AUTORRETRATO uma obra em processo THAÍS ANGÉLICA DE BRITO PUPATO UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES - MESTRADO THAÍS ANGÉLICA DE BRITO PUPATO AUTORRETRATO uma obra em processo São Paulo 2016 THAÍS ANGÉLICA DE BRITO PUPATO AUTORRETRATO uma obra em processo Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes da UNESP - São Paulo, na linha de pesquisa Processos e Procedimentos Artísticos, como exigência parcial para obtenção do título de Mestrado em Artes Visuais, sob a orientação do Prof. Dr. Sérgio M. Romagnolo. São Paulo 2016 Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP P984a Pupato, Thaís Angélica de Brito, 1990- Autorretrato uma obra em processo / Thaís Angélica de Brito Pupato. - São Paulo, 2016. 111 f. : il. color. Orientador: Prof. Dr. Sérgio Mauro Romagnolo. Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes. 1. Autorretrato. 2. Psicanálise. 3. Literatura. I. Romagnolo, Sérgio Mauro. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 750.1 THAÍS ANGÉLICA DE BRITO PUPATO AUTORRETRATO uma obra em processo Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes da UNESP - São Paulo, na linha de pesquisa Processos e Procedimentos Artísticos, como exigência parcial para obtenção do título de Mestrado em Artes Visuais, sob a orientação do Prof. Dr. Sérgio M. Romagnolo. Defesa aprovada em 24 de maio de 2016. BANCA EXAMINADORA __________________________________________ Orientador Prof. Dr. Sérgio M. Romagnolo __________________________________________ Prof. Dr. José Leonardo Nascimento __________________________________________ Profa. Dra. Helena Gomes dos Reis Pessoa São Paulo 2016 CAPES Sérgio José Leonardo Marlon e todos que pouco ou muito fizeram parte desta história, minha imensa gratidão a vocês. Família, obrigada sempre. O que se vê, não pertence ao objeto, pertence ao universo particularizado do observador. Merleau-Ponty RESUMO Aproprio-me da literatura para falar do processo criativo na fatura de meus autorretratos, me recorro aos contos homônimos de Machado de Assis e Guimarães Rosa, O Espelho. Elemento imprescindível para as composições plásticas e que também desdobra em questões filosóficas por se tratar das percepções da autoimagem, desta maneira, a investigação se apoia em conceitos da psicanálise conforme as relações do imaginário e do fazer artístico. Palavras-chave: Autorretrato. Autoimagem. Espelho. O Outro. Processo Criativo. RESÚMEN Apropiome de la literatura para hablar del proceso creativo en la elaboración de mis autorretratos, me vuelvo a los cuentos homónimos de Machado de Assis y Guimarães Rosa, El Espejo. Elemento indispensable para las composiciones plásticas que también dispone cuestiones filosóficas, por tratarse de las percepciones de la auto-imagen, de esta manera, el estúdio se basa em conceptos del psicoanálisis de acuerdo con las relaciones del imaginário y la creación artística. Palabras claves: Autorretrato. Auto-imagen. Espejo. El Outro. Proceso Creativo. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1. Mão, 2009. Grafite sobre papel, 20x28cm. Acervo Pessoal.9 Figura 2. Mão, 2009. Carvão sobre papel, 20x28cm. Acervo Pessoal. ...................................................................................................................... 10 Figura 3. Desenho de observação 1, 2009. Grafite sobre papel, 30x42cm. Acervo Pessoal. ...................................................................... 37 Figura 4. Desenho de observação 2, 2009. Carvão sobre papel, 30x42cm. Acervo Pessoal. ...................................................................... 37 Figura 5. Desenho de observação 1, 2009. Carvão sobre papel, 30x42cm. Acervo Pessoal. ...................................................................... 38 Figura 6. Desenho de observação 2, 2009. Carvão sobre papel, 30x42cm. Acervo Pessoal. ...................................................................... 38 Figura 7. Autorretrato de rímel, 2013. Rímel sobre papel, 29x21cm. Acervo Pessoal. ......................................................................................... 39 Figura 8. Autorretrato, 2013. Linha, lã e barbante sobre tecido, 73x39 cm. Acervo Pessoal. ................................................................................. 41 Figura 9. Autorretrato na cozinha, 2013. Linha, barbante e pastel sobre tecido, 66x60cm. Acervo Pessoal................................................ 43 Figura 10. Autorretrato nu, 2013. Barbante sobre juta, 100x59cm. Acervo Pessoal. ......................................................................................... 45 Figura 11. Último abraço, 2013. Linha sobre juta, 175x87cm. Acervo Pessoal. ...................................................................................................... 47 Figura 12. Autorretrato inacabado, 2014. Linha sobre juta, 170x90cm. Acervo Pessoal. ......................................................................................... 49 Figura 13. Autorretrato, 2013. Fotografia Digital. Acervo Pessoal. ... 50 Figura 14. Autorretrato de perfil, 2014. Ponta seca, 29x19cm. Acervo Pessoal. ...................................................................................................... 51 Figura 15. Matriz. Cobre. 14x10cm. Acervo Pessoal. ......................... 53 Figura 16. Autorretrato I, 2014. Série Melancolia. Água-forte, ponta seca e lavi. 14x10cm. Acervo Pessoal. ................................................. 54 Figura 17. Matriz. Cobre. 14x10cm. Acervo Pessoal. ......................... 56 Figura 18. Autorretrato II, 2014. Série Melancolia. Água-forte, água- tinta e lavi, 14x10cm. Acervo Pessoal. .................................................. 57 Figura 19. Matriz. Cobre. 14x10cm. Acervo Pessoal. ......................... 59 Figura 20. Autorretrato III, 2014. Série Melancolia. Água-forte, água- tinta e lavi. 14X10cm. Acervo Pessoal. .................................................. 60 Figura 21. Matriz. Cobre. 20x12cm. Acervo Pessoal. ......................... 62 Figura 22. Autorretrato, 2014. Água-forte, água-tinta e lavi. 20x12cm. Acervo Pessoal. ......................................................................................... 63 Figura 23. Autorretrato, 2014. Água-forte, água-tinta e lavi. 14x10cm. Acervo Pessoal. ......................................................................................... 64 Figura 24. Cheia, 2014. Autorretratos Lunares. Ponta seca. 32x27cm. Acervo Pessoal. ......................................................................................... 65 Figura 25. Crescente, 2014. Autorretratos Lunares. Ponta seca. 32x27cm. Acervo Pessoal. ...................................................................... 66 Figura 26. Minguante, 2014. Autorretratos Lunares. Ponta seca. 32x27cm. Acervo Pessoal. ...................................................................... 67 Figura 27. Nova, 2014. Autorretratos Lunares. Ponta seca. 32x27cm. Acervo Pessoal. ......................................................................................... 68 Figura 28. Não-autorretrato, 2015. Carvão e fita adesiva sobre papel e metal, 66x50cm. Acervo Pessoal. ....................................................... 69 Figura 29. Autorretrato, 2015. Carvão e lã sobre tela. 65x50 cm. Acervo Pessoal. ......................................................................................... 71 Figura 30. Autorretrato de cobre, 2015. Fotografia e fio de cobre sobre linho. 22x30cm. Acervo Pessoal. ................................................. 73 Figura 31. Autorretrato das mãos, 2016. Carvão sobre tela. 65x50 cm. Acervo Pessoal. ................................................................................. 74 Figura 32. Autorretrato, 2016. Carvão e acrílica sobre tela. 90x60cm. Acervo Pessoal. ......................................................................................... 75 Figura 33. Mão, 1997. Caneta esferográfica e lápis de cor sobre papel. 15x21cm. Acervo Pessoal. .......................................................... 84 SUMÁRIO INTRODUÇÃO PREFACIANTE ................................................................... 1 MEU ESPELHO ............................................................................................. 6 OS ESPELHOS ........................................................................................... 12 UMA OBRA EM PROCESSO ...................................................................... 31 CONSIDERAÇÕES POSFACIANTES ....................................................... 82 REFERENCIAIS TEÓRICOS ................................................................... 85 ANEXOS ....................................................................................................... 88 Não era a vaidade que a atraía para o espelho, mas o espanto de descobrir-se. Milan Kundera 1 INTRODUÇÃO PREFACIANTE O projeto que originou este trabalho propunha entre tantos interesses historificar e significar o autorretrato nas artes plásticas. Não é mais o que pretendo expor aqui. Dürer, Rembrandt, Van Gogh, Picasso, Cindy Sherman e tantos outros artistas são notavelmente conhecidos por seus autorretratos, até mesmo para não iniciados nas artes. Já que para tratar esse assunto os artistas visuais são recorrentes, resolvi entrelaçar as ideias, atravessar algumas fronteiras e tecer o caminho por meio da literatura, visto que minha produção não se limita apenas aos procedimentos artísticos. A escrita também é uma de minhas poéticas. O autorretrato não é uma exclusividade plástica. Muitos escritores se beneficiam e se expressam por esse tema, em presenciar-se pela represença, tal constância entre criadores dificulta a escolha em meio a tantas possibilidades. Sabino, Borges, Drummond, Cecília, Vinícius, Bandeira. A quem recorrer? À procura de responder essa e outras questões dividi inicialmente a pesquisa em três eixos, meios que utilizo para compor meus autorretratos: Espelho, Fotografia e Memória. Não são elementos isolados, eles se intercalam naturalmente com frequência, por isso decidi focar-me em apenas um, e traçar ocasionalmente os momentos em que eles se encontram. Escolhi o Espelho por permitir os reflexos e as reflexões, e assim, proporcionalmente facilitei minha seleção entre os escritores autorretratantes. Machado de Assis (1839-1908) em seu livro Papéis Avulsos publicado em 1882, já na fase realista, nos apresenta Jacobina, personagem principal de seu conto O Espelho – Esboço de uma nova teoria da alma humana. 2 Guimarães Rosa (1908-1967) influenciado por regionalismos, pela linguagem popular, características notáveis da terceira fase do modernismo, publica em 1962 o conto homônimo no livro Primeiras Estórias. Em ambos os casos, o personagem passa pela instigante agonia de ver-se no espelho e não reconhecer-se, passando por etapas de autoconhecimento em busca de sua completude. Deixo em anexo os dois contos para maior facilidade de acesso durante a leitura de toda esta pesquisa. O espelho para eles não é apenas um artífice para manutenção estética, senão constituinte para a reflexão da autoimagem. Em se tratando de meu processo criador, me utilizo do reflexo-imagem e da reflexão filosófica, portanto das duas características especulares, para compor obras e pensamentos acerca do autorretrato. Principio o registro desta pesquisa com o que considero meu momento debutante escolástico, momento em que ainda não havia atingido a maioridade, mas que requeria- se que eu já soubesse qual carreira deveria seguir. Em forma de conto, narro o início acadêmico de meu processo criativo. Com a permissão neologizante concedida por Guimarães Rosa, utilizo palavras novas, ou nem tão novas assim, não só na anedota, mas em toda a extensão desse relato. O intuito dessa narração não é sobrepor qualidades ou pormenorizar o conto dos aclamados escritores, mas me aproximar de experiências semelhantes aos questionamentos que se impõem. Muito além da ficção, verdadeiramente vivi os fatos descritos e a partir deles desenvolvo paralelos, tangentes e perpendiculares linhas. Depois de introduzir lhes, caros leitores, em minha história e agonia, analiso os dois contos citados conforme algumas conexões teóricas. A estrutura das três narrações 3 permitem no mínimo questionamentos com base na psicanálise, filosofia e crítica literária. Para tanto, seleciono autores engajados nessas três áreas e que também se arriscam muitas vezes nas artes. Em decorrência de espelhos pertencerem aos estudos da óptica e à leitura de imagens, David Halliday e Umberto Eco fundamentam as questões da imagem especular enquanto signo. Não tenho o intuito de envolver-me com a semiótica, apenas os pontos umbertianos necessários. José Miguel Wisnik e Maria Lucia Homem oportunamente relacionam os dois contos com estruturas psicanalíticas diante do desenrolar das afigurações de cada personagem. Lacan, Dolto e Freud são fundamentais para a análise, pois a partir deles avalio a constituição do eu conforme a crença defendida por cada um, destacando suas aproximações e distanciamentos em relação à participação do Outro e a formação da imago. Olhar-se no espelho é um fazer constante do cotidiano, contudo, não basta por si só e viver e ver-se, há que ir além do refletir-imagem, há que se refletir-pensar, procurar relações do visível com o invisível, para tanto, aproprio-me das ideias de Merleau-Ponty e Didi-Huberman, filósofos franceses defensores da fenomenologia da percepção, imprescindível para a realização desse estudo. Margarida Medeiros e Tania Rivera são as principais chaves para abrir as portas do refletir sobre a produção artística diante da psicanálise, desta maneira, aproveito suas abordagens a respeito da obra de alguns artistas, em especial, Louise Bourgeois, para assim autoanalisar meu processo de criação, e então, articulando esse time busco compreender a formação do eu enquanto criador, seja na ficção ou não. Transcorro parte de meu percurso para você, leitor, como forma de dar continuidade à minha narração, história que 4 se faz portanto, em palavras e imagens, indissociáveis a meu ver, a fim de que me acompanhe na trajetória de meus autorretratos, obra que não se faz por fim, mas por curso, afinal, a participação do Outro é um dos principais elementos de produção e constituição do eu. 5 A maior riqueza do homem, é a sua incompletude nesse ponto sou abastado. Manoel de Barros 6 MEU ESPELHO Certas coisas acontecem em nossas vidas, e no momento em que elas ocorrem, não nos damos conta do que realmente representam ou como irão nos marcar. Lembro-me do momento em que realizava a Prova de Aptidão e Habilidades para o vestibular no ano de 2007, ainda não tinha maioridade. O poema Autorretrato de Mário Quintana e um pequeno espelho foram os elementos oferecidos para a produção de dois desenhos, exigência do exame. Durante alguns anos, aquele espelho esteve presente no meu cotidiano. Na verdade, eram dois, de um lado um espelho plano simples, do outro, um espelho convexo. Eu quase não olhava este último. Mas o outro, quase sempre me fisgava, fazendo com que eu me perdesse por horas dentro dele. Ou me encontrasse talvez. Seu formato circular me incomodava um pouco, talvez por me sentir redonda também. Quem sabe seja por isso que chamava tanto minha atenção, sua borda segurava ambos espelhos acompanhando o formato, sem cantos, verde. Servindo de base para apoio horizontal ou conforme a necessidade também poderia ser gancho para pendurá-lo, havia um semicírculo de encaixe e dobradiça, muito frágil por sinal. Era o único obstáculo para o olhar que quisesse circundá-lo, e dar voltas e voltas ao redor do tal objeto. Tinha um certo zelo com este pequeno souvenir da prova. Não apenas por sua natural necessidade de cuidado devido à sua fragilidade, mas também pelo que ele representava e pela maneira como me provocou no dia em que o recebi. No primeiro exercício do teste, pedia-se que se posicionasse esta peça e que se desenhasse aquilo que se via. 7 Imagine quantas maneiras poderia haver. Observei algumas, o ventilador no teto, o colega atrás, o colega ao lado, a mão. Sim, este foi o meu assunto. Minha mão. Depois daquele dia ela o foi e ainda o é, parte de meu corpo em que mais me dedico a retratar, com o passar das várias repetições ganhamos a habilidade de tornar todas as outras mãos alheias como a nossa própria, toda mão é mão, mas a reprodução constante de uma mesma se torna vício para as sutilezas do olhar. E no meu caso, quase sempre a esquerda. O segundo exercício pedia então, que o desenho tratasse da relação do espelho e do poema de Quintana. A ideia inicialmente me assustava. Como poderia desenhar a mim mesma? Era atormentador. Lia e relia o poema sem processar qualquer palavra. Eu sabia o que devia fazer, mas não sabia se estava preparada para isso. Minhas ideias eram consumidas pelo tempo que se aproximava do limite, e meu desespero aumentava. E se não se parecesse comigo? Imaginava o que o avaliador do meu desenho poderia pensar. É claro que ele não iria me conhecer ou possuir uma foto para comparar e julgar se se parecia ou não. Mas a obviedade nos foge quando estamos aflitos. Pensava nos autorretratos que fazia quando tinha meus seis anos, quando todos elogiavam e riam carinhosamente das garatujas esguias e coloridas. Agora era diferente. Eu esperava que os outros esperassem algo de mim. A angústia tomou muitos minutos de prova. Essa foi a verdadeira prova. Nenhuma imagem de mim era suficiente dentro daquele espelho. Percebi que não me identificava com as imagens refletidas por que talvez ainda não tivesse construído uma com que me reconhecesse dentro de mim para então me projetar para fora. Não sabia o que pensava de mim mesma. Esse era o meu verdadeiro tormento. Se não havia nada formado, ou que eu ainda não houvesse formulado, deveria estar em processo, em construção. E que, portanto, ainda aguardava experienciar partes para compor o quebra- 8 cabeça em que eu pudesse me representar. Assim o fiz. Desenhei o pequeno espelho circular segurado pela minha mão em ângulo para a direção do espectador, como se o observador ocupasse meu lugar, refletindo meu rosto, que na verdade se compunha por vários recortes disformes, distorcidos e encaixados, com alguma relação cubista. Na figura, o que assumidamente poderia remeter a mim, era apenas meu cabelo, que só depois de muito tempo e treino, aprendi a fazê-lo com mais gosto. Até hoje, é por ele e por minhas mãos que me identifico em meus autorretratos. O Auto-retrato1 No retrato que me faço - traço a traço - às vezes me pinto nuvem, às vezes me pinto árvore... às vezes me pinto coisas de quem nem há mais lembrança... ou existem coisas que não existem mas que um dia existirão... e, desta lida, em que busco - pouco a pouco - minha eterna semelhança, no final, que restará? Um desenho de criança... Corrigido por um louco! 1 Poema de Mário Quintana, publicado em seu livro Apontamentos de História Sobrenatural, em 1976. 9 Figura 1. Mão, 2009. Grafite sobre papel, 20x28cm. Acervo Pessoal. 10 Figura 2. Mão, 2009. Carvão sobre papel, 20x28cm. Acervo Pessoal. 11 Esse estranho que mora no espelho Olha-me de um jeito De quem procura recordar quem sou. Mario Quintana 12 OS ESPELHOS Em 1882 o carioca Machado de Assis publica aos 42 anos o conto O Espelho, Esboço de uma nova teoria da alma humana no livro Papéis Avulsos, obra com características que fogem das utilizadas até então na literatura. Antes, pertencente ao romantismo, agora com particularidades do período realista, com vistas à sociedade, principalmente à crítica da burguesia, denunciando o comportamento humano por meio de análises psicológicas transferidas para os personagens. Eis aqui o que mais desperta interesse no conto. No início da história, o Bruxo do Cosme Velho2 já nos oferece informações sobre a personalidade de Jacobina, o protagonista. Casmurro, provinciano, capitalista, inteligente, astuto e cáustico. Oportunamente é possível associar seu nome ao grupo separatista contrário à burguesia durante a Revolução Francesa, os jacobinos. Em diversos momentos, deixa claro que não admite discussão, que não quer ser interrompido pelos outros quatro colegas presentes enquanto narra o que lhe sucedeu. Interessante notar que, na noite em que conta a história, Jacobina tem cerca de quarenta anos, a mesma idade de Assis no ano de publicação, no episódio narrado tinha vinte e cinco anos, a mesma idade da autora que vos fala agora. Reunido aos demais companheiros de prosas transcendentes “resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo”3, Jacobina afirma não haver uma, senão duas almas que compõem a completude do homem, “uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para 2 Epíteto atribuído à Machado de Assis por Carlos Drummond de Andrade remetendo à rua em que o escritor morava no Rio de Janeiro. 3 ASSIS, 1997, p. 71. 13 dentro”4, ou seja, uma alma interior e uma alma exterior, esta por sua vez pode ser qualquer objeto físico, e que por sua concretude pode interferir na alma interior, para explicar sua teoria conta, então, sua história de quando jovem. O jovem Jacobina é nomeado alferes da guarda nacional, que apesar da insatisfação de alguns, visto que tinham outros concorrentes para o cargo, provocou grande satisfação por aqueles que lhe desejavam bem, familiares, amigos, vizinhos. Diante de tal notícia, sua tia viúva D. Marcolina lhe convida a passar cerca de um mês em seu sítio distante da vila em que morava. Entusiasmada com a chegada do sobrinho recém nomeado ao posto da guarda, D. Marcolina retira de sua sala e dispõem no quarto de hóspedes um grande espelho, mobília de destaque da casa, presente de família com história e tradição. “O senhor alferes merecia muito mais”5, e assim todos da casa o tratavam com muito orgulho e respeito. Toda a atenção e bajulação provocaram transformações na alma exterior de Jacobina, “que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza (...). A única parte do cidadão que ficou (...) foi aquela que entendia com o exercício da patente”6. Após três semanas de sua visita, D. Marcolina viaja a pedido da filha e deixa o sítio e os escravos sob os cuidados de Jacobina. Na manhã seguinte da partida da tia, o Alferes se depara sozinho, percebe que os escravos fugiram. Sem a presença de qualquer ente humano, Jacobina passa os dias atordoado, não pelas ocorrências no sítio, mas pela falta de elogios que lhe engrandecessem o garbo. Sente- se como um defunto, sonâmbulo, inexplicável. Dissolvido pelo passar das horas. 4 ASSIS, 1997, p. 72. 5 Ibid., p. 75. 6 Ibid., p. 75. 14 Eis que de súbito, por um impulso inconsciente, se coloca diante do espelho e não vê apenas um, mas dois. Sua figura não era nítida, assim se sentia sem a presença dos outros. Resolve vestir-se com a farda e aos poucos ao encarar- se e admirar-se, se reconhece e reconhece os outros, os objetos, “(...) o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos (...), achava, enfim, a alma exterior”7. Via-se como os outros o viam, vestido de seu status. E assim, consegue passar os dias sem qualquer angústia. Jacobina sai de cena e deixa os quatro amigos atônitos, refletindo sobre a história. Em 1962, quase cem anos após a publicação do conto machadiano, o mineiro Guimarães Rosa publica Primeiras Estórias, livro composto por vinte e um contos, não por acaso, O Espelho sendo o conto central. Inspirada pelos períodos parnasiano e simbolista, a chamada Geração de 45, terceira fase modernista no Brasil, por meio de forte regionalismo e erudição trata das questões humanas, uma forma de denúncia das injustiças sociais marcadas pelo período pós-guerra. Narrado em primeira pessoa, o conto tenta revelar a condição alienante que a imagem especular provoca no ser quando se depara com a mera figura refletida sem o reconhecimento de sua totalidade personificada_ poderíamos, então, pressupor que existe uma? Na história, o narrador, um sujeito não nominado nos convida a conhecer a experiência pela qual passou, convida o leitor a uma não-aventura, experiência em que se seguem raciocínios e intuições a respeito de um causo. 7 ASSIS, 1997, p. 79. 15 Digressor, questiona nosso conhecimento acerca dos espelhos, não em relação às definições físicas, mas ao transcendente, ao mistério. De maneira concreta, define que os espelhos refletem uma imagem fiel, mas que dentre eles há os bons e os maus, aqueles que favorecem e os que detraem a imagem que internamente, no nosso imaginário, já temos feita sobre nós. Sendo assim, como julgar a curva da honestidade e fidedignidade do especular? “Os olhos, por enquanto, são a porta do engano”8. Elenca, então, os mais variados espelhos que conhecemos: em parques de diversão, o bule, a colher, os rios. Ah, os rios! Brevemente recorda-nos sobre Narciso e a premonição de Tirésias_ tão logo será possível retornar a estas questões. Descreve outras mistificações e estigmas relacionados, dando-nos não-explicações, como não olhar à noite para não ter o perigo de ver outro reflexo, cobrir com um tecido quando alguém falece na família, bolas de cristão para prever o futuro, dentre outras, nos diz que “é a superstição fecundo ponto de partida para a pesquisa”9. E então, inicia o causo. Em um lavatório de edifício público, um moço contente, vaidoso e descuidado, vê em dois espelhos por um ângulo propício, o reflexo de uma figura que descreve como desagradável ao derradeiro grau, hedionda. Eis que percebe ser ele mesmo. Seguido de seu espanto, procurando quietar sua angústia, experimentou maneiras de ampliar o ilusório com outras camadas de ilusão, procurar-se por detrás de si, como coloca. A fim de que pudesse interpretar seu rosto externo com 8 ROSA, 1985, p. 77. 9 Ibid., p.78. 16 ideias que compusessem seu bloqueio visual e assim encontrasse sentido em sua percepção especular. Mais uma vez a dualidade entre interno-externo, dentro-fora. Tentou diferentes ângulos, luzes, expressões faciais, movimentos, sentimentos, emoções. Encontrou enigmas. Ver-se e em seu rosto figurar-se como um animal, que não obstante e comumente em outros contos dizia assemelhar- se à uma onça. Para ver-se como bicho foi além da imaginação e concentração criadora. Experimentou ver-se pela yoga, com exercícios espirituais e jesuítas, dialetizando a realidade experimental com a hipótese imaginária. Ainda encontrou mais uma camada por meio da hereditariedade, chamou-a de lastro evolutivo residual, em que julga parecer-se com seus antepassados. Pensando em encontrar um centro, uma essência, sem muito sucesso, decide parar de olhar-se no espelho e por meses evita seu reflexo. Depois de algum tempo, aquietado pelo cotidiano, volta- se para o espelho e simplesmente não se vê. Nenhuma figura, nenhum contorno. Afastou-se um pouco e voltou a encarar-se. Continuou transparente, nada se espelhava. Despojara-se gradualmente até a total desfigura, uma depuração. Questiona-se se haveria de ter uma alma, ainda que essa não fosse possível de se tanger no físico, atordoado, ainda indaga sobre o hiperfísico e transfísico, incompreendido de sua impermanência indefinida. Com o passar dos anos, mira-se e aos poucos vê-se “ainda-nem-rosto”, “menos-que-menino”, talvez mais conformado por buscar entender a completude da alma pela intersecção dos planos, das camadas traçadas. Em seu desfecho, diretamente pergunta: “Você chegou a existir?”. 17 Mas afinal, o que é um espelho? Conforme Halliday, “(...)é uma superfície que reflete um raio luminoso em uma direção definida em vez de absorvê-lo ou espalhá-lo em todas as direções”10. Tal superfície permite as projeções da chamada Imagem Real, o reflexo propriamente dito, a existência de uma imagem não depende da presença de espectadores, e em nosso cérebro a Imagem Virtual, embora pareça existir no mundo real. No entanto, é possível ir muito além das leis da física. O espelho é um instrumento de análise, “os espelhos dizem sobre nós o que não saberíamos sem eles; são portanto instrumentos de auto-revelação”11. Para Umberto Eco, os instrumentos catóptricos, ou seja, superfícies capazes de refletirem raios luminosos, oferecem questionamentos a respeito da imagem especular e de sua observação, partindo do princípio de que falamos de seres videntes, claro. O uso do espelho é considerado um artifício extensor acorporal para que possamos nos ver da maneira como veem os outros, como próteses que suprem a falta de um órgão, pois não nos vemos a si, somos olhados, “são os olhos do outro, fora de nós, que olham por nós”12, o espelho nos olha. Seguindo esta ideia, é possível admitir os espelhos como canais, pois permitem a transmissão de informações. Assim, também se pode considerar a fotografia ou outro meio de registro, já que proporcionam a visualização externa ao corpo. Sendo capazes de ver, acreditamos. 10 HALLIDAY, 2012, p.38. 11 DANTO, 2005, p. 253. 12 ECO, 1989, p. 14. 18 Chamada por Eco de Pragmática do Espelho, “partimos sempre do princípio de que o espelho nos diga a verdade”13, pode se dizer que confiamos no espelho por que confiamos em nossa percepção. Mas e quando há divergência entre a percepção e o juízo? O espelho não traduz a realidade, não interpreta os dados fornecidos. Nós o fazemos. Por isso, como em qualquer troca de informação a comunicação pode falhar. O espelho nos diz aquilo que colocamos diante dele. Tamanha a estranheza do personagem rosiano ao perceber que o reflexo ali era o seu próprio. Perceber-se no espelho, reconhecer-se, é uma das fases proposta pelo médico francês Jacques Lacan (1901- 1981) no Estádio do Espelho. A criança ao perceber-se, “experimenta ludicamente a relação dos movimentos assumidos pela imagem com seu meio refletido, e desse complexo virtual com a realidade que ele reduplica, isto é, com seu próprio corpo e com as pessoas, ou seja, os objetos que estejam em suas imediações”14. Para assumir tais reações é necessário primeiro que se tenha consciência de si, ainda que este seja imaginário, um eu- simbólico, o eu-imago. Essa forma, tomada pela Gestalt, como coloca Lacan, não deixa de prefigurar-se como alienante, “(...)a imagem especular parece ser o limiar do mundo visível, a nos fiarmos na disposição especular apresentada na alucinação e no sonho pela imago do corpo próprio”15. Imagino-me como tal, em razão do que vejo no espelho. Um objeto intra-orgânico. 13 ECO, 1989, p.17. 14 LACAN, 1998, p. 96. 15 Ibid., p. 98. 19 “Esta imagem de si mesmo lhes traz apenas a dureza e a frieza de um espelho, ou superfície de uma água dormente na qual, atraídas pelo encontro com o outro, tal como Narciso, não encontram ninguém: apenas uma imagem. É um momento de enfraquecimento do sentimento de existir (…)”16. Após a identificação da imago como si próprio, se estabelecem relações com o mundo externo, do organismo com a realidade. Nesse momento se dá a “passagem do eu especular para o eu social”17. Portanto, o homem é um ser social. Ele ainda continua: “É esse momento que decisivamente faz todo o saber humano bascular para a mediatização pelo desejo do outro, constituir seus objetos numa equivalência abstrata pela concorrência de outrem”18. Desta maneira, ser o eu é ser o outro, a identificação se dá pelo semelhante e pela sua concorrência, sendo necessária uma maturação mediante a experiência cultural. Lacan finaliza as etapas do espelho tratando da percepção como um sistema que por meio da autoconsciência culmina na psicanálise existencial, ou seja, perceber-se e tornar-se consciente de si proporcionado pela autoimagem, o indivíduo conhece a si e aos outros. É possível assim dizer que as fases lacanianas postuladas, então, são: um-nenhum, dois e um. Imago, o Outro e por fim, o si próprio. Ideia também apresentada por José Miguel Wisnik em um estudo comparativo entre os contos homônimos. Maria Lucia Homem nos fala do outro lacaniano, proveitosamente também abordando ambos os contos citados. Referindo-se a Jacobina, que “necessita da presença de um outro que lhe nomeie e possibilite, assim os contornos de seu 16 DOLTO, 2012, p. 121. 17 LACAN, 1998, p. 101. 18 Ibid., p. 101. 20 ser”19. No momento em que o personagem não se encontra em seu reflexo estando na ausência de qualquer ser. Quando não há o outro para testemunhar sua certeza de existência, há uma desestruturação imaginária e narcisística. Wisnik refere-se ao espelho como o portador da psique e psichê. Sendo uma a representação do sopro da vida, e a outra como propriamente o espelho dito, convergindo ambas na mitologia grega da amada de Eros. Segundo o autor, o espelho é o olho da Sabedoria divina, ainda que disponha da alienação imagética, os personagens se recorrem à ele em busca da constituição de si, indizível e invisível, a sua alma- espelho, que seria o ponto de encontro do humano com o divino, físico e metafísico. Tratando de Jacobina, Wisnik relaciona suas ideias com o Estádio lacaniano, sendo o espelho como “o meta-objeto do desejo como desejo do outro, o correspondente por excelência desse dispositivo psíquico em que o autoconhecimento depende do apoio equivalente externo visível e ao mesmo tempo reversível – que dá a ver, vendo”20. Desta maneira, a alma externa se faz dominante, sendo passível de alterar-se novamente com o tempo. O externo se desfaz e faz constantemente, visto as vicissitudes do cotidiano. Compondo-se do externo, recompõe-se de seu narcisismo. Ainda a respeito do divino e das vias narcísicas, o autor reconhece o homem como um reflexo de Deus, em que Ele se vê em sua criatura e no qual pode ser visto e invocado, uma espécie de “síndrome narcisista”, em que reconhecer-se e completar-se depende incessantemente do outro. Maria Lúcia completa, apenas quando se veste com a farda de alferes, aquilo que representava importância de sua pessoa para os outros, é que se vê, passando de “um 19 HOMEM, 2015, passim. 20 WISNIK, 2014, p. 147. 21 momento de perda absoluta de seus referenciais, reencontrando-se, por fim, na imagem fornecida pelo espelho”21. Conforme Wisnik, Machado transcreve Jacobina nas estapas lacanianas pelo avesso, primeiro ele é um, depois ele é dois, e por fim um-nenhum. A bajulação ao alferes não só mantinha sua relação com o outro, se não também forçou sua identificação pela insistência propiciada pelo convívio, identificação esta com apenas metade de seu ser, portanto, devastadora de sua individualidade e subjetividade própria: “o alferes eliminou o homem”22. Para tal acontecimento foi preciso um período de incubação, o processo de sua angústia quando viu-se só. Angústia também vivida pelo personagem de Guimarães Rosa, que questiona a exatidão da percepção do ser, “Como (...) somos no visível?”23. Maria Lúcia ainda acrescenta, “traidores em potencial, os espelhos mostram uma coisa que não é a coisa”24, visto que a apreensão do real é dada pela percepção e representação, por isso há que desconfiar dos nossos aparelhos perceptivos; nos alerta Guimarães, os olhos não são confiáveis, dependemos deles, no entanto, somos também limitados em nosso espaço-tempo físico, uma vez que ocorrem alterações constantes e a simultaneidade de nossa observação nos é impossibilitada. Em sua comparação, Wisnik conclui inicialmente que “o machadiano lacaniano desnuda provocativamente a ilusão da identidade, desvelando-lhe o vazio subjacente como marca de uma falta”, enquanto que o “esotérico-rosiano, desvela nesse 21 HOMEM, 2015, passim. 22 ASSIS, 1997, p. 75. 23 ROSA, 1985, p.76. 24 HOMEM, 2015, loc. cit. 22 mesmo vazio subjacente o vislumbre de uma presença inominável que ganha aí um viés epifânico”25. Ao contrário de Jacobina, que se veste de sua ilusão, o personagem rosiano inicia um processo de busca de um ser autônomo, um processo de autoanálise. Pretende, por intermédio do ilusório, encontrar todas as capas do qual veste seu rosto e sublimando uma a uma para ver o que sobra, sem que se deixe ofuscar com o superficial, a fim de obter o íntimo e profundo de si. Na medida que se abstrai, retira de si as imagens narcísicas em que se via preso pelo espelho. Ao extraí-las percebe que não há uma essência central, em termos do espelho, não resta nada. Nenhuma imagem era suficiente para sustentar sua imago. Wisnik ainda coloca que a imagem especular de ambos lhes faltam, pois um investiu na imagem que os outros lhe devolviam ao passo que o outro submete sua imagem à prova, não superando nenhuma, os personagens se desfazem em seus reflexos, perdem a sustentação de sua autoimagem, “um paga o preço real de ter investido no caráter imaginário do imaginário, que se desnuda. Outro paga o preço de ter cobrado do imaginário uma veracidade que aquele não pode dar”26. Caminhando na contramão, Jacobina, que do nada foi à identificação, ainda que alienante, já o anônimo rosiano queria “deixar de ver o que o espelho nos faz ver”27. Françoise Dolto (1908-1988), autora anteriormente já citada, foi uma pediatra francesa da descendência psicanalítica de Freud e Lacan, por assim dizer. 25 WISNIK, 2014, p. 144. 26 Ibid., p. 152. 27 HOMEM, 2015, passim. 23 Em um estudo sobre a autoimagem corporal, Juan-David Nasio apresenta contrapontos entre os conceitos de cada um, principalmente lacanianos e doltonianos. Inicialmente define a imagem inconsciente do corpo como um conjunto de primeiras impressões registradas pelas sensações vividas na infância. Se para Lacan a criança ao olhar-se no espelho e torna seu reflexo como ela própria, para Dolto na verdade, é apenas uma aparência de si, o que desencadeia no esquecimento das imagens inconscientes, assim por apreciar as imagens de seu parecer, negligenciando suas sensações, passa a privilegiar as aparências. Se afastará do que há do lado de dentro para dedicar-se ao que há do lado de fora, suas sensações se tornarão inconscientes, como coloca Nasio. Sendo assim, o que fica indelével no inconsciente é o que foi vivido intensamente, uma memória-insconsciente, como chama. A “imagem insconsciente do corpo não é nada além de uma sensação que perdura”28. Ainda continua, “não somos nosso corpo em carne e osso, somos o que sentimos e vemos de nosso corpo: sou o corpo que sinto e o corpo que vejo”29. Portanto, pode-se dizer que sentir e ver o corpo em movimento proporcionam garantia de que se vive, assim como do que não se sabe, “o eu é tanto a certeza de ser o que é quanto a ignorância do que se é”. Lembrando que imagem não é apenas visual, existem as imagens mentais, assim sendo, reais e virtuais. Por consequência, tem-se um corpo impregnado pelo Outro. Por isso o eu é inconstante, imagens que se alteram comumente e instantaneamente. De tal maneira, não há um eu puro, está sempre refém de interpretação pessoal e afetiva do 28 NASIO, 2009, p. 24. 29 Ibid., p. 54. 24 que sentimos e vemos de nosso corpo, como ainda coloca Nasio. Põe por terra, de fato, a tentativa do personagem- narrador de Guimarães, que objetivava encontrar a pureza de si. Além das constantes mudanças, como antes mencionado por Maria Lúcia, a imagem criada é sempre deformada, falsa. Não só pelas ações do espaço-tempo, mas pelo sentimento que se cria em relação ao que se vê. O olhar julga. Portanto, influencia no conceito que se faz. Influência também dada pelos outros, os outros que se carrega dentro e os de fora, o grande Outro que se refere “tanto todas as pessoas que marcam minha existência como as determinantes sociais que me condicionam”30. Somar o outro à si, é depender tão intimamente dele ao ponto de não poder considerar-se uno, unificado. Via de mão dupla esta, pois o outro é um espelho vivo, que diante dele é possível além de vê-lo, ver o que sou para ele, interpretar-me pela interpretação do outro ainda considerando o que ofereço a ser interpretado de mim. “Os outros são para nós espíritos que habitam um corpo, e a aparência total desse corpo parece-nos conter todo um conjunto de possibilidades das quais o corpo é a presença propriamente dita”31. Segundo Nasio, pode-se concluir quatro ideias doltonianas, distintas, mas não tão opostas às ideias lacanianas. O corpo tal como se sente e se vê é expressão acerca do espelho. Mediante a linguagem haverá múltiplas experiências a serem vividas. Criar relações com o Outro a partir de tais experiências, como espelhos-vivos. Por 30 NASIO, 2009, p. 61. 31 MERLEAU-PONTY, 2004, p. 43. 25 conseguinte, constituir história-memória, conforme os acontecimentos marcantes. “(...) esses elementos (...) não cesso de integrá-los a mim, desde o meu nascimento, e ver esboçar-se em meu espírito um vago autorretrato tão imutável quanto mutante, chamado “imagem de si”. Esse autorretrato virtual e identitário é a própria substancia do nosso eu. De fato, a imagem de si e o eu são dois termos possíveis para designar o sentimento mais íntimo, o de sentir-se si mesmo”32. Sumariamente, pode-se dizer que o Outro é essencial para a construção e constituição de si. Que tal se retornarmos a Narciso? Junito Brandão em sua coleção de sobre a mitologia grega, apresenta pertinentes questões a respeito utilizando-se de relações com as teorias junguianas. Brandão classifica Narciso tal como a flor que leva seu nome, estéril, inútil e venenoso, conforme os descreve. De etimologia no mínimo curiosa, pois não é de origem grega, especula-se que seja indo-europeia, de nárke, que será o prefixo para narcose e suas derivações, remetendo ao entorpecimento, ao sono induzido. Filho da ninfa Liríope e de Céfiso, o deus-rio, nasce um menino muito belo, e na cultura grega, beleza era algo que incomodava. Preocupada com tamanha beleza, Liríope leva o pequeno para se consultar com Tirésias, velho e cego que possuía o dom (como castigo) da adivinhação. Ela questiona o velho tebano se Narciso viveria por muitos anos, que obtem a resposta direta e condicional: “se ele não se vir”33. Eis aqui o dilema da visão, por Tirésias dissociada, que por sua vez, a traz de dentro para fora, como coloca o autor. E assim crescera o jovem Narciso. Inevitavelmente as jovens de toda a Grécia se encantavam por ele, que se 32 NASIO, 2009, p. 145. 33 Ovídio apud BRANDÂO, 2013, p. 184. 26 mantinha sempre insensível. Dentre uma dessas estava a ninfa Eco, de uma “tagarelice invencível”, usada por Zeus para distrair Hera enquanto a traía. Tendo conhecimento disso, Hera castigou Eco a não mais falar, podia repetir apenas as últimas palavras que ouvisse. Partindo para uma caçada, Narciso se afasta de seus amigos, sem perceber que Eco o seguia. O jovem grita por seus companheiros e é ecoado pela ninfa, na tentativa de se aproximar dele, porém em vão. Eco se isola, definhando até tornar-se um rochedo, apenas repetindo os sons que perto dela se proferissem. Furiosas, outras ninfas pedem vingança a Nêmesis, que atende o pedido castigando o jovem a ter um amor impossível. Em um dia quente, Narciso se aproxima das águas puríssimas da fonte de Téspias para matar sua sede. Debruçou-se e viu-se. Viu sua própria imagem e sombra, apaixonara-se por si. “Diante das águas, Narciso tem a revelação de sua identidade e de sua dualidade, a revelação de seus duplos poderes viris e femininos, a revelação, sobretudo, de sua realidade e de sua idealidade”34. Nêmesis cumpre com a premonição de Tirésias. Procuram-lhe, e em seu lugar encontram apenas uma flor amarela e branca, o narciso, “acabando por sucumbir na perseguição ilusória do seu duplo”35. Há uma outra versão do mito em que se diz que Narciso tinha uma irmã gêmea de morte precoce, e vendo-se na fonte pensou que vira sua irmã, culminando no mesmo fim que a outra versão. Pois bem. Algumas reflexões são possíveis a partir da história deste reflexo mítico. 34 BACHELARD, 2013, p. 25. 35 MEDEIROS, 2000, p. 61. 27 Brandão cita uma conferência realizada pelo Dr. Carlos Byinton que coloca Narciso como “símbolo central de permanência em si mesmo”36, ao passo que Eco vive seu oposto, não só em gênero, mas sobre o indivíduo, da permanência no Outro. “Narciso e Eco são dois caminhos provenientes de uma raiz comum, do sofrimento cultural, e que buscam, através de suas peripécias, se encontrar e se resolver. Acontece que, como se encontram e não se resolvem, e mais ainda, se separam, nos fica desse encontro-desencontro a marca de uma discórdia (...), a realidade do desenvolvimento psicológico da personalidade individual e da cultura”37. Da mesma forma os personagens brasileiros buscando encontrar-se, e no entanto, se perdem. “Narciso se perdeu no momento em que se encontrou, se viu”38. Brandão remete à cultura maia tratando do deus Jaguar, associado ao tambor, em que se acredita que é o “eco sonoro da existência”, dessarte, ecoar é sinônimo de existir, e já não se refere mais à propagação de sons, mas às relações. O autor ainda coloca que, o erro fatal de Narciso foi o de não dirigir seu amor ao outro, um conhecimento de si e por si. Margarida Medeiros acrescenta sobre esse erro a oposição de conhecimentos relembrando a história do oráculo de Delfos, que recomenda “conhecer-te a ti mesmo”, em que se trata do interior, enquanto que a advertência dada à Narciso referia-se “à imagem do corpo, enquanto lugar de investimento da vaidade do sujeito”39. Ao curvar-se, prostrar-se, refletir-se, por meio de Jung se compreende que o jovem volta para trás, reflexo é retorno, e meditando, Narciso se põe fora do presente, portanto, “um ato 36 BRANDÃO, 2013, p. 186. 37 Ibid., p. 187. 38 Ibid., p. 193. 39 MEDEIROS, 2000, p. 62. 28 espiritual contrário ao desenvolvimento natural”40. Refletir é retomar aquilo que já foi vivido, entendido como ter consciência, chamado ainda de instinto de reflexão. Este instinto é tomado narcísicamente, visto que “ama- se o que se autorreflete e reflete-se o que se ama”41. Brandão ainda aborda as superstições acerca do espírito das águas, que rouba a alma, a imagem. Por isso adverte para que não se olhe profundo e por ele não se permitir perder a psiquê. Aproveitando a deixa, Bachelard elenca o elemento água como possuidor de um corpo mediante sua unidade e materialidade, possuidor ainda de uma alma própria, segundo sua pureza, e de uma voz, diante de sua calmaria ou agitação. Em toda sua liquidez, dispõe de vida e de substância. Desta maneira, há uma certa diferença entre as superfícies polidas e superfícies líquidas quanto a propriedade de reflexão, “os espelhos são demasiado civilizados, demasiado manejáveis, demasiado geométricos, são instrumentos de sonho evidentes de mais para adaptar-se por si mesmos à vida onírica”42. Por outro lado, os espelhos podem ser evocadores da alma, pois “Se narcisismo pode ser compreendido como uma repulsa, uma rejeição do mundo-objeto e da relação sujeito-objeto, os neoplatônicos viram em Narciso um símbolo do oposto: uma espécie de fascinação sem esperança, como se fora um elo ao mundo da matéria e das aparências”43. Assim se vê Narciso vítima da imago, pois para os neoplatônicos o “mito equivalente à queda da alma na matéria”, continua Brandão, sendo o espelho um artifício para estimular 40 BRANDÃO, 2013, p. 192. 41 Ibid., p. 193. 42 BACHELARD, 2013, p. 23. 43 BRANDÃO, op. cit., p. 194 29 a alma pelo desejo do corpo, dessa forma, “uma queda da unidade na multiplicidade”, como conclui o autor. De tal modo, a psicologia e mais propriamente a psicanálise aderiu ao termo evocando ao jovem mitológico, pois é a partir de metáforas e abstrações que se constroem formulações sobre o psíquico. Acredito já ter matéria razoável para elucidar algumas associações. Que tal, agora, se retornarmos ao meu espelho? 30 (...) cada leitor é, quando lê, leitor de si mesmo. A obra do escritor não é senão uma espécie de instrumento óptico que ele oferece ao leitor a fim de lhe permitir discernir aquilo que, sem aquele livro, ele talvez não pudesse ver sozinho. Marcel Proust 31 UMA OBRA EM PROCESSO (...) o percurso criador, ao gerar uma compreensão maior do projeto, leva o artista a um conhecimento de si mesmo. Daí que o percurso criador ser para ele, também, um processo de autoconhecimento. O artista se conhece diante de um espelho construído por ele mesmo. Rasurar a possível concretização de seu grande projeto é, assim, rasurar a si mesmo (...). (SALLES, 2011; p.134) Narro aqui uma pequena parte de meu percurso. Considero que o princípio tenha se dado na anedótica história que apresentei no primeiro capítulo, quando realizo o exame para ingressar no curso de graduação em Educação Artística. Naquele momento não percebia a grandeza dos fatos, quanto menos podia imaginar os desdobramentos que se seguiriam e seguem até hoje, por isso saliento ser um constante processo. Gostaria que fosse levado em conta que não pretendo fazer leituras dos trabalhos a seguir. Deixo isso para vocês, leitores. Apresento, de partida, o relato do pouco que me lembro e restaram de meus rascunhos_quase garatujas, pois só depois de algum tempo pude perceber as reflexões agora expostas, até que isso acontecesse alguns de meus trabalhos foram perdidos. Quatro desenhos de observação, em que uma modelo posava para a sala de quase trinta alunos iniciados nas artes visuais, e devido ao despreparo de alguns, ela estava vestida com um collant muito próximo do tom de sua pele, permitia de certa forma, que alguns pudessem vê-la praticamente desnuda sem muito esforço. E assim senti que a via. Como se a vestimenta quase não interrompesse a observação. A proposta era livre na escolha do material, apenas fomos alertados de que a modelo mudaria de posição aleatoriamente a cada 32 quinze minutos. Sendo assim, escolhi o carvão e o lápis grafite, sendo este pouco utilizado em razão daquele oferecer maior liberdade, ao menos para mim. Enquanto desenhava, desnudava a pouca roupa que ali estava, e não apenas isso, recordava minhas próprias formas e me colocava no lugar imaginando o movimento de meu corpo, e os transcrevia para o papel. Em determinados momentos já não observava à minha frente, mas o que dentro de mim se via. Não queria desenhar um estranho, senão desenhar a mim mesma, vista pelas dobras do outro, já que tal feito seria impossível, desconsiderando adaptações com espelhos e fotografias_seria interessante ver-se a si além do imaginário ou além de qualquer extensor corporal. Tais reflexões só foram possíveis depois de ser questionada. Até então, não percebia o que havia feito, apenas fazia. Um de meus colegas observou a separação de meu traço com os gestos da modelo e a aproximação com meu físico. Meus desenhos em nada se pareciam com ela, exceto pela posição em que estava. A partir daí passei a me desenhar mais vezes. Com a limitação da observação do corpo, me dediquei às minhas mãos. Membro que facilitava passar horas a fio, sem qualquer alteração de movimento e que não dependia de qualquer outra coisa que o dissesse por mim. Era eu e o que via de mim mesma. Não descarto a possibilidade de que tal empenho em representar o que via de mim in natura, se assim posso dizer, tenha resultado em repetidas aparições de minhas mãos em minhas composições. 33 À procura de novos materiais, menos convencionais nas técnicas artísticas, comecei a empregar alguns de meu repertório diário, como maquiagem e linhas de costura. Semelhante ao que faria com guache, utilizei rímel para um dos primeiros autorretratos que fiz em que já não observava um corpo alheio, mas fotos de mim mesma (período de aquisição de equipamento fotográfico). Revistas, imagens na internet, e o uso de espelhos serviam de orientação para os estudos. Os artigos de beleza pouco me estimularam nas produções, talvez por que pouco faço uso. Já os materiais de costura foram muito presentes em meu cotidiano desde a infância, minha família sempre se dedicou ao artesanato. De tal modo, não me via apenas nas formas, mas também nos materiais. Linhas, barbantes, lãs e todo tipo de fios me permitiam fazer o que com a tinta, por exemplo, eu não conseguia. A delicadeza e o efeito proporcionavam ainda mais minha identificação. Alguns tecidos reforçam essa ideia, em razão do vínculo familiar, como a toalha de mesa que ganhei de minha avó e o pedaço de juta que comprei com meu pai. Também uso fios retirados de motores que meu pai manipulava, acredito que se fossem adquiridos em uma compra, não teriam me estimulado seu uso, a memória preenche forma e significado. Considero a memória de minha família um dos elementos compositores, seja pelo material ou pela representação das figuras, nem sempre me represento sozinha. Realizei uma série de trabalhos explorando as possibilidades de coser, me fazer no entrelaçar das linhas. Para estes trabalhos, fiz vários ensaios fotográficos, essas 34 fotos além de servirem de espelhos para o esboço também resultaram em obras. Em um destes ensaios, tive a oportunidade de dispor de um projetor multimídia. Projetei sobre meu corpo algumas fotos que acumulei durante viagens ou residências em que vivi. Minha constante era registrar o pôr-do-sol, inicialmente sem uma motivação específica, mas acreditando num futuro uso para algum trabalho. E eis que logo veio a oportunidade. Experimentei várias posições sob várias projeções de fotos, até chegar à que não me sinto desnuda, me sinto vestida com a cidade (foto projetada) ocasionalmente descoberta por raios de luz (tons de luz da imagem). Alguns trabalhos são cansativos de realizar. Tirar autorretratos fotográficos requer insistência e repetição, conforme o grau de exigência que se espera do resultado. O bordado demanda tempo para todo o preenchimento, ainda mais para grandes dimensões. Por essa razão, me distanciei do processo de um dos trabalhos e me permiti conviver com ele inacabado. Esse tempo de descanso_ou incubação, várias vezes fez com que eu repensasse a ideia, fazendo constantes modificações. Com o desenrolar dessa pesquisa, decidi que está em processo e que mesmo em processo o inacabado se dá por acabado. Ainda fruto de um dos ensaios fotográficos, utilizei imagens para algumas gravuras em metal. O projeto inicial era de trabalhar o bordado de diferentes formas junto à gravura, que permite repetidas impressões. Avalio que assim como nas fotos, cada gravura é uma, mesmo derivando de uma mesma matriz. A intensidade e tom da cor 35 na limpeza da chapa alteram minucias que até certo ponto deixam de ser tão sutis. Sutilezas à parte, estava em busca de bordar sobre a imagem impressa, não obtendo muito sucesso em minhas tentativas, visto que os fios e o papel requerem absurda destreza, optei por não forçar a união destes dois. Apenas por hora. Prossegui as experiências com a fotografia, alterando o zoom ou a posição da câmera, permanecendo na mesma posição. Já pude notar que alguns espectadores distraídos não percebem a diferença. Acredito que o uso da fotografia foi um importante passo no meu trajeto. Procurava em outros estilos maneiras de me influenciar e ter um estilo de fato. Vagava por qualquer corrente: cubista, expressionista, pop. Mas particularmente, via os estilos dos outros, não o meu, não a mim mesma. Com o crescente uso da fotografia, passei a me identificar mais com os realismos_ou nem tão realista assim. Mesmo com traço acadêmico, distorço a figura ou ainda modifico proporções. Para o esboço dos desenhos, atribuo ao uso das fotos, o fato de que algumas distorções apesar de parecerem impossíveis de se posicionar também se aproximam do que poderia ser real, já que me fotografei e adaptei poucos membros para obter os efeitos intencionados, além de a foto também explorar distorções conforme o escorço, não só dos membros corporais, mas também do cabelo. Ah! O cabelo! Assim como as mãos, estão sempre presentes_ou quase. Peço-vos que se recordem mais uma vez de minha não-aventura. Quando não há o desenvolvimento significativo de uma ou ambas as partes, não vejo-me, apesar de tentar ali me representar, por isso nomeio de não-autorretratos. 36 Algumas técnicas da gravura em metal requerem muito controle e cuidado, água-forte e água-tinta dependem da qualidade e tempo de ação dos ácidos. A disposição e acessibilidade dos estudos na gravura_falta de ateliê, fizeram com que eu repensasse os meios de produção. Forçada a me afastar das gravuras, voltei aos desenhos à carvão e às experiências com fotografia, desta vez quis utilizá-la não mais como uma etapa do processo, e sim como suporte. Para resolver a problemática do papel e sua rasura ao coser, desenhei e transferi imagens para o tecido, assim também pude voltar a bordar sem a necessidade de preencher a figura toda com os fios, como fazia anteriormente, agora usando o bordado para ressaltar regiões, não ao acaso, partes que já vinha há tempos evidenciando, mãos e cabelos. 37 Figura 3. Desenho de observação 1, 2009. Grafite sobre papel, 30x42cm. Acervo Pessoal. Figura 4. Desenho de observação 2, 2009. Carvão sobre papel, 30x42cm. Acervo Pessoal. 38 Figura 5. Desenho de observação 1, 2009. Carvão sobre papel, 30x42cm. Acervo Pessoal. Figura 6. Desenho de observação 2, 2009. Carvão sobre papel, 30x42cm. Acervo Pessoal. 39 Figura 7. Autorretrato de rímel, 2013. Rímel sobre papel, 29x21cm. Acervo Pessoal. 40 41 Figura 8. Autorretrato, 2013. Linha, lã e barbante sobre tecido, 73x39 cm. Acervo Pessoal. 42 43 Figura 9. Autorretrato na cozinha, 2013. Linha, barbante e pastel sobre tecido, 66x60cm. Acervo Pessoal. 44 45 Figura 10. Autorretrato nu, 2013. Barbante sobre juta, 100x59cm. Acervo Pessoal. 46 47 Figura 11. Último abraço, 2013. Linha sobre juta, 175x87cm. Acervo Pessoal. 48 49 Figura 12. Autorretrato inacabado, 2014. Linha sobre juta, 170x90cm. Acervo Pessoal. 50 Figura 13. Autorretrato, 2013. Fotografia Digital. Acervo Pessoal. 51 Figura 14. Autorretrato de perfil, 2014. Ponta seca, 29x19cm. Acervo Pessoal. 52 53 Figura 15. Matriz. Cobre. 14x10cm. Acervo Pessoal. 54 Figura 16. Autorretrato I, 2014. Série Melancolia. Água-forte, ponta seca e lavi. 14x10cm. Acervo Pessoal. 55 56 Figura 17. Matriz. Cobre. 14x10cm. Acervo Pessoal. 57 Figura 18. Autorretrato II, 2014. Série Melancolia. Água-forte, água-tinta e lavi, 14x10cm. Acervo Pessoal. 58 59 Figura 19. Matriz. Cobre. 14x10cm. Acervo Pessoal. 60 Figura 20. Autorretrato III, 2014. Série Melancolia. Água-forte, água- tinta e lavi. 14X10cm. Acervo Pessoal. 61 62 Figura 21. Matriz. Cobre. 20x12cm. Acervo Pessoal. 63 Figura 22. Autorretrato, 2014. Água-forte, água- tinta e lavi. 20x12cm. Acervo Pessoal. 64 Figura 23. Autorretrato, 2014. Água-forte, água- tinta e lavi. 14x10cm. Acervo Pessoal. 65 Figura 24. Cheia, 2014. Autorretratos Lunares. Ponta seca. 32x27cm. Acervo Pessoal. 66 Figura 25. Crescente, 2014. Autorretratos Lunares. Ponta seca. 32x27cm. Acervo Pessoal. 67 Figura 26. Minguante, 2014. Autorretratos Lunares. Ponta seca. 32x27cm. Acervo Pessoal. 68 Figura 27. Nova, 2014. Autorretratos Lunares. Ponta seca. 32x27cm. Acervo Pessoal. 69 Figura 28. Não-autorretrato, 2015. Carvão e fita adesiva sobre papel e metal, 66x50cm. Acervo Pessoal. 70 71 Figura 29. Autorretrato, 2015. Carvão e lã sobre tela. 65x50 cm. Acervo Pessoal. 72 73 Figura 30. Autorretrato de cobre, 2015. Fotografia e fio de cobre sobre linho. 22x30cm. Acervo Pessoal. 74 Figura 31. Autorretrato das mãos, 2016. Carvão sobre tela. 65x50 cm. Acervo Pessoal. 75 Figura 32. Autorretrato, 2016. Carvão e acrílica sobre tela. 90x60cm. Acervo Pessoal. 76 Katia Canton em um didático livreto trata as obras de arte como o espelho dos artistas. Quem sabe também seja possível apropriar-me desse juízo, vejamos. Por meio de Jacobina, Machado de Assis defende a ideia de que para sentir-se completo é necessário que se possua duas almas, uma interior e uma exterior, sendo ambas dependentes uma da outra. Para refletir-se no espelho e encontrar-se completo de suas duas almas, o personagem veste-se da farda de alferes. Sendo assim, o espelho é um elemento construidor do ser, não apenas um objeto de decoração ou manutenção estética. Um extensor corporal. Tomo, então, os trabalhos que faço como espelhos meus. Projeto sobre eles não só o que vejo de mim por meio de fotos ou propriamente de superfícies catóptricas. Mas não simplesmente me represento, e portanto, me desenho e me sinto completa. Não. Recordando Guimarães, “é de fenômenos sutis que estamos tratando”44. Há uma angústia motivadora para encontrar-me, assim como narro em minha anedota. Angústia também vivida pelos outros dois personagens protagonistas, propulsionadora de reflexões-ideias para reflexões-imagens, “a diminuição da angústia narcísica está dependente da fabricação de um duplo no exterior”45. Talvez isso explique o por que para muitos um vaso, um sapato ou qualquer outro objeto possa ser a representação de um possível autorretrato. Assim como Jacobina, também preciso me vestir, visto- me de meus cabelos adornados com minhas mãos. Minha alma externa não está assim tão apartada de mim. No caso dos cabelos, ainda ouso dizer-lhes que também seja um 44 ROSA, 1985, p. 77. 45 MEDEIROS, 2000, p. 64. 77 moderador da vaidade, assim como a farda. Também recebo comentários adjetivados a respeito de minha aparência e o que ela transmite por meio de minhas madeixas. Portanto, o Outro também está presente na formulação do que penso ser eu mesma. Conforme as ideias rosianas, esta seria uma de minhas muitas camadas narcísicas. Ainda que na fatura de meus desenhos o realismo não seja um objetivo a ser conquistado, a gestualidade dos traços remetendo ao movimento de meus cabelos e minhas mãos fala comigo, pois para eles e deles extraio memória, desperto sentimentos, como coloca Didi-Huberman, por meio da fenomenologia da experiência é que os objetos ganham qualidades46. Quando um desses dois elementos, ou até mesmo os dois não estão presentes, então me sinto ausente, ainda que a materialidade me remeta lembranças, um não-autorretrato, pois no intento de me fazer de fato o sou, mas sem os elementos que me vistam de como me sinto inteira, então, já não o sou ao mesmo tempo. Um ser-não-sendo. Como dizia Louise Bourgeois, “nós existimos principalmente por nossa ausência”47. Sobre o real, “a fotografia permite gerar representações de si mesmo com características da realidade”48, existem, é claro, as distorções como já mencionado, pois “imitar é pois referir, mas também compor e transformar”49, condicionada à composição artística. Didi-Huberman afirma que se não temos informação suficiente sobre o que vemos, então, o objeto não nos olha, 46 DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 62. 47 BOURGEOIS, 2011 apud RIVERA, 2013, p. 272. 48 MEDEIROS, 2000, p. 105. 49 Ibid., p. 38. 78 além de que, “ver só se pensa e só se experimenta em última instância numa experiência de tocar”50, mais um dos conceitos que fundará a fenomenologia da percepção. Assim penso ser a relação com minha mão e a não-relação com meu rosto. Explico, mas antes pergunto: que criança estando em seu auge criativo não desenhou os contornos de sua própria mão? Depois dos autorretratos, lembro de ser um dos temas mais recorrentes em minhas garatujas. Alguns estudiosos da linha doltoniana dizem que esta constância representa o medo do infante em relação aos seus pais. Não descarto, mas também não me apoio muito nesse pensamento. Minha mão esquerda é a parte de mim que mais vejo enquanto minha mão direita está em ação, uma dá suporte à outra. Como agora, por exemplo, enquanto escrevo_sou destra, minha mão esquerda segura a folha ou ainda esporadicamente alisa minhas melenas enquanto reflito. E portanto, não apenas vê-la faze-a parte importante de minha vestimenta externa, por assim dizer, mas sentir o que ela toca, já que ver e tocar são meios de absorção do conhecimento, canais sensoriais, meios que Freud classifica como pulsão erótica. Sobre minha face, indo de encontro com a fisiognomia51, não me sinto vestida por ela em meus desenhos, colocação latejante desde a prova mencionada em minha história, lá o fiz em retalhos para escapar da angústia, sem que de fato resolvesse. O semblante de um indivíduo é comumente o que mais o identifica, quiçá por ser único, já é sabido. Contudo, lembro-vos, por exemplo, dadas vezes identificamos alguém aleatoriamente estando este de costas. 50 DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 31, 51 Estudo inicialmente realizado por Lavater, sobre a personalidade por meio da fisionomia, baseado nos pensamentos como propulsionadores dos músculos faciais. Também citado no conto machadiano. 79 Posso supor que além de não me tocar artisticamente falando, minha face sofre constantes modificações, com rubor do sol ou emoções, uso de óculos, maquiagem, aparelho ortodôntico, perda ou ganho de peso, entre tantas outras modificações, a principal talvez seja a constante sobreposição das marcas dos anos. Mas em questão dos trabalhos artísticos, acredito ter uma espécie de prosopagnósia52. Por isso não empenho dedicação com minhas feições faciais. É possível dizer que essa seja uma camada que ainda não construí. Ainda não encontrei meu “mapa da alma”53, como coloca Medeiros a respeito do rosto. Poderia cogitar e avaliar minha semelhança parental, encontrar os rastros hereditários, roubando o termo rosiano. No entanto, minha identificação familiar está na não-concretude dos materiais que utilizo. Na escolha dos tecidos usados e ganhados de minha avó, nos fios de cobre oferecidos por meu pai, nas ações associadas a algum objeto que me remeta um ente querido. Sendo assim, me visto dessas camadas, não as despojo de mim, elas são de fato constituidoras do meu eu, “não há nada a ser descoberto porque tudo já é encobrimento. Tecido sobre tecido”54. Não obstante, desenhar-me é um desfazer constante de camadas, não descarto as colocações de Guimarães. “Ninguém se acha na verdade feio”55, coloca o escritor. E essa só é mais uma camada. E não é fácil, como diz Quintana, a natureza é transitória56. Naturalmente há a tendência de que o belo seja sempre ressaltado. O belo, entre minhas 52 Incapacidade de se reconhecer. 53 MEDEIROS, 2000, p. 74. 54 RIVERA, 2013, p. 280. 55 ROSA, 1985, p. 79. 56 QUINTANA, 2013, passim. 80 particularidades, está nesses dois membros que permito repetidas aparições e identificação. Sendo assim, a imagem que faço de mim ao mesmo tempo que me despojo, também recoloco máscaras, mesmo que eu não tenha ciência de todas, presentes ou ausentes, sou o que crio de mim, absorvendo meu reflexo de um espelho- superfície e dos espelhos-vivos, os tantos possíveis Outros. E o que sobra? Perguntaria. Sobra o que disso tudo coloco nas composições, sobra a impermanência, “o sujeito é efeito de um ato que se dá numa trajetória, num circuito que necessita do outro, o convoca e só com ele se completa”57, e ainda continua, “nelas [as obras de arte], o sujeito se esconde mas se deixa parcialmente revelar, de acordo com a estrutura de alienação pela qual se constituiu”58. Destarte, da mesma maneira que em minhas produções me aproximo de mim, assim também me distancio do que sou, já que há uma seleção de capas a serem usadas mediante as diferentes situações. Apropriando-me do termo usado por Rivera, não trato do homorretratos, mas de heterorretratos em que a unidade está em ser heterogêneo. 57 RIVERA, 2013, p. 28. 58 Ibid., p. 329. 81 Ao ser diante do espelho pode-se sempre fazer a dupla pergunta: para quem estás te mirando? Contra quem estás te mirando? Tomas consciência de tua beleza ou de tua força? Gaston Bachelard 82 CONSIDERAÇÕES POSFACIANTES Comecei pela ideia de um projeto que buscasse entender_ou pelo menos tentar, a relação entre produção artística e seu produtor de maneira geral, em específico o tema autorretrato, com vistas à História da Arte. Mas como diz Kundera “ao fim do trabalho, não é mais o mesmo que era no começo; ele se abre para o mundo” (2006, p. 61). Da forma como se abriu digo existir um paradoxo por brincar com a palavra expandir, pois aos olhos alheios, poderia fazer um recorte no extenso mundo da arte representado por artistas assumidamente reconhecidos. Ao contrário disso, me aventurei a pesquisar alguém que se conhece tão pouco ou quase nada, eu mesma. Distante de mim ressaltar arrogâncias ou vaidades, quis apenas dedicar-me a conhecer o próprio terreno por meio de pensamentos e produções que me proporcionassem tal objetivo. E expandir, sim. Quando li pela primeira vez o conto machadiano, fiquei tão atônita quanto Jacobina e seus companheiros. Demorei a entender e encontrar um sentido, tão logo o li repetidas vezes com repetidos assombros. Ainda meditando sobre ele, tive a sorte de ter conhecimento de outro conto homônimo, desta vez rosiano, apresentando as mesmas angústias, senão algumas mais, contribuindo para o agigantamento de mais questões. A angústia dos dois personagens me motivou a escrever sobre minha própria angústia em forma de conto, mas vivida por meio de meus autorretratos e me colocar como personagem também, longe do intuito de competir, sequer superar ambos os escritores. Mas como forma de buscar uma 83 saída ou quiçá amenizar a torturante questão de ver-se a si e ver-se completo. Algumas respostas se apresentaram, até mesmo para questões que não foram formuladas, mas com inevitável satisfação de terem sido descobertas. Acredito que não conseguiria o intento de transcrever tudo o que vi, experimentei, senti, encontrei. As partes que disponho talvez sejam as mais provocativas, tanto para expor meu processo, quanto para eventualmente ajudar você, leitor, em suas próprias angústias. Aqui me foi permitido voltar à minha infância, me ver pequena e também me ver grande. Ainda pude me aproximar de minhas raízes, visto que cavei fundo em meus ideais e convicções. Em minha família, como propõe Guimarães Rosa, não encontrei uma essência, senão várias. Materiais, concretas. Imaginárias, memoráveis. As minhas camadas também são muitas, querido João. Tampouco acredito ter encontrado uma forma una absoluta nesses anos de estudo, se é que ela existe. Apesar de não saná-la, ainda não quero descartá-la. O que valeu foi tê-las descoberto, certo? Já que juntas, estas camadas formam um único ser. Conseguir ver-me pelo outro também me foi concebido, não é mesmo, Sr. Assis? Ainda que esse outro ora seja meu reflexo, ora sejam desenhos, ora sejam mãos e cabelos. Encontrar-me fora de mim foi a melhor maneira de encontrar- me por dentro. Apesar de diferentes, há um mínimo múltiplo comum_MMC, nessa matemática das histórias. Pela busca de coisificar-se seja pela identidade encarnada ou unificada, ou ainda pictoriamente configurada, ao final, no reflexo o que se vê é o eu a formar-se pelo Outro. 84 Figura 33. Mão, 1997. Caneta esferográfica e lápis de cor sobre papel. 15x21cm. Acervo Pessoal. 85 REFERENCIAIS TEÓRICOS ASSIS, Machado de. O espelho. O esboço de uma nova teoria da alma humana. In: Papéis Avulsos II. São Paulo: Globo, 1997. BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. 2. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013. BARROS, Manoel de. Retrato do artista quando coisa. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2002. BARTHES, Roland. A morte do autor. In: O rumor da língua. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. _______, Roland. O prazer do texto. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2013. BEZERRA, Mariana D. M. O ato de criação dentro do poema “Auto-retrato” de Mário Quintana. Nau Literária, 2007. Disponível em: . Acesso em: 8 nov. 2015. BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega, vol. II. 22. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. CANTON, Katia. Espelho de artista. 2. ed. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2001. DANTO, Arthur C. 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A casa ficava no morro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam, através de uma atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo. Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que falavam; mas, além deles, havia na sala um quinto personagem, calado, pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava de um ou outro resmungo de aprovação. Esse homem tinha a mesma idade dos companheiros, entre quarenta e cinqüenta anos, era provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico. Não discutia nunca; e defendia-se da abstenção com um paradoxo, dizendo que a discussão é a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial; e acrescentava que os serafins e os querubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição espiritual e eterna. Como desse esta mesma resposta naquela noite, contestou-lha um dos presentes, e desafiou-o a demonstrar o que dizia, se era capaz. Jacobina (assim se chamava ele) refletiu um instante, e respondeu: — Pensando bem, talvez o senhor tenha razão. Vai senão quando, no meio da noite, sucedeu que este casmurro usou da palavra, e não dois ou três minutos, mas trinta ou quarenta. A conversa, em seus meandros, veio a cair na natureza da alma, ponto que dividiu radicalmente os quatro amigos. Cada cabeça, cada sentença; não só o acordo, mas a mesma discussão, tornou-se difícil, senão impossível, pela multiplicidade das questões que se deduziram do tronco principal, e um pouco, talvez, pela inconsistência dos pareceres. Um dos argumentadores pediu ao Jacobina alguma opinião, — uma conjetura, ao menos. — Nem conjetura, nem opinião, redargüiu ele; uma ou outra pode dar lugar a dissentimento, e, como sabem, eu não discuto. Mas, se querem ouvir-me calados, posso contar-lhes um caso de minha vida, em que ressalta a mais clara demonstração acerca da matéria de que se trata. Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas... — Duas? — Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... Espantem-se à vontade; podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; — e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira: as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira. Shylock, por exemplo. A alma exterior daquele judeu eram os seus 89 ducados; perdê-los equivalia a morrer. “Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é um punhal que me enterras no coração”. Vejam bem esta frase; a perda dos ducados, alma exterior, era a morte para ele. Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma... — Não? — Não, senhor; muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell. São almas enérgicas e exclusivas; mas há outras, embora enérgicas, de natureza mudável. Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade, suponhamos. Pela minha parte, conheço uma senhora, — na verdade, gentilíssima, — que muda de alma exterior cinco, seis vezes por ano. Durante a estação lírica é a ópera; cessando a estação, a alma exterior substitui-se por outra: um concerto, um baile do Cassino, a Rua do Ouvidor, Petrópolis... — Perdão; essa senhora quem é? — Essa senhora é parenta do diabo, e tem o mesmo nome: chama-se Legião... E assim outros muitos casos. Eu mesmo tenho experimentado dessas trocas. Não as relato, porque iria longe; restrinjo-me ao episódio de que lhes falei. Um episódio dos meus vinte e cinco anos... Os quatro companheiros, ansiosos de ouvir o caso prometido, esqueceram a controvérsia. Santa curiosidade! tu não és só a alma da civilização, és também o pomo da concórdia, fruta divina, de outro sabor que não aquele pomo da mitologia. A sala, até há pouco ruidosa de física e metafísica, é agora um mar morto; todos os olhos estão no Jacobina, que concerta a ponta do charuto, recolhendo as memórias. Eis aqui como ele começou a narração: — Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da guarda nacional. Não imaginam o acontecimento que isto foi em nossa casa. Minha mãe ficou tão orgulhosa! tão contente! Chamava-me o seu alferes. Primos e tios, foi tudo uma alegria sincera e pura. Na vila, note-se bem, houve alguns despeitados; choro e ranger de dentes, como na Escritura; e o motivo não foi outro senão que o posto tinha muitos candidatos e que esses perderam. Suponho também que uma parte do desgosto foi inteiramente gratuita: nasceu da simples distinção. Lembra-me de alguns rapazes, que se davam comigo, e passaram a olhar-me de revés, durante algum tempo. Em compensação, tive muitas pessoas que ficaram satisfeitas com a nomeação; e a prova é que todo o fardamento me foi dado por amigos... Vai então uma das minhas tias, D. Marcolina, viúva do Capitão Peçanha, que morava a muitas léguas da vila, num sítio escuso e solitário, desejou ver-me, e pediu que fosse ter com ela e levasse a farda. Fui, acompanhado de um pajem, que daí a dias tornou à vila, porque a tia Marcolina, apenas me pilhou no sítio, escreveu a minha mãe dizendo que não me soltava antes de um mês, pelo menos. E abraçava-me! Chamava-me também o seu alferes. Achava-me um rapagão bonito. Como era um tanto patusca, chegou a confessar que tinha inveja da moça que houvesse de ser minha mulher. Jurava que em toda a província não havia outro que me pusesse o pé adiante. E sempre alferes; era alferes para cá, alferes para lá, alferes a toda a hora. Eu pedia-lhe que me chamasse Joãozinho, como dantes; e ela abanava a cabeça, bradando que não, que era o “senhor alferes”. Um cunhado dela, irmão do finado Peçanha, que ali morava, não me chamava de outra maneira. Era o “senhor alferes”, não por gracejo, mas a sério, e à vista dos escravos, que naturalmente foram pelo mesmo caminho. Na mesa tinha eu o melhor lugar, e era o primeiro servido. Não imaginam. Se lhes disser que o entusiasmo da tia Marcolina chegou ao ponto de mandar pôr no meu quarto um grande espelho, obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples... Era um espelho que lhe dera a madrinha, e que esta herdara da mãe, que o comprara a uma das fidalgas vindas em 1808 com a corte de D. João VI. Não sei o que havia nisso de verdade; era a tradição. O espelho estava naturalmente muito velho; mas via-selhe ainda o ouro, 90 comido em parte pelo tempo, uns delfins esculpidos nos ângulos superiores da moldura, uns enfeites de madrepérola e outros caprichos do artista. Tudo velho, mas bom... — Espelho grande? — Grande. E foi, como digo, uma enorme fineza, porque o espelho estava na sala; era a melhor peça da casa. Mas não houve forças que a demovessem do propósito; respondia que não fazia falta, que era só por algumas semanas, e finalmente que o “senhor alferes” merecia muito mais. O certo é que todas essas coisas, carinhos, atenções, obséquios, fizeram em mim uma transformação, que o natural sentimento da mocidade ajudou e completou. Imaginam, creio eu? — Não. — O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado. Custa-lhes acreditar, não? — Custa-me até entender, respondeu um dos ouvintes. — Vai entender. Os fatos explicarão melhor os sentimentos: os fatos são tudo. A melhor definição do amor não vale um beijo de moça namorada; e, se bem me lembro, um filósofo antigo demonstrou o movimento andando. Vamos aos fatos. Vamos ver como, ao tempo em que a consciência do homem se obliterava, a do alferes tornava-se viva e intensa. As dores humanas, as alegrias humanas, se eram só isso, mal obtinham de mim uma compaixão apática ou um sorriso de favor. No fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes. Ora, um dia recebeu a tia Marcolina uma notícia grave; uma de suas filhas, casada com um lavrador residente dali a cinco léguas, estava mal e à morte. Adeus, sobrinho! adeus, alferes! Era mãe extremosa, armou logo uma viagem, pediu ao cunhado que fosse com ela, e a mim que tomasse conta do sítio. Creio que, se não fosse a aflição, disporia o contrário; deixaria o cunhado, e iria comigo. Mas o certo é que fiquei só, com os poucos escravos da casa. Confesso lhes que desde logo senti uma grande opressão, alguma coisa semelhante ao efeito de quatro paredes de um cárcere, subitamente levantadas em torno de mim. Era a alma exterior que se reduzia; estava agora limitada a alguns espíritos boçais. O alferes continuava a dominar em mim, embora a vida fosse menos intensa, e a consciência mais débil. Os escravos punham uma nota de humildade nas suas cortesias, que de certa maneira compensava a afeição dos parentes e a intimidade doméstica interrompida. Notei mesmo, naquela noite, que eles redobravam de respeito, de alegria, de protestos. Nhô alferes de minuto a minuto. Nhô alferes é muito bonito; nhô alferes há de ser coronel; nhô alferes há de casar com moça bonita, filha de general; um concerto de louvores e profecias, que me deixou extático. Ah! pérfidos! mal podia eu suspeitar a intenção secreta dos malvados. — Matá-lo? — Antes assim fosse. — Coisa pior? — Ouçam-me. Na manhã seguinte achei-me só. Os velhacos, seduzidos por outros, ou de movimento próprio, tinham resolvido fugir durante a noite; e assim fizeram. Achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes, diante do terreiro deserto e da roça abandonada. Nenhum fôlego humano. Corri a casa toda, a senzala, tudo, nada, ninguém, um molequinho que fosse. Galos e galinhas tãosomente, um par de mulas, que filosofavam a vida, sacudindo as moscas, e três bois. Os mesmos cães foram levados pelos escravos. Nenhum ente humano. Parece-lhes que isto era melhor do que ter morrido? era pior. Não por medo; jurolhes que não tinha medo; era um pouco atrevidinho, tanto que não senti nada, durante as primeiras horas. Fiquei triste por causa do dano causado à tia Marcolina; fiquei também um pouco perplexo, não sabendo se devia ir ter com ela, para lhe dar a triste notícia, ou ficar tomando conta da casa. Adotei o segundo alvitre, para não desamparar a casa, e porque, se a minha prima 91 enferma estava mal, eu ia somente aumentar a dor da mãe, sem remédio nenhum; finalmente, esperei que o irmão do tio Peçanha voltasse naquele dia ou no outro, visto que tinha saído havia já trinta e seis horas. Mas a manhã passou sem vestígio dele; e à tarde comecei a sentir a sensação como de pessoa que houvesse perdido toda a ação nervosa, e não tivesse consciência da ação muscular. O irmão do tio Peçanha não voltou nesse dia, nem no outro, nem em toda aquela semana. Minha solidão tomou proporções enormes. Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com uma obstinação mais cansativa. As horas batiam de século a século, no velho relógio da sala, cuja pêndula, tic- tac, tic-tac, feria-me a alma interior, como um piparote contínuo da eternidade. Quando, muitos anos depois, li uma poesia americana, creio que de Longfellow, e topei com este famoso estribilho: Never, for ever! — For ever, never! confesso-lhes que tive um calafrio: recordei-me daqueles dias medonhos. Era justamente assim que fazia o relógio da tia Marcolina: — Never, for ever! — For ever, never! Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada. E então de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio era o mesmo que de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita ou mais larga. Tic-tac, tic-tac. Ninguém nas salas, na varanda, nos corredores, no terreiro, ninguém em parte nenhuma... Riem-se? — Sim, parece que tinha um pouco de medo. — Oh! fora bom se eu pudesse ter medo! Viveria. Mas o característico daquela situação é que eu nem sequer podia ter medo, isto é, o medo vulgarmente entendido. Tinha uma sensação inexplicável. Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico. Dormindo, era outra coisa. O sono dava-me alívio, não pela razão comum de ser irmão da morte, mas por outra. Acho que posso explicar assim esse fenômeno: — o sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior. Nos sonhos, fardava-me, orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam alferes; vinha um amigo de nossa casa, e prometia-me o posto de tenente, outro o de capitão ou major; e tudo isso fazia-me viver. Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a consciência do meu ser novo e único, — porque a alma interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não tornar... Não tornava. Eu saía fora, a um lado e outro, a ver se descobria algum sinal de regresso. Soeur Anne, soeur Anne, ne vois-tu rien venir? Nada, coisa nenhuma; tal qual como lenda francesa. Nada mais do que a poeira da estrada e o capinzal dos morros. Voltava para casa, nervoso, desesperado, estirava-me no canapé da sala. Tic- tac, tic-tac. Levantava-me, passeava, tamborilava nos vidros das janelas, assobiava. Em certa ocasião lembrei-me de escrever alguma coisa, um artigo político, um romance, uma ode; não escolhi nada definitivamente; sentei-me e tracei no papel algumas palavras e frases soltas, para intercalar no estilo. Mas o estilo, como a tia Marcolina, deixavase estar. Soeur Anne, soeur Anne... Coisa nenhuma. Quando muito via negrejar a tinta e alvejar o papel. — Mas não comia? — Comia mal, frutas, farinha, conservas, algumas raízes tostadas ao fogo, mas suportaria tudo alegremente, se não fora a terrível situação moral em que me achava. Recitava versos, discursos, trechos latinos, liras de Gonzaga, oitavas de Camões, décimas, uma antologia em trinta volumes. Às vezes fazia ginástica; outras dava beliscões nas pernas; mas o efeito era só uma sensação física de dor ou de cansaço, e mais nada. Tudo silêncio, um silêncio vasto, enorme, infinito, apenas sublinhado pelo eterno tic-tac da pêndula. Tic-tac, tic-tac... — Na verdade, era de enlouquecer. — Vão ouvir coisa pior. Convém dizer-lhes que, desde que ficara só, não olhara uma só vez para o espelho. Não era abstenção deliberada, não tinha motivo; era um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela casa solitária; e se tal explicação é verdadeira, nada prova melhor a contradição humana, porque no fim de oito dias, deu-me na 92 veneta de olhar para o espelho com o fim justamente de achar-me dois. Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra. A realidade das leis físicas não permite negar que o espelho reproduziu-me textualmente, com os mesmos contornos e feições; assim devia ter sido. Mas tal não foi a minha sensação. Então tive medo; atribuí o fenômeno à excitação nervosa em que andava; receei ficar mais tempo, e enlouquecer. — Vou-me embora, disse comigo. E levantei o braço com gesto de mau humor, e ao mesmo tempo de decisão, olhando para o vidro; o gesto lá estava, mas disperso, esgaçado, mutilado... Entrei a vestir-me, murmurando comigo, tossindo sem tosse, sacudindo a roupa com estrépito, afligindo-me a frio com os botões, para dizer alguma coisa. De quando em quando, olhava furtivamente para o espelho; a imagem era a mesma difusão de linhas, a mesma decomposição de contornos... Continuei a vestir-me. Subitamente por uma inspiração inexplicável, por um impulso sem cálculo, lembrou-me... Se forem capazes de adivinhar qual foi a minha idéia