmbito da reforma agrária. As mulheres Sem Terra nas quatro décadas de existência do Movimento construíram um acúmulo político e organizativo diante das contradições que enfrentaram. Evidenciaram a urgente necessidade de falar, discutir e enfrentar os temas: gênero, feminismo, patriarcado, violência, racismo, capitalismo, dentre tantos outros. Buscaram nos processos históricos e revolucionários as experiências que contribuíssem para análise da realidade, visando avançar na elaboração desde uma perspectiva feminista. Os territórios de assentamentos são resultantes da luta social e coletiva organizada e têm o desafio de buscar resolver as necessidades concretas, criando condições para o trabalho, para a produção e moradia, organizando a economia e as dimensões da vida social, educacional e cultural das famílias assentadas (MST, 2010). Configura-se também em um território de disputa política, ideológica e econômica com a burguesia e seus agentes. A contradição, a solidariedade e a conflitividade são relações explicitadas quando compreendemos o território em sua multidimensionalidade. O território como espaço geográfico contém os elementos da natureza e os espaços produzidos pelas relações sociais. É, portanto, uma totalidade restringida pela intencionalidade que o criou. A sua existência assim como a sua destruição será determinada pelas relações sociais que dão movimento ao espaço. Assim, o território é espaço de liberdade e dominação, de expropriação e resistência. (Fernandes, 2010, p. 9). O debate da Reforma Agrária Popular e a resistência nos territórios de assentamento precisa apontar o papel e os desafios concretos das mulheres, na produção de alimentos saudáveis, na organização social e política, e na construção da emancipação feminina. Portanto relacionar a elaboração e conquista histórica das mulheres sobre o feminismo com o papel estratégico das mesmas na construção da Reforma Agrária Popular possibilitou elaborar abordagens que permitiram refletir sobre os desafios, os dilemas e as principais conquista e os desafios que ainda persistem na atuação e cotidiano das mulheres Sem Terra. 17 1.2 Caminhos metodológicos Os caminhos metodológicos dessa pesquisa foram: a) pesquisa bibliográfica e documental; b) a pesquisa em materiais internos do MST com a temática da história e trajetória de participação das mulheres; c) a pesquisa de campo através de entre- vistas. Fundamentando-se na análise da realidade das mulheres a partir do levanta- mento bibliográfico, na análise de literatura e produções acadêmicas que abordam a participação das mulheres no Movimento Sem Terra e relacionando com a participa- ção das mulheres na regional de Porto Alegre. Buscando aprofundar os conceitos e categorias apresentados na pesquisa. A metodologia das entrevistas com as mulheres inicia com a definição de quais mulheres serão entrevistadas, essa decisão foi dialogada com dirigentes da região, as entrevistas semiestruturadas contavam com roteiro prévio, foram gravadas e com autorização de uso sem a divulgação do nome. Considerando que parte das entrevistas foram feitas durante o período final da pandemia, algumas foram feitas de maneira online. Ainda sobre a metodologia das entrevistas, é importante trazer presente alguns elementos, os quais seguem nos próximos parágrafos. O primeiro diz respeito ao roteiro das entrevistas, que não eram roteiros únicos, elaborei roteiro com perguntas direcionadas de acordo com a inserção de cada mulher. Um roteiro para a entrevista com a dirigente do setor de gênero e a entrevista com a dirigente regional, outro roteiro para as mulheres da padaria, da cooperativa, das hortas; enfim, havia especificidades as quais tinha a intenção de aprofundar e compreender, questões que serão detalhadas a seguir. Outro elemento que chama a atenção é, certamente, a disponibilidade das doze mulheres entrevistadas em dialogar sobre o tema da participação e dos desafios. Em todas as entrevistas houve boa receptividade, e o fato de ser entrevistas semiestruturadas dava abertura para ampliação da conversa, com mais argumentos e mais leveza. Dentre as principais questões, interessava na entrevista, primeiramente, conhecer quem eram estas mulheres, ouvir como elas se apresentavam já era emocionante, pois traziam a idade que variava de 22 a 64 anos, eram mães, avós, companheiras, solteiras e casadas, e todas traziam uma identidade com o território em que vivem, naquele momento da entrevista vinha uma história de vida, de luta e de resistência. 18 Os demais temas das entrevistas giravam em torno de como olham para o assentamento em que vivem? Quais as potencialidades e quais os limites? Segundo a opinião delas, qual é o papel desempenhado pelas mulheres no assentamento e no MST? Quais eram os espaços de participação das mulheres, como está organizado o assentamento? Como é a divisão de trabalho na família? O que produzem? Estão vinculadas a algum tipo de cooperativismo? Feira? Associação? (se estavam buscava perguntar entender se tinha processos de gestão democrática? As mulheres ocupam espaços/cargos de comando? Como é a participação delas no MST? Com as dirigentes busquei dialogar também sobre outras questões, como visualizam o tema gênero e feminismo no Movimento Sem Terra, no assentamento ou cooperativa que estão vinculadas; quais eram as atuais expressões do patriarcado ou do machismo enfrentadas atualmente pelas mulheres da organização, e, a pergunta comum a todas no encerramento da entrevista era qual a participação das mulheres na construção da reforma agrária popular na região. Todas as entrevistas foram gravadas e transcritas. A revisão bibliográfica teve como base as cartilhas, textos e livros produzidos ao longo dos 40 anos pelo MST no intuito de compreender como as mulheres foram constituindo formas organizativas, debatendo gênero, feminismo, violências, emancipação e desafios no interior da organização. É importante destacar que, dentre estas cartilhas que foram analisadas, as mais recentes dialogavam com as propostas de Reforma Agrária Popular, sendo o principal documento de sistematização desse processo o Programa Agrário (2014). Também acessei textos, dissertações e teses sobre o tema de estudo. Para as reflexões acerca dos conceitos de gênero, feminismo e emancipação feminina, que ancoram este debate internamente no MST para o enfrentamento ao machismo e ao patriarcado na sociedade de classes, busquei dialogar com um conjunto de autoras. Destaco algumas que permitiram avançar na reflexão conceitual dos temas apresentados, dentre elas as Heleieth Saffioti (2013), Clara Zetkin (2003), Ana Isabel Gonzalez (2010), dentre outras. Os temas gênero e trabalho feminino serão apresentados também a partir da obra Gênero e Classe, de Cecilia Toledo, em que a autora reflete sobre as raízes históricas da constituição do patriarcado, da inserção e da exploração das mulheres no mercado de trabalho e da invisibilidade do trabalho reprodutivo. 19 Para entender o papel estratégico do feminismo numa nova perspectiva socialista e emancipatória utilizei as elaborações de Alexandra Kolontay (2000) e para a construir uma compreensão sobre feminismo apoiei-me em autoras contemporâneas como Silvia Federici (2017), Wendy Goldam (2014), dentre outras. A abordagem sobre feminismo camponês e popular foi resultante da pesquisa nas elaborações produzidas pelo Setor de Gênero do MST. Os estudos que trazem abordagens mais específicas sobre o MST na região metropolitana de Porto Alegre, como é o caso de Sandra Rodrigues (2011), Indiane Rubenich (2017) e Adalberto Martins (2019) também foram fundamentais na pesquisa. O caminho metodológico é sempre um esforço de tratar o objeto a partir de suas múltiplas determinações. Por isso, a utilização das bibliografias que contribuíssem na compreensão de conceitos como feminismo, gênero, patriarcado, trabalho doméstico, emancipação, reforma agrária popular foram essenciais para o objeto de pesquisa em questão. A compreensão deste processo em sua totalidade pressupõe um entendimento do próprio MST, movimento social popular, de massas, autônomo, que procura articular e organizar os trabalhadores(as) rurais e a sociedade para a conquista da Reforma Agrária, rumo ao Projeto Popular para o Brasil. O resultado desse caminho foi a análise de como as mulheres desse movimento social constroem sua trajetória, apresentando um breve histórico, os objetivos, os princípios, com enfoque no percurso da organização feminina, nos debates de gênero, no desafio e papel atual das mulheres dentro da organização buscando apontar os avanços já conquistados e os desafios. 1.3 Organização dos capítulos O capítulo I traz uma introdução ao conceito de feminismo. O foco foi a construção de uma base histórica para a compreensão dos elementos centrais que levaram o entendimento sobre o feminismo camponês e popular como síntese de um processo coletivo de luta. O debate sobre a emancipação das mulheres foi articulado, e só é possível, com a emancipação da classe trabalhadora. Para além da abordagem mais geral sobre o conceito de emancipação, o capítulo teve como horizonte articular este tema com as ações e processos das mulheres Sem Terra, que são expressões das lutas emancipatórias estratégicas de transformação da sociedade. 20 O capítulo II traz uma abordagem sobre as mulheres desde a constituição do MST, os principais marcos históricos de avanços no protagonismo, na ocupação dos espaços de decisão e na constituição do setor de gênero entendendo qual papel este setor teria dentro da organização. A luta das mulheres contra o capital no 08 de março, a questão do trabalho feminino no campo e os sujeitos LGBTQIA+ no MST são os principais temas de discussão desenvolvidos nesta pesquisa. No capítulo III, apresentamos as mulheres Sem Terra na construção da Reforma Agrária Popular trazendo presente a compreensão do MST sobre esta questão, e, apresentando onde as mulheres estão inseridas nos processos históricos de construção, nos espaços produtivos, organizativos, sociais e econômicos, apontando quais os desafios de participação e de protagonismo na região metropolitana. Por fim, esta pesquisa reafirma espaços, territórios e processos que as mulheres estão inseridas com protagonismo real, na busca permanente de construir a emancipação das mulheres, mas esta pesquisa deve também apontar os inúmeros desafios enfrentados. 21 2 BREVES APROXIMAÇÕES SOBRE O FEMINISMO E AS MULHERES NA SOCIEDADE DE CLASSES Desde seu surgimento o feminismo traz consigo uma teoria e uma prática das mulheres de luta pela igualdade de gênero e contra as opressões patriarcais. Este capítulo não tem a pretensão de fazer uma abordagem histórica dos diversos feminismos, mas apontar algumas reflexões apresentando elementos que contribuam na compreensão e análise sobre a atualidade da participação das mulheres na sociedade. Propõe-se, nesse texto uma breve abordagem sobre patriarcado, emancipação, trabalho e feminismo camponês e popular apresentando alguns elementos que situem essa pesquisa na atualidade com os desafios e construções teóricas que possibilitem ampliar a análise sobre a pesquisa de campo que será apresentada com mais profundidade no Capítulo III. O feminismo camponês e popular como uma elaboração própria das mulheres do campo é uma abordagem que vem ganhando espaço nos debates sobre feminismo, um conceito em construção que demonstra ser cada vez mais relevante para compreendermos estes feminismos oriundos de elaborações e lutas das mulheres da classe trabalhadora, mas especificamente do campo. Adiante no texto, apresenta-se algumas reflexões acerca dos conceitos gênero e classe, refletindo sobre o trabalho produtivo e reprodutivo das mulheres do campo, com análises a partir de autoras que discutem a questão da “invisibilidade” do trabalho feminino precarizado e explorado. O feminismo é forjado historicamente como resistência e enfrentamento das mulheres numa busca por transformar ordens estabelecidas, de questionar o patriarcado, de lutar por igualdade e por direitos. Sua elaboração teórica e sistematização é produto da indignação, da rebeldia, da resistência à dominação e das lutas das mulheres anteriores à própria definição do conceito, por mais que essa história seja invisibilizada. As desigualdades de gênero são resultantes do patriarcado que atravessou a história da sociedade de classes. Na formação social capitalista, o patriarcado, com novas configurações, está imbricado aos princípios da propriedade privada e exploração do trabalho através da mais valia, características da sociedade do capital, onde o controle e o domínio sobre a vida das mulheres servem à totalidade esta 22 ordem. Patriarcado, capitalismo e o preconceito racial, de maneira imbricada, configuram a opressão de gênero na atualidade. “As distintas formas de opressão que foram surgindo na história humana sempre vieram acompanhadas por um arcabouço ideológico que as sustentava” (Toledo, 2017, p. 30). As opressões estão materializadas na vida das mulheres de diferentes formas, dentre elas, as inúmeras formas de violência que sofrem e que são naturalizadas, como, por exemplo, na pouca participação política e na menor remuneração pelo seu trabalho. Ao analisar o processo de transição do feudalismo para o capitalismo, Silvia Federici (2017) dialoga com a história das mulheres, apontando que, há “uma redefinição das tarefas produtivas e reprodutivas nas relações homem-mulher nesse período histórico, ambas realizadas com a máxima violência […]” (Federici, 2017, p. 30). A opressão contra as mulheres é elemento constitutivo do capitalismo, que tem função essencial na sustentação deste sistema, que altera a esfera da reprodução social. Se na sociedade capitalista ‘a feminilidade’ foi construída como função- trabalho que oculta a produção da força de trabalho sob o disfarce de um destino biológico, a história das mulheres é a história das classes. (Federici, 2017, p.31) Demétrio Cherobini (2011), na leitura sobre Itzván Mészáros2, aponta que o capital perpetuou o processo de subordinação das mulheres de acordo com o interesse em determinados períodos históricos. Na família, como foi dito, reproduzindo os valores discriminatórios, antagônicos à horizontalidade das relações sociais e necessários para a manutenção da macroestrutura hierárquica de exploração da atividade produtiva. No ‘mundo do trabalho’, por sua vez, atribuindo às mulheres, na mais larga escala, uma remuneração inferior à dos homens. Nesse contexto, diz o filósofo, apesar de se verificar a existência de algumas conquistas históricas – possibilitadas, entre outras coisas, pela expansão do capital em sua fase ascendente –, elas tendem a ser negadas na prática nos momentos em que o sistema porventura enfrentar dificuldades maiores para a realização da acumulação de capital – como na atual época de crise estrutural, por exemplo. (Cherobini, 2011). Os debates sobre o feminismo na atualidade são bastante diversos, expressados em várias correntes teóricas. Dentre os diversos feminismos, suas correntes e intelectuais, é possível citar, mesmo que de maneira breve, o feminismo liberal, que tem como marco histórico o movimento sufragista de luta pelo direito ao 2 Texto - Mészáros: a emancipação feminina e as lutas de classes. 2011. 23 voto feminino no início do século XX, que luta pela igualdade de direitos dentro dos marcos da atual sociedade, sem alterar as condições sociais e estruturantes. Nesta corrente a questão da mulher era pensada no âmbito da representatividade na política burguesa, como único caminho para a libertação feminina. O feminismo radical emergiu na década de 1960 com bandeiras críticas, rompendo com análises reformistas ou classistas, suas lutas são antipatriarcais, “rechaçam explicações sistêmicas, distantes da realidade e das necessidades das mulheres” (MST, 2015, p. 9), suas análises estão acentuadas no sistema de dominação masculina. Há ainda diversos feminismos, e não é a intenção de elencar o contexto e histórico desses, mas é importante assinalarmos as mais diversas formas de luta das mulheres contra a opressão e a exploração, conforme apontado por Saffioti, quando enfatiza que “o feminismo traz em seu bojo, um potencial crítico bastante capaz de apontar caminhos, trilhas, picadas para atingir o alvo expresso e desejado” (2015, p. 10). Importante destacar, que para além de uma discussão conceitual, de acordo com Bezerra (2020), “o feminismo é um movimento de auto-organização das mulheres que busca a sua emancipação como sujeito social e a transformação da sociedade como um todo”. Nas manifestações das mulheres no pós Revolução Francesa, as mulheres questionavam a “Declaração dos Direitos do Homem”, pois esta desconsiderava as mulheres como pessoas com direitos na sociedade. Nesse contexto, uma mulher de nome Olympe de Gouges, escreve em 1791, em meio a Revolução Francesa, a “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã”, um documento histórico nos marcos da fundação do debate feminista. O documento questiona o desprezo e o esquecimento dos direitos da mulher e reclama a igualdade de direitos3. As experiências históricas de luta pelo sufrágio feminino demonstravam ser uma questão importante, porém a participação das mulheres no sistema político liberal não necessariamente estava vinculada ao projeto de emancipação das mulheres conforme apontado na obra Kollontai e a revolução “A discussão em torno da questão sufragista precisava, desta forma, ser pensada a luz de um projeto alternativo de sociedade” (Bonner; Morerira; Amaral, 2023 p. 27). 3 Referência: https://fpabramo.org.br/2008/03/27/a-declaracao-dos-direitos-da-mulher-e-da-cidada/ https://fpabramo.org.br/2008/03/27/a-declaracao-dos-direitos-da-mulher-e-da-cidada/ 24 Segundo Bezerra (2020), é possível falar de um “feminismo como movimento político organizado com teoria e práxis próprias” referindo-se ao feminismo socialista que influenciará os movimentos feministas das trabalhadoras na atualidade. A proposição da concepção feminista do movimento socialista internacional vinculava a emancipação das mulheres a luta contra o capitalismo. Em oposição, uma concepção feminista proposta pelo movimento socialista internacional e suas trabalhadoras vinha sendo formulada em torno da necessidade de pensar a emancipação das mulheres de mãos dadas com o combate ao capitalismo, questionando a organização econômica, social e política desse modo de vida. (Bezerra, 2020, p.26) No feminismo, uma das maiores contribuições, segundo Moares (2020, p. 130), é a de Clara Zetkin, uma das mais importantes militantes socialistas, contemporânea de Rosa Luxemburgo4. Zetkin foi uma importante figura na luta das mulheres, apontando que a discriminação não vinha apenas dos patrões, mas também de trabalhadores contra as mulheres. O feminismo socialista de Clara Zetkin5 e Alexandra Kolontai6 “foi uma das principais expressões de organização e luta das trabalhadoras responsável por instituir o dia internacional das mulheres que se tornou uma data central de construção de unidade em torno do feminismo” (Bezerra, 2020, p. 57). Esse feminismo socialista influenciará fortemente as mulheres nas revoluções como em Cuba e Nicarágua, e também entusiasmará os movimentos feministas 4 Rosa Luxemburgo nasceu em 1871 na Polônia – atingiu plena maturidade política e intelectual na década de 1910, marcada pela trágica experiência da primeira guerra mundial; morreu assassinada em 1919, um ano depois da tomada do poder pelos bolcheviques russos. Sua vida transcorreu como se vê, num período crítico de formação do mundo moderno. Rosa era mulher, judia, polonesa e portadora, desde os 5 anos de idade, de uma deficiência física em uma das pernas. Na época, e ainda hoje, todas essas condições conspiravam pesadamente contra um destino brilhante […]. dotada de grande coragem intelectual e moral, ela sempre combateu com intransigência em favor do que considerava a causa justa – o fim de todas as formas de opressão, tanto social quanto individual. (Loureiro, 1999, p. 29). 5 Clara Zetkin, nascida na Alemanha, viveu no fim do século XIX e início do século XX, foi contemporânea a primeira guerra mundial, do período de reunificação do estado alemão e da Revolução Russa de 1917. Feminista e marxista, no momento histórico que viveu aderiu apaixonadamente a luta dos movimentos sociais e políticos de sua época, foi membro do partido Social-Democrata alemã. Participou da luta das mulheres pelo direito das mulheres ao voto, participou e influenciou na definição do oito de março como dia internacional das mulheres. Algumas de suas teses sobre o feminismo influenciam até hoje. 6 Alexandra Kolontai nascida em São Petersburgo em 1872 em uma família aristocrática foi jornalista, escritora, revolucionaria e política. Era uma propagandista contraria a primeira guerra mundial, fator que a fez romper com os mencheviques e ir para ala bolchevique. Com a revolução bolchevique de 1917, foi a primeira mulher a ocupar um cargo no governo, este é um marco importante, não apenas para Kolontai, mas para as mulheres. Participou com outras mulheres de frentes que organizavam comitês e congressos feministas. Em 1921 foi à segunda mulher a se tornar embaixadora, na Noruega, no México e na Suécia. Alexandra Kolontai foi uma das mulheres que além da efetiva participação no processo revolucionário, escrevia e analisava a situação da Rússia e em especial a situação das mulheres trabalhadoras. 25 contemporâneos que incorporam outros elementos, e caminham na construção de um feminismo popular. Segundo Bezerra (2020), apresentando como características principais “a indissociabilidade da luta contra o capitalismo e a opressão patriarcal e a auto organização das mulheres enquanto princípio” (p. 60). O feminismo popular é práxis coletiva construída por mulheres trabalhadoras em luta e em movimento, inseridas num projeto de transformação da sociedade mais amplo, num projeto de emancipação humana protagonizado pelas mulheres, que rompe com o nó capitalismo-racismo-patriarcado e é ancorado nos contextos nacionais onde as lutas são desencadeadas. (Bezerra, 2020, p.60). A questão das mulheres deve ser compreendida na contradição e na perspectiva da luta de classes. Os avanços de forças emancipatórias do debate feminista na América Latina, por exemplo, têm se mostrado um importante marco, abarcando temas como: a luta contra o feminicídio, pelo direito ao aborto legal, contra todas as formas de violência contra as mulheres e os sujeitos LGBTQIA+, as lutas contra o capital no 8 de março, a luta pelo direito das mulheres ao acesso à terra e pelo direito à moradia urbana, os atos “Ele Não”7. São algumas expressões das lutas e dos movimentos feministas populares que questionam e combatem esse modelo de desenvolvimento do capital e os impactos que tem na vida das mulheres, fortalecendo a luta unitária feminista do campo popular, buscando se constituir como “um movimento de transformação do mundo, ancorado nas bases do feminismo de origem socialista e aglutinando bandeiras de luta protagonizados por setores populares da sociedade” (Bezerra, 2020, p. 61). Historicamente as mulheres foram construindo formas de resistência e enfrentamento ao patriarcado, essa luta está articulada com o questionamento contra o atual modelo de sociedade, e todas as suas facetas de opressão e exploração. As lutas feministas e as diversas formas de resistências apresentam, cada vez mais, as mulheres como protagonistas do enfrentamento ao capital. Nesse sentido, podemos considerar a luta das mulheres do campo como a construção do feminismo camponês, indígena e popular, como uma perspectiva emancipatória. 7 A famosa marcha do “Ele não”, em setembro de 20218, foi a maior manifestação de mulheres da história do Brasil e aglutinou milhares de mulheres e militantes pelas ruas de mais de 114 cidades do país, com uma campanha contra o ainda candidato ultraconservador à presidência Jair Bolsonaro. (Tricontinental, 2019. p.13). 26 2.1 O patriarcado: sustentação do sistema capitalista As contribuições históricas do feminismo são importantes para questionar e superar o modelo de sociedade baseada na opressão dos homens sobre as mulheres. O patriarcado, o racismo e a propriedade privada são pilares estruturantes desta sociedade dividida em classes. O patriarcado é um sistema de dominação dos homens sobre as mulheres, baseado na exploração e na opressão, no controle do trabalho produtivo e reprodutivo das mulheres, com influência determinante no conjunto da sociedade e não apenas na família. No capitalismo, a divisão sexual do trabalho – base material do patriarcado – é combinada com a divisão social do trabalho, em que a família nuclear, monogâmica e heterossexual passa a se constituir como núcleo fundamental da reprodução da sociedade de classe, forjando mecanismos de dominação social de acumulação de riquezas, que criam, desde o berço, os homens e as mulheres necessários para manter seu sistema injusto e desigual. (Via Campesina, 2018, p.18). O patriarcado tem origem anterior ao capitalismo, mas como modelo estruturante dessa sociedade organiza as instituições sociais, a religião e a cultura que impõe modelos de submissão das mulheres aos homens, o machismo nessa corrente social “é uma ideologia, uma forma de ser, um conjunto de pensamentos conservadores, carregado de preconceitos (…) ideia da supremacia dos homens”. (Moraes, 2020, p. 134). O machismo como expressão do patriarcado define o lugar e o papel social que os homens e as mulheres devem exercer na sociedade, expressa- se também na divisão sexual do trabalho e na organização da família. Heleieth Saffioti (2015) aponta que o patriarcado não é uma relação privada, mas social, concedendo inclusive os direitos sexuais aos homens sobre as mulheres basicamente sem restrições, se configura como um tipo hierárquico de relação que está presente em toda a sociedade, tem base material, está corporificado, e, por fim, representa uma estrutura de poder baseada na ideologia e na violência (Saffioti,2015 p. 60). O MST vem discutindo nesse sentido: A sociabilidade pretendida está intimamente ligada ao rompimento com os pilares patriarcais; está na necessidade de projeção das pautas feministas à luz da emancipação das mulheres no âmbito público e privado, ou seja, está em reafirmar nossa atuação, enquanto mulher do campo, militante e dirigente, ocupando espaços, conquistando e resistindo nos territórios. (MST, 2021, p. 72). 27 A partir disso, podemos referenciar que é a construção de uma sociedade humanamente emancipada que supera estas formas de opressão. Para Moraes (2020). “Na medida em que o patriarcalismo é estrutural, vale dizer, molda todas as instituições sociais de maneira que a justiça, a religião e a cultura em geral são correias de transmissão de um modelo” (Moraes, 2020, p. 132). Nesse sentido, a superação do patriarcado não se efetiva apenas com uma revolução socialista, ou com a socialização dos meios de produção. Por exemplo, as soviéticas, mesmo pós revolução de 1917, enfrentaram resistências ao propor formas superiores de relações de trabalho e sociais. Para que ocorra um processo de emancipação humana, é preciso revolucionar política e economicamente, mas também formas de sociabilidade, de relações de trabalho, relações socioculturais, que promovam uma consciência desfragmentada, e que promovam o desenvolvimento de todas as potencialidades humanas. 2.2 As mulheres, o trabalho doméstico e a família Historicamente, na sociedade foi atribuído à mulher o papel de cuidar da família e da casa, ou seja, dos trabalhos domésticos. No espaço doméstico desenvolve-se trabalho produtivo e reprodutivo não pagos. São sustentações importantes para o patriarcado, para o capitalismo e para manutenção das desigualdades. É impossível falar em participação, protagonismo e emancipação feminina sem falar do trabalho produtivo e reprodutivo das mulheres. A opressão patriarcal sobre as mulheres é uma construção social e histórica do papel da mulher na sociedade, que as apresenta como o sexo frágil, sensível, incapaz de pensar e atuar na esfera da vida pública. O cuidado com os filhos, da casa e da conservação da família monogâmica são papéis atribuídos às mulheres, enquanto aos homens “coube” o espaço público e as tarefas que exijam pensamentos ou força. A histórica divisão social do trabalho somada à divisão sexual do trabalho aprofunda ainda mais as desigualdades sociais e de gênero, conforme aponta a entrevistada Joana, […] então o patriarcado ele tem várias faces que oprimem e que tentam massacrar as mulheres, os LGBT, os negros, as negras e como a gente não vive numa ilha, o nosso papel é de fato fazer a luta de resistência e de combate, seja no âmbito da casa seja no âmbito da organização, essa é uma luta permanente até que a gente possa viver numa sociedade que essas raízes do patriarcado sejam superadas, a gente precisa combater o 28 capitalismo quem enraíza fortemente o patriarcado, a propriedade fazendo esse vínculo com uma propriedade privada, também com que haja a propriedade das pessoas, dizendo que nossas mulheres somos propriedade dos nossos maridos, dos nossos pais e nós não podemos aceitar esse tipo de coisa, a gente aprendeu que isso não é assim, a gente nasceu livre para viver bem e viver alegre. Então nós precisamos muito seguir essa luta de resistência e enfrentamento. (Entrevistada Joana, 2022). Para Saffioti (2013), a condição inferior das mulheres na esfera produtiva é benéfica para o capitalismo. Vejamos: O capitalismo, pode até se revelar maleável e até mesmo permitir e estimular mudanças. Todavia, isto não significa que ele ofereça plena possibilidades de integração social feminina. [...], neste modo de produção as características sexuais (sexo e raça) se tornam mecanismos que funcionam em desvantagem no processo competitivo e atuam de forma conveniente para a conservação da estrutura de classes. (Saffioti, 2013, p. 21). Essa afirmação vai ao encontro a crítica que a autora faz ao feminismo pequeno burguês, o qual considera que a emancipação feminina é vinculada a emancipação econômica. Pensar a emancipação das mulheres reduzida à igualdade econômica é uma visão muito limitada, e não condiz com a luta emancipatória das trabalhadoras, conforme discutido anteriormente. A questão da opressão patriarcal sobre as mulheres na sociedade capitalista não é algo natural, tampouco uma questão exclusiva da atualidade. A opressão é resultante das transformações históricas ocorridas na sociedade, que segundo Toledo (2017) pode ser entendida considerando o trabalho como elemento fundante: “a opressão da mulher está vinculada a existência da propriedade privada dos meios de produção” (Toledo, 2017, p.27). Ao referir-se sobre a relação entre trabalho produtivo e reprodutivo, afirma que o trabalho doméstico não é um tema apenas das mulheres, conforme tão difundido ideologicamente na sociedade, não se tratando de uma questão íntima, privada ou familiar. Vejamos: O trabalho doméstico é um problema do sistema capitalista de produção, já que tem a ver com o processo de reprodução da força de trabalho. É no lar que essa reprodução se processa. Do salário pago pelo capitalista para que a força de trabalho se reproduza, é descontado o trabalho doméstico, aquele realizado no seio da própria família, em especial pela mulher, e pelo qual o capitalista não desembolsa nada. No lar o trabalhador se alimenta, descansa e repõe suas energias para continuar trabalhando para o capitalista. Se o salário é o necessário para sobrevivência do trabalhador, ou seja, para reprodução da força de trabalho O trabalho doméstico deveria fazer parte deste cálculo. No entanto, não o faz. O capitalista explora a separação entre o processo de produção de mercadorias, e o processo de reprodução da força de trabalho para, dessa forma, incrementar a extração de mais-valia. (Toledo, 2017, p. 76). 29 Nesse sentido, as autoras Toledo e Federici convergem na análise. Federici (2019), traz importantes análises sobre o trabalho doméstico8, considera que o trabalho doméstico é a “manipulação mais disseminada e a violência mais sutil que o capitalismo já perpetuou contra qualquer setor da classe trabalhadora” (Federici, 2019, p. 42). O pagamento de um salário dá a sensação de ser paga, ou seja, retribuída monetariamente pelo seu trabalho, enquanto que o trabalho doméstico é gratuito, é explorado e construído socialmente como algo natural, destinado as mulheres, como uma espécie de atributo feminino, é imposto como um “ato de amor”, de cuidado e afeto para com a família, mas que significa trabalho não pago, e, portanto, lucro para o capital. A autora ainda vai chamar a atenção para a amplitude do trabalho doméstico. Não se trata apenas das atividades da casa, mas da disponibilidade feminina para “serviços físicos, emocionais e sexuais” (Idem, p. 45), condição independente de quantos empregos essa mulher possuiu para sobreviver. Até hoje, tanto nos países ‘desenvolvidos’ como nos ‘subdesenvolvidos’, o trabalho doméstico e a família são pilares da produção capitalista. a disponibilidade de uma força de trabalho estável e disciplinada é uma condição essencial da produção em cada estágio do desenvolvimento capitalista. (Federici, 2019, p. 69). A desigualdade nas relações de gênero está materializada na vida das mulheres de diferentes formas. Dentre elas, as inúmeras formas de violência que sofrem e que são naturalizadas, como, por exemplo, na pouca participação política e na menor remuneração pelo seu trabalho. A questão da família como espaço de reprodução das desigualdades de gênero é discutida por várias autoras/es, que trazem como elemento fundamental a exploração do trabalho decorrente da divisão sexual do trabalho que acontece no âmbito familiar e que, acima de qualquer situação, é negligenciada, tratada como parte do âmbito particular (do lar). É inegável as várias mudanças que a “estrutura familiar” teve nos últimos anos, como, por exemplo a mulher como chefe de família. Porém, isso implica em pensar sobre as reais condições de trabalho, de vida, de quantos empregos essa mulher tem para ser considerada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) como 8 Não pretendo neste trabalho apresentar e adentrar nos debates sobre assalariamento do trabalho doméstico proposto pela autora. 30 chefe de família, outras mudanças: o direito de constituir família e casar conquistado pelos gays, lésbicas e trans, ou até mesmo o divórcio. Enfim, apesar das inúmeras mudanças, prevalece a organização monogâmica heteronormativa como padrão na sociedade. E, nos últimos anos, no Brasil, o conservadorismo reacionário sintetizado pelo bolsonarismo busca impor sobre a sociedade e principalmente sobre as mulheres um papel na família de submissão, de amor ao lar, ao marido, e aos filhos, de renegar direito de união entre pessoas do mesmo sexo, e de impor valores morais, eliminar a diversidade. Segundo Biroli (2018), a estrutura da família e das instituições definem um papel para as mulheres, ainda que o feminismo o tenha avançado e contestado permanentemente e em diferentes esferas e espaços. A privatização do cuidado e a mercantilização da vida também são colocadas sob escrutínio, estabelecendo-se uma conexão importante entre a crítica da família e a crítica ao capitalismo. Trata-se de abordagens que discutem as injustiças nas e entre as famílias, as dimensões do controle e as do privilegio. O que está em disputa é uma estrutura de privilégios de que se beneficiam homens brancos, adultos, dos extratos de maior renda da sociedade. Para as demais pessoas, faz pouco sentido defender uma definição de família que as exclui e podem comprometer sua integridade física e psíquica, além de impor as mulheres a condição de cidadãs menores, por que subordinadas, na lei ou na prática, a autoridade masculina. (Biroli, 2018, p. 131). Ao discutir a questão do trabalho doméstico na sociedade, Faria (2012, n/p) afirma que não haverá igualdade se não houver mudanças “na chamada esfera pública e no trabalho produtivo”, ou seja, se “as mulheres continuarem arcando sozinhas com o trabalho doméstico”, ao mesmo tempo que a casa é considerada de supremacia/mando masculina. Segundo a autora, um avanço do feminismo tem sido a articulação com a luta geral pela transformação da sociedade, pois só assim haverá mudanças substâncias na vida das mulheres. O conceito de gênero surge contrapondo o determinismo biológico sob a constituição social do ser, onde no senso comum há uma supremacia do homem sobre as mulheres. Ao contrário, os estudos baseados no conceito de gênero têm contribuído “para evidenciar que a desigualdade entre homens e mulheres é socialmente construída através da atribuição de papéis diferenciados e hierarquizados” (Campos, 2009, p. 62). Para Saffioti, o conceito de gênero não se resume a uma categoria de análise, diz respeito também a uma categoria histórica, “o gênero é a construção social do masculino e do feminino” (Saffioti, 2015, p.47), o qual não representa 31 necessariamente a desigualdade entre homens e mulheres. A questão de gênero deve ser compreendida na contradição e na perspectiva da luta de classes. Os avanços de forças emancipatórias do debate feminista têm se mostrado um importante marco, abarcando temas como: feminicídio, aborto, violências, direitos, e, direito das mulheres ao acesso à terra, como discutiremos adiante. Historicamente as mulheres foram construindo formas de resistência e enfrentamento ao patriarcado. Essa luta está articulada com o questionamento, e a luta contra o atual modelo de sociedade e todas suas facetas de opressão e exploração. Na conjuntura atual é possível indicar que as conquistas históricas das mulheres não estão consolidadas nesse modelo capitalista de sociedade, pois tende a mudar/alterar de acordo com os movimentos do capital, em vista sempre de aumentar os lucros e com isso a exploração sobre os trabalhadores e trabalhadoras. Sendo assim, as lutas das mulheres não se resumem a pautas específicas, mas devem estar cada vez mais articuladas com a luta pela mudança estrutural da sociedade. As mulheres do MST constroem-se como Movimento e como mulheres, no mesmo processo histórico, permeado de contradições, de avanços e de desafios. A insígnia “Sem feminismo não há socialismo” reafirma essa bandeira articulada a um projeto de classe e de sociedade. 2.3 Emancipação humana e social das mulheres A emancipação das mulheres está intrinsecamente ligada à emancipação da classe trabalhadora, a emancipação humana e social na superação das desigualdades, em uma sociedade sem exploradores e explorados. A emancipação plena certamente supõe uma mudança na estrutura de sociedade. Na teoria marxista estão apresentadas o conceito de emancipação política e o conceito de emancipação humana. José Paulo Neto (2009), no prólogo da edição brasileira de “Sobre a questão Judaica” de Karl Marx, ressalta a diferença entre emancipação política e emancipação humana, e adverte: A emancipação política – que Marx considera, sem dúvida, um avanço, um progresso, uma conquista da revolução (burguesa) que destruiu o antigo regime – não é, pois, a emancipação humana. Esta desborda em muito o âmbito da emancipação política. (Neto apud Marx, 2009, p. 25). 32 O verbete sobre emancipação humana, do dicionário Marxista aponta: Marx e os marxistas tendem a ver a liberdade em termos da eliminação dos obstáculos à emancipação humana, isto é, ao múltiplo desenvolvimento das possibilidades humanas e a criação de uma forma de associação digna da condição humana. Entre esses obstáculos, destacam-se as condições do trabalho assalariado. Como Marx escreveu em a Ideologia Alemã, ‘as condições de vida e trabalho, e, com elas, todas as condições de existência da sociedade moderna, tornam-se [… algo sobre que os proletários individuais não têm controle e sobre que nenhuma organização social lhes pode proporcionar esse controle’ […]. para superar esses obstáculos, é necessário uma tentativa coletiva e a liberdade como autodeterminação é coletiva, no sentido de que consiste na imposição, socialmente cooperativa e organizada, do controle humano tanto sobre a natureza com sobre as condições sociais de produção: ‘o pleno desenvolvimento do domínio humano sobre as forças da natureza, bem como da própria natureza da humanidade’ […]. Tal domínio só se realizará completamente com a substituição do modo de produção capitalista […]. (Dicionário do Pensamento Marxista, 2001, p. 124). As mulheres soviéticas durante o processo de construção do socialismo construíram algumas possibilidades de análise sobre a emancipação feminina. Com as devidas condições daquele período histórico, com os avanços e limites enfrentados, apontam a perspectiva de construir uma emancipação mais ampla, conforme apontado por Nadja Krupskaia (2017), a necessidade de romper com todas as formas de exploração das mulheres, até aquelas que se apresentam de maneira velada ou incomum. Neste sentido, emancipação implica superação da exploração. E que o “caráter de classe dessa luta nunca, nem por um minuto, pode ser perdido de vista” (Krupskaia apud Schneider, 2017, p. 117). A luta das mulheres está ligada a um processo de luta pela mudança estrutural. Nesse sentido, cada vez mais o conceito de emancipação tem sido recorrentemente utilizado no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra para abordar processos emancipatórios em construção, articulados com a luta pela emancipação humana, ou seja, articulados com a luta pela transformação social. As lutas estratégicas do Movimento, neste sentido, buscam ampliar e construir espaços e formas concretas de resistência e de construções de relações emancipatórias nos territórios de reforma agrária nos quais as mulheres estão inseridas, conforme apontado por Martins, Este modelo de produção (alimentos saudáveis) e este modelo tecnológico (agroecologia), com uma gestão democrática, cooperada, popular e dirigida por uma organização política (MST) nega o agronegócio, mas, sobretudo, afirma caminhos para a edificação de um projeto societário emancipador ao plasmar materialmente caminhos sócio técnico-produtivo distintos da agricultura capitalista. (Martins, 2019, p.182). 33 A construção de novas relações no campo, a busca permanente pela superação das opressões impostas pelo capital e pelo patriarcado, a luta pela reforma agrária estão vinculadas à luta pela emancipação, são parte de um projeto de transformação da sociedade e de emancipação integral dos seres humanos. Construir nosso projeto de Reforma Agrária Popular, numa perspectiva política emancipatória, foi se complexificando ao longo do tempo, tanto pelas transformações da própria classe trabalhadora, como pelo contexto de profunda degradação humana que estamos vivendo. (MST, 2023, p. 26). A ocupação de terra é uma expressão de enfrentamento à propriedade privada, produzir alimentos saudáveis, agroecológicos e combater a fome, defender a natureza, combater todas as formas de violência contra as mulheres, organizar as mulheres nos mais diversos espaços dos territórios buscando avançar na efetiva participação política das mesmas, são também exemplos de movimentos emancipatórios das mulheres Sem Terra, são processos articulados e inseridos nas lutas estratégicas de uma organização. É necessário também buscar promover a participação e a emancipação efetiva das mulheres, em suas dimensões econômicas (geração e apropriação de renda), política (participação e tomada de decisões), e humana (com a elevação da cultura e dos níveis de consciência de homens e mulheres). Outro desafio é o de avançar nos processos de cooperação, em suas diferentes formas e sentidos, pois ela é uma necessidade para a agroecologia e para a emancipação das mulheres da classe trabalhadora. (MST, 2021, p. 9). A construção de processos emancipatórios das mulheres Sem Terra encontra inúmeros desafios. São as experiências cotidianas e históricas de organização das mulheres que permitem avançar conjuntamente. Dentre os desafios estruturais está o enfrentamento a todas as formas de violência e destruição da natureza, enfrentar o racismo, os preconceitos, a LGBTfobia, o patriarcado, a divisão sexual do trabalho e todas as formas de opressão produzidas pela sociedade capitalista são tarefas coletivas, que buscam construir espaços de participação política, social e econômica das mulheres na perspectiva emancipatória. 2.4 Feminismo Camponês e Popular 34 O feminismo camponês e popular é resultante do acúmulo político organizativo construído historicamente pelas mulheres da CLOC9 (Coordenadora Latino Americana de Organizações Camponesas) e da Via Campesina10. A trajetória das mulheres do campo, organizadas nos movimentos sociais latino americano é marcada por luta e resistência contra o sistema capitalista, patriarcal e racista. O feminismo camponês e popular se constitui na perspectiva de um feminismo das trabalhadoras, com identidade e revolucionário. As lutas por terra, direitos e território estão vinculadas também à luta pela participação igualitária e pela emancipação feminina, é nesse sentido a construção do Feminismo numa perspectiva camponesa e popular, que reconhece a existência de outros feminismos e de sua contribuição histórica para a classe trabalhadora. A construção do Feminismo camponês e popular, segundo o MST (2020), considera que a igualdade de gênero não será alcançada em sua plenitude nessa sociedade capitalista. A luta é pela destruição de todas as formas de opressão, pela construção de uma nova sociedade onde as desigualdades de gênero devem ser enfrentadas. A luta pela emancipação das mulheres tem que estar lado a lado da luta pelo fim da propriedade privada, pelo direito à Terra e ao Território, pela Reforma Agrária, contra as transnacionais, contra os transgênicos, contra os agrotóxicos, pelo fim das mineradoras etc. (MST, 2020, p. 10). A unidade das mulheres em torno dessa construção, vai além da luta pela participação igualitária nas instâncias de decisão dos movimentos sociais às quais estão vinculadas, propõe-se a construir um feminismo que contemple a diversidade de sujeitos do campo, que represente uma nova leitura a partir das mulheres camponesas, indígenas e negras. Para complementar essa ideia, vejamos a seguir: 9 CLOC – A coordenação Latino Americana de organização do campo (CLOC-Via Campesina) é uma instância de articulação continental, com o compromisso com a luta social que representa os Movimentos Camponeses, de trabalhares e trabalhadoras indígenas e negros de toda a América Latina. São 84 organizações, em 18 países da América Latina e do Caribe que constituem uma força social mobilizadora, presente em todos os espaços que oferecem propostas alternativas para o continente. A CLOC é parte Via Campesina Internacional e através de nossos temas de trabalho, eixos, ações e espaços de articulação e mobilização, luta contra o sistema patriarcal e capitalista que destrói a vida e a natureza. Disponível em: https://cloc-viacampesina.net Acesso em 18 de março de 2023. 10 A Via Campesina é uma organização mundial que articula Movimentos camponeses em defesa da agricultura familiar em pequena escala e agroecológica para garantir a produção de alimentos saudáveis. Entre seus objetivos constam a construção de relações de solidariedade, reconhecendo a diversidade do campesinato no mundo; a construção de um modelo de desenvolvimento da agricultura que garanta a soberania alimentar como direito dos povos de definirem suas próprias políticas agrícolas; e a preservação do meio ambiente com a proteção da biodiversidade. (CALDART, 2012, p. 765) https://cloc-viacampesina.net/ 35 El Feminismo Campesino y Popular es una construcción asentada en la pluralidad y diversidad, buscando construir la unidad en la diversidad. Reconocemos la heterogeneidad de formas de pensar, de organizarse, de producir y de vivir de las mujeres del campo y buscamos comprender la complexidad de las formas de explotación y dominación para construir un movimiento integral que articula las diferencias y recupere nuestra identidad de gente de campo. Nosotras mujeres que construimos el Feminismo Campesino y Popular tenemos en común nuestra relación con la tierra, con el territorio y la producción de alimentos, un proyecto de agricultura campesina y popular y un proyecto de sociedad como la identidad que nos unifica. Y tenemos la comprensión de que esencialismos y romanticismos en relación a las identidades indígenas, campesinas y negras que niegan o intentan ocultar las relaciones jerárquicas y de desigualdad reproducidas en el interior de estas comunidades hacia las mujeres deben ser superadas y eliminadas. (MST, 2020, p. 9). O feminismo camponês e popular se apresenta como estratégia de emancipação das mulheres, de libertação frente às explorações e opressões sociais, econômicas e políticas impostas pelo capitalismo e pelo patriarcado. É uma formulação histórica das mulheres do campo a partir de processos construídos coletivamente, de formação política e lutas concretas de protagonismo das mulheres em busca de melhorias sociais, políticas e econômicas na vida da classe trabalhadora, mas em especial das mulheres, questões que determinam a práxis, e que, a partir dessa construção, nomeou-se de feminismo camponês e popular. Conforme apontado pelo MST (2020), como reafirmação da trajetória de lutas e ações históricas das trabalhadoras: Es una propuesta política construida colectivamente y orgánicamente por las mujeres de la CLOC/LVC desde las bases, y se presenta como una propuesta política no solo para las mujeres sino para todo el movimiento campesino y para toda la clase trabajadora, pues es parte de un proyecto de sociedad que queremos construir. Este feminismo parte de la comprensión de la necesidad de liberación de todas las mujeres em cuanto sujeto colectivo, comprendemos que solo por medio de la lucha colectiva, inserta en la lucha de clases, es posible la emancipación de las mujeres. Este factor, diferencia el feminismo campesino y popular de algunas vertientes del feminismo que parten del individuo como centralidad da su analice y acción política, que ponen en el centro solamente la lucha para el acceso a los derechos individuales, que reconocemos ser necesarios, pero no suficientes para la verdadera emancipación de las mujeres. (MST, 2020, p. 8). O feminismo pode ser apropriado de diversas maneiras dentre suas diversas expressões e correntes, mesmo o feminismo revolucionário difundido no Brasil e na América Latina que se construiu com suas raízes eurocêntricas, sem considerar a diversidade das mulheres em outras regiões, segundo MST (2015). Em países socialistas o feminismo era tratado como um tema secundário e das mulheres e secundário, e pensava-se que a questão econômica e política como unicamente o 36 caminho para a resolução de todos os problemas da ordem social capitalista, patriarcal, que levariam naturalmente a resolução de outras questões sociais como a opressão de gênero e racial. O que demonstrou ser insuficiente enquanto experiência histórica. As experiências revolucionárias socialistas (tanto na Europa, como na América Latina, influenciadas pelos debates na III Internacional ou Internacional Comunista) nos indicam o que foi insuficiente, e o que é necessário avançar. Para além do eurocentrismo, que refere ao pensamento de uma época, que se apropria dos desafios daquele momento histórico a partir de uma leitura da realidade, e o transforma e ações concretas de luta e mudanças. Em determinados momentos, compreendia-se hegemonicamente que a questão da mulher seria resolvida automaticamente após uma revolução político-econômica, mesmo Rosa, Clara e Kolontain já indicando naquela época que não seria assim. Na perspectiva de construir um feminismo das trabalhadoras vinculado à emancipação humana, o feminismo camponês e popular tem suas raízes na análise da realidade do campo, onde identifica elementos comuns, dentre eles: A apropriação dos bens naturais pelo capital, a padronização da agricultura através das commodities, a atuação das transnacionais em ramos estratégicos do agronegócio, da mineração e do hidronegócio e o forte aparto do estado e da maioria dos governos em subsidiar o capital, com investimentos e financiamentos públicos vultosos. (MST, 2015, p. 11-12). A partir disso, compreende-se um feminismo entendido como um “movimento social e político de enfrentamento ao patriarcado, a divisão sexual do trabalho e as manifestações do machismo, do racismo, da LGBTfobia” (MST, 2015, p. 11). O feminismo camponês e popular propõe-se a transformações na vida concreta das mulheres do campo, Logo, quando afirmamos que o feminismo camponês e popular o relacionamos com as nossas próprias vidas no campo, nosso trabalho nas especificidades em ser do campo. Por isso sustentamos que o feminismo camponês e popular é o respeito ao nosso modo de vida, baseado no projeto de agricultura camponesa e agroecológica e que busca construir a base para uma sociedade sem classes, uma sociedade socialista e feminista. A luta por autonomia economia e reconhecimento do nosso trabalho, nesse sistema são partes primordiais na construção do nosso feminismo e de nossa libertação. Portanto, embora tenhamos clara certeza de nosso horizonte socialista, também afirmamos fundamental a luta por direitos, reconhecimento e políticas públicas que possam melhorar as nossas vidas no campo via Estado. (Mezadri; et al, 2020, p. 76). 37 O conceito de feminismo é uma permanente disputa, pois ele expressa também um posicionamento político de ideias e projetos. O feminismo camponês e popular está fundamentado no feminismo revolucionário, de origem socialista. É uma práxis coletiva, construída pelas mulheres em luta, nas organizações e movimentos populares, vinculadas ao projeto amplo de transformação da sociedade e de emancipação conforme apontado na síntese a seguir. Vejamos: Feminismo – Movimento Social e Político de enfrentamento ao Patriarcado, a Divisão Sexual do Trabalho e as manifestações do machismo, do racismo, da lgbtfobia, da gordofobia etc. Camponês – Sob a perspectiva das mulheres e dos movimentos sociais do campo, abarcando os povos da floresta e das águas. Popular – Com um posicionamento político de classe, no desafio da construção do poder popular. Com Identidade – A partir das cosmovisões presentes nos diferentes povos e etnias, vinculando a luta pela terra ao território. E Revolucionário – Rompendo com as estruturas de dominação e exploração presentes nas sociedades de classes. Forjar a nova sociedade, uma sociedade emancipada, uma sociedade socialista! (MST, 2015, p.11). Reconhece-se os diversos feminismos, e apresenta-se o feminismo camponês e popular como uma necessidade de construir um posicionamento político que aborde a questão das mulheres trabalhadoras, feministas, camponesas, quilombolas e indígenas. No desafio de construir novas relações que permeiam mudanças estruturais na sociedade, em especial na América Latina onde as mulheres são portadoras de lutas anticolonial, antipatriarcal e anticapitalista (Bezerra, 2020, p.60). Da mesma forma, defendemos que é na luta pela construção de uma nova sociedade para além dos marcos do capital, que as desigualdades de gênero devem ser enfrentadas. A luta pela emancipação das mulheres tem que estar lado a lado da luta pelo fim da propriedade privada, pelo direito à Terra e ao Território, pela Reforma Agrária, contra as transnacionais, contra os transgênicos, contra os agrotóxicos, pelo fim das mineradoras etc. Uma mudança estrutural não representa uma alternância de poder. Ela deve ser portadora de uma sociabilidade que precisa ser construída na realidade objetiva que vivemos, mesmo que a efetivação plena do processo de emancipação ocorra sob outro contexto. (Via Campesina, 2015, n/p). A literatura sobre o tema ainda é incipiente, mas, quando apresentada pelas mulheres que participaram dessa construção, de certa forma inovadora e transformadora, temos um panorama dos desafios e dos avanços significativos tanto na compreensão do tema para as mulheres da organização quanto nos embates ao construir uma nova categoria de análise para e com as mulheres do campo, frente aos desafios que o feminismo em geral enfrenta, mas que não dão conta de abarcar essa diversidade e completude. 38 Segundo uma palestra de Itelvina Massioli11 (2020) é somente a partir de 2010 na IV Assembleia Latino-Americana das Mulheres do Campo em Quito, Equador, que foi afirmado e assumido o Feminismo Camponês e Popular. Por tanto, é um debate de formulação recente, ainda em construção. Porém, é necessário considerar essa definição como parte de um percurso histórico construído na CLOC e Via Campesina, resultante de uma articulação internacional das mulheres, a qual vem fortalecendo a luta, a organização social e política, a solidariedade de classe, o internacionalismo e a construção de alianças na perspectiva da construção de outro projeto de sociedade e de campo, que se contrapõe radicalmente ao modelo capitalista, patriarcal e do agronegócio. Assim, podemos afirmar, que desde o início, posicionamos o debate de gênero e Feminista desde uma perspectiva de classe e na luta de classes. (MST, 2020, p. 12). A construção coletiva e a ação política das mulheres ao reivindicar um feminismo camponês afirma a identidade histórica desses sujeitos, que são povo em luta e resistência no campo, e popular porque esse debate se propõe de todas e todos. Não é um debate apenas do campo, mas busca estar vinculado à prática e à estratégia política transformadora, da luta de classes, que reconhece as inegáveis contradições e desafios, mas que evidencia uma necessidade de aprofundar o debate em torno do feminismo e do socialismo como projeto da classe trabalhadora (MST, 2020), expressos na afirmação “Sem feminismo, não há socialismo!”. Sobre isso, o MST nos diz que: Assumimos o Feminismo como um movimento político, que nos permite avançar na luta pela emancipação da humanidade. Desse modo, o Socialismo e o Feminismo são parte de nosso horizonte estratégico de transformação. Por isso afirmamos um Feminismo Camponês e Popular, insubmisso, socialista, que questiona as concepções patriarcais e burguesas, que são funcionais as políticas de exploração capitalista. Desse modo, a concepção Feminista que estamos construindo está fortemente vinculada a processos políticos, organizativos, de formação política e de lutas concretas, permanentes que alterem a vida social, econômica e política da classe trabalhadora e particularmente das mulheres trabalhadoras. (MST, 2020, p. 13). As mulheres do MST, ao assumir o feminismo camponês e popular, vinculam- se diretamente à estratégia geral da classe trabalhadora. É importante fortalecer a participação política feminina, mas isso se dá no conjunto da organização. É defendido como um feminismo das trabalhadoras e trabalhadores, vinculado à ação política 11Conteúdo disponível no site formação em tempos de corona. https://sites.google.com/view/mstformcaocvd19 https://sites.google.com/view/mstformcaocvd19 39 concreta e ao protagonismo da participação das mulheres, que é uma condição necessária para transformar a sociedade. 40 3 AS MULHERES NA CONSTITUIÇÃO DO MST Neste capítulo será abordado um breve histórico do surgimento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, e, como se constituiu a participação das mulheres no Movimento. Nesse percurso de escrita e pesquisa, a intenção é de apresentar o processo que se construiu internamente na organização, num entrelace entre gênero, feminismo e luta pela terra apontando elementos sobre a trajetória construída pelas próprias mulheres na atuação, nos desafios e nas conquistas, buscando elencar questões que se configuram como participação e protagonismo feminino. Nessa trajetória de participação e construção, as mulheres Sem Terra elaboram uma compreensão sobre gênero e feminismo, com bases no feminismo camponês e popular, e recolocam o significado do dia 8 de março como um dia de luta. Para discutir participação, protagonismo e emancipação é preciso também discutir o tema da diversidade que será apresentado no último subtítulo na intenção de apontar, mesmo que de maneira bastante resumida, alguns elementos sobre a diversidade no MST, os avanços e os desafios enfrentados na atualidade. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), realizou em janeiro de 1984, seu primeiro Encontro Nacional, na cidade de Cascavel, no estado do Paraná, na região sul do país. Com uma trajetória de 40 anos de lutas, conquistas e resistências, nasceu em um contexto de redemocratização no Brasil, depois de 20 anos de Ditadura Civil Militar no país. A ocupação da terra, constituiu-se como uma forma de luta, que contribui diretamente na consolidação organizativa do Movimento, tornando-se assim, um dos mais significativos movimentos de luta pela terra do Brasil. A transformação social e a construção de uma sociedade sem exploradores e sem explorados, formam a base da estrutura dos objetivos da luta do MST. Tais pautas se movem em prol da construção coletiva de novos valores, da igualdade de direitos, de justiça social, combatendo todas as formas de discriminação, sejam elas sociais, raciais ou de gênero. E, nesse sentido, consideramos que a participação das mulheres é essencial para dar sustentação aos objetivos de luta conjunta, de forma participativa e igualitária. Desde seu surgimento, o MST foi composto por mulheres, homens, jovens, crianças e idosos. A demanda da luta pela terra era uma realidade das famílias camponesas, as mulheres sempre estiveram presentes e atuantes não somente na 41 constituição do Movimento, mas na organização do assentamento, em vista de ter o espaço de produção e de vida que a conquista da terra significava. A participação das mulheres era efetiva na ocupação da terra, na organização do acampamento, e depois do assentamento (presentes nos atos de resistência). No entanto, em sua primeira reunião da coordenação nacional, apenas duas mulheres foram indicadas para a tarefa de direção do movimento dentre vinte membros que fariam parte da direção nacional da organização (MST, 2010). Segundo o documento interno citado de sistematização do encontro, nesse período histórico, as mulheres “tinham duas funções básicas: garantir a permanência das famílias nos acampamentos e amenizar a violência nos conflitos” (MST, 2010). Historicamente, as mulheres sempre estiveram presentes nos movimentos camponeses. Podemos citar como exemplo, Elizabeth Teixeira12 que liderou as Ligas Camponesas, experiência de luta pela terra que antecede e influência o MST. É importante considerarmos que na atualidade a aceitação e compreensão das lutas do feminismo dentro do campo agrário são complexas. Imaginemos então, quanto foi duro e penoso para as mulheres que deram esse pontapé nas lutas sociais no passado. Demarcaram na história muitos pontos fundamentais, como estratégias de sobrevivência, organização, estratégica de ações e fortalecimento de luta, que reafirmam como parte da história, muitas delas apagadas pelo machismo, pelo patriarcado e pelo latifúndio (Silva e Santos, 2020, p. 70). Na realização do primeiro congresso do MST em 1985 em Curitiba/PR, com a palavra de ordem “Ocupação é a única solução”, a participação feminina representou, apenas 30%, dos integrantes do Movimento que estavam no encontro. Nesse contexto, as mulheres realizaram a primeira Assembleia das Mulheres Sem Terra, e na qual decidiram organizar grupos de base. Esses grupos, tiveram o objetivo de fortalecer a formação e a organização das mulheres Sem Terra no MST, que desembocou em 1986 na consolidação da Comissão de Mulheres, buscando discutir e ampliar os espaços de participação das mulheres no Movimento. 12 Elizabeth Altina Teixeira enfrentou muitas adversidades, mas nunca se intimidou diante da violência dos proprietários de terra no interior da Paraíba. Ao contrário: a morte do marido João Pedro Teixeira, em abril de 1962, aos 44 anos, a motivou a seguir seu legado, intensificando a militância contra os abusos que atingiam os camponeses, torturados e vivendo em situação de quase escravidão. Site: https://deolhonosruralistas.com.br https://deolhonosruralistas.com.br/ 42 Já em 1998, o documento “Normas Gerais13” que é um dos principais documentos do MST, expressou essa conquista da organização das mulheres, ressaltando a importância da participação igualitária nas instâncias, setores e grupos de base. Havia muitos fatores que evidenciam as contradições da classe trabalhadora também internamente. Permaneciam as contradições e os desafios de avançar na participação efetiva das mulheres nos espaços de decisão. Na prática homens na liderança e nos cabos de enxada nas terras ocupadas; famílias inteiras chegando aos acampamentos. Não tinha escolha, pois a grave crise violentava o direito básico a alimentação e ao trabalho. Acampamentos cheios de vida, e lá estavam elas, as mulheres, e também mais invisibilizadas as LGBT sem terra. Combinava a intensa jornada de trabalho doméstico com a dor, o amor e a tarefa de linha de frente na contenção dos conflitos. Algumas poucas participavam das reuniões, tomavam a palavra, com a calça e a blusa larga, que nem sempre eram suas escolhas, mas uma espécie de senha, necessária para serem ouvidas, respeitadas como militantes [...]. (MST, 2018, p. 9) Neste período histórico é importante perceber os estranhamentos e o papel das mulheres na organização, retomando a análise que a conquista do espaço não foi uma “permissão”, está mais vinculado ao enfrentamento desses sujeitos sociais que se rebelam, que conspiram e que forjam novos parâmetros de participação feminina alinhadas as lutas estratégicas. As questões no seio do Movimento Sem Terra expressam as contradições da classe, “enxergar a classe trabalhadora, não como um bloco homogêneo, mas no movimento das contradições sociais que formam os sujeitos da classe (MST, 2018, p. 9). As desigualdades na participação das mulheres que são reproduzidas na organização, são resultantes das relações machistas e patriarcais na sociedade, e neste processo de construção da organização pelas pessoas que dela participam, as mulheres Sem Terra buscam construir seu protagonismo em todos os espaços e instâncias, enfrentando as contradições internas do próprio Movimento. A participação massiva das mulheres em acampamentos aconteceu, em certa medida, pela necessidade de o Movimento mobilizar muitas pessoas em torno da luta pela conquista da terra. No entanto, essa experiência foi fundamental para que, diante da percepção da redução de sua participação nas instâncias organizativas nos 13 “As normas gerais e os princípios organizativos” é um dos principais documentos do MST de nossa organização, pois reúne as características que dão identidade para nosso Movimento, aquilo que nos define e nos dá identidade. Características forma construídas pela prática e pela luta em nossa história. Este documento construído ao longo da luta pela terra e pela reforma agraria, e atualizado por nossas instâncias [...]. (MST, 2016, p. 7). 43 assentamentos, algumas das mulheres que haviam se envolvido nas mobilizações anteriores, quisessem retomar o seu papel ativo no MST. Tal realidade, ainda nos primórdios da trajetória do MST, mostra que foram as mulheres que tomaram a iniciativa em se organizar para discutir os problemas relacionados a sua participação, e aos seus direitos no interior do Movimento (Furlin, 2013, p. 259). Neiva Furlin ainda afirma que no segundo Congresso, que aconteceu em 1990, o MST assume novas definições em relação a participação das mulheres, evidenciando que não bastava a conquista da terra, mas era “necessário lutar também por relações novas, como condição para transformações mais amplas” (FURLIN, 2013, p. 263). É importante frisarmos aqui, que a questão da desigualdade de gênero é histórica, está enraizada na sociedade capitalista e patriarcal. Toledo nos explica sobre isso, quando diz que: A origem da opressão das mulheres está, portanto, ligada a transformações ocorridas nas relações humanas desde as principais sociedades de que se tem notícia. As descobertas antropológicas permitem afirmar de que a mulher não nasceu oprimida, mas passou a ser por inúmeros fatores, dentre os quais se destacam as relações econômicas, que depois determinaram toda a superestrutura ideológica de sustentação dessa opressão: as crenças, os valores, os costumes, a cultura em geral. Em especial a opressão da mulher está vinculada a existência da propriedade privada dos meios de produção e apenas poderá ser superada com uma mudança total na estrutura das sociedades assentadas neste tipo de relação. (Toledo, 2017, p. 127). Esta reflexão aponta que opressão das mulheres está aportada na dependência econômica, na pouca participação política nos espaços de decisão e poder, nas violências expressadas em diversas formas contra a vida das mulheres, na desvalorização do trabalho feminino, na apropriação pelo capitalismo do trabalho doméstico, na divisão sexual do trabalho, na discriminação racista e homofóbica, e na falta de autonomia sobre o corpo. Desde os anos 1970, o feminismo vem ganhando força no Brasil, influenciando diretamente a própria organização e articulação das mulheres Sem Terra, que ainda buscam incorporar os debates sobre gênero nas referências das experiências históricas e revolucionárias. Porém, é importante ressaltar que, a incorporação do debate sobre feminismo no MST é assumindo posteriormente. Dentre as principais bandeiras das mulheres Sem Terra, sempre esteve a luta pela terra. Em unidade com as mulheres do campo, outra bandeira que se soma é a 44 do direito de ser reconhecida como trabalhadora rural14. Enquanto que internamente no Movimento, foram pautando a necessidade de avançar na participação junto às instâncias organizativas, setores, nos processos cooperativos, na participação e representação nas direções estaduais e nacional, no reconhecimento do trabalho feminino e no combate de todas as formas de discriminação contra as mulheres. Nos acampamentos e assentamentos a vida era pulsante, as mulheres estavam inseridas na educação, na saúde, na produção, na mística, nas lutas, nos enfrentamentos e todos os processos do movimento, mas, essa inserção não necessariamente significava voz ativa nos processos decisórios, nas coordenações e instâncias. Nesse período, as mulheres pautaram, discutiram e enfrentaram as contradições internas da organização, conforme aponta a cartilha “A questão da mulher no MST” (1996), que identifica e apresenta os problemas da participação das mulheres, a falta de representatividade, e relaciona a questão da organização com as mulheres no conjunto da sociedade. É importante destacar, que esse documento relaciona os problemas da participação das mulheres no MST naquele determinado momento histórico de 1996. Afirma, categoricamente que as mulheres lutam, mas não tem representatividade; que havia diferenças entre teoria e prática do MST; e que o trabalho com/sobre/das mulheres era considerado secundário. Afirma, ainda, que as causas dos problemas eram: a) sociais (preconceito histórico e atraso das relações sociais do campo); b) da própria organização (MST) com a falta entendimento do problema (maioria acha que não existe problema), falta de iniciativa em criar mecanismo de participação, e falta qualidade na formação de seus membros; c) das mulheres: medo de enfrentar os problemas (MST, 1996, p.3-4). O documento ainda destaca, que houve avanços importantes, pontuando as seguintes questões: a) conscientização de que existiam problemas e estavam sendo construídos caminhos para enfrentar a discriminação; b) a preocupação existente no MST em debater o problema de forma política (relação intrínseca entre gênero e luta 14 As mulheres do MST assumiram algumas lutas específicas em conjunto com as mulheres da Articulação Nacional das Mulheres Trabalhadoras Rurais (ANMTR). Foram elas: campanha nacional de documentação das mulheres; campanha de cadastro e título da terra em nome da mulher; mobilização do dia 12 de agosto; mobilização do dia 08 de março, colocando como bandeira de luta o dia de luta o dia das mulheres com