FREI AGOSTINHO DE JESUS E AS TRADIÇÕES DA IMAGINÁRIA COLONIAL BRASILEIRA SÉCULOS XVI-XVII RAFAEL SCHUNK F R E I A G O ST IN H O D E JE SU S E A S T R A D IÇ Õ E S D A IM A G IN Á R IA C O LO N IA L B R A SILE IR A R A FA E L S C H U N K frei_agostinho_de-jesus_capa.indd 1 17/02/2014 17:34:57 FREI AGOSTINHO DE JESUS E AS TRADIÇÕES DA IMAGINÁRIA COLONIAL BRASILEIRA Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 1 17/02/2014 11:44:00 Conselho Editorial Acadêmico Responsável pela publicação desta obra Profa Dra Rita Luciana B. Bredariolli Prof. Dr. Agnaldo Valente G. da Silva Prof. Dr. Omar Khouri Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 2 17/02/2014 11:44:00 RAFAEL SCHUNK FREI AGOSTINHO DE JESUS E AS TRADIÇÕES DA IMAGINÁRIA COLONIAL BRASILEIRA SÉCULOS XVI-XVII Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 3 17/02/2014 11:44:00 CIP – Brasil. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ S317f Schunk, Rafael Frei Agostinho de Jesus e as tradições da imaginária colonial brasileira : séculos XVI-XVII [recurso eletrônico] / Rafael Schunk. - 1. ed. - São Paulo : Cultura Acadêmica, 2013. recurso digital. Formato: ePDF Requisitos do sistema: Adobe Acrobat Reader Modo de acesso: World Wide Web ISBN 978-85-7983-430-1 (recurso eletrônico) 1. Jesus, Agostinho, Frei, 1600-1661. 2. Barroco (Arte) - Brasil. 3. Arte brasileira - Século XVI. 4.Arte brasileira - Século XVII. 5. Livros eletrônicos. I. Título. 13-06388 CDD: 709.032 CDU: 7.034.7(81) Este livro é publicado pelo Programa de Publicações Digitais da Pró-Reitoria de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) © 2013 Editora UNESP Cultura Acadêmica Praça da Sé, 108 01001-900 – São Paulo – SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 Fax: (0xx11) 3242-7172 www.editoraunesp.com.br feu@editora.unesp.br Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 4 17/02/2014 11:44:01 À memória de minha avó Helena Bakk Pereira, aos meus pais, Oswaldo e Maria Schunk, e ao meu tio Marcelo Pereira, com respeito, carinho e gratidão Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 5 17/02/2014 11:44:01 Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 6 17/02/2014 11:44:01 O Brasil, como as demais nações do mundo, tem também seu berço próprio, que o fez uma grande nação, reconhecida no mundo como um gigante pelas suas dimensões e pela peculiaridade de seu povo de trato ameno, construtivo e improvisador no seu humor e na habilidade com que sabe suportar e contornar os azares da vida. Eduardo Etzel Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 7 17/02/2014 11:44:01 Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 8 17/02/2014 11:44:01 SUMÁRIO Siglas e abreviamentos 11 Agradecimentos 13 Prefácio: Peregrinação de um pesquisador de imaginária sacra 19 Introdução 23 1. O estilo barroco construindo o primeiro período da arte colonial brasileira (1560-1661) 39 2. A escultura sacra no Brasil e seus desdobramentos 303 3. A imaginária paulista: origens, encontros e destinos da arte barroca 373 Considerações finais 391 Referências bibliográficas 397 Anexo 409 Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 9 17/02/2014 11:44:01 Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 10 17/02/2014 11:44:01 SIGLAS E ABREVIAMENTOS Condephaat Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo Sphan Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (1979-1990); antigo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (1937-1946) Iphan Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional MAS Museu de Arte Sacra de São Paulo– MASS Museu de Arte Sacra de Santos MAS – UFBA Museu de Arte Sacra da Universidade Federal da Bahia Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 11 17/02/2014 11:44:01 Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 12 17/02/2014 11:44:01 AGRADECIMENTOS Ao meu estimado orientador, prof. dr. Percival Tirapeli e sua esposa Laura Carneiro Pereira Tirapeli, pela incansável dedicação ao resgate do barroco pau- lista, exemplo e motivação para o desenvolvimento da pesquisa. Agradeço a oportunidade ímpar de estudo, por ter acreditado no projeto, pelos conheci- mentos transmitidos nas viagens de pesquisas, livros e montagens de exposições. Reitero minha profunda admiração e respeito pelo mestre, profissional, amigo, ser humano, artista e grande pesquisador da arte brasileira. Às inestimáveis orientações da profa dra Elaine da Graça de Paula Caramella e do prof. dr. Alcindo Moreira Filho. Estado da Bahia: Salvador Capela de Nossa Senhora do Montesserrate À prestimosa atenção de Fabio Souza Mendonça (caseiro da capela) Iphan – Bahia A Bruno César Sampaio Tavares (coordenador técnico Iphan, Salvador) Aos funcionários da Casa dos Sete Candeeiros, Pelourinho, Salvador Mosteiro de São Bento de Salvador Abade Dom Emanuel A dom Ivan da Silva Andrade (diretor do museu) A dom Rafael Soares de Freitas (diretor da biblioteca) Lucyana da Silva Nascimento (bibliotecária) Anderson Magno de Matos (auxiliar de biblioteca) Diego Alves Santos (aprendiz) Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 13 17/02/2014 11:44:01 14 RAFAEL SCHUNK Museu de Arte Sacra da Universidade Federal da Bahia (MAS – UFBA) Ao ilustríssimo diretor do MAS – UFBA, sr. Francisco de Assis Portugal Guimarães À prestimosa atenção de Mirna Conceição Brito Dantas (coordenadora do Setor de Documentação e Pesquisa) Paróquia Nossa Senhora da Luz de Pituba Santo Amaro da Purificação Paróquia Nossa Senhora do Rosário de Santo Amaro da Purificação (BA) À prestimosa atenção e acolhimento de padre Rogério Marcos da Silva Agradecimentos especiais pela acolhida e confiança dos paroquianos Geraldo Alves e Edira Maria Lima Estado do Rio de Janeiro: Angra dos Reis Convento de São Bernardino de Sena e Museu de Arte Sacra de Angra dos Reis À confiança de Alonso de Oliveira e Alex Sandro de Lima Wandroski (Divisão de Patrimônio Histórico, Prefeitura Municipal de Angra dos Reis) Cabo Frio Museu de Arte Religiosa e Tradicional de Cabo Frio (Convento de Nossa Senhora dos Anjos) À ilustríssima diretora Dolores Brandão Tavares Agradecimentos especiais a Sonia Maria Gaudereto Duarte (bibliotecária), João Rabelo e Castro (administrador), Tatiana Batista Bion Dias de Figueiredo (assistente técnica) e Aline Costa Simões Cadaxo (museóloga) Duque de Caxias Fazenda São Bento de Iguaçu, Igreja de Nossa Senhora do Rosário À acolhida de Ângelo Marcio da Silva, Tânia Amaro (Secretaria da Cultura de Duque de Caxias) e Edna Maria Bernardo (Casa São Francisco de Assis) Niterói Igreja de São Lourenço dos Índios Ao acolhimento de José Pereira Ferreira e Ângela Pacheco Ferreira (ministros da igreja) Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 14 17/02/2014 11:44:01 FREI AGOSTINHO DE JESUS E AS TRADIÇÕES DA IMAGINÁRIA COLONIAL 15 Paraty Museu de Arte Sacra de Paraty (Iphan) – Igreja de Santa Rita Ao ilustríssimo diretor Júlio Cezar Neto Dantas Rio de Janeiro Igreja de Nossa Senhora do Bonsucesso – Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro Mosteiro de São Bento da cidade do Rio de Janeiro À acolhida de dom Mauro Fragoso (OSB) Estado de São Paulo: Barueri Aldeia Jesuítica de Barueri À amiga Sônia Maria Teixeira – Secretaria da Cultura Carapicuíba Aldeia Jesuítica de Carapicuíba À artista plástica e amiga Alaíde di Pietro – Secretaria da Cultura Guararema Paróquia de Nossa Senhora da Escada e São Benedito – Matriz de Guararema Itanhaém Museu do Convento Nossa Senhora da Conceição de Itanhaém (Instituto Servas de Jesus Sacerdote) Paróquia da Igreja Matriz de Santana Itaquaquecetuba (SP) Secretaria da Cultura e Turismo de Itaquaquecetuba Igreja Matriz de Nossa Senhora da Ajuda Jundiaí Cúria Diocesana de Jundiaí À confiança do padre Venilton Calheiros Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 15 17/02/2014 11:44:01 16 RAFAEL SCHUNK Mogi das Cruzes Museu das Igrejas do Carmo (MIC) Ao restaurador Marcos Antonio Siqueira Marques À amiga Danielle Manoel dos Santos Pereira Peruíbe Secretaria da Cultura e Administração das Ruínas do Abarebebê Pindamonhangaba Aos amigos e colecionadores Jorge e Selma Willmam Mendes pelos anos de estrada no Vale do Paraíba e transmissão de ricas vivências sobre a arte sacra paulista Santana de Parnaíba À amiga artista plástica Eloísa Aparecida Alves do Espírito Santo Consoni À amiga pesquisadora Izes Bastianon Chaves de Oliveira À amiga artista plástica Edimeia Ao amigo pesquisador Emanuel França Barbosa Aos amigos artistas plásticos Ilo e Luciana Dias de Souza Ao amigo antiquário George de Araújo Sampaio Ao amigo escultor Murilo Sá Toledo Centro de Memória e Integração Cultural (Cemic) À amiga e historiadora Agacir Eleutério Igreja Matriz de Santana Ao padre Átila e paroquianos Santos Diocese de Santos Ao pe. José Myalil Paul (pároco da Catedral e do Santuário de Nossa Senhora do Monte Serrat) Museu de Arte Sacra de Santos À ilustríssima diretora Marcela Rezek São Paulo Aos profs. drs. do IA-UNESP Ao prof. dr. José Leonardo do Nascimento, IA-UNESP À profa dra Lalada Dalglish, IA-UNESP Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 16 17/02/2014 11:44:01 FREI AGOSTINHO DE JESUS E AS TRADIÇÕES DA IMAGINÁRIA COLONIAL 17 Ao grande amigo, incentivador e colaborador fundamental, o economista e artista plástico Joaquim Pereira Antunes Filho À grande amiga Joceli Domingas de Oliveira pela fundamental companhia nas viagens, incentivo e motivação no decorrer das pesquisas Ao amigo e pesquisador de arte sacra paulista Ailton Santana de Alcântara Aos amigos colecionadores George Homenco Filho e Ignês Homenco À colecionadora Izabel Sobral Ao engenheiro e colecionador Ladi Biezus Aos amigos colecionadores Cristiane e Ary Casagrande Filho Ao amigo e colecionador Edgar Clat Gaspar Ao restaurador Júlio Eduardo Corrêa Dias de Moraes Ao colecionador Orandi Momesso Arquivo Público do Estado de São Paulo Aos funcionários do Setor Iconográfico e Documentação Igreja de São Francisco de Assis e Ordem 3a da Penitência Ao frei Roger Brunorio Iphan – São Paulo A Tatiana Lopes Salciotto (bibliotecária) A Anita Hirschbruch (fotógrafa) Mosteiro de São Bento da cidade de São Paulo A dom Carlos Eduardo Uchoa Fagundes (OSB) Ao apoio e carisma do irmão João Batista (OSB) Museu de Arte Sacra de São Paulo À ilustríssima diretora Mari Marino Ao apoio do padre José Arnaldo Juliano dos Santos À coordenadora do corpo técnico Denyse Emerich À museóloga Rose Santos Paróquia e Capela de São Miguel Arcanjo – São Miguel Paulista Ao padre Geraldo Antonio Rodrigues (presidente da Associação Cultural Beato José de Anchieta) São Roque Sítio e Capela de Santo Antônio – Iphan (SP) À acolhida dos monitores e caseiros Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 17 17/02/2014 11:44:01 18 RAFAEL SCHUNK Sorocaba Biblioteca Municipal Ao historiador José Rubens Incao Museu Arquidiocesano de Arte Sacra Comendador Luiz Almeida Marins (Madas- -LAM) A Pedro Benedito Paiva Junior, Rafael José Barbi e Bruna de Oliveira Garcia Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 18 17/02/2014 11:44:01 PREFÁCIO PEREGRINAÇÃO DE UM PESQUISADOR DE IMAGINÁRIA SACRA A pesquisa de Rafael Schunk sobre a imaginária sacra brasileira, ora e ini- cialmente disponibilizada em meio digital, torna-se um referencial para um novo público desse meio de divulgação das pesquisas da universidade brasileira. Sua obra sintetiza de maneira clara as pesquisas sobre as primeiras imagens de barro produzidas no Brasil colonial e avança com novos olhares para as obras de arte já analisadas por especialistas desde o início do século XX. Uma ampla historio- grafia permeia todo o texto que sustenta o caminho percorrido nas bibliotecas como fonte secundária, subsidiando a busca das fontes primárias que são as ima- gens sacras. A essa persistência é que denomino peregrinação de um pesquisar, intencionado a buscar provas, tanto pesquisando aqueles que já enunciaram suas teses, como ainda buscando a existência material das imagens. Aqui organizadas e amplamente disponibilizadas, essas provas formam um corpus de pesquisa de suma importância para a arte brasileira. Em sua Introdução, o pesquisador mostra seus caminhos percorridos na vasta bibliografia consultada com referencial específico sobre a imaginária pau- lista, a qual denomina berço da arte brasileira, e também textos dos mais antigos artífices beneditinos já pesquisados – com as minúcias da paciência beneditina de Silva-Nigra. Amplia, porém, com novos olhares mais abrangentes, contex- tualizando a produção no vasto território do sertão – sem limites definidos tanto na geografia como no campo político. Na geografia, o pesquisador delineia o li- toral fluminense como localidade propícia para uma produção lá distribuída; vai até a antiga capital colonial na certeza de uma produção erudita beneditina de frei da Piedade; desce para o litoral paulista como localidade receptora dessas Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 19 17/02/2014 11:44:01 20 RAFAEL SCHUNK produções; adentra o sertão em duas vertentes – o médio vale do Tietê e o vale do Paraíba do Sul, como polos produtores de uma imaginária popular que teve como centro o mosteiro beneditino de Santana de Parnaíba, na figura de frei Agostinho de Jesus. Traçado esse roteiro, aprofunda cada um dos temas nos três capítulos subse- quentes. No primeiro capítulo a pesquisa se passa no litoral, interliga as culturas do Oriente com o Ocidente no intrincado campo histórico do período da União das Coroas espanhola e portuguesa (1580-1640) e vê o despontar do espírito bar- roco na cultura ibérica, passando pelo maneirismo estudado por Bazin como pri- mórdios de nossa imaginária lá em Portugal. Em minha apresentação, prefiro mais indicar o caminho trilhado pelo pesquisador do que compilar sua vasta ex- planação já percorrida pelos seus pares anteriormente. Suas publicações hoje são referenciais e raras mesmo em bibliotecas públicas, de difícil acesso para o pú- blico leigo, privilégio de bibliófilos, como no caso das publicações de Stanislaw Herstal (1956) e, consistindo exceção, a publicação fac-similar de Santuário Ma- riano (1707 a 1721 e fac-similar de 2007). O que enfatizo aqui é a pesquisa visual de Rafael Schunk. Comprovada sua competência nas leituras abrangente e específica dos temas e consequentes cita- ções, o pesquisador foi a campo verificar a existência das obras, munido de foto- grafias dos arquivos oficiais como o do Iphan e bibliotecas, além daquelas obras que estão com colecionadores particulares. Percorrido o amplo litoral – de Sal- vador até Cananeia –, embrenhou-se, no segundo capítulo, no sertão paulista. No litoral fotografou nos museus, conventos, igrejas… E reviu pesquisas atuali- zadas naquelas regiões diversas. Aproximou-se – como outro pesquisador não havia jamais feito – dos bustos relicários de 1560, atualmente no Museu de Arte da Bahia, e lá mesmo confirmou as pesquisas de Silva-Nigra (1950 e 1971), sem deixar de lado todo o Recôncavo Baiano. No litoral fluminense, a peregrinação continuou em antigos conventos franciscanos, igrejas e capelas jesuíticas, mu- seus municipais em Angra dos Reis e Parati até entrar em terras paulistas das antigas capitanias hereditárias – Itanhaém, São Sebastião, Cananeia, Santos e São Vicente –, onde se encontram as mais antigas imagens sacras feitas no Brasil, datadas de 1560. Ao adentrar o sertão – regiões de Itu/Sorocaba e Mogi das Cruzes/vale do Paraíba –, Schunk nos mostra a possibilidade de escolas barristas advindas da tradição das ordens religiosas, em especial dos beneditinos. Então, o terceiro ca- pítulo é sua contribuição inestimável para a pesquisa da arte sacra paulista, ao reconstituir com aprofundada pesquisa textual e iconográfica, e utilizando-se dos benefícios da montagem fotográfica, o perdido mosteiro beneditino de Santana de Parnaíba, no qual atuou o frei carioca Agostinho de Jesus. Sua capacidade Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 20 17/02/2014 11:44:01 FREI AGOSTINHO DE JESUS E AS TRADIÇÕES DA IMAGINÁRIA COLONIAL 21 nessa reconstituição foi sem dúvida motivada pela paixão do colecionador, racio- nalidade do pesquisador e prodigalidade de alma daqueles que se dispõem na busca e no esclarecimento do objeto sacro como base de cultura. Nesse quesito de generosidade, sem a vaidade acadêmica, tal qual um curador, Schunk expõe, além de suas ideias, a visualidade necessária a todas as obras de arte citadas. Dispostas as imagens de maneira técnica, fotografou-as de diversos ângulos, agrupou detalhes para provar características – os estilemas – e para fazer suas análises formais, e finalmente as disponibilizar para o grande público. Esse esforço de ampliar as possibilidades da pesquisa em artes, por meio da disponibilização das imagens na Internet, alicerça as intenções do projeto Bar- roco Memória Viva do Instituto de Artes da UNESP (http://unesp.br/bibliote- cadigital/artes.php), que acredita na difusão das imagens ícones da arte brasileira para o ensino e a pesquisa. Afinal, o mito de que pesquisas de cursos de pós- -graduação têm alcance apenas no seio das instituições que as geram finalmente se desfaz com este projeto da difusão das pesquisas. Assim, a Cultura Acadêmica valoriza e amplia – e com grande qualidade e relevância para a área – a consolidada abrangência na cena cultural. Prof. dr. Percival Tirapeli Titular em Artes Visuais, criador e coordenador do programa de extensão Barroco Memória Viva Instituto de Artes da UNESP Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 21 17/02/2014 11:44:01 Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 22 17/02/2014 11:44:01 INTRODUÇÃO Acompanhando os caminhos trilhados por missionários, exploradores e via- jantes que expandiram a fé cristã pelo mundo quinhentista, as imagens religiosas compõem um extenso legado à história cultural do Brasil. Ao lado dos testemu- nhos arqueológicos de nossos antepassados indígenas, a produção sacra é outro grande berço da arte brasileira, nascida do encontro de civilizações, revelando os rumos percorridos pela sociedade na edificação do caráter singular da pátria, sín- tese de uma aventura continental marcada pela miscigenação e pelo sincretismo. O litoral brasileiro, durante as três primeiras décadas que sucedem a posse do território – dividido pela linha imaginária do Tratado de Tordesilhas (1494) e reclamado pela Coroa portuguesa –, tornou-se um entreposto comercial desti- nado à extração, estocagem e remessa de produtos tropicais para os mercados consumidores europeus. A divisão das terras em 1534 pelo regime das capitanias hereditárias irá sucumbir em poucos anos pelo descaso de seus donatários, imen- sidão dos latifúndios e resistência dos povos indígenas. Das doze feitorias ini- ciais, apenas Pernambuco e São Vicente progrediram. Em 1549, o modelo será substituído pela centralização administrativa do governo-geral de Tomé de Sousa, instituindo a primeira capital do país em Salvador. As mais antigas mani- festações artísticas do Brasil Colônia ligam-se diretamente a esse momento his- tórico, derivadas do progresso material alcançado sob amparo da metrópole e da Igreja, em complemento à fixação e defesa do continente americano. A estatuária religiosa tornou-se um dos principais testemunhos remanescentes desse pro- cesso civilizatório. Influenciadas pelas ordens monásticas da península Ibérica, aportaram nas colônias como instrumentos de evangelização. Os conhecimentos da escultura românica, somadas às tradições do final da Idade Média, Renascença e maneirismo construíram o código visual dos reinos católicos luso-espanhóis e, Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 23 17/02/2014 11:44:01 24 RAFAEL SCHUNK por conseguinte, embrenharam-se na imaginária sacra dos territórios conquis- tados de além-mar. Tecnicamente, a ocupação do espaço americano foi tratada como um pro- cesso relativamente simples para o europeu no alvorecer da Idade Moderna, acostumado desde a Antiguidade a erguer fortalezas, cidades ou impérios. Porém, no que tange à religiosidade, o desafio tornou-se uma complexa tarefa de equa- lizar um território com culturas e símbolos preexistentes, inserindo-os em uma perspectiva cristã para o futuro, criando mecanismos de assimilação-transição dos significados da religião aos nativos, ofertas de religiosos para assistência e serviços nos vastos territórios conquistados, além de salvaguardar as almas de uma população emigrada da metrópole. Elemento estratégico para a disseminação dos conceitos cristãos foi o trans- lado de relíquias sagradas, relicários e imagens sacras complementando a visua- lidade ritual em colônias fundadas nas Américas, África ou Ásia, comunidades ansiosas por símbolos e mártires a consagrar seus territórios. A idealização dos primeiros retábulos e imagens foi coordenada pelas ações de missionários e aprendizes nas oficinas conventuais, compondo cenários de auste- ridade e despojamento, incentivando a meditação, piedade, conforto espiritual e comunhão coletiva dos fiéis. Essa produção monástica estendeu-se do litoral ao interior brasileiro, sendo difundida principalmente nos estados da Paraíba, Per- nambuco, Bahia, Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo durante os séculos XVI e XVII; padrões que ficaram conhecidos como maneiristas, ou seja, adequa- ções de tratados artísticos à maneira dos renascentistas ou conforme a criatividade de cada autor. Muito além de convenções estabelecidas, e em consonância com o pensamento do arquiteto e pintor italiano Giorgio Vasari (1511-1574), o manei- rismo tornou-se sinônimo de graça e elegância; rompeu com a linearidade do passado clássico e valorizou o estilo pessoal dos artistas, encontro de diferentes tradições posteriormente incorporadas às correntes estéticas do movimento bar- roco. Essas manifestações no Brasil caracterizaram-se por elementos de cunho híbrido e abrangiam desde influências provenientes da cultura mouro-judaica, vivenciadas em séculos de ocupação na península Ibérica, enraizadas no uni- verso artístico do colonizador português, passando pelo convívio de europeus com técnicas ameríndias, experiências no exotismo da terra, e associando-se às formas asiáticas provindas da arte sacra desenvolvida no Extremo Oriente. Numerosas ermidas foram construídas utilizando recursos provenientes de associações leigas, ordens terceiras e irmandades. Os diversos ciclos econômicos de nossa história possibilitaram adaptações de materiais, técnicas e dimensões, transpondo os santos dos altares para as residências, integrando o cotidiano da sociedade. Mediante a crescente demanda de encomendas eclesiásticas e parti- Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 24 17/02/2014 11:44:01 FREI AGOSTINHO DE JESUS E AS TRADIÇÕES DA IMAGINÁRIA COLONIAL 25 culares, as esculturas passaram a ser produzidas concomitantemente em ateliês laicos. O estilo barroco tornou-se elemento fundamental da Contrarreforma Cató- lica diante dos desafios surgidos a partir dos avanços protestantes e das mu- danças sociais no decorrer do século XVI na Europa, integrando ações a serviço das monarquias absolutistas e suas respectivas colônias nas Américas, África e Extremo Oriente. O transplante da cultura barroca para o Brasil irá influenciar os primeiros núcleos coloniais ao longo da costa atlântica e será fundamental nas origens da vida urbana, dos traçados arquitetônicos, arte sacra, vida política e privada, comportamentos, cortejos e religiosidade. Este trabalho se baseia em uma extensa pesquisa de campo por instituições públicas, coleções particulares, bibliotecas, livros de tombo, museus, fundações e igrejas, na baía de Todos os Santos e no eixo Rio de Janeiro-São Paulo. Foram medidas e fotografadas imagens. No Nordeste, coletamos informações históricas e material iconográfico em Salvador, Santo Amaro da Purificação, Cachoeira, Maragogipe e Ilhéus. Na região Sudeste, nos deslocamos para São Sebastião, Santos, São Vicente, Itanhaém, Peruíbe, Guararema, Mogi das Cruzes, São Mi- guel Paulista, São Paulo, Santana de Parnaíba, São Roque, Jundiaí, Sorocaba, Itu, Carapicuíba, Barueri e cidades do vale do Paraíba. No Rio de Janeiro, con- centramos os levantamentos da imaginária na capital, Duque de Caxias, Niterói, Cabo Frio, Angra dos Reis e Parati, antigos centros de veneração religiosa no país nascente. Dessa perspectiva, foi fundamental observar os desdobramentos políticos e econômicos da então capitania de São Vicente nos séculos XVI-XVII, um dos primeiros espaços de ocupação colonial no território americano, processo social subsidiado pelas entradas e bandeiras, conquista territorial e expansão da fé católica. As pesquisas que resultaram nesta obra foram iniciadas no final dos anos 1990 por meio de contatos com exposições, livros e acervos envolvidos na temá- tica barroca. Heranças que apontam o estado de São Paulo como um dos locais precursores da cultura nacional, pela antiguidade e originalidade de suas obras sacras remanescentes. Viajando e garimpando por antiquários, sítios e feiras nas cidades do interior paulista, reuni testemunhos de nossa produção religiosa, com- pondo uma coleção de arte colonial que se tornou fonte de referência e conheci- mento. Os estudos na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Uni-FMU em São Paulo ampliaram os horizontes por meio das orientações acadêmicas, desper- tando o interesse pela riqueza da casa bandeirista e suas tradições. Essa singular produção estética envolveu técnicas construtivas, usos, costumes, instrumentos e Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 25 17/02/2014 11:44:01 26 RAFAEL SCHUNK religiosidade, imbuídos de uma atmosfera despojada, contemplativa e penitente de uma original civilização, dividida entre a aventura e a devoção. No caminhar das investigações centradas no estudo da arte sacra paulista, a partir de 2009 participei dos cursos de extensão universitária da UNESP, Bar- roco Memória Viva, liderados pelo prof. dr. Percival Tirapeli, os quais apresen- tavam conhecimentos multidisciplinares em torno da produção colonial de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Nesse percurso, atestamos a necessidade de investigações voltadas ao resgate das origens históricas e culturais do país, fatos contemplados posteriormente na escolha do tema e recorte da pesquisa. O desenvolvimento deste livro percorreu uma metodologia sistemática exi- gindo um processo racional de organização. A investigação seguiu um caráter empírico analítico: reunião de material quantitativo, estatístico e documental, es- tabelecendo reflexão dialética do sujeito humano e o objeto de estudo, procedi- mentos que resultaram na interpretação dos dados históricos e sociais coletados, estabelecendo comparações, fenômenos e variáveis; integrando racionalismo e empirismo. Acerca dessas observações, vamos contemplar uma análise auxiliada pela teoria da Psicologia Gestalt, termo que significa investigar a percepção visual da forma e da estrutura. De acordo com essa corrente de pensamento, a arte se funda no princípio da pregnância da forma, lei básica que consiste analisar fatores como equilíbrio, clareza, simplicidade e harmonia visual das obras, elementos impres- cindíveis para a compreensão humana. Segundo esse critério, quanto melhor for a organização visual em relação à compreensão e rapidez da leitura dos objetos, maior será o grau de pregnância e conjunto. O estudo simbólico das imagens complementa descrições técnicas, históricas, iconográficas e culturais, auxi- liando na interpretação estética. Nesse contexto, a soma das partes individuais proporciona um sentido de unidade ao observador. Por meio desse raciocínio iremos descrever as imagens dos séculos XVI e XVII destacando aspectos biográficos, técnicos, perceptivos, estéticos e formais, privilegiando uma abordagem simplificada para obter interpretações elucida- tivas e que irão desvendar as considerações finais da pesquisa. Do ponto de vista conceitual e estilístico, o movimento barroco passou a ser documentado de forma sistemática a partir dos séculos XIX e XX, nos pensa- mentos de estetas como Heinrich Wölfflin, Arnold Hauser e José Antonio Mara- vall, referências bibliográficas e reflexivas no estudo do período histórico. O discurso crítico do suíço Heinrich Wölfflin (1864-1945), um dos maiores historiadores da arte ocidental, conceituou o barroco como movimento artístico em estudos pioneiros no final do século XIX. Em seus conceitos, adotou o “mé- todo formalista” para análise de obras, partindo da teoria centrada na “pura-vi- Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 26 17/02/2014 11:44:01 FREI AGOSTINHO DE JESUS E AS TRADIÇÕES DA IMAGINÁRIA COLONIAL 27 sualidade” e opostos: unidade e plural, forma fechada e aberta, clareza e obscuridade, linear e pictórico, plano e profundidade. Elementos presentes em seus consagrados livros: A arte clássica, Conceitos fundamentais da História da Arte e Renascença e barroco: estudo sobre a essência do estilo barroco e sua origem na Itália (publicado no Brasil em 1989). A obra do escritor Arnold Hauser (1892-1978) foi permeada pelas influên- cias da Sociologia e marxismo florescente na extinta União Soviética. Pesqui- sador de Literatura e História da Arte, frequentou distintos círculos acadêmicos na Europa, passando pelas universidades de Budapeste, Viena, Berlim e Paris. O seu livro mais relevante é História social da Literatura e da Arte (1950), projeto que lhe custou dez anos de pesquisas e causou polêmica na época da publicação por enfatizar tendências ideológicas de esquerda em uma época que excluía essa vertente do pensamento na crítica de arte. O historiador e ensaísta espanhol José Antonio Maravall Casesnoves (1911- 1986), estudou Filosofia, Letras e Direito na Universidade de Murcia e Ciências Políticas e Econômicas na Universidade Complutense de Madri. Professor na Espanha e em outros países, exerceu grande influência em numerosas correntes de cientistas sociais e setores especializados na História, Economia e em matérias como Sociologia, Psicologia e Ciências Políticas. Segundo Maravall, a História era uma construção do homem e deveria aproximar-se de metodologias e con- ceitos científicos. Seus trabalhos mais expressivos abrangem pesquisas no campo do pensamento político do Renascimento, cultura barroca, militar e utopias. Em sua obra fundamental, A cultura barroca (publicada pela Edusp em 1997), o autor descreve as origens do período como resposta a uma sociedade em crise, fragilizada por revoltas, misérias e lutas de uma burguesia ascendente perante Estados arcaicos e feudais. Segundo seus pensamentos, as atividades exercidas naquele momento histórico eram dirigidas, massificadas, predominantemente urbanas e conservadoras. As primeiras catalogações da imaginária brasileira foram realizadas no sé- culo XVIII pelo frei português Agostinho de Santa Maria (1642-1728). Entre fins do século XIX e início do XX, o pintor e historiador itanhaense Benedicto Calixto de Jesus (1853-1927) desenvolveu pioneiros ensaios históricos a respeito das primeiras imagens brasileiras conservadas na antiga capitania de São Vicente. Levando em consideração a abrangência dos conceitos, cabe reverenciar a opinião de importantes especialistas no assunto, precursores e contemporâneos, auxiliando nas respostas aos questionamentos propostos na discussão da pes- quisa. Dessa maneira, destacamos, para fundamentação teórica, dentre muitos autores que irão surgir no decorrer das investigações, as publicações do monge beneditino d. Clemente Maria da Silva-Nigra e de Stanislaw Herstal, e os estudos Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 27 17/02/2014 11:44:02 28 RAFAEL SCHUNK desenvolvidos pelo médico e colecionador de arte sacra Eduardo Etzel e por João Marino. Os livros e artigos do saudoso professor Wolfgang Pfeiffer (ECA-USP), da historiadora Aracy Amaral (ECA-USP), dos professores Carlos Alberto Cer- queira Lemos (FAU-USP) e Percival Tirapeli (IA-UNESP) destacaram a im- portância da capitania de São Vicente como precursora no nascimento da arte colonial brasileira. O crítico de arte francês Germain Bazin foi autor de nume- rosas publicações acerca do barroco brasileiro, divulgando-as no exterior. O período sociocultural estudado abrange os séculos XVI e XVII, época de grandes deslocamentos humanos pelo continente americano. O natural cruza- mento entre o colonizador europeu e o nativo gerou o mameluco bandeirante, adaptado ao ambiente rústico, estirpe que reuniu audácia e destemor na con- quista do sertão brasileiro. Os primeiros estudos sobre o período bandeirista foram realizados por genealogistas coloniais como Pedro Taques de Almeida Paes Leme (1714-1777) e sua Nobiliarquia paulistana histórica e genealógica, ree- ditada pela USP em 1980. No início do século XX, temos a fundamental contri- buição do historiador Affonso de Escragnolle Taunay nas obras Historia antiga da Abbadia de S. Paulo (1598-1772), publicada em 1927, Historia geral das ban- deiras paulistas (1928), Pedro Taques e seu tempo (1921) e São Paulo nos primeiros anos: ensaio de reconstituição social (reeditada em 2003). Historiadores como Sergio Buarque de Holanda e seu livro fundamental Raízes do Brasil (1936) e, mais recentemente, o escritor Jorge Caldeira, com O banqueiro do sertão (2006), realizaram prolífica reflexão a respeito do ciclo das bandeiras paulistas. O método de organização das informações bibliográficas, pesquisas de cam po e análises foram baseadas na obra de Silvio Zamboni, A pesquisa em Arte: um paralelo entre Arte e Ciência (3.ed., 2006). Uma das mais antigas obras impressas a respeito da imaginária nacional está contida no livro Santuário Mariano, escrito pelo frei português Agostinho de Santa Maria (1642-1728) e publicado na cidade de Lisboa entre os anos de 1722 e 1723, é um inventário que reúne os principais centros de veneração do Brasil antigo e invocações de Nossa Senhora cultuadas na costa e interior do país. A obra completa é dividida em dez partes: tomos I ao VII (publicados entre 1707 e   1721), apresenta santuários e imagens da corte portuguesa, arcebispado de Lis boa, bispados da Guarda, Lamego, Leiria, Porto Alegre, priorado de Crato, prelazia de Tomar, arcebispado de Braga, bispados de Coimbra, Porto, Vizeu, Miranda, arcebispado de Évora, bispados do Algarve e Elvas; o tomo VIII, im- presso em 1720, relata santuários e ícones da Índia ocidental, Ásia insular, África e Filipinas. O tomo IX, de 1722, descreve 194 santuários do Brasil e suas respec- tivas virgens, sendo 132 do arcebispado da Bahia, 45 no bispado de Olinda e Recife, 8 no bispado do Maranhão e 9 no bispado do Grão-Pará; por último, o Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 28 17/02/2014 11:44:02 FREI AGOSTINHO DE JESUS E AS TRADIÇÕES DA IMAGINÁRIA COLONIAL 29 tomo X, publicado em 1723, refere-se a 146 locais de veneração e suas imagens, sendo 83 na capitania do Rio de Janeiro, 40 em São Paulo, 13 em Minas Gerais, 5 no Espírito Santo, 4 no Sul (Paraná e Santa Catarina) e 1 na Colônia do Sacra- mento. Agostinho de Santa Maria, cujo nome de batismo era Manuel Gomes Freire, nascido na vila de Estremoz em 28 de agosto de 1642 e falecido na cidade de Lisboa em 3 de abril de 1728, ingressou na Congregação dos Agostinianos Des- calços aos 23 anos, desenvolvendo funções de cronista, prior do Convento de Évora, secretário da Província, definidor-geral e vigário-geral dessa congregação em Portugal. Além do antológico Santuário Mariano, publicou 18 obras, desta- cando-se História da fundação do Real Convento de Santa Mônica, da cidade de Goa (impresso em 1699) e Rosas do Japão e da Conchinchina, cândidas açucenas e ramalhete de fragrantes e peregrinas flores, colhidas no jardim da Igreja do Japão sem que os espíritos da infidelidade e da idolatria as possam murchar, divididos em dois volumes publicados no ano de 1709, sobre o Japão, e em 1724, a parte da Conchinchina. Curiosamente, esse pesquisador jamais esteve no Brasil. Para es- crever os tomos IX e X de Santuário Mariano, referentes às imagens brasileiras, valeu-se de minuciosas informações colhidas por frei Miguel de São Francisco, nascido no Rio de Janeiro em meados do século XVII e falecido nessa cidade em 1734. Alguns dos textos foram transcritos literalmente, fato que leva muitos his- toriadores a considerar frei Miguel o seu verdadeiro autor. Esse religioso foi membro da Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil e vigário provincial, exercendo diversas atividades nos conventos de Santo Antônio do Rio de Janeiro, São Bernardino de Sena em Angra dos Reis e São Boaventura de Macacu. As primeiras anotações registradas por frei Miguel para Santuário Ma- riano foram destruídas em 1711, na época da invasão dos franceses ao Rio de Ja- neiro, reescritas entre 1712 e 1714, fase em que aprimorou algumas informações antes de enviá-las para Portugal. Santuário Mariano foi reeditado com ilustra- ções no Rio de Janeiro, em 2007, pelo Inepac. Um dos precursores no registro da imaginária paulista foi o pintor, pro- fessor, historiador e ensaísta Benedicto Calixto de Jesus (1853-1927). Detentor de amplo conhecimento sobre o litoral, atuou como retratista iconográfico e car- tógrafo. Realizou ensaios de mapas da costa e resgatou da tradição oral caiçara as histórias dos primeiros ícones venerados nas cidades do litoral vicentino. Me- diante investigações históricas, sabemos que as mais antigas imagens em terra- cota elaboradas no país são atribuídas ao mestre português João Gonçalo Fernandes, escultor atuante na região em meados do século XVI: Nossa Senhora da Conceição, preservada no Museu de Arte Sacra de Santos, Nossa Senhora do Amparo, venerada no convento franciscano de Itanhaém e Santo Antônio, antigo Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 29 17/02/2014 11:44:02 30 RAFAEL SCHUNK orago de uma fazenda na ilha de Santo Amaro, atual município do Guarujá. A feitura desses ícones remonta a 1560 e coincide com a finalização da Matriz de São Vicente (1559) e elevação de Itanhaém à categoria de vila (1561). Passadas muitas gerações, a importância de nossa arte sacra colonial foi reto- mada no começo do século XX, processo de reconhecimento liderado pelo grupo de intelectuais que idealizou a Semana de Arte Moderna em 1922. Ao mesmo tempo em que esses pensadores e seus manifestos buscaram novas possibilidades estéticas, dedicaram-se também ao resgate das raízes históricas do país, lançando os fundamentos da conservação dos bens culturais brasileiros. A partir dessas alianças, o governo do presidente Getúlio Vargas institui, em 1937, o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), atual Ins- tituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Arquitetos, escri- tores e artistas contribuíram para a salvaguarda e tombamento de bens. A tarefa de implantar o Serviço do Patrimônio, órgão vinculado ao Ministério da Cultura foi confiado a Rodrigo Melo Franco. Com a colaboração de Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Afonso Arinos, Lúcio Costa e Carlos Drummond de Andrade, foram preparados técnicos para assegurar a perma- nência, restauração e revitalização do acervo documental, etnográfico, artístico, arquitetônico, paisagístico e urbanístico do país. Nossa herança colonial foi aos poucos catalogada e compreendida por historiadores e colecionadores. Na monumental obra do historiador beneditino d. Clemente Maria da Silva- -Nigra, considerado um dos maiores pesquisadores de nossa arte sacra, encon- tramos as referências fundamentais para o desenvolvimento deste trabalho. Acerca dos livros Construtores e artistas do Mosteiro de São Bento do Rio de Ja- neiro (1950) e Os dois escultores, frei Agostinho da Piedade, frei Agostinho de Jesus e o arquiteto frei Macário de São João (1971), temos um minucioso estudo sobre a produção das primeiras oficinas monásticas fixadas do litoral nordestino ao pla- nalto paulista. Entre tantas atividades exercidas como pesquisador, curador de exposições e diretor do Museu de Arte Sacra da Universidade Federal da Bahia, foi responsável pela redescoberta de grandes nomes da escultura colonial brasi- leira, como o monge português frei Agostinho da Piedade (c.1580-1661), seu discípulo brasileiro frei Agostinho de Jesus (1600/1610-1661) e do escultor franciscano Mestre de Angra dos Reis (século XVII). Frei Agostinho da Piedade foi responsável pela introdução no Brasil da escultura erudita ibérica. Por ter as- sinado e datado algumas peças, mantendo os mesmos valores estéticos ao longo da carreira, possibilitou a d. Clemente identificar o conjunto da sua obra. Frei Agostinho de Jesus produziu as primeiras imagens cristãs brasileiras e o Mestre de Angra foi autor dos mais antigos relicários paulistas e cariocas. Dos inúmeros discípulos orientados por Agostinho da Piedade, destacamos o primeiro grande Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 30 17/02/2014 11:44:02 FREI AGOSTINHO DE JESUS E AS TRADIÇÕES DA IMAGINÁRIA COLONIAL 31 artista brasileiro, frei Agostinho de Jesus, nascido por volta de 1600/1610 na ci- dade do Rio de Janeiro, local onde também faleceu em 1661. Esse patriarca das artes divulgou por quase todo o país a técnica da escultura em terracota, dei- xando numerosos trabalhos nas regiões Nordeste e Sudeste. Estudou no Mos- teiro da Bahia e ordenou-se em Portugal. Trabalhou em Santana de Parnaíba, São Paulo, Mogi das Cruzes, Santos e Rio de Janeiro, locais de antigas chácaras e recolhimentos beneditinos. Sobretudo no interior paulista, temos o encontro de um grande escultor com uma cultura singular e que irá contribuir para a cons- trução da identidade brasileira. Contemporâneo aos modeladores beneditinos foi o santeiro franciscano de- nominado Mestre de Angra dos Reis, artista de grande mérito, autor de profícua obra catalogada neste trabalho e localizada entre a costa fluminense e o planalto de São Paulo. As imagens retabulares, bustos relicários e fragmentos arqueoló- gicos atribuídos a esse grande artista compõem um extenso e inédito acervo re- manescente nos conventos franciscanos, patrimônio histórico em processo de reconhecimento e valorização. Em 1956, o pesquisador Stanislaw Herstal publica um pioneiro estudo de arte sacra, Imagens religiosas do Brasil, corajoso documento dedicado às pequenas e humildes faturas coloniais, como os santos amuletos nó-de-pinho e modestas peças anônimas remanescentes do passado rural, reconhecendo genuínas mani- festações herdadas da cultura indígena, negra e popular. A divulgação internacional da escultura colonial brasileira foi liderada pelo notável crítico de arte francês e ex-diretor do Museu do Louvre, Germain Bazin, produzindo extensa obra documental sobre o barroco remanescente entre a costa litorânea e as serras mineiras, consagrando internacionalmente a obra de An- tônio Francisco Lisboa, “O Aleijadinho”, herança reconhecida como patrimônio cultural da humanidade. Essas pesquisas foram publicadas nos livros O Aleija- dinho e a escultura barroca no Brasil (1971) e Arquitetura religiosa barroca no Brasil, 2 volumes (1983). Eduardo Etzel foi autor de numerosas publicações a respeito da imaginária paulista, com destaque para os patuás em nó-de-pinho, vinculados aos escravos negros, e os santos paulistinhas, imagens cônicas confeccionadas em barro co- zido e policromado em pequenas dimensões, ligadas à devoção rural, reminis- cências de um barroco tardio sobreviventes em pleno ciclo cafeeiro do século XIX. Etzel reconheceu nas manifestações da arte sacra conventual e laica a raiz sociocultural que articulou o país moderno, depoimentos encontrados nos livros Imagens religiosas de São Paulo (1971), O barroco no Brasil (1974), Arte sacra popular brasileira (1975) e Arte sacra berço da arte brasileira (1984). Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 31 17/02/2014 11:44:02 32 RAFAEL SCHUNK Das infindáveis influências hispânicas, tão bem documentadas pela histo- riadora Aracy Amaral em seu livro A hispanidade em São Paulo (1981), her- damos alpendres, imagens, altares e muxarabis de influência mouro-espanhola, plateresca, andina e missioneira, oriundas do fluxo de paulistas pelas fronteiras castelhanas, tornando-se elementos emblemáticos da identidade bandeirante, gênese de uma sociedade que se tornou vanguarda na formação do povo brasi- leiro e, por conseguinte, gênese da cultura no país. Convém destacar na obra de Carlos Lemos uma ampliação das reflexões le- vantadas por Silva-Nigra, Etzel e Aracy Amaral, hipóteses desenvolvidas a partir das múltiplas correntes aportadas na colônia; tipologias estudadas por meio dos primeiros retábulos maneiristas jesuíticos adaptados ao ambiente rural paulista. É mérito do historiador a identificação de escolas regionais e catalogação de es- cultores anônimos, tais como o Mestre de Itu, vinculado às tradições beneditinas, e o Mestre-do-Cabelinho-em-Xadrez, artista ligado às influências orientais. Co- nhecimentos disseminados nos seguintes trabalhos: Escultura colonial brasileira (1979), Arte no Brasil (1980) e A imaginária paulista (1999). Nas publicações de Percival Tirapeli encontramos uma apurada visão esté- tico-histórica sobre arte e arquitetura antiga, com enfoque no resgate dos orna- mentos e artífices das igrejas paulistas, inserindo-os no contexto do barroco nacional. As pesquisas sobre altares peregrinos provenientes de ermidas demo- lidas, reconstituição de retábulos bandeiristas e apresentação dos fragmentos vi- centinos aprofundaram as investigações dedicadas às origens da escultura brasileira a partir do estado de São Paulo, como podemos averiguar nas obras: A construção religiosa no contexto urbano do vale do Paraíba – estado de São Paulo (1983), Arte sacra colonial: Barroco Memória Viva (2001), Igrejas paulistas bar- roco e rococó (2003), Festas de fé (2003), Arte sacra: gênese da fé no Novo Mundo (Coleção de arte no acervo dos palácios de São Paulo) (2007) e Igrejas barrocas do Brasil (2008). A obra de Jorge Caldeira, mestre em Sociologia e doutor em Ciência Política pela USP, contribuiu de forma significativa para a compreensão do período his- tórico estudado, resgatando, de vários ângulos, a saga de bandeirantes, índios e jesuítas, seus dilemas e contradições. Embora o cultivo da cana-de-açúcar fosse o alicerce da capitania de São Vicente nos primeiros tempos, não prosperou como em outras regiões da colônia, devido a obstáculos geográficos e climáticos repre- sentados pela Serra do Mar, “muralha” natural que impedia a expansão agrícola, incentivando a população a aventurar-se pelas matas em busca de riquezas. Con- quistando os campos de Piratininga a partir da fundação do Colégio de São Paulo em 1554, os povoadores paulistas construíram um núcleo todo particular no pa- norama nacional dos séculos XVI e XVII, estruturando sua economia do pla- Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 32 17/02/2014 11:44:02 FREI AGOSTINHO DE JESUS E AS TRADIÇÕES DA IMAGINÁRIA COLONIAL 33 nalto por meio das entradas e bandeiras que se embrenhavam pelo interior do continente em busca de riquezas minerais e apresamento indígena para utili- zação na agricultura de subsistência. Conflitos religiosos e sociais foram cons- tantes nessa parte renegada do país. Pelos isolados caminhos do interior, oratórios, capelas e ermidas reuniam os fiéis em raros espaços comunitários. A população era composta por cidadãos de várias etnias e nacionalidades: cristãos novos, índios, espanhóis, portugueses, degredados. Por meio do sincretismo, cultivaram afinidades devocionais, estimulando a produção imaginária de cunho erudito e popular. Depois da elevação de São Paulo à condição de vila (1560), seguida por Mogi das Cruzes (1611), o povoado de Santana de Parnaíba con- quista autonomia política em 1625, fato que permitiu deter as principais rotas comerciais que interligavam a capitania aos aldeamentos do lado castelhano, de Assunção a Potosí. Jorge Caldeira nos lembra que, sob a liderança dos sertanistas de Piratininga e Parnaíba, as entradas e bandeiras paulistas seguem rumo às lendas e riquezas de Potosí, importante centro minerador de prata no Peru. Ao longo desse caminho foram encontradas aldeias paraguaias, missões religiosas e artífices guaranis, compondo um território heterogêneo, marcado por grandes deslocamentos humanos e trocas culturais. Contexto político-social encontrado nos dois volumes de O banqueiro do sertão: Mulheres no caminho da prata e o res- gate da biografia do Padre Guilherme Pompeu de Almeida (2006), um dos maiores capitalistas do século XVII no Brasil. O pesquisador Silvio Zamboni foi o responsável pela criação da área de artes no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) em 1984, contribuindo para articular uma metodologia nesse campo do conheci- mento. Fundou e presidiu a Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (Anpap). Professor doutor formado em Artes pela ECA-USP, leciona no Instituto de Artes da Universidade de Brasília desde 1978. Seus ensinamentos auxiliaram-nos na organização das atividades, identificação de problemas, le- vantamento bibliográfico, hipóteses, observação, processo de trabalho, resultado e interpretação. Referencial encontrado no livro A pesquisa em Arte: um paralelo entre arte e ciência. O recorte deste livro exigiu um resgate da saga bandeirante no século XVII, período áureo da imaginária paulista construída sobre os fundamentos das or- dens religiosas, especialmente jesuítas, beneditinos, franciscanos e carmelitas. No decorrer das primeiras décadas de ocupação é possível que exemplares de imaginária arcaica ou mesmo medieval tenham alcançado os campos de Pirati- ninga, trabalhos de veneração flamenga, marfins de Goa ou Macau, vindas nas bagagens de colonos contratados por Martim Afonso para o fabrico do açúcar em São Vicente ou importadas da carreira das Índias. Os primeiros modelos eru- Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 33 17/02/2014 11:44:02 34 RAFAEL SCHUNK ditos puderam ser recompostos abundantemente pelas mãos de santeiros popu- lares com forte contribuição nativa, mestiça ou hispânica, demonstrando traços regionais diferenciados dos demais existentes na colônia. As esculturas dessa época difundiram várias tendências estilísticas, contendo referências orientais, gótico-renascentistas, maneiristas e barrocas, caracterizando heterogeneidade, fusão de um mundo miscigenado e espartano construído mediante relações co- merciais com a América espanhola, garimpo e tráfico indígena. À medida que o movimento bandeirista se expandia pelo oeste em direção ao centro do continente, novos aldeamentos foram prosperando entre o Alto e o Médio Tietê, rotas de velhos caminhos peabirus. A partir do remanso de Porto Feliz, as monções partiam rumo ao desconhecido. Desciam a bacia do rio Paraná até as reduções do Iguaçu. Conflitos de ordem moral, religiosa e econômica entre padres inacianos e bandeirantes foram elementos constantes nessa efervescente região do país. Com o aumento da população e diversificação da economia, são capturados e expedidos escravos guaranis das missões paraguaias e região do Guairá para as fazendas paulistas e nordestinas. Esse povo contribuiu ativa- mente na construção da complexa cultura seiscentista. Dos muitos migrantes, não faltaram entalhadores e carpinteiros nativos qualificados nas oficinas je- suítas castelhanas e que participaram na edificação dos primeiros altares de cunho nacional, citados pelo arquiteto Lúcio Costa e o professor Carlos Lemos como autênticas joias guardadas no interior do estado de São Paulo. Esse período de grandes deslocamentos populacionais coincide com o florescimento de retá- bulos maneiristas-platerescos no planalto paulista, talha que emoldura as princi- pais imagens da produção de frei Agostinho de Jesus e seus discípulos, a exemplo do Mosteiro de Parnaíba, da Capela do Voturuna e do Sítio de Santo Antônio, arte síntese na confluência do mundo luso-espanhol, tupi-guarani, inaciano e beneditino. Reconhecida essa autêntica produção vernacular, delimitamos os séculos XVI e XVII como o período de estudos das primeiras imagens brasileiras e fa- remos um percurso que se inicia em São Vicente, passando pelo Recôncavo Baiano, litoral fluminense e findando-se nos desdobramentos da arte sacra no planalto paulista; caminhos percorridos por nossos religiosos na árdua missão edificadora da fé. A arte desenvolvida nos conventos foi aos poucos multiplicada nos meandros da devoção bandeirista. O artífice conventual detinha um perfil erudito, centrado nos conheci- mentos da perspectiva e representação formal, cânones que atendiam exigências rigorosas das ordens recém-instaladas. Os escultores religiosos participaram das primeiras encomendas retabulares, unindo devoção e técnica, postura que tran- sitava entre questionamentos temporais e estilísticos inerentes ao período. Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 34 17/02/2014 11:44:02 FREI AGOSTINHO DE JESUS E AS TRADIÇÕES DA IMAGINÁRIA COLONIAL 35 Numerosos santeiros permaneceram séculos no anonimato por não dei- xarem assinaturas em seus trabalhos, sinais de um respeito devocional que trans- cendia o orgulho pessoal do artista. No processo de identificação autoral, utilizaremos o método de atribuição desenvolvido em fins do século XIX pelo pesquisador Giovanni Morelli; analisando criteriosamente soluções estilísticas, tais como traços físicos, panejamentos, técnicas de feitura e policromia, reconhe- cendo soluções e particularidades na catalogação dos artistas. Por meio da veneração aos santos foram estabelecidas relações de cunho afetivo, envolvendo os fiéis em uma atmosfera de introspecção e penitência. Criaram-se cerimoniais, romarias, danças, cânticos, comidas, ampliando o ca- lendário de festas, enriquecendo o extenso cardápio folclórico e estimulando as relações sociais, que perpetuaram, por gerações, a devoção aos ícones sagrados. As principais características dessa imaginária conventual e bandeirista são: • postura hierática, panejamento contido e predominância frontal; • esculturas fixadas em peanha com base poligonal, facetada, oval, retangular ou ornamentada por volutas, flores, nuvens e anjos; • simplificação pictórica e detalhes em ouro, seguindo as orientações da repre- sentação iconográfica de cada santo; • encontráveis em barro cozido, ressequido, madeiras cítricas, cedros e lenhos extraídos da Mata Atlântica, domínio florestal que abrangia parte da costa colonial e o planalto paulista; • peças em terracota apresentam orifício cônico interno que vai da base à me- tade da escultura e perfurações que auxiliavam na uniformidade do cozi- mento. A condição instável, economia de guerra, carência de homens e alimentos foram inquietações frequentes na história da capitania de São Vicente dos séculos XVI e XVII. Situação apenas amenizada pela audácia do bandeirante embre- nhado nas monções em busca de ouro, prata e braço escravo. No ambiente serta- nista, a cobiça dividia espaço com questões espirituais. Capelas, oratórios e imagens foram elementos constantes nas velhas moradas caboclas, sobressaindo- -se a criatividade e o improviso. Presente na herança utilitária indígena e na tradição escultórica europeia, o barro tornou-se símbolo de integração cultural, definindo a face da arte no es- tado de São Paulo, síntese de povos em constante transformação. Em decor- rência, esse território foi um dos que mais produziu imaginária em terracota no país; legado dos primórdios da vida nativa, experimentações de frei Agostinho de Jesus e seus sucessores até princípios do século XX. Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 35 17/02/2014 11:44:02 36 RAFAEL SCHUNK Acreditamos que as imagens maneiristas produzidas no planalto paulista sob regras conventuais estabelecidas por frei Agostinho da Piedade, Agostinho de Jesus e o Mestre de Angra dos Reis, nos remetem a conhecimentos que extra- polam o caráter sagrado, estético ou histórico, formando uma autêntica escola de tradições que construíram a identidade brasileira, acompanhando a expansão do país nos meandros da colonização. Compreendendo as imagens antigas, é pos- sível encontrar referências étnicas, composições inusitadas, contribuições cultu- rais, usos, costumes de um país antigo e em especial do universo bandeirante. Neste percurso reflexivo e perante os argumentos citados anteriormente, formulamos as seguintes indagações: • O que poderíamos esperar da São Paulo colonial, quando muitos, por gera- ções, apenas reverenciaram as maravilhas barrocas do Nordeste açucareiro e de Minas Gerais? • Sob quais circunstâncias o diálogo travado entre a imaginária conventual de- senvolvida na Bahia e as complexas experiências articuladas em terras pau- listas construíram uma legítima arte brasileira? Diante de vários dilemas históricos e para justificar nossos questionamentos, testemunhamos a carência de documentos, fontes primárias e artigos sobre as origens da formação cultural no Brasil. Ante o contexto, acreditamos na rele- vância desta pesquisa científica como instrumento de resgate das raízes nacio- nais, destacando por meio da arte sacra produzida em Salvador e São Paulo tradições que revelam aspectos da vida cultural, religiosa e política dessas antigas terras, sementes do nosso país. O fato de encontrarmos poucas pesquisas dedicadas a essa temática nos des- pertou o interesse em compreender o período maneirista-barroco sob diferentes aspectos: questões sagradas, profanas e cotidianas que permeiam a formação es- tética brasileira. Ficou evidente a necessidade de uma investigação sistemática com o objetivo de documentar as articulações que propiciaram, em território paulista, o florescimento de um conjunto ímpar de esculturas sagradas. O objeto central deste livro é o resgate da arte sacra como elemento gênese na formação da cultura colonial na América portuguesa. Para sustentação dessa teoria, baseamo-nos em três fatos históricos relevantes: o pioneirismo da socie- dade paulista, fruto da miscigenação e encontro de vários povos prenunciando um país mestiço e sincrético no alvorecer do século XVII; a obra de frei Agos- tinho de Jesus (c.1600/1610-1661), considerado pelos historiadores o primeiro grande artista brasileiro; e a chegada desse mestre ao mosteiro dos beneditinos de Santana de Parnaíba (SP), onde irá produzir suas esculturas mais relevantes, Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 36 17/02/2014 11:44:02 FREI AGOSTINHO DE JESUS E AS TRADIÇÕES DA IMAGINÁRIA COLONIAL 37 deixando como legado as primeiras manifestações de imaginária brasileira docu- mentadas na história da colonização. A atuação desse mestre no mosteiro de Parnaíba (SP) marca o início da es- cultura brasileira, um prelúdio da arte nacional, pois nessa localidade, distante das influências externas do barroco português vigente no litoral, irá idealizar uma escultura com características próprias, produzindo obras-primas, símbolo de integração entre povos. Santana de Parnaíba revelou-se um grande centro cultural do Brasil antigo a partir de meados do século XVII, favorecendo o surgimento da imaginária na- cional. Tornou-se vanguarda por agregar diferentes fusões de culturas, síntese de civilizações, anunciando a sociedade mestiça, criativa, inventiva, sertaneja e ori- ginal que os bandeirantes irão semear, posteriormente, no barroco do Centro- -Oeste e mineiro, um sentido de nação preconizado que só se afirmará após a independência do país. As imagens executadas por frei Agostinho de Jesus e dis- cípulos nessa localidade serão precursoras de uma das mais antigas escolas de escultura religiosa remanescentes no país. A partir desse evento histórico serão formuladas as bases teóricas para a identificação de escolas culturais paulistas e que convencionamos batizar de Es- cola Cultural do Vale do Tietê (região entre o Alto e o Médio rio Tietê), de in- fluências predominantemente eruditas, fruto da atuação de grandes artistas conventuais e da transmissão de conhecimentos empíricos a numerosos segui- dores, influenciando a arte nos primeiros arraiais do Centro-Oeste brasileiro; e a Escola Cultural do Vale do Paraíba, região que abrange as serras do Mar e da Mantiqueira, entre São Paulo e Rio de Janeiro, de tradições predominantemente populares. Os bandeirantes dessa região, principalmente oriundos de Taubaté (SP), serão pioneiros na edificação do barroco mineiro, experiências transpor- tadas do interior paulista para as Serras Gerais. Sob a singela postura dos santos paulistas encontramos uma autêntica repre- sentação estética mameluca, lições derivadas dos mosteiros e abrigadas nas ve- lhas choupanas do interior. Arte cotidiana, mestiça, hierática, espartana, às vezes sincrética, formal ou rústica, remanescente de épocas remotas, mas que atendia plenamente as necessidades devocionais nos primórdios da ocupação. São teste- munhos silenciosos de nossa história. O despojamento da produção sacra nos primeiros tempos do Brasil Colônia caracterizou uma estética única na represen- tação artística do país. Mediante as considerações apontadas, conduzimos a pes- quisa para um diálogo reflexivo, resgatando do passado a significância da arte maneirista surgida em São Paulo como fundadora de numerosas manifestações culturais transportadas para o sertão brasileiro. Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 37 17/02/2014 11:44:02 38 RAFAEL SCHUNK Os pensamentos de relevantes autores internacionais, tais como Heinrich Wölfflin, José Antônio Maravall e Arnold Hauser contribuíram para a compo- sição dos conceitos gerais sobre o movimento barroco. O material bibliográfico brasileiro que fundamenta as bases desta pesquisa está contido em livros, artigos e documentos procedentes dos estados da Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, sobretudo em manuscritos de arquivos históricos e trabalhos de renomados autores nacionais. Esta obra representa um desdobramento dos pensamentos e investigações de pesquisadores que dedicaram suas vidas acadêmicas à divulgação do período sociocultural estudado; ensinamentos de autores como Affonso de Escragnolle Taunay, Sérgio Buarque de Holanda, d. Clemente Maria da Silva-Nigra, Eduardo Etzel, Aracy Amaral, Darcy Ribeiro, Carlos A. C. Lemos, Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, Percival Tirapeli e Jorge Caldeira, entre muitos que contribuíram com seus pensamentos para a compreensão de nossa socie- dade, do movimento barroco e bandeirista. Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 38 17/02/2014 11:44:02 1 O ESTILO BARROCO CONSTRUINDO O PRIMEIRO PERÍODO DA ARTE COLONIAL BRASILEIRA (1560-1661) A herança barroca No limiar do século XV, a humanidade foi construindo gradativamente um novo período estético e tecnológico. Após as cruzadas, a Europa entrou em con- tato com os territórios asiáticos e suas riquezas, incluindo a seda, o papel, tapeça- rias, perfumes, cerâmicas e especiarias (pimenta, açafrão, noz-moscada, erva-doce, menta e cravo), apreciadas na conservação e tempero de alimentos, fermentação de bebidas e preparo de medicamentos comercializados em cidades italianas como Veneza ou Gênova, que prosperavam por meio das relações mercantis e navais estabelecidas no Mediterrâneo. A invasão de Constantinopla pelos turcos, antiga capital do Império Bizantino, em 1453, finaliza simbolicamente as úl- timas tradições remanescentes do passado romano e da Antiguidade sobrevi- ventes até o início da era moderna, desestruturando o comércio cristão. Por meio das navegações, o homem ocidental expandiu suas fronteiras co- merciais e culturais. Em busca de novas rotas para o Oriente, via mar, espanhóis e portugueses encontraram sociedades sofisticadas e nômades, uma natureza exuberante, tropical, gerando conflitos que culminaram na conquista dos terri- tórios americanos e na exploração de suas riquezas. No meio desse caminho es- tava o Brasil e o florescimento da cultura barroca no mundo.1 1. Etimologicamente, o termo “barroco” designa uma pérola irregular, imperfeita, procedente das ilhas Molucas. O termo é sugestivo, pois nos remete a algo valioso e deformado. E é isso que a escola artística e literária propôs: fundir elementos contraditórios, respeitando os ideais renas- centistas de prazer, valor da razão e da beleza, integrando uma espiritualidade medieval, desta- Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 39 17/02/2014 11:44:02 40 RAFAEL SCHUNK As crônicas de navegadores, missionários e comerciantes sobre o caminho das Índias e sua difícil rota atlântica abriram possibilidades a fantasias e exo- tismos, como o mito bíblico da terra prometida ou do eldorado americano, esti- mulados no fervor cultural que o Renascimento renovou e que se expandiu no transcorrer do maneirismo. Se a cultura renascentista representou, no primeiro momento, a base técnica, racional e metódica para as explorações dos territórios de além-mar, a sua efetiva conquista e fixação por meio do Estado e Igreja deu-se pelo espírito do período barroco. Na Europa, a sociedade em que irá formar-se o sentimento barroco é mar- cada por muitas instabilidades sociais. O processo de urbanização, intensificado na época do Renascimento, provocou despovoamento das áreas rurais, com con- sequências sentidas na queda da produção agrícola e encarecimento do custo de vida. Apesar dos avanços da ciência e da tecnologia, persistia a ausência de con- dições de higiene nas cidades em desenvolvimento. O barroco compõe uma cul- tura predominantemente urbana; mais que um estilo, será conceito de período, multiplicando e integrando ações. Nas cidades barrocas, ergueram-se templos, academias, palácios, arcos de triunfo, catafalcos para cerimônias fúnebres; organizavam-se deslumbrantes festas, espetáculos pirotécnicos, cortejos monumentais; circulavam folhetos, li- belos, pasquins, ideias e conspirações contra o poder ou que o poder inspirava (Maravall, 1997, p.215). No campo, a miséria provocava sucessões de pestes e epidemias, crescendo entre as populações camponesas e menos cultas um apelo sempre maior às seitas secretas. A peste e a magia caminhavam com a cabala e a alquimia, vencendo até os grossos muros dos conventos, onde padres cobiçavam a obtenção de ouro. O clima de caos e a profunda inquietação social serão bem captados pelos pintores Hieronymus Bosch (c.1450-1516) e Pieter Bruegel (c.1525-1569). Foi justamente essa situação socioeconômica instável que serviu de cenário para Martinho Lutero (c.1483-1546), em 1517, iniciar sua luta contra o papado; renovação espiritual defendida por João Calvino (1509-1564) e seus seguidores. A reforma protestante preconizava um retorno às fontes do cristianismo primi- tivo, exaltando a Bíblia e a comunhão, em contraponto às opiniões dos doutores, cando o caráter passageiro da existência. Arte de contrastes, o pormenor se une ao grandioso, e, nele, assuntos religiosos mesclam-se a pensamentos políticos e humanos. A ânsia de aproveitar a vida se curva perante o caráter efêmero da existência. O barroco chegará, assim, a formulações extremas: o belo e o feio, o cômico e o trágico e suas antíteses – teatralidades, alegorias e expres- sões que o desespero do homem no período viverá em toda a sua intensidade, resultado das preocupações psicológicas desse momento. Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 40 17/02/2014 11:44:02 FREI AGOSTINHO DE JESUS E AS TRADIÇÕES DA IMAGINÁRIA COLONIAL 41 e à missa, lutando contra a intercessão de santos e mártires (estabelecendo na arquitetura um despojamento de ornamentos e imagens); subjacentes a isso, as populações à margem do poder, nas quais os ideais de Lutero ressoaram ampla- mente, reivindicavam melhores condições de vida. Em oposição às ideias dos protestantes surge a Contrarreforma, elemento importante na gênese social do barroco. Estabelecendo um plano de ação capaz de conter os avanços reformistas na Europa e, ao mesmo tempo, estabelecer normas de atuação do catolicismo nos territórios virgens revelados pela aventura marítima, foi realizado, entre 1545 e 1563, o Concílio de Trento. As normas esta- belecidas pela Igreja Católica sediada em Roma tiveram larga aplicação e pro- funda influência na arte religiosa, servindo como instrumentos da propaganda cristã, controlada sob as normas da Inquisição. Forma-se a Companhia de Jesus (Societas Iesu – 1540), verdadeiro exército religioso, na qual se depositaram as esperanças na conquista de novos cristãos. Seu primeiro geral foi um espanhol, Inácio de Loyola (1491-1556). A principal igreja da Companhia de Jesus em Roma, Il Gesù (iniciada em 1568), projetada pelos arquitetos Vignola e Giacomo della Porta, torna-se o arquétipo da arquitetura religiosa barroca, resumindo os ideais de fervor cristão, esplendor retórico, energia dinâmica e habilidade ilusio- nista. Os jesuítas posicionaram-se na linha de frente para recuperar o projeto cultural humanista católico, numa época em que o poder estava ameaçado pelo avanço luterano. Instrumento da Contrarreforma, o movimento barroco apresenta um reper- tório de contradições dominantes entre o maneirismo e o rococó, presentes na Europa aproximadamente do final do século XVI ao final do século XVIII, es- tendendo-se nas colônias e países da América Latina até as primeiras décadas do século XIX. Do estilo maneirista, o barroco herdou o movimento e a explosiva emoção, e, do Renascimento, a solidez e a grandeza, fundindo as duas influências em um conjunto novo e dinâmico. A esses elementos somaram-se uma espiritualidade de caráter medieval. Heinrich Wölfflin, historiador e esteta alemão, reconheceu o período como um movimento artístico a partir do final do século XIX. Em seus precursores estudos sobre a essência barroca, o pesquisador assinala: “quer do- minar-nos com o poder da emoção de modo imediato e avassalador. O que traz não é uma animação regular, mas excitação, êxtase, ebriedade. Visa produzir a impressão do momento: […] é um mundo que gostaríamos de jamais deixar” (Wölfflin, 1989, p.48). Na pintura, dois grandes artistas italianos lideraram a tradição barroca: Mi- guelangelo Merisi Caravaggio (1573-1610) e Annibale Carracci (1560-1609). Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 41 17/02/2014 11:44:02 42 RAFAEL SCHUNK Na arquitetura e escultura, as figuras mais destacadas na criação do barroco ro- mano foram Carlo Maderno (1556-1629) e Gianlorenzo Bernini (1598-1680), imprimindo em suas obras intenso movimento, resultando grande impacto emo- cional. Um dos exemplos mais conhecidos é O êxtase de santa Teresa (1645), de Bernini; ao envolver o mármore num impulso religioso, espiritualizou a matéria, imprimindo na pedra animação e movimento, de monumental beleza mística. A partir de Roma, o barroco firmou raízes mais fortes em outros países cató- licos, como Alemanha, França, Espanha, Portugal e suas colônias americanas, vinculando-se na promoção dos estados absolutistas. No interior das igrejas e dos palácios, formas arquitetônicas e decorativas duplicaram-se entre paredes e abóbadas; as tramas fictícias das artes aplicadas, pintadas ou esculpidas fun- diram-se com elementos arquitetônicos; estrutura e forma se integraram para provocar instabilidade e ilusão, do particular ao infinito, efeitos que envolvem o espectador, incentivando o caminhar e a descoberta. Em várias cidades da Eu- ropa central, antigas igrejas medievais são reformadas, recebendo uma profusão decorativa que não modifica, de modo geral, a estrutura dos edifícios, movimen- tando-os em seus espaços internos. A partir das descobertas de Nicolau Copérnico (1473-1543), considerado o fundador da astronomia moderna, somadas as experiências de Galileu Galilei (1564-1642), uma nova concepção científica mudou a visão do homem sobre o mundo, natureza e arte, despertando uma feroz oposição religiosa que se apoiava na tradição ptolomaica da Terra antropocêntrica. A teoria da Terra se mover ao redor do Sol, ao invés do Universo se mover em torno de nosso planeta, como se supunha, mudou o antigo lugar destinado ao Homem no Universo pela Divina Providência. A partir desses conceitos, a Terra não era mais o centro do Uni- verso, nem o Homem o começo e o fim do propósito da Criação. O temor de um juízo universal é excedido pelo frisson métaphysique, pela angústia dos silêncios eternos dos espaços infinitos de Pascal, pela imensurável continuidade do cosmos. A arte do barroco está cercada desse horror, como um organismo vivo e integrado, conectado ao Universo, partes que se revelam como corpos celestes, uma continuidade insuperável, infinita. Os escorços e diagonais impetuosas, efeitos de luz e sombra exagerados exprimem essa ideia do infinito inquietante, inextinguível, avassalador (Hauser, 1982, p.564, 566). Considerado um dos primeiros movimentos internacionais, o barroco sofreu modificações em cada país que aportou, encontrando gostos, panoramas e reali- dades diversificadas, mesclando tradições locais na conversão do gentio. Em al- gumas regiões tornou-se mais extravagante (como na Espanha, Portugal e colônias americanas), desenvolvendo um estilo luxuriante de decoração arquite- Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 42 17/02/2014 11:44:02 FREI AGOSTINHO DE JESUS E AS TRADIÇÕES DA IMAGINÁRIA COLONIAL 43 tônica chamado de churrigueresco,2 e na pintura de grotesco;3 em outras locali- dades foi atenuado por gostos mais conservadores e despojados. Na França, o barroco foi utilizado na promoção do Estado absolutista em vez da Igreja. No reinado de Luís XIV, a arte teve papel fundamental na propa- ganda do poder monárquico. Charles Lebrun, conselheiro em assuntos artís- ticos, conduziu um grandioso exército de artistas e decoradores na concepção do Palácio de Versalhes. A união de paisagismo, arquitetura, escultura, pintura e decoração representam uma das mais significativas fusões do período, criando um conjunto de beleza monumental. Dentre as diversas ordens religiosas, os jesuítas foram os primeiros a intensi- ficar suas ações no Oriente, África e América Latina, caracterizando sua pro- dução barroca pela sobriedade inicial e adaptando-se a cada situação regional. Depois de instalada a Igreja nos novos territórios, passada a primeira fase de ca- tequese, é que a cultura se manifestou em formas variadas, uma espiritualidade de júbilo ou gosto pela suntuosidade. No Oriente, por exemplo, o estilo barroco empregado pelos jesuítas encon- trou séculos de história, sociedades e religiões altamente sofisticadas, gerando conflitos e resistências que culminaram em martírios de missionários, como o assassinato na China de Francisco Xavier (1506-1552), religioso que ficou co- nhecido como Apóstolo das Índias. Por outro lado, os inacianos encontraram uma mão de obra qualificada para sua empreitada no além-mar. Como resultado, sur- giram os famosos marfins de Goa e Macau, a imaginária no Damão, Diu e do arquipélago das Filipinas. Santos com vestes indianas, posturas budistas, rostos e olhares orientais exportados para todo o mundo cristão; elementos que serão uma tipologia presente no universo barroco americano, adotado como modelo exótico, padrão a ser seguido. Subsistem em território goês, na Índia, igrejas je- suíticas portuguesas contendo altares e anjos atlantes inspirados nos templos e deuses hindus daquela região, sinais da necessidade de adaptação da arte sacra para uma maior aceitação. O arquiteto e historiador prof. dr. Carlos Lemos fez um balanço preciso da influência oriental na formação da arte americana colonial em seus primórdios, inclusive no Brasil: “[…] o inevitável aconteceu: a icono- 2. Estilo arquitetônico formado na Espanha do século XVI e transplantado principalmente para o México e o Peru, uniu formas goticistas a elementos barrocos e platerescos. Tributários desse padrão foram as tradições mouriscas vivenciadas na península Ibérica e as influências da cul- tura pré-colombiana nas Américas com seu universo mítico-ornamental. 3. Decoração pictórica entre o Renascimento tardio e o barroco é formado por elementos fitomór- ficos e fantásticos entrelaçados. O nome provém de alguns afrescos remanescentes das ruínas das termas de Tito em Roma, admirados como grutas. Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 43 17/02/2014 11:44:02 44 RAFAEL SCHUNK grafia budista e até soluções laicas foram emprestadas à imaginária católica. Principalmente o Menino Jesus foi representado com a postura deitada ou sen- tada de Buda” (Lemos, 1999, p.125). Coexistem numerosas imagens de Nossa Senhora vestida com o sari indiano, representada com cabelos partidos ao meio, deixando as orelhas proeminentes. Essa imaginária oriental chegou ao Brasil ins- pirando os primeiros artistas coloniais que absorviam uma estética reinventada fora da península Ibérica: “[…] foi o início da globalização das influências artís- ticas” (idem, p.125). Dentro desse contexto, muitas regiões do mundo tornaram-se Estados. Arti- culadas sob a égide barroca, colonial e mercantil, aldeias e cidades, reconstruídas ou idealizadas, cruzaram informações, recebendo conhecimentos de diversos povos, que acabaram determinando a identidade de vários países. Devemos ressaltar que, mais do que em qualquer outro movimento artís- tico, no período barroco coexistiram tendências e correntes menos e mais avan- çadas, tradicionalismos e vanguardas. O movimento buscou a novidade revendo o passado, um amor pelo infinito, apelando para o instinto, sentidos e fantasias. Uma diversidade de conflitos irá resultar em vertentes nacionalizadas. No solo brasileiro, o estilo barroco recebeu contribuições de elementos goticistas, medie- valismos, orientalismos e chinesices. Essas correntes híbridas vão percorrer vá- rios períodos da história da arte, transformando-se em expressão. Os padrões iniciais introduzidos pelas ordens religiosas serão interpretados segundo uma realidade local, popular ou erudita, do particular ao universal, formando ori- ginais recriações de autêntico sabor sincrético, autóctone, grande gênese de tra- dições. As primeiras manifestações de arte luso-brasileiras O primeiro século do Brasil Colônia é um dos períodos mais incógnitos da história oficial, pois foram poucos os vestígios mantidos até a atualidade. Nume- rosos testemunhos do início da colonização brasileira se perderam ao longo dos tempos por conter um caráter provisório, pelo desgaste ou ausência de documen- tação. As mais antigas lembranças materiais compreendem um dos marcos pa- drões da posse portuguesa, hoje cravado na praça da Cidade Alta em Porto Seguro (BA) e a Cruz Cabrália,4 uma das peças de ferro que Pedro Álvares 4. A Cruz de Cabrália foi um dos primeiros grandes achados do antiquário paulista José Claudino da Nóbrega (1909-1995), peça posteriormente adquirida pelo colecionador Hermínio Lunar- delli e doada ao Museu Histórico de Bertioga (SP). Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 44 17/02/2014 11:44:03 FREI AGOSTINHO DE JESUS E AS TRADIÇÕES DA IMAGINÁRIA COLONIAL 45 Cabra l trouxe ao país, conservada no Museu de Bertioga, litoral paulista. É co- nhecida a vinda de uma imagem em pedra de Nossa Senhora da Esperança acom- panhando a esquadra dos desbravadores em 1500, medindo 1,10m de altura e atualmente exposta na Quinta de Belmonte, Portugal. As primeiras ermidas pro- visórias foram derrubadas ou reformadas, altares mudaram de lugar. As primeiras imagens trazidas nas expedições eram de boa qualidade, feitas de materiais diversificados, marcando uma sobriedade fisionômica característica da tradição lusitana. Com os primeiros colonos portugueses, aportam no Brasil as primeiras imagens sacras, processo natural e apoiado no fervor religioso dos lusos, cujas tradições medievais estão entrelaçadas na formação daquele país (Oliveira, 2000). No território batizado, a princípio, como Ilha de Vera Cruz e depois Terra de Santa Cruz, os estrangeiros observaram os costumes nativos. Perceberam que os índios extraíam tinta vermelha de uma árvore com cerne dura, a Caesalpinia echinata, conhecida como pau-brasil, nome que batiza nosso país, originando a primeira atividade econômica de que se tem notícia. No período de 1503 a 1535, a extração desse material gerou um comércio expressivo, inclusive cobiçado por corsários franceses, contrabandistas que retiravam a madeira sem pagar tributos à Coroa portuguesa. As constantes invasões e a real necessidade de ocupação do território con- quistado obrigaram a metrópole a dividi-lo em extensas áreas, denominadas ca- pitanias hereditárias, delegando sua exploração a nobres portugueses. Por meio do “sistema das sesmarias”, o Estado acelerava a colonização, permitindo aos colonos o cultivo das terras, embora não detivessem direitos legais sobre elas. Doada por d. João III, rei de Portugal, a Martim Afonso de Sousa, em 1532, São Vicente foi uma das primeiras capitanias a receber esse incentivo. Embora o solo fosse impróprio para o cultivo da cana-de-açúcar, em 1533 foi construído nessa região o Engenho de São Jorge dos Erasmos, ponto inicial da indústria açucareira no Brasil. Depois deslocaram a produção para o Nordeste, na capitania de Pernambuco, governada pelo donatário Duarte Coelho Pereira em Olinda. Nesse processo histórico, aparecem os primeiros missionários na capitania vi- centina com a missão de converter os nativos. Traziam consigo imagens sacras com características maneiristas, utilizadas na catequese e que exaltavam perso- nalidades sagradas (Alcântara, 2008, p.33-4). Em 1549, a administração da colônia será centralizada no governo-geral de Tomé de Sousa, instituindo a primeira capital do país em Salvador (BA). De acordo com a tradição, nos idos de 1550, o rei D. João III ofertou uma escultura de Nossa Senhora das Maravilhas à cidade do São Salvador, estátua posteriormente revestida de prata e venerada na Antiga Sé Primacial do Brasil, Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 45 17/02/2014 11:44:03 46 RAFAEL SCHUNK acervo da Catedral Basílica, atualmente em exposição permanente no Museu de Arte Sacra da Universidade Federal da Bahia (Dutzmann, 1990, p.7). Figura 1 – Diógenes Rebouças: Portada nobre da Sé Primacial do Brasil (antiga Sé da Bahia). Igreja demolida no século XX. Pintura a óleo sobre tela, 63 × 80 cm. Acervo do Mosteiro de São Bento, Salvador (BA). Foto: Rafael Schunk, 2010. Figuras 2 e 3 – Par de fragmentos da antiga Sé da Bahia. Século XVI. Acervo MAS – UFBA, Salvador (BA). Fotos: Rafael Schunk, 2010. Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 46 17/02/2014 11:44:03 FREI AGOSTINHO DE JESUS E AS TRADIÇÕES DA IMAGINÁRIA COLONIAL 47 Figura 4 – Nossa Senhora das Maravilhas venerada na antiga Sé Primacial do Brasil. Século XVI. Peça de madeira revestida em prata. Imagem salva da invasão holandesa em 1624 pelo bispo d. Marcos Teixeira, que a levou para a Vila de Abrantes, quartel-general da resistência. Acervo MAS – UFBA, Salvador (BA). Foto: Rafael Schunk, 2010. Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 47 17/02/2014 11:44:04 48 RAFAEL SCHUNK Figura 5 – Mesa de altar, sacrário e tocheiros em prata da antiga Sé da Bahia, demolida. Acervo Museu de Arte Sacra – UFBA, Salvador (BA). Foto: Rafael Schunk, 2010. Da antiga Sé, outrora erguida na Cidade Alta e impiedosamente demolida no século XX, chegaram aos nossos dias capitéis, colunatas, anjos, cariátides, fragmentos entalhados, além de um altar em prata da capela do Santíssimo Sa- cramento anexa à velha Catedral, mesa de altar, banqueta com seis castiçais e quatro florões, sacrário, tocheiros ornados por leões, lampadário, turíbulo, pú- caro, coroas e resplendores de santos, todos prateados ao gosto maneirista local.5 5. O maneirismo representa um período de transformações entre o Renascimento e o barroco. O nome foi empregado por alguns historiadores europeus de forma pejorativa e inadequada, desig- nando manifestações artísticas de 1520 até o princípio do século XVII, associando a palavra a crise ou decadência na época renascentista, mau gosto ou excesso. Esse padrão era visto com desconfiança pela crítica de arte até o começo do século XX, considerando esse movimento uma falha de compreensão por parte dos artistas daquela época sobre a obra de grandes mestres como Leonardo da Vinci, Rafael ou Michelangelo, imitação “sem alma”. Diversos críticos consideram o maneirismo uma oposição ao classicismo e uma tendência que se manteve até o desenvolvi- mento do barroco marcando um novo ponto de vista da Igreja Católica após a Contrarreforma. Alguns historiadores veem as tradições maneiristas como uma transição entre o Renascimento e o barroco, enquanto outros preferem adotá-lo como um estilo próprio. Nessa época, os pintores, escultores ou arquitetos passaram a criar uma arte com mais movimento, sinuosidade e intro- dução de elementos abstratos, libertando-se da relação direta entre o tamanho da figura, sime- tria, proporção ou sua importância na obra; observa-se um rompimento da perspectiva, descarte de regularidade ou harmonia, ênfase nos efeitos emocionais, dramatização, subjetividade e deslocamento dos temas centrais da composição. Na arquitetura maneirista, os construtores Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 48 17/02/2014 11:44:06 FREI AGOSTINHO DE JESUS E AS TRADIÇÕES DA IMAGINÁRIA COLONIAL 49 No ano de 1558, desembarca no estado do Espírito Santo o eremita frei Pedro Palácios, carregando consigo a histórica imagem de Nossa Senhora da Penha, celebrado ícone cultuado pelo povo capixaba. priorizaram igrejas longitudinais, com espaços mais alongados do que largos. Naves escuras, contendo iluminação em ângulos indiretos criaram uma atmosfera singular, ornamentada por guirlandas de flores ou frutas. Balaústres compostos por figuras caprichosas, volutas, caracóis ou conchas vão povoando paredes e altares, anunciando o período subsequente. A arquitetura pro- fana recorre a essas técnicas, edificando palácios com elementos convexos, contraste entre luz e sombra sobre ambientes outrora disciplinados nos cânones renascentistas. Muito além de marcar uma transição entre períodos, o maneirismo expressou uma vontade de renovação social. Nesse sentido, percebe-se que as manifestações maneiristas são variadas, tornando complexa sua reunião em um único conceito ou parâmetro de comparação, pois em cada país seguiu cami- nhos diferentes, de acordo com a linha de pensamento do pintor e arquiteto italiano Giorgio Va- sari (1511-1574) – lembrado principalmente pelas suas realizações literárias –, que encontramos em Vida dos artistas, uma obra considerada das maiores referências sobre o Renascimento ita- liano. A opinião desse crítico de arte foi fundamental para o estudo maneirista, período artístico do qual participou e ajudou a popularizar, estabelecendo conceitos que sobrevivem até os dias atuais. Em consonância com seu pensamento, o maneirismo pode ser associado à maniera ou “maneira” (estilo) com que cada artista trabalha seus processos e procedimentos, a supremacia do caráter particular de cada autor, sinônimo de graça, leveza, sofisticação e elegância sob a forma, estilização e capricho nos detalhes, deixando uma marca individual que extrapolou as rí- gidas linhas dos tratados clássicos convencionados, rompimento da perspectiva e proporcionali- dade, uma libertação estilística. Esse movimento torna-se, por essa ótica, um desdobramento crítico do Renascimento, expressão de liberdade; uma das primeiras manifestações desvincu- ladas da tentativa de imitação da natureza. Com essa atmosfera de renovação, o maneirismo aporta no Brasil no início da ocupação e representa o primeiro momento da arte colonial, mani- festando-se segundo atuação das oficinas conventuais; não se restringiu à introdução de con- ceitos clássicos na terra conquistada, mas abraçou tradições estéticas de vários povos, um hibridismo que reviveu séculos de história da arte, presente nas tradições portuguesas, de in- tenso passado medieval e mourisco, referências orientais e encontrando na mão de obra indígena e nacional terreno fértil para o surgimento de formas particulares, distanciando-se de elementos europeus nos quais foram inspirados e despontando saborosas soluções nativas dos talentos re- gionais. Em nosso estudo, o maneirismo torna-se despido de sentidos pejorativos ou compara- ções com o chamado “alto Renascimento” e recorre a Vasari como uma representação da “maneira” de cada artista trabalhar sua obra, técnicas e referências, o valor do talento individual do ser humano no contexto histórico da região à qual pertence e sua contribuição na construção da arte nacional nos séculos XVI e XVII. Essa maneira particular de produzir uma imaginária cristã no Brasil aparece precocemente na antiga capitania de São Vicente a partir de 1560, data da elaboração das primeiras esculturas sacras em terracota; estendendo-se até 1661, período da morte de grandes artistas monásticos como frei Agostinho da Piedade e frei Agostinho de Jesus. Temos aproximadamente cem anos de fusões de estilos, desenvolvimento de escolas e trans- missões de conceitos a discípulos. Os artistas irão criar conforme referências culturais e ambien- tais regionais, não se prendendo a cânones europeus e se inspirando intensamente no universo americano, inventando uma maneira brasileira de interpretar o mundo, originalidade que abre caminho rumo às manifestações barrocas. Em nosso país, a cronologia da história da arte foi dife- rente da europeia, pois seguiu caminhos particulares, de acordo com as transformações sociais, econômicas e geográficas do território. Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 49 17/02/2014 11:44:06 50 RAFAEL SCHUNK Paralelamente à posse das terras no Nordeste do Brasil, a região da velha capitania de São Vicente começou a ser colonizada, agregando em seu território um dos conjuntos mais antigos da arte sacra produzida no país. Segundo o histo- riador padre Jaboatão, Martim Afonso de Sousa teria oficializado a fundação de São Vicente em 1532, tornando-se uma das primeiras cidades do continente americano colonial. Após o maremoto de 1542, a matriz da cidade foi transferida para um terreno mais elevado, no atual centro histórico, em 1559. Os estudos do prof. dr. Percival Tirapeli do Instituto de Artes da UNESP/SP nos revelaram os fragmentos vicentinos adquiridos pelo arquiteto e colecionador Georg Przy- rembel em 1922: “[…] retábulos colaterais da segunda matriz, dedicada a Nossa Senhora da Conceição (1559). Até o momento, os altares dos Santos Mártires (1564), na Sé de Salvador, Bahia, são considerados os mais antigos do Brasil. Assim o resgate deste capítulo dos primórdios da arte sacra paulista está apenas começando” (Tirapeli, 2003, p.90). Os fragmentos maneiristas em cedro da segunda Matriz de São Vicente, cha- mados Cordeiro de Deus, Volutas das Águias, Grifo, Sol, Trono da Imaculada e Cariátides índias, que sustentavam a mesa da comunhão, guardam a simbologia do culto mariano difundido pelos primeiros jesuítas. Integração entre cultura eu- ropeia e americana, sobreviveram a incêndios e reformas, situando-se entre as mais remotas obras de talha sacra do Novo Mundo.6 Com a vinda de Martim Afonso de Sousa e Brás Cubas à ilha de São Vicente em 1532, Luís de Góes recebeu um terreno, construindo capela em local ele- vado, que ficou conhecido como Outeiro de Santa Catarina, homenagem a sua esposa homônima e marco inicial da cidade de Santos. No Natal de 1591, a vila foi atacada pelo corsário inglês protestante Thomas Cavendish, instalando-se na residência dos jesuítas, saqueando o povoado e violando a ermida. A imagem de santa Catarina dessa capela, elaborada aproximadamente em 1540, foi lançada ao mar, permanecendo cerca de 70 anos submersa: “anos mais tarde, os escravos do Colégio São Miguel (hoje prédio da Alfândega) pescaram – fato considerado milagroso – a imagem de santa Catarina que permaneceu como estava. Porém, 6. Para certificar a procedência dos fragmentos vicentinos, o pesquisador Percival Tirapeli reuniu os mais antigos membros do Instituto Histórico e Geográfico de São Vicente, que confirmaram a veracidade das talhas da coleção de Georg Przyrembel. Após ser destruída pelo maremoto de 1542, a segunda igreja, sob a invocação do “Nome de Jesus”, foi iniciada em 1551 e concluída em 1559, tornando-se naquela época “a maior igreja do Brasil”. Depois de se degradar, em 1756 os retábulos foram desmontados para reforma e abrigados na fronteiriça ermida de Santo Antônio, já demolida. Em 1759, a nova matriz foi inaugurada, retornando o altar-mor, mas os primitivos co- laterais foram substituídos e guardados em algum vão da nova igreja. Przyrembel os encontrou no sótão do campanário da Matriz de São Vicente em 1929 (Tirapeli, 2003, p.368). Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 50 17/02/2014 11:44:06 FREI AGOSTINHO DE JESUS E AS TRADIÇÕES DA IMAGINÁRIA COLONIAL 51 um de seus símbolos, a roda dentada do martírio, havia se perdido” (Tirapeli, 2003, p.106). Atualmente pode ser admirada no Mosteiro de São Bento (Museu de Arte Sacra de Santos) como a mais antiga imagem remanescente da costa li- torânea do estado de São Paulo. O monte da ermida de Santa Catarina foi des- bastado entre os séculos XVIII e XIX, com o desenvolvimento da região portuária. Entre duas rochas remanescentes, o médico João Éboli construiu uma casa acastelada por volta de 1880, hoje sede da Fundação Arquivo e Me- mória de Santos. Algumas poucas imagens quinhentistas resistiram ao tempo, a exemplo da Nossa Senhora da Luz, venerada no MAS em São Paulo, e da Nossa Senhora da Escada, de Barueri, compondo os primeiros exemplares de imaginária portu- guesa em território paulista. Figura 6 – Fachada da segunda Matriz de São Vicente (SP), erigida em 1559. Foto: Rafael Schunk, 2010. Figura 7 – Altar maneirista da Matriz de São Vicente (SP). Século XVI-XVII. Foto: Rafael Schunk, 2010. Figura 8 – Detalhe do altar de São Vicente Mártir, restaurado parcialmente após um incêndio. Foto: Rafael Schunk, 2010. Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 51 17/02/2014 11:44:07 52 RAFAEL SCHUNK Figuras 9 e 10 – Conjunto de imagens quinhentistas: Nossa Senhora da Escada. Século XVI. Aldeia Jesuítica de Barueri (SP). Nossa Senhora da Luz. Século XVI. Acervo MAS, São Paulo (SP). Terracotas policromadas. Fotos: Rafael Schunk, 2011. Segundo antigas tradições do litoral paulista e manuscritos conservados no museu franciscano da cidade do Rio de Janeiro, em 1560, aproximadamente, o mestre ceramista português João Gonçalo Fernandes foi preso, acusado de ho- micídio. Vindo da Bahia e encarcerado em São Vicente, aguardava sentença para ser enforcado. Após apelação feita ao governo baiano, enquanto esperava a reso- lução na cadeia, pediu ao carcereiro que lhe enviasse barro para fazer algumas imagens: Nossa Senhora da Conceição,7 Nossa Senhora do Amparo e um vulto de Santo Antônio.8 Finalizadas as esculturas, chegou ordem de Salvador de que, se o homem não houvesse falecido, não fosse enforcado, ficando livre. Conside- rado um milagre da Virgem, João Gonçalo trouxe a imagem do Amparo para a vila de Itanhaém (SP)9 entregando-a para Francisco Nunes, homem velho e que 7. Imagem originalmente venerada na Igreja Matriz de São Vicente Mártir, foi entronizada em 1560 em uma altar renascentista dos quais restaram os fragmentos vicentinos. Acervo MASS, Santos (SP). 8. Escultura feita para uma antiga capela de fazenda na ilha de Santo Amaro, atual Guarujá (SP). Restaurada, se encontra na matriz vicentina. 9. Ao sul de São Vicente, em uma grande planície às margens do rio Itanhaém, surge uma po- voação chamada Nossa Senhora da Conceição, considerada a segunda cidade mais antiga do Brasil, “aldeia com casas construídas à maneira dos cristãos”, avistada em 1549 por um compa- nheiro de Hans Staden e chamada pelos nativos de Itanhaém (do tupi, pedra que canta ou pedra sonora, em alusão às rochas costeiras banhadas pelo mar). A chegada da Virgem do Amparo Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 52 17/02/2014 11:44:07 FREI AGOSTINHO DE JESUS E AS TRADIÇÕES DA IMAGINÁRIA COLONIAL 53 a entronizou em um outeiro no alto do morro chamado Vaporá, ou Guapurá, com 83 degraus, subidos de joelhos por muitos devotos. Segundo a tradição, os moradores de São Vicente impediram o envio da Virgem Conceição para Ita- nhaém, assentando-a na matriz vicentina e entregando aos moradores do litoral sul a escultura de Nossa Senhora do Amparo. Paradoxalmente, a imagem da virgem amparando o Menino Jesus nos braços acabou sendo venerada de ma- neira equivocada como Nossa Senhora da Conceição de Itanhaém, seguindo a antiga vocação religiosa da vila. Na época em que a ermida foi entregue aos franciscanos (1654), um dos custódios achou extremamente paradoxal o título de Conceição. Mandou colocar a imagem no chão e ordenou serrar o menino. Quando iam começar o trabalho, deu-lhe tal “tremor no coração” que acabou desistindo. O fato espalhou-se entre os moradores do litoral santista, aumen- tando a devoção do povo com a Milagrosa Virgem itanhaense. Figura 11 – Mestre João Gonçalo Fernandes: Nossa Senhora da Conceição. c.1560. Terracota policromada, 110 cm. Antiga Matriz de São Vicente, acervo do Museu de Arte Sacra, Santos (SP). Foto: Rafael Schunk, 2010. Figura 12 – Detalhe técnico da imagem de Nossa Senhora da Conceição. c.1560. Foto: Rafael Schunk, 2010. modelada por mestre João Gonçalo Fernandes coincide com a elevação desse povoado à con- dição de vila em 1561 (Dutzmann, 1990, p.34). Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 53 17/02/2014 11:44:07 54 RAFAEL SCHUNK Figura 13 – Mestre João Gonçalo Fernandes: Nossa Senhora do Amparo. c.1560. Terracota policromada, 110 cm de altura. Convento de Nossa Senhora da Conceição de Itanhaém (SP). Foto: Rafael Schunk, 2010. Figura 14 – Mestre João Gonçalo Fernandes: Santo Antônio. c.1560. Terracota policromada, 150 cm de altura. Matriz de São Vicente (SP). Foto: Rafael Schunk, 2010. Consenso entre os pesquisadores, essas três celebradas obras quinhentistas em barro cozido, de valor histórico e artístico nacional, estão entre os trabalhos que inauguram a produção de imaginária sacra no Brasil. Somam-se a esses testemunhos paulistas dos primeiros tempos a pia ba- tismal quinhentista da Igreja do Abarebebê, em Peruíbe, conhecida como Aldeia Velha, o cruzeiro da ilha de Santo Amaro, atual Guarujá (1542), e uma verga de pedra da segunda matriz de São Vicente (1559), constituindo um dos mais an- tigos acervos de arte luso-brasileira remanescentes no país. Livro_frei_agostinho_prova-nova.indb 54 17/02/2014 11:44:07 FREI AGOSTINHO DE JESUS E AS TRADIÇÕES DA IMAGINÁRIA COLONIAL 55 Figura 15 – Ruínas da Igreja de São João Batista do Abarebebê. Peruíbe (SP), século XVI. Local do antigo batistério. Foto: Rafael Schunk, 2010. Mestre de Angra dos Reis – Um artista revelado: imagens e relicários do litoral norte do Rio de Janeiro ao sul de São Paulo e planalto Arte sacra, conversão e síntese O grande historiador do universo colonial paulista, Affonso de Escragnolle Taunay (1876-1958) nos lembra que São Vicente, um dos primeiros núcleos da civilidade americana, em meados do século XVI era uma singela povoação com- posta por casa de câmara e cadeia, pelourinho, seu colégio