ALLANA CEARÁ A Iniciativa Um Cinturão, Uma Rota: o projeto estratégico chinês e seus desdobramentos para a política externa chinesa Marília 2023 ALLANA CEARÁ A Iniciativa Um Cinturão, Uma Rota: o projeto estratégico chinês e seus desdobramentos para a política externa chinesa Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais como parte das exigências para a obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de Marília. Área de Concentração: Ciências Sociais Orientador: Prof. Dr. Luis Antonio Paulino. Marília 2023 ALLANA CEARÁ A Iniciativa Um Cinturão, Uma Rota: o projeto estratégico chinês e seus desdobramentos para a política externa chinesa Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho” (Unesp), como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais. Área de Concentração: Ciências Sociais Linha de Pesquisa: Relações Internacionais e Desenvolvimento Banca Examinadora Prof. Dr. Luis Antonio Paulino UNESP – Campus de Marília Orientador Prof. Dr. Francisco Luiz Corsi UNESP – Campus de Marília Prof. Dr. Marcelo Balloti Monteiro Universidade Anhembi Morumbi Profª. Drª. Ana Tereza Lopes Marra de Sousa UFABC – Universidade Federal do ABC Prof. Dr. Mauri da Silva FATEC – Faculdade de Tecnologias de Ourinhos Marília, 29 de Maio de 2023 AGRADECIMENTOS Aos meus pais por todo apoio em todos os momentos na caminhada desta pesquisa, em especial a minha mãe, sem ela nada teria acontecido. Ao meu orientador professor Doutor Luis Antonio Paulino pela orientação, compreensão e apoio no decorrer deste período. Minha gratidão por todo o ensinamento adquirido e pela força nos bons e maus momentos. Muito obrigada! À Faculdade de Filosofia e Ciências FFC/UNESP pelo apoio institucional, aos funcionários e docentes. Agradeço aos membros da banca de qualificação e defesa pelas contribuições e leitura atenta. “O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.” RESUMO Foi inspirada na milenar e extinta Rota da Seda que a República Popular da China (RPC), anunciou, em 2013, em visitas do presidente Xi Jinping, respectivamente, ao Cazaquistão e à Indonésia, a construção do Cinturão Econômico da Rota da Seda e a Rota da Seda Marítima do Século XXI. Este ato constituiu a Iniciativa Um Cinturão, Uma Rota (ICR), também conhecida em inglês por Belt and Road Initiative (BRI). A presente tese busca estudar de que maneira a Iniciativa Um Cinturão, Uma Rota se molda aos objetivos da política externa da China e como isso reflete no relacionamento com os Estados Unidos. A condição atual da China, basicamente marcada por sua ascensão como grande potência mundial e sua crescente rivalidade com os Estados Unidos, tornou a Iniciativa Um Cinturão, Uma Rota o principal projeto para fomentar o desenvolvimento e a cooperação através da oferta de financiamento à projetos de infraestrutura, assim como pela promoção de rotas comerciais e marítimas, cuja principal finalidade é alcançar a meta do chamado sonho chinês. A partir dessa perspectiva pretende-se estudar como a Iniciativa Um Cinturão, Uma Rota se encaixa nos objetivos da China, sejam estes internos, relativos ao seu desenvolvimento com base no socialismo com características chinesas, sejam objetivos externos que à primeira vista, procuram tanto solucionar questões como abastecimento de alimentos e insumos, quanto estender a sua influência internacional e contornar dificuldades como a disputa em torno do Mar da China Meridional. Palavras-chave: Iniciativa Um Cinturão, Uma Rota; Política Externa Chinesa; China-Estados Unidos. ABSTRACT It was inspired by the ancient and extinct Silk Road that the People's Republic of China (PRC) announced, in 2013, during visits by President Xi Jinping, respectively, to Kazakhstan and Indonesia, the construction of the Silk Road Economic Belt and the 21st Century Maritime Silk Road. This act constituted the Belt and Road Initiative (BRI). This thesis seeks to study how the One Belt, One Road Initiative fits China's foreign policy objectives and how this reflects on the relationship with the United States. China's current condition, basically marked by its rise as a major world power and its growing rivalry with the United States, has made the One Belt, One Road Initiative the main project to foster development and cooperation by offering financing to infrastructure, as well as the promotion of commercial and maritime routes, whose main purpose is to achieve the goal of the so-called Chinese dream. From this perspective, it is intended to study how the One Belt, One Road Initiative fits into China's objectives, whether these are internal, related to its development based on socialism with Chinese characteristics, or external objectives that, at first sight, seek both to solve issues such as supplying food and inputs, extending its international influence and overcoming difficulties such as the dispute over the South China Sea. Keywords: One Belt, One Road Initiative; Chinese Foreign Policy; China-United States. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 08 2 A INICIATIVA CINTURÃO E ROTA E O SONHO CHINÊS 14 2.1 O Sonho Chinês 14 2.2 O Caminho do Sonho Chinês na visão de Xi Jinping 22 2.3 O Sonho Chinês e o Socialismo com Características Chinesas 29 2.4 A realização do Sonho Chinês com a Iniciativa Cinturão e Rota 2. 5 Xi Jinping e a Comunidade de Futuro Compartilhado 32 39 3 O PROJETO CINTURÃO E ROTA COMO PARTE DA ESTRATÉGIA CHINESA PARA O SÉCULO XXI 43 3.1 Antiga Rota da Seda: da inspiração do projeto Cinturão e Rota para a fomentação da cooperação 44 3.2 Estrutura do projeto Cinturão e Rota 3.2.1 Organização do projeto 3.2.2 Países e demais participantes 3.2.3 Principais documentos 3.2.4 Projetos 3.2.5 Financiamento 3.3 Ações e Perspectivas 3.4 Política Externa Chinesa e a Iniciativa Cinturão e Rota 49 49 56 61 65 76 80 86 4 A INICIATIVA CINTURÃO E ROTA NO CONTEXTO DA DISPUTA ENTRE CHINA E ESTADOS UNIDOS 100 4.1 Conflito Estados Unidos e China 102 4.2 As relações entre Estados Unidos e China sob a Iniciativa Cinturão e Rota 106 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 114 REFERÊNCIAS 117 8 1. INTRODUÇÃO Em 2023, a Iniciativa Um Cinturão, Uma Rota (ICR) completa 10 anos. Em 2013, o presidente Xi Jinping a anunciou como um projeto de financiamento de infraestruturas, cujo objetivo principal é impulsionar a cooperação e a conectividade, física e digital, da China com Ásia, África, Europa e Eurásia. O projeto tem dois componentes principais: um de natureza terrestre (o “Cinturão Econômico da Rota da Seda”) e outro transoceânico (a “Rota Marítima da Seda”). Esta iniciativa que inicialmente começou com 65 países, representando 63% da população mundial e 29% do PIB, expandiu-se para todos os continentes. Até abril de 2023, 1491 países, que representam 40% do PIB mundial, já haviam aderido à iniciativa. Na África eram 44 países, ou 81% do continente; na Ásia, eram 45, o que corresponde a 93% dos países; na Europa eram 29, ou 61%; na América Latina e Caribe eram 21, o que representa 59% dos países da região; na Oceania eram 10 países, ou 62%2. Trata-se de uma iniciativa idealizada, organizada e financiada pela China e que impressiona pelo seu alcance de atuação continental. Estamos falando de um projeto no qual a China investiu mais de US$1 trilhão e que o Banco Mundial estima que o investimento da Iniciativa Cinturão e Rota3 nos projetos de infraestrutura seja de US$575 bilhões (WORLD BANK GROUP, 2019, p. 37). Estes projetos estão alocados nos setores de energia, transporte, ferrovia, portuário, gás e oleoduto, estradas, etc. Conforme a iniciativa foi crescendo, novas demandas foram surgindo e foram sendo criadas novas dimensões do mesmo projeto, a saber: Rota da Seda Verde; Rota da Seda Acadêmica; Rota da Seda Pacífica; Rota da Seda Digital e Rota da Seda Polar. Tudo com o objetivo de promover os objetivos do projeto em cada área; isto se deve em muito ao fato de a Iniciativa Cinturão e Rota ter priorizado trabalhar com cinco abordagens que proporcionaria o impulso da cooperação e conectividade física e digital: 1) coordenação de políticas; 2) conectividade de instalações; 3) integração comercial; 4) comércio desimpedido e 5) laços interpessoais próximos. O surgimento da Iniciativa Cinturão e Rota é resultado do rápido processo de ascensão da China como uma potência mundial. Uma veloz transformação nas relações econômicas e internacionais que em trinta anos tornou a China a segunda maior economia do mundo com 1 De acordo com portal oficial da Iniciativa Cinturão e Rota, o último Memorando de Entendimento (MoU) foi assinado em março de 2022. 2 La Nación. La nueva Ruta de la Seda, el proyecto más ambicioso de China a escala planetaria. Disponível em: https://www.lanacion.com.ar/politica/la-nueva-ruta-de-la-seda-el-proyecto-mas-ambicioso-de-china-a-escala- planetaria-nid05022022 3 Ao longo desta pesquisa escolhemos denominar como Iniciativa Cinturão e Rota, assim como o presidente Xi Jinping o faz em seus discursos oficiais. 9 relevante voz nas participações e decisões internacionais. A Iniciativa Cinturão e Rota é um projeto chinês que conseguiu criar uma plataforma de cooperação que financia projetos em infraestrutura para promover e fortalecer o desenvolvimento de todos os países ao longo do Cinturão e Rota. Nesse sentido, a Iniciativa Cinturão e Rota prioriza o princípio da cooperação ganha-ganha nas relações internacionais e visa promoção da cooperação Sul-Sul. É um projeto de grandes dimensões que concede aos países que queiram participar, uma alternativa de financiamento aos moldes dos tradicionais canais financeiros, como por exemplo, Banco Mundial (BM), Fundo Monetário Internacional (FMI) e outras agências de fomento que têm uma política administrativa muito burocrática e repleta de condicionalidades para uma concessão financeira, e, portanto, um país em desenvolvimento teria muito mais dificuldade de superar tantas barreiras. Ainda assim, o financiamento chinês feito pela Iniciativa Cinturão e Rota é um ponto sensível, visto por muitos críticos como um mecanismo que embutiria o risco da armadilha da dívida, aprisionando os países financeiramente por não serem capazes de pagar os financiamentos. O Porto de Hambantota, no Sri Lanka, é considerado um exemplo importante dessa crítica a Iniciativa Cinturão e Rota. Um empreendimento realizado por empréstimo chinês onde diante da impossibilidade de realizar o pagamento, o governo do Sri Lanka converteu o empréstimo em 99 anos de arrendamento para a China. Durante o II Fórum do Cinturão Econômico da Rota da Seda, em 2017, o presidente Xi Jinping apresentou uma série de medidas para evitar que episódios como o do Sri Lanka acontecessem novamente, uma vez que a pouca atenção com a viabilidade econômica dos projetos levou a China ser acusada de realizar práticas coloniais predatórias. Uma crítica que consideramos infundada pois, apesar da Iniciativa Cinturão e Rota ter uma série de pontos a serem corrigidos ou melhorados, a China não tem na sua história nenhum comportamento de expansionismo colonial e não impôs a nenhum país qualquer projeto a ser financiado, limitando-se a atender as demandas locais, como foi o caso do Sri Lanka. O que encontramos de real e material são discursos e ações que visam o resguardo do direito de cada país poder desenvolver seu próprio caminho do modo que entender amparado em princípios de razoabilidade, equidade, solução pacífica de controvérsias, igualdade soberana, dentre outros. Razões de cunho interno e externo da China foram os grandes responsáveis pela implementação da Iniciativa Cinturão e Rota. O primeiro é com a concretização do Sonho Chinês, dito em outras palavras, pela revitalização da nação chinesa que colocaria a China de volta ao lugar que outrora ocupara, mas que foi relegado pelo expansionismo europeu e japonês, durante o século XIX e início do século XX. Esse período ficou caracterizado como 10 o “século da humilhação”. Nele, o nacionalismo chinês surge como uma reação necessária para a defesa da integridade física e independência da China, priorizando o engrandecimento do Estado para a concretização do socialismo com características chinesas e a estabilidade da liderança do Partido Comunista da China (PCCh) à frente da nação. Aliás, o PCCh com uma série de políticas e ações elaborou metas para construir uma sociedade moderadamente próspera em todos os sentidos com a finalidade de concretizar o sonho chinês; e a Iniciativa Cinturão e Rota foi o principal (não único) mecanismo para alcançar tais metas. Em seguida, ainda na linha do Sonho Chinês, a Iniciativa Cinturão e Rota também surgiu como uma oportunidade para a China desenvolver economicamente regiões mais afastadas de seu território, que provavelmente levaria um tempo muito maior para receber investimentos e projetos de infraestrutura. Além disso, o crescimento econômico e inserção da China no processo da globalização requisitou que o país precise cada vez mais de recursos para abastecer seu mercado interno e buscar novos mercados para atender as novas demandas. E, desta forma buscar garantir um nível de segurança para o fornecimento de matérias-primas e recursos naturais. E por fim, temos o motivo da reorganização da ordem global em sentido que facilite os objetivos de desenvolvimento da China. O processo de declínio hegemônico dos Estados Unidos ficou exposto com a crise estrutural do capitalismo, mais precisamente com a crise do sistema financeiro em 2008, que oportunizou a emergência de países emergentes e em desenvolvimento ganhando mais voz nas decisões internacionais. E, por isso, a Iniciativa Cinturão e Rota está relacionada com o profundo desenvolvimento da globalização econômica nas últimas três décadas, das drásticas mudanças no contexto global que o sistema internacional sofreu nas últimas décadas, da transformação da China em seu modelo de desenvolvimento pelo ensejo de uma geopolítica sólida, uma nova alternativa para a promoção de um ambiente estável e pacífico e novamente a busca de nível de segurança do fornecimento de recursos naturais. A Iniciativa Cinturão e Rota é justamente uma resposta da política externa chinesa diante do seu rápido processo de ascensão como potência mundial. É um projeto chinês tratado pela China como uma iniciativa que não apresenta nenhuma conotação com finalidade de promover a campanha de dominação internacional chinesa, tal qual os Estados Unidos (EUA) insistem em imputar essa narrativa. Para a China é uma iniciativa que conseguiu criar uma plataforma de cooperação que financia projetos em infraestrutura para promover e fortalecer o desenvolvimento de todos os países nela incluídos, visando a cooperação sul-sul, priorizando o princípio da cooperação ganha-ganha nas relações internacionais e estabelecendo laços de confiança. 11 De acordo com Vangeli (2018, p. 66) a Iniciativa Cinturão e Rota é baseada na ideia de lidar com as disparidades econômicas tanto de dentro quanto de fora da China. Até certo ponto, podemos colocar a Iniciativa Cinturão e Rota como uma tentativa de abordar as consequências da crise econômica global, bem como quanto à forma injusta da globalização liderada pelas corporações. Em outras palavras, a Iniciativa Cinturão e Rota é integrante do movimento de uma tentativa de remodelar a atual governança global estabelecida pelos Estados Unidos, com o sistema Bretton Woods. Um sistema defasado diante da atual conjuntura internacional que tem o declínio do poder norte-americano e participação de mais atores nos fóruns internacionais. Nesse sentido, a Iniciativa Cinturão e Rota é mais um bem público internacional4 oferecido pela China ao mundo com o objetivo de realizar não somente o sonho chinês, como também promover a construção da comunidade de futuro compartilhado para a humanidade. Para as relações internacionais a sua propositura e implementação representa um processo de transição de um mundo unipolar, marcado pelo predomínio da governança global americana, para um mundo multipolar com o surgimento de várias potências com maior peso de participação internacional, principalmente após a crise das instituições financeiras dos países desenvolvidos, em 2008. Estamos falando de uma mudança na ordem mundial, na qual os Estados Unidos (EUA) permanecem na posição de líder hegemônico incontestável apenas no campo militar, dividindo os campos tecnológicos e econômicos com outras potências em ascensão. Parte integrante da agenda dos programas do processo de Reforma e Abertura de 1978, a motivação do surgimento da Iniciativa Cinturão e Rota está enraizada nas demandas internas e na promoção da realização do sonho chinês. A tentativa de rearticular seus canais de abastecimento, criar rotas mais seguras de suprimentos, construir parcerias mais confiáveis, depender menos dos EUA e oferecer meios para que o novo socialismo com características chinesas possa alcançar a concretização do sonho chinês por meio da meta dos dois centenários, ou seja, o centenário da criação do Partido Comunista Chinês, em 2021, e o centenário da criação da República Popular da China, em 2049. Isto enquadra a Iniciativa 4 Giannattasio, Papy e Nigro (2019) definem bens públicos internacionais como sendo “bens públicos (bens, produtos ou serviços dotados de não-exclusividade e de não-rivalidade em seu consumo) revestidos de determinadas características especiais que foram relevantes para o globo como um todo – e, por isso, globais. Assim, entende-se que um bem público é global quando o raio de alcance das externalidades positivas e negativas produzidas é maior que aquele dos bens públicos nacionais. [...] um bem público será realmente global quando seus efeitos alcançassem a todos, na geração presente e também nas futuras gerações”. (GIANNASTTASIO; PAPY; NIGRO, 2019, p. 89-90). 12 Cinturão e Rota nos objetivos da política da China sobre a sua opção pelo desenvolvimento pacífico, promoção e defesa da paz e rechaço por qualquer prática de hegemonismo. A Inciativa Cinturão e Rota tem gerado muito interesse por alguns países e muita desconfiança também. Enquanto alguns países estão dispostos a fomentar sua participação, outros declaram que este projeto da China apresenta mais riscos do que benefícios. Os Estados Unidos lideram às críticas. Usam da retórica do discurso da Guerra Fria para conter a China e argumentam que a Iniciativa Cinturão e Rota é apenas um disfarce para as reais intenções de disseminar sua influência sobre as regiões participantes. Também embutiria o risco, da diplomacia da armadilha da dívida, aprisionando os países financeiramente por não serem capazes de pagar os financiamentos. A Índia vê com suspeita o projeto, principalmente o Corredor China-Paquistão. Encara a iniciativa como uma atividade cuja única finalidade é reconstruir uma ordem mundial sinocêntrica, em vez de ser uma aspiração responsável de fornecer bens públicos globais usando fundos chineses (PRADUMMA; XIANBAI, 2020, p. 2). Independente das críticas, a China entende a Iniciativa Cinturão e Rota como uma nova opção de apoio ao desenvolvimento, principalmente para os países da Eurásia que precisam de recursos para melhorar sua infraestrutura e conectividade, à qual cada país pode ou não aderir de acordo com a sua conveniência. Enxergam o projeto como uma plataforma de cooperação para fomentar a realização de projetos de financiamento em infraestrutura, rejeitando qualquer acusação de que a verdadeira intenção seria a dominação internacional. Nossa pesquisa parte da premissa que há dois fatores que condicionam a proposta de sonho chinês do presidente Xi Jinping dos seus antecessores: 1) A ascensão da China como grande potência mundial e os conflitos decorrentes disso e 2) A crescente rivalidade entre China e Estados Unidos. E isto está diretamente relacionado ao papel da Iniciativa Cinturão e Rota para o desenvolvimento da nação. A partir deste escopo, os objetivos específicos desta pesquisa são: a) compreender o que é e como funciona a Iniciativa Cinturão e Rota; b) avaliar a participação da Iniciativa Cinturão e Rota como plano de execução dos objetivos da política externa chinesa e c) avaliar como a Iniciativa Cinturão e Rota é mais um ponto de atrito dentro da tensa relação entre Estados Unidos e China. O desenvolvimento desta pesquisa foi realizado de maneira qualitativa através da utilização de fontes primárias (discursos e documentos oficiais) para compreender todo o sistema de como funciona a Iniciativa Cinturão e Rota. O trabalho também se beneficiou de uso de estatísticas para verificar os números e efeitos desse gigante projeto. 13 O presente trabalho está estruturado em três capítulos, além desta introdução e da conclusão. No segundo capítulo será analisada a relação que existe entre o sonho chinês e a Iniciativa Cinturão e Rota, buscando compreender como estão interligados e de que forma a Iniciativa Cinturão e Rota é essencial para os planos do Sonho Chinês. No terceiro capítulo buscamos trazer informações acerca da configuração do projeto Cinturão e Rota para mostrar como o projeto tem potencial de alcance e reais condições de entregar ao mundo o que é proferido pelo discurso chinês. Com uma visão clara do que a China quer no presente e no futuro, seguimos no capítulo analisando como a Iniciativa Cinturão e Rota se encaixa aos preceitos da política externa chinesa como contribuição para o desenvolvimento comum no século XXI. E no quarto capítulo abordará o tema da Iniciativa Cinturão e Rota no contexto da disputa Estados Unidos e China, levando em consideração que a Iniciativa Cinturão e Rota é mais um ponto de atrito a ser somado junto aos outros conflitos que perduram no relacionamento bilateral; aqui não criamos uma relação de condicionalidade entre Iniciativa Cinturão e Rota e o relacionamento bilateral, uma vez que o tensionamento nas relações entre Estados Unidos e China independe da proposta e execução do projeto chinês. 14 2. A INICIATIVA CINTURÃO E ROTA E O SONHO CHINÊS 2.1 O Sonho Chinês Até 1820, a China era a maior economia do mundo. Com a primeira Guerra do Ópio (1839-1842) tem início um processo de decadência durante o qual a China foi retalhada pelas grandes potências imperialistas da época, perdendo o controle sobre partes significativas de seu território que se tornaram zonas de ocupação estrangeira. Isso interrompeu por quase um século a história da China como nação independente, cuja base de sua sociedade se origina de antigas civilizações, envoltos por uma cultura não europeia, mas que não conseguiu resistir às forças militares e navais do Ocidente, de modo que seu comércio e finanças foram minados pela intromissão ocidental (HOBSBAWM, 2010, p. 208). Esse longo período durante o qual a China esteve submetida à condição de semicolônia deu ensejo a diversos movimentos de caráter nacionalista que almejavam livrar a China do jugo estrangeiro e reviver seu passado de glórias. Nasce aí o chamado “Sonho Chinês”, que viria ser fonte de inspiração de todos os líderes chineses de Sun Yat-sen a Xi Jinping, passando por Mao Zedong, Deng Xiaoping, Jiang Zemin e Hu Jintao. A partir desse importante acontecimento para a história da China moderna, de acordo com Rosales (2020, p. 15), na cultura chinesa surge o sonho chinês que significa a grande revitalização da nação chinesa, ou seja, o desejo da China como nação de reconquistar o lugar central que o país teve na civilização e na economia mundial até o início do século XIX. Deste modo, o sonho chinês está interligado com a história e cultura do povo e almejado pela nação chinesa desde o início da época moderna. “A grande revitalização da nação chinesa recorre ao legado de Sun Yat-sen herói nacional na conquista da república e o primeiro a lançar o slogan “Vamos revitalizar a China”” (ROSALES, 2020, p. 78, tradução nossa). Dito em outras palavras, a grande revitalização da nação chinesa é a proposta para que a China conquiste novamente a posição geopolítica que outrora possuía muito antes de ser uma república, ou seja, ser o eixo de um sistema asiático-oriental focado em si mesmo, mas que foi severamente prejudicada o que a fez ser um membro cada vez mais periférico e subordinado ao sistema capitalista global (ARRIGHI, 2008, p. 347). O que se busca com o sonho chinês é o retorno da normalidade histórica, ou seja, que a China volte a ser o centro do mundo o Reino do Meio em 2049; justo um século depois da fundação da República Popular da China. Assim, no olhar chinês, após o século da humilhação (1839-1949) teria seguido um século de recuperação, que culminaria em 2049 com o retorno da normalidade histórica, ou seja, a 15 reinstalação do país no centro do universo ou, dito de maneira mais contemporânea, à frente da globalização, da mudança tecnológica e da sociedade do conhecimento que caracteriza o século XXI. (ROSALES, 2020 p. 26, tradução nossa). Assim sendo, o retorno da normalidade histórica é almejado desde que Mao Zedong anunciou na frente da Praça Celestial a fundação da República Popular da China (RPC), em 1º de outubro de 1949. "Sem a liderança de Mao Zedong, a China não teria rompido com seu passado feudal e instalado a república socialista, em 1949" (PAULINO, 2014, p. 26). Não teria como a China ter feito o processo de Reforma e Abertura em 1978, por exemplo, se não houvesse uma base social, cultural; o trabalho na área da educação foi árduo, uma vez que reverteu alguns números de taxa de natalidade, analfabetismo, dentre outros acertos do presidente Mao Zedong. Desde então, cada presidente trilhou um caminho em busca do sonho chinês que foi retomado e interrompido diversas vezes ao longo da história chinesa. Resumidamente vejamos alguns destes momentos. A China começa como república, em 1911, sob a liderança de Sun Yat-sen. Em 1949, Mao Zedong lidera a fundação da República Popular da China. É o início de tudo. No contexto da Guerra Fria, o 1º Plano Quinquenal é lançado em 1953 e, apesar do patente sucesso, surgem questionamentos em relação ao modelo soviético, baseado na industrialização pesada. Mudanças importantes ocorreram na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) com a morte de seu líder, Josef Stalin, em 1953. O 20º Congresso do Partido Comunista da União Soviética, em 1956, provocou terremoto no movimento comunista internacional, quando Nikita Kruschev fez uma denúncia sobre os crimes de Stalin. Isso foi impactante na China, que se colocou contra a denúncia. Na verdade, desde o início da República, a China não queria mais ser um tipo de protetorado da URSS. Além disso, a URSS já tinha começado a ter uma política ‘meio imperialista’ no campo do socialismo; dizia que tinha o direito de intervir nos países socialistas. A invasão no Azerbaijão, em 1920, foi um exemplo disso. A partir dessa perspectiva, a China entendeu que a URSS queria transformá-la em um satélite e isso a faz querer encontrar seu próprio caminho. Os eventos seguintes, como o Movimento das Cem Flores, o Grande Salto Adiante etc., são tentativas de construir seu próprio caminho chinês, mesmo que na base de tentativa e erro. A ruptura com a URSS foi essencial para os caminhos do sonho chinês, pois é no início da década de 60 que começa o esforço da China de trilhar o seu próprio caminho, o chamado socialismo com características chinesas. 16 É com o processo de reforma e abertura iniciado por Deng Xiaoping (1978-1992), em 1978, que o sonho chinês é impulsionado para se tornar realidade. Aqui surgiu a oportunidade para realizar a importante transição econômica, de uma economia até então fechada para uma economia mais aberta, de mercado e com uma sociedade migrando para áreas urbanas (ROSALES, 2020, p. 14). A estratégia do desenvolvimento econômico traçado pelo presidente Deng Xiaoping foi fundamental para os desdobramentos do atual sonho chinês proposto pelo presidente Xi Jinping. Essa estratégia era amparada pelo trabalho e consolidação do Partido Comunista Chinês (PCCh) no poder. Tornar a China uma democracia ocidental não fazia parte dos planos do presidente Deng Xiaoping e, portanto, o socialismo com características chinesas foi oficialmente adotado em dezembro de 1984. Segundo Fairbank e Goldman (2008) a dinâmica do socialismo com características chinesas consistiu em “importar ciência, tecnologia e algumas práticas econômicas do Ocidente mantendo, ao mesmo tempo, o sistema político comunista” (FAIRBANK; GOLDMAN, 2008, p. 374). Para os planos do sonho chinês não dava mais para evitar a integração da economia chinesa com a economia internacional. Beneficiada com o processo de globalização, a adesão da China à Organização Mundial do Comércio (OMC), em 2001, acarretou uma nova dinâmica ao mercado internacional. Com um alto ritmo de crescimento econômico “ao longo de quase três décadas, de taxa de crescimento próxima a 10% ao ano gerou massa crítica suficiente para tornar a China o novo polo dinâmico global” (BARROS, J.; BARROS, L.; MIGUEL, 2008, p. 12). Enquanto isso, internamente, a aprovação da presença e participação do empresariado privado no PCCh pelo presidente Jiang Zemin (1992-2002) promoveu um movimento de transição dentro do partido. A Teoria das Três Representações promoveu o convívio da China e do PCCh com o setor privado, ao admitir capitalistas privados, bem como intelectuais, artistas, cientistas, com a finalidade de mostrar o PCCh como representante de todos os interesses da nação chinesa. Em 2003, o presidente Hu Jintao (2002-2012) abordou o sonho chinês por meio da participação na globalização econômica por meios pacíficos, promovendo a política externa com a teoria da ascensão pacífica. Atores internacionais questionaram as pretensões chinesas com essa teoria, o que levou a diplomacia chinesa a mudar o termo para desenvolvimento pacífico. A mudança tinha o objetivo de esclarecer ao mundo que a China busca apenas alcançar seu desenvolvimento a partir de sua visão, do que entende ser melhor para a China, contudo sem ignorar o desenvolvimento dos outros países no sistema internacional (AMARAL, 2012, p. 87). 17 Já internamente, após alguns anos do desenfreado processo de reforma e abertura que provocaram intensos desequilíbrios sociais, o presidente Hu Jintao propôs a política da sociedade harmoniosa, cuja preocupação era dar maior ênfase na proteção dos menos favorecidos e diminuir os déficits regionais referente as ofertas de progresso e oportunidades, levando em conta que a partir de 1992, com o início da privatização das empresas estatais chinesas, mais de 30 milhões de pessoas foram demitidas e dezenas de milhares de empresas estatais extintas ou privatizadas. Na verdade, não é que o desenvolvimento fora posto de lado, pelo contrário, seguia como prioridade, todavia era preciso dar maior ênfase ao social do que ao econômico. Iniciou-se um processo de reintroduzir políticas sobre saúde, previdência, o que acontece até os dias de hoje. Portanto, no momento de transição de governo do presidente Hu Jintao para o do presidente Xi Jinping, temos uma China crescendo economicamente a um ritmo acelerado, mas com inúmeros desafios internos de cunho social e econômico, agravados a partir de 1992, quando tem uma nova fase nas reformas que muitos críticos veem inspiradas no neoliberalismo e que romperam com as redes de proteção social do período anterior. Sobretudo, após 2008, a política começa a mudar e as questões sociais começam a ganhar maior importância. A agenda da política externa prioriza uma “política exterior pacífica de independência e autonomia, além de assumir, diante do mundo, o compromisso solene de nunca buscar a hegemonia nem praticar o expansionismo, sendo sempre uma força na defesa da paz mundial” (XI, 2014, p. 300), ou seja, uma política externa voltada para o desenvolvimento pacífico da China para o século XXI. Quando essas palavras foram proferidas na 3ª sessão do 18º Comitê Central do PCCh, em 2013, Xi Jinping já era Secretário-Geral do Partido e presidente da nação. Do momento que assumiu a gestão do país em 2012, a grande palavra de ordem do presidente Xi Jinping – que atualmente está em seu segundo mandato – tem sido a realização do “sonho chinês”, ou seja, concretizar a grande revitalização nacional. Para o presidente Xi Jinping “este sonho condensa os desejos de várias gerações dos chineses, demonstra o conjunto dos interesses da nação e do povo chinês e representa o anseio comum de todos os filhos da nação” (XI, 2014, p. 42). O presidente Xi Jinping tornou o sonho chinês o maior objetivo a ser alcançado pela China em seu governo. Como vimos não se trata de um tema novo, muito pelo contrário, o anseio pela retomada histórica do lugar da China e principalmente da revitalização da sociedade chinesa remontam ao início da república. De acordo com Rosales (2020, p. 25) o sonho chinês que o presidente Xi Jinping propõe remete aos ideais do pai da revolução 18 republicana (Sun Yat-sen), do fundador da República Popular da China (RPC) (Mao Zedong) e do responsável pelo processo de reforma e abertura (Deng Xiaoping). Entretanto, nós entendemos que há dois fatores que condicionam a proposta de sonho chinês do presidente Xi Jinping dos seus antecessores: 1) A ascensão da China como grande potência mundial e seus conflitos decorrentes disso e 2) A crescente rivalidade entre China e Estados Unidos. Esses dois fatores são o resultado de importantes mudanças tanto na própria China quanto no contexto internacional no qual o país está inserido. Inegável que após o fim da Guerra Fria que resultou da dissolução da União Soviética e do período bipolar na balança de poder mundial, os Estados Unidos se sobressaíram como a única potência predominante no sistema internacional em todos os campos de atuação: econômico, militar, científico e tecnológico. E essa situação perpetuou-se por muito tempo. Porém, de um lado a mudança de postura na conjuntura internacional dos Estados Unidos optando por uma ação mais unilateral nas relações internacionais após os ataques de 11 de setembro de 2001, promovendo Guerra do Afeganistão (2001), Guerra do Iraque (2003) e do outro a China levando em frente seu processo de reforma e abertura, aderindo à Organização Mundial do Comércio (OMC), contestando o domínio geopolítico dos Estados Unidos na Ásia, a partir de seu advento no século XXI fizeram com que o mundo tivesse características de multipolaridade. Os Estados Unidos continuam como o poder militar incontestável, mas nas demais áreas, nomeadamente econômicos, divide a balança de poder com outros países. A crise financeira de 2008 que abalou a estrutura do capitalismo global e as instituições financeiras dos países desenvolvidos, propiciou o advento de um mundo cada vez mais multipolar, uma vez que economias de países emergentes se destacaram no cenário internacional ganhando voz e participação em foros e instituições multilaterais. Rearranjos internacionais foram criados como Organização para Cooperação de Xangai, BRICS, IBAS, BASIC, dentre outros, ou seja, aconteceu o fenômeno da “Ascensão do Resto” termo assim definido por Alice H. Amsden (2009). Além disso, o atual sistema de governança global estabelecido pelos Estados Unidos por meio das instituições de Bretton Woods não correspondia mais à nova realidade sistêmica das relações internacionais. A era da “governança global americana” estava em declínio, sobretudo com o crescimento do peso econômico de países em desenvolvimento e da ascensão da China como potência no cenário internacional. Essa tendência foi se acentuando de modo que mais instituições sem a presença dos Estados Unidos foram criadas pela China e algumas por outras potências emergentes, como por exemplo o Banco Asiático de 19 Investimento em Infraestrutura, a própria Iniciativa Cinturão e Rota e o Novo Banco de Desenvolvimento do BRICS. Vejamos a seguir as instituições internacionais lideradas por potências não ocidentais nas áreas de finanças, comércio e investimento, segurança, diplomacia e infraestrutura que caracterizam esse novo período (STUENKEL, 2016, p. 122). Quadro 1 – A ordem paralela: Financeiro Instituições Não Ocidentais Instituições Tradicionais Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura Banco Asiático de Desenvolvimento Novo Banco de Desenvolvimento liderado pelos BRICS Banco Mundial Acordo de Reserva de Contingência do BRICS Fundo Monetário Internacional Infraestrutura Global para internacionalizar o Yuan Dólar americano Sistema Internacional de pagamento chinês CHIPS – Clearing House Interbank Payments System China Union Pay Visa e Mastercard Centro Financeiro Global de Xangai Centros financeiros internacionais Grupo Universal de Classificação de Crédito Moody’s, Standard & Poor’s Iniciativa Multilateral de Chiang Mai Fundo Monetário Internacional ASEAN+3 ASEAN+3 Escritório de Pesquisa Macroeconômico Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico Fonte: STUENKEL, 2016, p. 122, tradução nossa. Quadro 2 – A ordem paralela: Comércio e Investimento Instituições Não Ocidentais Instituições Tradicionais Parceria Regional Econômica Abrangente Parceria Trans-Pacífico Área de Livre Comércio da Ásia Parceria Trans-Pacífico Fonte: STUENKEL, 2016, p. 122, tradução nossa. Quadro 3 – A ordem paralela: Segurança Instituições Não Ocidentais Instituições Tradicionais Conferência sobre interação e medidas de fortalecimento da confiança na Ásia Fórum Regional Asiático Organização para a Cooperação de Xangai OTAN na Ásia Central Reunião dos Altos Representantes Responsáveis pela Segurança Nacional Fonte: STUENKEL, 2016, p. 122, tradução nossa. 20 Quadro 4 – A ordem paralela: Diplomacia Instituições Não Ocidentais Instituições Tradicionais Cúpula de líderes BRICS G7 (antigo G8) Grupo de Trabalho BRICS, IBAS e outras estruturas Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico Fórum Bao para a Ásia Fórum Econômico Mundial Fonte: STUENKEL, 2016, p. 122, tradução nossa. Quadro 5 – A ordem paralela: Infraestrutura Instituições Não Ocidentais Instituições Tradicionais Fundo Rota da Seda/Iniciativa Cinturão e Rota Canal Nicarágua Canal Panamá Ferrovia Transamazônica Fonte: STUENKEL, 2016, p. 122, tradução nossa. Na visão de Stuenkel (2016, p. 120) as instituições internacionais lideradas por potências não ocidentais formam uma ordem complementar à existente e por isso classifica como ordem paralela. A maioria dessas iniciativas foram criadas pela China com o objetivo de aumentar lentamente a autonomia estratégica e reduzir a dependência da China em estruturas controladas pelo ocidente (STUENKEL, 2016, p. 121). O processo de ascensão da China como potência mundial e seu maior ativismo nas relações internacionais provocaram esse movimento dentro de uma governança global controlada pelos Estados Unidos, caracterizado pela demanda dos países em desenvolvimento por reformas no sistema atual. A China e os demais países participantes dessas iniciativas de governança global não pretendem acabar com o atual sistema, muito menos fazer um novo, mas sim reformar os mecanismos de governança global a fim de melhorar a governabilidade global, incentivando novas opções de cooperação internacional promovendo a busca por relações ganha-ganha nas relações internacionais. Mesmo propondo novas iniciativas, a China continua apoiando as iniciativas existentes porque na visão de Stuenkel (2016, p. 121) a estrutura sinocêntrica está estabelecida dentro de uma lógica liberal, tanto o Acordo de Reserva de Contingência do BRICS, como a Iniciativa Multilateral de Chiang Mai5 estão incorporadas no sistema do Fundo Monetário Internacional (FMI). Tomar novas iniciativas é uma boa via para reduzir a dependência dos países das estruturas existentes, sem reduzir seu apoio a elas. 5 Iniciativa de Chiang Mai foi criada dentro do âmbito da ASEAN com o objetivo de ser um acordo na área cambial já existente da ASEAN, o chamado Arranjo de swap da ASEAN (ASA). De acordo com Cunha (2003, p. 9) esta iniciativa tinha um projeto de instituir um Fundo Monetário Asiático, todavia o Fundo Monetário Internacional e o tesouro norte-americano não deixaram que a ideia saísse do papel. 21 É preciso recordar que a China quer uma reforma da governabilidade econômico- financeira e política, afinal de contas que sentido teria em fazer novos rearranjos internacionais que não trouxessem pelo menos novas oportunidades de cooperação. Dentro desse contexto acabar com o sistema das Nações Unidas e as demais instituições do sistema de Bretton Woods não faz muito sentido. Para a China essas instituições são importantes, tem seu papel no sistema internacional, o que falta é torná-las mais compatíveis com os novos tempos da ordem internacional. A nova posição da China implicou muitos conflitos indo desde a crescente rivalidade com os Estados Unidos até a disputa dos mares no sul da China. O presidente Barack Obama já falava durante seu governo em realizar o “pivô da Ásia”, ou seja, mudar o foco da política externa americana do Oriente Médio para a Ásia, mas o tom subiu com a eleição do presidente Donald Trump, um incentivador do discurso anti-China. O presidente Donald Trump deixou um vácuo da presença americana ao sair de vários acordos e organismos internacionais e o mundo viu a China durante o Fórum de Davos em 2017, defendendo o sistema de globalização ameaçado por Donald Trump. Para Brown (2018, p. 89) foi um momento de ironia ver um país socialista defendendo um processo até então associado às democracias liberais multipartidárias. A postura chinesa ao defender a manutenção desses órgãos internacionais revela que a nova posição da China no sistema internacional será a de requerer para dela um papel de maior importância nas decisões internacionais. Nunca é demais lembrar que a China é membro permanente do Conselho de Segurança na ONU e, como tal, possui poder de veto sobre as resoluções daquela organização. Ao assumir o controle da nação e do PCCh o presidente Xi Jinping tinha nas mãos um país com muitos desafios internacionais e domésticos, mas cuja posição no cenário internacional fornecia condições favoráveis para fomentar o sonho chinês. O país já era uma potência em desenvolvimento, sendo a segunda maior economia do mundo, com mais de 100 países parceiros pelo mundo, assumindo relevante papel das cadeias globais de suprimento. As atuais responsabilidades internacionais da China, inclusive para promover o sonho chinês não apenas da China, mas do mundo todo, requer que a fase da China isolada fique no passado e que também por lá fique o “nunca clamar a liderança para si, observar o desenvolvimento e manter sua posição, como uma vez declarou Deng Xiaoping” (FOOT, 2009, p. 136). As responsabilidades internacionais da China aumentam na mesma proporção que sua presença na ordem internacional e tem cada vez maior peso nas decisões internacionais. A China consegue ser ouvida pela comunidade internacional e é capaz com seu processo de ascensão, de promover um mundo multipolar, com mais cooperação ganha- 22 ganha nas relações internacionais do que na predominância unipolar, nomeadamente representada pelos Estados Unidos, com carácter de disseminação de princípios universalistas e imposição. Isso nos faz concluir que a realização do sonho chinês se resume a como a China volta a ser um país respeitado no mundo e que esta é a razão que levou o presidente Xi Jinping a escolher o discurso do sonho chinês para tornar a China mais próspera e encontrar novos meios para o caminho do seu desenvolvimento com características chinesas. Seus antecessores colaboraram para propiciar as melhores condições para quando o momento fosse mais propício para realizar esse sonho. E o momento chegou, mas o presidente Xi Jinping demostra querer ir mais do que reconquistar o lugar da China no mundo; não basta alcançar este patamar sozinho, já que depois é preciso mantê-lo. O presidente Xi Jinping quer transformar o sonho chinês no sonho do mundo - se os demais países aceitam esse tipo de discurso é uma outra questão -, para isso será preciso bem mais do que ser a segunda ou em um futuro próximo a primeira economia do mundo. A seguir veremos como foi determinado as metas do sonho chinês para o rejuvenescimento da nação e da realização da sociedade moderadamente próspera em todos os aspectos. 2.2 O Caminho do Sonho Chinês na visão de Xi Jinping Para realizar o sonho chinês, o presidente Xi Jinping (XI, 2014, p. 49) lançou as metas dos “dois centenários” durante o 18º Congresso Nacional do PCCh, em 2012. A primeira para 2021 (ano que o PCCh completou 100 anos) no qual a China deveria alcançar o status de uma sociedade modestamente próspera e a segunda para 2049 (ano que o país como RPC completará 100 anos), no qual China seja vista como um país socialista, democrático, poderoso, próspero, harmonioso e civilizado. O objetivo é alcançar a prosperidade do país, o revigoramento da nação e a felicidade do povo, sob o farol do socialismo com características chinesas. No mesmo Congresso também foram estabelecidos os seguintes objetivos até 2020: 1) Duplicar o Produto Interno Bruto (PIB); 2) Duplicar a renda per capita da população urbana e rural em relação aos dados do ano de 2010. (XI, 2014, p. 67). Alcançar tais objetivos permitiria concluir as metas dos "dois centenários" e concluir o ciclo do sonho chinês com a completa revitalização do país. 23 Depois de cumprir a primeira das metas dos "dois centenários" concluindo a construção integral da sociedade moderadamente próspera em 2020, vamos estimular o Partido e os povos de todos os grupos étnicos do país a trabalharem para tornar realidade a segunda meta dos "dois centenários", iniciando uma nova jornada para construir um país socialista moderno e fazer com que a nação chinesa figure de forma mais firme e orgulhosa entre as nações do mundo (XI, 2019, p. 72). Tabela 1 - PIB e PIB per capita da China: 2010 e 2020, em US dólares correntes Ano PIB / bilhões US$ PIB per capita / unidade US$ 2010 6.087 4.550,50 2020 14.688 10.408,70 Fonte: The World Bank (2023). Para tanto, o caminho traçado para a revitalização da nação chinesa deve, de acordo com o presidente Xi Jinping, (XI, 2014, p. 46-47): 1) Seguir o caminho chinês, ou seja, prezar pelo socialismo com características chinesas “conquistado durante a reforma e abertura em mais de três décadas [...] é o caminho mais acertado que corresponde à nossa realidade e conduz à prosperidade do povo e ao fortalecimento do nosso país, razão pela qual temos que segui-lo inabalavelmente” (XI, 2014, p. 67). 2) Fomentar o espírito chinês, trata-se de um espírito nacional voltado para o patriotismo, sempre alinhado aos processos de reforma e inovação; 3) Unir as forças chinesas de modo a unir todas as etnias que compõem o país para trabalhar em prol do sonho chinês, afinal o sonho chinês é o sonho de todos e, portanto, é o sonho da nação (XI, 2014, p. 46). Alcançar este sonho permitirá que cada um realize os seus próprios sonhos; 4) Ter o povo chinês como o guia na manutenção pelo poder do partido, de modo a melhorar a governança do Estado; 5) Prosperar no pensamento estratégico de que o desenvolvimento é a principal direção, sem ele não há base material e cultural que torne o sonho chinês possível; 6) Responder às expectativas e as necessidades sociais que o povo chinês espera de seus líderes "Devemos, em todo tempo, estar atentos ao clamor do povo e responder às suas expectativas. Temos que garantir ao povo o direito a uma participação equitativa e a um desenvolvimento justo" (XI, 2014, p. 51) e 7) Desenvolver e fortalecer “a unidade e cooperação entre o PCCh, os partidos democráticos e as personalidades não partidárias; [...] unindo ao máximo as forças que possam ser unidas” (XI, 2014, p. 48). O sonho chinês, como mencionado anteriormente, não visa modificar o socialismo com características chinesas. A sua realização reforça a importância de continuar com este socialismo como o pilar da nação e o norte da política nacional do partido. Ao mesmo tempo 24 que o plano do sonho chinês foi traçado no 18° Congresso Nacional do PCCh, o socialismo com características chinesas foi a diretriz mais exaltada com a concretização da revitalização da nação "porque a prática prolongada do partido e do país tem demonstrado plenamente que só o socialismo pode salvar a China e que só o socialismo com características chinesas pode desenvolvê-la" (XI, 2014, p. 07). Nesse sentido, o sonho chinês dá ênfase ao quão importante é o socialismo com características chinesas. Construir uma sociedade modestamente confortável e fazer com que esta esteja alinhada aos valores-chave do socialismo, ou seja, um país socialista, democrático, poderoso, próspero, harmonioso e civilizado é concretizar a visão de Deng Xiaoping de modernizar o socialismo. Iniciamos há apenas dezenas de anos a construção do socialismo e este se encontra ainda em sua fase inicial. A consolidação e o desenvolvimento do sistema socialista ainda precisarão de uma longa fase histórica e de lutas incansáveis por várias, mais de uma dezena e até mesmo dezenas de gerações (DENG, 1993, p. 379-380). Portanto, não existe sonho chinês sem socialismo com características chinesas. O socialismo com características chinesas é o tema de todas as teorias e práticas do nosso partido desde o início da reforma e abertura em 1978. Todo o Partido deve erguer bem alto a grande bandeira do socialismo com características chinesas e ter firmes convicções no caminho, nas teorias, no sistema e na cultura do nosso socialismo para garantir o avanço vitorioso das causas do Partido e do Estado por um caminho correto. Devemos ter em mente as características das diferentes fases do desenvolvimento do nosso país e o desejo do povo por uma vida melhor, formular novos delineamentos, estratégias e medidas e continuar promovendo o desenvolvimento coordenado da economia, política, cultura, sociedade e ecocivilização e as "quatro disposições estratégicas - a conclusão da construção integral de uma sociedade moderadamente próspera, o aprofundamento integral da reforma, a administração integral do país conforme a lei e a administração integral e rigorosa do Partido - para conquistar a vitória decisiva na construção da sociedade que desejamos e a grande vitória do socialismo chinês, bem como lutar incansavelmente para concretizar o sonho chinês da grande revitalização da nação (XI, 2019, p. 67). Por essa razão, durante o 19º Congresso Nacional do PCCh realizado em 2017, foi apresentado e consolidado como a principal linha para promover o sonho chinês e ser o norte ideológico e político do PCCh, a nova era do socialismo de Xi Jinping com características chinesas. É preciso atualizar e modernizar às diretrizes do socialismo com características chinesas para alcançar a revitalização da sociedade chinesa, uma nova era espera pela China, contudo para alcançá-la é preciso “basear nas características do tempo e atualizar o marxismo [...] basear na realidade no nosso país, nos focar nos trabalhos atuais, escutar a voz do povo e responder às suas necessidades reais” (XI, 2019, p. 75). 25 Nessa perspectiva, o presidente Xi Jinping se tornou o maior defensor do sonho chinês e conseguiu atrelar sua imagem ao sonho desde que priorizou o sonho do povo como se fosse o seu próprio sonho (XI, 2014, p. 519). Por alguns motivos, o perfil do presidente Xi Jinping é essencial para os planos do sonho chinês. É destacado como homem que pertence ao povo e um líder de visão ímpar (XI, 2014, p. 517), construindo seu próprio modelo de governança. É aquele cuja descrição vem como sendo "protetor [se mistura com a massa], é defensor da lei, do povo, da China, ele é Xi Jinping. É um modelo de governança muito diferente” (KHAN, 2018, p. 215). Aliás, a menção ao povo chinês está na maioria de seus discursos quando o assunto é sonho chinês, afinal o povo é quem pode ditar o caminho do sonho chinês. Sem o povo o PCCh nada pode fazer. Em outras palavras, “o povo é o criador da história. As massas populares são os verdadeiros heróis e a fonte da nossa força. Compreendemos profundamente que a força individual é limitada, mas, se nos unirmos como um só e agirmos com uma vontade unânime, não haverá dificuldades insuperáveis” (XI, 2014, p. 05). Portanto, a era do presidente Xi Jinping é a de concretizar o sonho chinês com as palavras de ordem revitalização do país e construção da sociedade chinesa moderadamente próspera. Basicamente essas palavras de ordem são a linha mestra do seu pensamento. François Bougon (2018, p. 197-198) denomina esse pensamento como a "Fórmula do Pensamento de Xi" que conduz a China no caminho do desenvolvimento com a meta dos "dois centenários": a) Tornar a China um grande país socialista e b) Tornar a China uma sociedade moderadamente próspera. Os pensamentos de Xi Jinping sobre o socialismo com características chinesas na nova era foram escritos na constituição do partido e na constituição. Ele governa a reforma, o desenvolvimento e a estabilidade, os assuntos internos, os assuntos externos, a defesa nacional e a governança do partido, do país e das forças armadas. Ele atravessa a filosofia marxista, a economia política e o socialismo científico. (NEWS SINA, 2021, p. 9, tradução nossa). E essa nova era tem no ano de 2049 um marco importante para a concretização de objetivo de construção de país socialista, democrático, poderoso, próspero, harmonioso e civilizado. Nesse sentido, o sonho chinês é para o presidente Xi Jinping a melhor estratégia para impulsionar o desenvolvimento do país. É um objeto extremamente factível, cujos resultados já são vividos pela população. Podemos ver em um pequeno extrato de seu discurso realizado em 22 de setembro de 2015, intitulado “O sonho chinês é o sonho do povo”, na recepção de boas-vindas promovida por organizações americanas da amizade em Seattle, e o Estado de Washington, EUA, seu seguinte pensamento. 26 No final da década de 1960, quando eu ainda estava na adolescência, saí de Beijing para trabalhar no campo em uma pequena aldeia chamada Liangiahe, perto de Yan’na, na província de Shaanxi, onde passei sete anos. Naquela altura, eu vivia em uma casa-caverna e dormia em uma cama feita de barro, assim como os aldeões locais. A vida era muito difícil. Ficávamos meses sem comer carne. Eu sabia o que os aldeões queriam mais. Mais tarde, me tornei o secretário da célula do Partido na aldeia e comecei a liderar os aldeões na produção. Eu conhecia as suas necessidades. O que eu mais desejava naquela época era fazer com que os aldeões tivessem carne na refeição e que a tivessem frequentemente. No entanto, era muito difícil que esse desejo se tornasse realidade naqueles anos. No Festival da Primavera deste ano [2015], voltei à aldeia. Eu vi estradas asfaltadas, os aldeões vivendo em casas de tijolo com acesso à internet, os idosos com seguridade social, os aldeões com seguro médico e as crianças recebendo educação na escola. Claro, a carne já não é mais um problema. Isso me deixa consciente de que o sonho chinês é o sonho do povo. Só poderemos realizar o sonho chinês quando o relacionarmos com o desejo do nosso povo por uma vida melhor. O que aconteceu em Liangjiahe é apenas um microcosmo do desenvolvimento e progresso social da China desde o início da reforma e abertura. (XI, 2019, p. 32-33). Para realizar o sonho chinês, a política externa do governo do presidente Hu Jintao optou pela política de ascensão pacífica, posteriormente denominada como a política do desenvolvimento pacífico. De acordo com Paulino (2012, p. 124) o desenvolvimento pacífico “é uma escolha que representa uma tendência global. [...] A globalização econômica tornou-se uma tendência importante na evolução das relações internacionais, interconectando cada vez mais estreitamente os diferentes membros da comunidade internacional” (PAULINO, 2012, P. 124). Como podemos ver abaixo no discurso do presidente Xi Jinping. Para realizar o sonho chinês, devemos persistir no desenvolvimento pacífico. Seguiremos inalteravelmente o caminho do desenvolvimento pacífico e aplicaremos invariavelmente a estratégia de abertura baseada no benefício mútuo. Não só nos dedicaremos ao desenvolvimento do nosso país como também continuaremos destacando nossa responsabilidade com o mundo e contribuições para ele. Beneficiaremos não apenas o povo chinês como também os outros povos do mundo. A realização do sonho chinês trará ao mundo paz, e não agitação; oportunidades, e não ameaças. (XI, 2014, p. 68). A última frase do trecho acima do presidente Xi Jinping é o ponto de destaque da mensagem que a China quer passar ao mundo. O sonho chinês não é maior que o sonho de qualquer outro país, é apenas o sonho dela. Não há nos discursos oficiais do governo chinês qualquer declaração de dominação sobre os outros países quando afirma que o sonho chinês pode ser o sonho de outras nações e beneficiar o sonho do mundo. A ideia do sonho chinês se transformar no sonho de outra nação significa que a partir da busca chinesa e por priorizar fazê-lo por meio da promoção da defesa da paz e do desenvolvimento comum e cooperativo pode contribuir para ajudar que o outro país tenha condições para desenvolver seu próprio sonho. Para a China, cada país deve encontrar o propósito de sua nação e está disposta a 27 compartilhar do trabalho da construção do seu sonho com o país que queira trabalhar em conjunto. Este é o raciocínio que a China quer que o mundo entenda. É a partir do anseio de ter um país socialista moderno, próspero, poderoso, democrático, civilizado e harmonioso que o presidente Xi Jinping (2014, p. 58) explica que o caminho do sonho chinês é formado pelo passado, pelo momento atual e muito pelo sonho que se quer alcançar no futuro. A realidade da revitalização da nação chinesa só será possível se cada cidadão chinês buscar seu sonho e como nação realizar o sonho chinês. É com inspiração no passado que a China sabe o que quer e é no trabalho do presente que a revitalização da nação, a felicidade do povo, o fortalecimento e a prosperidade do país virão no futuro com a sociedade moderadamente próspera em todos os aspectos. Por todo esse conjunto, entendemos que para a realização da revitalização da nação chinesa, o presidente Xi Jinping e o sonho chinês estão interligados. Acreditamos que a presença e ativa participação do presidente Xi Jinping é fundamental para sua implementação e continuidade. Ele é o maior incentivador dessa política. O crescimento acelerado da China por três décadas e a ascensão do país como potência mundial certamente trouxeram novos desafios e a proposta do sonho chinês fez o PCCh concluir que o socialismo com características chinesas tinha que ser inserido em uma nova era para o desenvolvimento, conforme o presidente Xi Jinping declarou respectivamente, na segunda reunião da quinta sessão plenária do 18° Comitê Central do PCCh e no Encontro com os membros do Conselho do Fórum de Boao para a Ásia, em 2015. Para liderar os mais de 1,3 bilhão de chineses na construção de uma sociedade moderadamente próspera, o nosso partido deve adaptar-se à nova normalidade do crescimento econômico, compreendê-la e orientá-la. Para conduzir o desenvolvimento socioeconômico, melhorar sua capacidade de controlar direção, fazer o planejamento geral, definir estratégias, elaborar políticas e impulsionar a reforma, o Partido deve criar novos conceitos, instituições e métodos, determinando assim o rumo do desenvolvimento (XI, 2019, p. 21). [...] Há mais de dois anos, partimos da realidade do desenvolvimento da China e continuamos adotando medidas voltadas aos problemas existentes e, ao mesmo tempo, elaboramos e levamos adiante em passos paulatinos um planejamento estratégico sobre a concretização integral da reforma, a administração integral do país conforme a lei e a administração integral e rigorosa do Partido. Trata-se de um planejamento estratégico de administração e governança do nosso país sob as novas condições históricas e de uma garantia importante para a realização do sonho da grande revitalização da nação chinesa (XI, 2019, p. 27). A retórica dos discursos do presidente Xi Jinping acerca do sonho chinês se caracteriza como um sonho universal. O que a princípio era para ser apenas o sonho do povo 28 chinês foi "interligado com os sonhos de felicidade dos povos de todo o mundo. Somente quando o país e a nação estiverem bem, todos nós poderemos ficar bem. Somente quando o mundo prosperar, a China poderá se desenvolver" (XI, 2014, p. 76). Isso tem relação com dois pontos, primeiro com a proposta de construção da comunidade mundial de interesses compartilhados que a China propõe como alternativa à política de busca de hegemonia e de disputa entre as grandes potências. Segundo, de acordo com Khan (2018, p. 210) o presidente Xi Jinping é o primeiro líder a sugerir que a China pode ser um modelo a ser seguido pelos outros países. Deng Xiaoping dizia “A China nunca buscará a hegemonia nem atropelará ninguém e sempre ficará ao lado do Terceiro Mundo” (DENG, 1993, p. 56), e este pensamento continua com o presidente Xi Jinping, afinal a mudança de presidentes ao longo dos anos não mudou a base da política externa da China que são os "cinco princípios de coexistência pacífica". A China de Xi Jinping não pretende ser a nova hegemonia do mundo, afinal como explica Paulino (2012, p. 129) a China não procura impor seus valores culturais e políticos ao mundo como valores universais e muito menos existe na história registro de ação com caráter imperialista. Mas entendemos que a atual posição da China no sistema internacional como uma potência em ascensão abre perspectiva para este tipo de interpretação. O caráter universal do sonho chinês que apontamos vem do fato do presidente Xi Jinping alinhar o tom do sonho chinês aos rumos que o país "persiste em seguir o caminho do desenvolvimento pacífico e se empenhar positivamente para a prosperidade e o desenvolvimento do mundo (XI, 2014, p. 76). E entendemos que a construção da comunidade mundial de interesses compartilhados também é o consenso que a China quer e, portanto, o caráter universal. Por ser haver preocupação quanto aos rumos que o país deve seguir que a partir do 18º Congresso Nacional do PCCh, o presidente e o partido formularam a implementação do planejamento global “cinco em um” que se refere ao planejamento integral da construção do socialismo com características chinesas, abrangendo o desenvolvimento em cinco setores, isto é, econômico, político, cultural, social e da ecocivilização, em conjunto com as “quatro disposições estratégicas integrais que são a “conclusão da construção integral de uma sociedade moderadamente próspera, o aprofundamento integral da reforma, a administração integral do país conforme a lei e a administração integral e rigorosa do partido” (XI, 2019, p. 67). É nessa estratégia que o caminho chinês está focado para concluir as metas dos “dois centenários” e para fomentar esse caminho, em 2013, a Iniciativa Cinturão e Rota emerge 29 como uma ferramenta da política externa da China com muitas capacidades de impulsionar o desenvolvimento desse planejamento e alcançar os objetivos do sonho chinês em condições e duração de tempo muito menores sem sua existência. 2.3 O Sonho Chinês e o Socialismo com Características Chinesas O século da humilhação deixou um lembrete na sociedade chinesa sobre onde o país não quer estar novamente, “a nação chinesa mergulhou em uma situação de miséria e fraqueza, ficando submetida à humilhação e à opressão de outros” (XI, 2014, p. 206). Isto contribuiu com o nascimento do nacionalismo chinês através do reconhecimento da ameaça externa e do enfraquecimento interno. Desde então, defesa e manutenção da independência e integridade física da China se tornaram o foco do PCCh. O expansionismo japonês e europeu provocou mobilizações sociais que reafirmavam o sentimento de nacionalismo. De acordo com Vasconcelos (2021) a China sentiu seu atraso cultural diante dos protestos que nasceram contra o Japão, com os movimentos da Nova Cultura e Quatro de Maio. O movimento Quatro de Maio refere-se ao movimento patriótico anti-imperialista e antifeudal ocorrido no dia 4 de maio de 1919, em Pequim. Logo após a Primeira Guerra Mundial, os países vencedores convocaram a Conferência de Paz em Paris. Na ocasião foi decidido que o Japão herdaria as possessões da Alemanha na província de Shandong. No dia quatro de maio, estudantes da universidade de Pequim fizeram manifestações para protestar contra a decisão e o movimento recebeu o apoio da população do país inteiro. Depois do dia 3 de junho, converteu-se em um movimento patriótico de massas populares anti-imperialista com a participação da classe operária e da burguesia nacional. O Movimento de Quatro de Maio foi também um movimento da nova cultura contra a cultura feudal. Este, marcado pela criação, em 1915, da revista Nova Juventude, ergueu as bandeiras da democracia e ciência, opondo-se à antiga moral e promovendo a nova literatura. O Movimento Quatro de Maio marcou o fim da revolução de velha democracia e o começo da revolução de nova democracia, inaugurando uma nova época na revolução chinesa (LU; SILVA, 2017). 30 De acordo com Lu e Silva (2017), o Movimento Quatro de Maio é um símbolo de grande relevância para os propósitos que a China quer seguir como nação. Representa um novo olhar da população chinesa, em especial dos jovens, acerca dos rumos que deveriam ser tomados para contornar o atraso e as condicionalidades externas de outros países. Lu e Silva (2017) afirmam que esse despertar está presente até os dias atuais. Conforme foi divulgado pelo PCCh uma das grandes metas estabelecidas pelo presidente Xi Jinping é a concretização da sociedade moderadamente próspera para alcançar o rejuvenescimento da nação chinesa. O PCCh declarou que caberá aos jovens de agora a conclusão da meta dos dois centenários e nessa perspectiva, o Movimento de Quatro de Maio é uma fonte de inspiração. Em 2014, por ocasião da comemoração do 4 de Maio, Xi Jinping declarou: Desde o Movimento de 4 de Maio, sob a direção do PCCh, gerações e gerações de jovens têm perseguido a ideia de “devotar minha juventude para criar um lar juvenil, país juvenil”, escrevendo emocionantes capítulos nas concorrentes históricas de salvar a nação da ameaça de extinção e de revitalizá-la. [...] Como já disse em outras ocasiões. (XI, 2014, p. 89). Uma vez que o rejuvenescimento da nação é a principal meta da China e a essência do nacionalismo chinês foi a grande força de legitimação do PCCh, apoiado pela ideologia comunista e pelo grande desenvolvimento econômico recente, o socialismo com características chinesas é o pilar para todas as decisões chinesas. Esse pilar chinês tem suas origens a partir do 11º Congresso do Comitê Central do Partido, momento de destaque na liderança do presidente Deng Xiaoping no PCCh. De acordo com Carvalho (2013, p. 45) com o anúncio do processo de reforma e abertura houve um movimento para alcançar o que o governo chamou de as Quatro Modernizações, ou seja, quatro frentes de trabalho principal, a saber: agricultura, indústria, ciência e tecnologia e defesa. E essas áreas de atuação não ficaram estagnadas naquela época, pois segundo Carvalho (2013, p. 45) essas áreas são prioridade até os dias atuais e compõem o lema “uma tarefa e dois pontos básicos”. A tarefa central estabelecida foi o desenvolvimento das forças produtivas, expressa nas Quatro Modernizações, e os dois pontos básicos correspondem, no plano econômico, as reformas e a abertura ao exterior, e, no plano político, a necessidade da manutenção do controle do Estado chinês nas mãos do PCCh, traduzidos nos chamados Quatro Pontos Cardeais. (CARVALHO, 2013, p. 45). 31 Deng Xiaoping foi o presidente que percebeu que a China não deveria ficar mais isolada e deveria angariar forças produtivas para ser inserida no mercado internacional; a desvantagem da China em relação ao que acontecia fora de suas fronteiras se tornou um fato que não deveria ser mais ignorado pelo presidente Deng Xiaoping que não encontrou resistência no meio do partido para fazer as mudanças necessárias. (CARVALHO, 2013, p. 49). A China deveria, portanto, buscar novos caminhos para desenvolver suas forças produtivas no socialismo, um caminho adaptado a sua realidade. É nestes termos que o presidente Deng Xiaoping, no começo da década de 1980, lançaria mão do termo socialismo com características chinesas. O socialismo com características chinesas compreenderia o tipo específico de socialismo que a China deveria construir o qual, atento as particularidades da sociedade chinesa, deveria estar apoiado no princípio “uma tarefa central, dois pontos básicos”. E sendo assim, o país deveria se apoiar nos seguintes alicerces: a) no plano econômico, nas reformas pró-mercado e na abertura ao exterior; b) no plano político, nos Quatro Princípios Cardeais, cujo corolário era a manutenção do controle político exercido pelo PCCh. (CARVALHO, 2013, p. 50). Sendo assim, defender e desenvolver o socialismo com características chinesas representa um pilar da essência do pensamento de Xi Jinping sobre o socialismo com características chinesas na Nova Era. "A tarefa primordial de defender e desenvolver o socialismo com características chinesas é realizar a modernização socialista e o rejuvenescimento nacional", diz a última resolução do Comitê Central do Partido Comunista da China (PCCh) sobre a história do Partido. O presidente Xi Jinping fez discursos aprofundados sobre seguir o caminho do socialismo com características chinesas para alcançar a modernização socialista. A seguir, alguns destaques de suas observações: À medida que defendemos e desenvolvemos o socialismo com características chinesas e impulsionamos o progresso coordenado em termos materiais, políticos, éticos, culturais, sociais e ecológicos, fomos pioneiros em um caminho novo e exclusivamente chinês para a modernização e criamos um novo modelo para o avanço humano. A razão fundamental pela qual conseguimos criar conquistas de desenvolvimento sem precedentes na história da humanidade é que traçamos um caminho correto. Devemos seguir nosso próprio caminho. Este é o alicerce que sustenta todas as teorias e práticas do nosso Partido. Mais do que isso, é a conclusão histórica que nosso Partido tirou de suas lutas ao longo do século passado. Não muito depois da fundação da Nova China, o PCCh estabeleceu o objetivo de construir um país socialista moderno, e os próximos 30 anos serão o momento em que nos esforçaremos para realizar essa visão histórica em um novo estágio de desenvolvimento. A modernização da China deve abranger uma população massiva, levar à prosperidade comum, proporcionar progresso material e ético-cultural, promover a harmonia entre a humanidade e a natureza e seguir um caminho de desenvolvimento pacífico. (XI, 2017, pp. 356-357) 32 Desde então esse é o socialismo com características chinesas que veio caminhando junto até que o presidente Xi Jinping precisou fazer uma atualização desse socialismo, com a finalidade de se adequar às necessidades das metas do sonho chinês, o chamado a Nova Era de Xi Jinping do socialismo com características chinesas, contudo não é algo para romper com o trabalho com já vem sendo executado pelo partido. Essa nova era é uma era para continuar avançando com a causa herdada dos nossos antecessores, abrir novos horizontes e, sob as novas condições históricas, lograr grandes vitórias com o socialismo com características chinesas. É uma era na qual se alcança a vitória definitiva de concluir a construção integral de uma sociedade moderadamente próspera, para depois construir de forma integral um poderoso país socialista modernizado. É uma era na qual o povo de todas as nacionalidades do país se une e luta de maneira contínua por uma vida melhor e realizam, passo a passo, a prosperidade comum. É uma era onde todos os filhos da nação chinesa unem as suas forças e vontades com os seus esforços para concretizar o sonho chinês da grande revitalização da nação chinesa. É uma era na qual a China se aproxima cada dia mais do centro do palco mundial e oferece, como sempre, contribuições para a humanidade. 2.4 A realização do sonho chinês com a Iniciativa Cinturão e Rota Como parte do esforço para realizar o sonho chinês e transformá-lo no sonho do mundo, o presidente Xi Jinping anunciou, em 2013, à comunidade internacional o novo empreendimento da China para financiar projetos de infraestrutura e melhorar a conectividade da Eurásia, Ásia Oriental, Ásia Central e demais regiões locais. Esse projeto foi denominado Iniciativa Um Cinturão, Uma Rota ou Belt and Road Iniciative (BRI, em inglês) formado por um cinturão econômico e uma rota da seda marítima do século XXI. Ao anunciar esse projeto, o presidente Xi Jinping já tinha planos de torná-la a parte de execução do sonho chinês. E podemos alegar isto por alguns motivos. De acordo com Fernández (2018, p. 30) o sonho chinês do presidente Xi Jinping pode ser classificado em cinco dimensões: 1) Nacional, focada em concretizar a prosperidade da China e como consequência construir uma sociedade moderadamente próspera em todos os aspectos; 2) Pessoal, visando buscar o bem-estar e proporcionar melhores condições de vida aos cidadãos, de modo que o sonho de cada chinês forma o sonho da nação; 3) Histórica, promovendo a participação dos cidadãos nas etapas do desenvolvimento; 4) Global, que oferta 33 ao mundo a possibilidade de através do sonho chinês encontrar oportunidades para realizar o sonho de seu próprio povo, com mecanismos de cooperação, desenvolvimento conjunto e benefício mútuo e 5) Antitética com a finalidade de modificar o paradigma da ordem internacional determinado pelos Estados Unidos, para criar oportunidades do sonho chinês ter espaço para realizar seus planos. Essas dimensões do sonho chinês se encaixam com os cinco principais objetivos do Cinturão e Rota: coordenação de políticas, conectividade de instalações, integração comercial, comércio desimpedido e laços interpessoais próximos. Tais objetivos servem como plano de execução do sonho chinês. Por mais de 30 anos a China esteve focada em seu desenvolvimento interno, o que nos leva a perguntar o que fez a China propor a Iniciativa Cinturão e Rota? A ascensão da China como potência mundial a fez depender cada vez mais de recursos externos para suprimir a necessidade interna bem como depender do mercado externo para poder encontrar mercado para seus produtos e a iniciativa Cinturão e Rota representa para a China uma boa oportunidade para abrir novos mercados de exportação, conceder acesso a matérias primas, diversificar parcerias e rotas de abastecimento, assim como para atender a segurança em suas fronteiras. Além disso, de acordo com Brown (2018, p. 77) a iniciativa Cinturão e Rota resolve parcialmente um enigma para a China do presidente Xi Jinping. Na década de 1990, sob Jiang [Zemin], percebeu-se que enquanto as partes costeiras do país conseguiram se desenvolver rapidamente através de suas ligações logísticas com o exterior e locais mais favoráveis para fabricação, as partes central e ocidental ficaram para trás. Dentre outras províncias, Tibete, Xinjiang, Gansu, Sichuan e Yunnan sofria de infraestrutura precária, imperfeita a serviços públicos inexistentes, baixos níveis de educação e uma série de questões ambientais, sociais e outras. Enquanto Xangai ganhava mais de US$ 10.000 PIB per capita em 2012, Gansu no noroeste ganhava menos de US$ 3.000. Havia também problemas endêmicos como pessoas instruídas que se mudam para áreas mais prósperas ou mesmo no exterior, corrupção e governança de baixa qualidade, com a complexidade adicional dos movimentos separatistas locais em Xinjiang e no Tibete, alguns dos quais se tornaram terrorismo. [...] Wang Jisi, um acadêmico, foi o primeiro a sugerir antes de 2012 que uma solução simples para o desenvolvimento das regiões ocidentais não precisaria envolver grandes investimentos do governo central e programas de ajuda, como já havia sido proposto, mas poderia, em vez disso, estar na exploração dos ativos dessas regiões têm – suas fronteiras com países como Índia, Rússia e Paquistão, e o acesso que isso lhes deu à Ásia Central e outros. Isso não apenas desbloquearia o potencial de novas fontes de crescimento, mas também diversificaria a rotas de abastecimento de recursos, que foram amplamente dominadas por uma estreita faixa de mar no Estreito de Malaca no sul que era fácil para os EUA controlar. Com decente infraestrutura e investimento, a China seria capaz de acessar petróleo e outros recursos em toda a terra, longe da interferência dos EUA. (BROWN, 2018, p. 77-78, tradução nossa) De acordo com Moretz-Sohn Fernandes (2014, p. 12), a China possui quatro tipos de unidades administrativas. Regiões de províncias com 33 regiões de províncias (22 províncias, 34 4 cidades-municípios, 5 regiões autônomas, 2 regiões administrativas especiais); Regiões de prefeituras com 333 diferentes de cidades; Regiões de distritos com 2.853 vilas de cidade- prefeitura e distritos de cidade-prefeitura e Regiões de Vila com 40.497 comunidades e vilarejos de baixa renda. Toda essa estrutura administrativa não tinha um mecanismo que pudesse fomentar o desenvolvimento de regiões que precisavam de investimento em infraestrutura, assim como as grandes cidades chinesas recebiam. Nesse sentido, a implementação da iniciativa Cinturão e Rota proporciona à China a oportunidade de investir em projetos de infraestrutura para o desenvolvimento de regiões que provavelmente não receberiam em um curto prazo de tempo. Ao desenvolver suas regiões mais precárias com a iniciativa Cinturão e Rota, a China obtém êxito em acelerar a circulação e qualidade da economia local e consequentemente abre o comércio dessas regiões ao mercado internacional. É por isso que de acordo com Caubet, Henriquez e Pavez (2019, p. 57) a escolha do governo chinês por internacionalizar a iniciativa Cinturão e Rota é parte do interesse nacional chinês. Isso significa realizar benefícios mútuos a partir do próprio desenvolvimento da China, o que não deixa de ser uma estratégia para realizar o sonho chinês. Afinal, a iniciativa Cinturão e Rota apesar de ter sido anunciada como um projeto de dimensões internacionais, cuja finalidade é desenvolver o comércio e a cooperação em uma extensa área territorial e marítima que contempla vários países, o ponto de partida não deixa de ser o desenvolvimento da China e como os projetos de investimento em infraestrutura tanto no seu território quanto nos de outros países podem conectá-los e servir como uma alternativa de novas parcerias, cooperações e saídas para possíveis entraves políticos e comerciais criando um efeito cascata de desenvolvimento simultâneo na China e no país que recebe o investimento. Para os autores Caubet, Henriquez e Pavez (2019, p. 57) o interesse nacional chinês na iniciativa Cinturão e Rota está muito enraizado, os autores apontam para o curioso fato de a China estar mais focada em usar a iniciativa Cinturão e Rota como uma estratégia para manter seu território unido, do que somente as vantagens econômicas que podem vir com o advento da operação das rotas terrestres e marítimas, conforme apontado abaixo. [...] a partir da cidade de Chongqing - considerada o quilômetro zero do Cinturão e Rota - a exportação de novos produtos de alta tecnologia que o país está criando graças ao Made in China 2025, é duas vezes mais caro que por mar. Embora a distância seja reduzida de 8 semanas para 12 dias até a Alemanha, são necessários 250 trens para transportar a carga de um navio porta-contêineres. Isso mostra como o interesse em garantir rotas para a Europa pela Ásia Central tem um foco que vai além do meramente lucrativo. O efeito geopolítico de longo prazo em casa pode transformar a situação atual, onde as províncias e regiões do noroeste estão mais alienadas do rápido crescimento econômico das costas. Esta reavaliação e revitalização das regiões mais negligenciadas, através da ICR, significa que o 35 investimento atual aposta na prosperidade futura. Em suma, é uma mensagem de sucesso para o povo chinês, e a partir da qual se revela como é de utilidade política a concretização da vontade de ligar estas regiões ao resto do país. De fato, a extensão da rota do trem de alta velocidade para Urumqi, capital da Região Autônoma Uigur de Xinjiang, pode nunca se tornar lucrativa devido ao baixo fluxo de usuários, mas é uma expressão clara da governança que o Estado busca promover, e como o governo valoriza o sucesso econômico como estratégia para manter o país unido. (CAUBET, HENRIQUEZ, PAVEZ, 2019, p. 57, tradução nossa). Na visão de Shang (2019, p. 11) a iniciativa Cinturão e Rota representa na sabedoria chinesa a criação de oportunidades estratégicas para o mundo, uma vez que entende que se trata de uma zona de interesses compartilhados por todos. E nesta visão pensamos que cabe dizer que também é a criação de oportunidades para si mesma, uma vez que o que a China quer – e já deixou claro isso quando participa do movimento de reforma da governança global – é ser uma defensora da ordem internacional, ao invés de ser uma potência que busca marginalizar e enfraquecer o sistema internacional mantendo o poder consigo, como os Estados Unidos fazem. Além disso, a iniciativa Cinturão e Rota pode propiciar melhor debate e avanços na cooperação por meio da Organização para Cooperação de Xangai, ASEAN 10+1, Fórum de Cooperação dos Estados Sino-Árabes, dentre outros. Assim como pode diminuir o tempo que levaria para encontrar solução para alguns de seus principais conflitos, como por exemplo o Corredor Econômico China-Paquistão (que apesar de trazer mais tensões com o relacionamento com a Índia) é de importância estratégica com a construção do Porto de Gwadar uma vez que é o ponto de acesso marítimo mais próximo que Xinjiang tem (KHAN, 2018, p. 231). Ainda nesse corredor, se os Estados Unidos bloquearem a costa chinesa, é a rodovia Karakoram que surge como a melhor ligação que a China tem com o mar (MARKUS, 2016, p.3). Também Gwadar dá acesso ao Mar da Arábia e ao Oceano Índico, aproximando a China ao Golfo Pérsico e Omã, ou seja, a China não precisa transportar petróleo por todo o caminho ao redor da Índia, passando pelo Estreito de Málaga (BOUGON, 2018, p. 185; MARKUS, 2016, p. 3). A iniciativa Cinturão e Rota pode ajudar a China a contornar algumas dificuldades, como por exemplo, a tentativa dos Estados Unidos de conter a China com o “pivô para Ásia”; problemas fronteiriços em Xinjiang e Hong Kong, questões de cunho ambiental e a disputa em torno do Mar da China Meridional. A promoção dos projetos de investimento pode provocar a melhora da indústria e manufatura da China, promovendo o Made in China 2025 e avançando com a ciência da tecnologia da inteligência artificial. A China poderá migrar seu 36 excedente de produção para os países ao longo da iniciativa Cinturão e Rota (ROSALES, 2020, p.87), como por exemplo, o excedente de aço da província de Hebei para o Sudeste Asiático, África e o sucesso das ferrovias de alta velocidade pode impulsionar as exportações de todos os países envolvidos (BOUGON, 2018, p. 182-183). Essas dificuldades devem ser superadas para alcançar a meta do sonho chinês e a iniciativa Cinturão e Rota se apresenta como uma excelente alternativa. Excelente alternativa porquê de acordo Wang (2016, p. 05) no que diz respeito ao Cinturão e Rota, o sonho chinês se reflete particularmente nos seguintes três aspectos: 1) A China se transforma de participante em modeladora da globalização, pois está de acordo com a tendência de desenvolvimento da integração econômica regional em todo o mundo e está acelerando a implementação da estratégia de zona de livre comércio com base em seu entorno, de modo a alcançar a livre circulação de mercadorias, capitais e trabalho; 2) A China molda a Eurásia integrada e consolida o apoio de suas grandes áreas circundantes. A conectividade construída por meio da iniciativa Cinturão e Rota estabelecerá laços entre a região Ásia-Pacífico, o motor do crescimento global, e a União Europeia, a maior economia do mundo, que trará novos espaços e oportunidades para a Eurásia, a partir da zona de radiação econômica do Leste da Ásia, Oeste da Ásia e Sul da Ásia; promoverá o comércio e a facilitação do investimento; aprofundará a cooperação econômica e tecnológica; estabelecerá zonas francas e, finalmente, criará um grande mercado euroasiático e 3) A competitividade da China será melhorada de maneira geral. Com base na iniciativa Cinturão e Rota a China identificará novas vantagens comparativas por meio da abertura em todas as dimensões do sistema de divisão global do trabalho. A China maximizará suas vantagens comparativas em todas as dimensões de recursos humanos, materiais e financeiros, experiência e padrões de indústrias relacionadas com base na "conectividade" e melhorará amplamente sua competitividade internacional em áreas como tecnologia, capital e padrões. A capacidade de alcance global da China com a iniciativa Cinturão e Rota é imensa como podemos ver nos mapas abaixo. No primeiro mapa podemos ver o alcance da iniciativa Cinturão e Rota com as rotas terrestres e marítimas atingindo as regiões inicialmente previstas em seu lançamento em 2013. No segundo mapa podemos ver a atualização da iniciativa Cinturão e Rota, incluindo todas as regiões que atualmente participam, denotando seu poder de alcance global. Nele há uma demonstração melhor de rotas, corredores econômicos, ferrovias transoceânicas e futuras conexões. O que elucida todas as possiblidades elencadas anteriormente. 37 Figura 1 – Mapa da Iniciativa Cinturão e Rota em seu lançamento em 2013 Fonte: Ortega (2015) “The New Silk Road: grand geopolitical engineering”. Disponível em: http://www.blog.rielcano.org/en/the-new-silk-road-grand-geopolitical-engineering/. Acesso em: 11 nov. 2021. Figura 2 – Mapa da Iniciativa Cinturão e Rota: Alcance Global Fonte: GARCÍA, Juan González. Mapa de OBOR: Alcance Global. 2018, p. 256. A partir dessa perspectiva, a iniciativa Cinturão e Rota aparece como um instrumento chave para alcançar o sonho chinês. A primeira meta dos “dois centenários” já foi concluída e a vida dos cidadãos chineses já está mudando, assim como dos cidadãos dos países que aderiram à inciativa. Devemos lembrar que o presidente Xi Jinping almeja que o sonho chinês 38 se torne o sonho do mundo e a iniciativa Cinturão e Rota já mudou a vida de outras pessoas. De acordo com Han (2021) no Laos, uma menina de apenas 12 anos de idade teve sua vida transformada com o financiamento do projeto de construção da usina hidrelétrica no rio Nam Mang, feita pela empresa chinesa Dongfang Eletric Corporation. A menina de nome Anuo tinha uma péssima dentição devido ao único acesso a uma água turva e fedorenta que era obtida através do único poço da cidade durante o período de seca. A situação mudou com a chegada do projeto de construção da usina quando a empresa chinesa ofereceu gratuitamente check-up médico para todos os habitantes, melhorou as condições da principal estrada e perfurou um novo poço d’água. Nas palavras de Anuo “Agora, quando rio, parece que estou muito mais feliz. [...] O peixe que a mãe cozinha durante os dias secos tem um gosto muito bom agora” (HAN, 2021, tradução nossa). Este foi o primeiro projeto realizado por um investimento chinês para cobrir um rio inteiro, construíram várias pontes, ruas, estradas, dentre outras melhorias. (HAN, 2021). O ensino de mandarim e o intercâmbio cultural e a circulação de pessoas também têm mudado a vida de muitos participantes da iniciativa Cinturão Rota. No Camboja Han, (2021) destaca a história de Chamraeun Sreytouch que estudou mandarim na escola chinesa local, posteriormente no Instituto Confúcio em Phnom Penh com o objetivo de conseguir um emprego como tradutor e melhorar a vida de sua família. Seu desempenho acadêmico gerou um convite para estudar na Universidade Dali, na cidade de Yunnan, na China. Quando voltou para o Camboja Chamraeun abriu a escola de mandarim Pei De Chinese Language School para ajudar seus conterrâneos. Já no Cazaquistão Timur Katayamovich Kuvatov, apaixonado pelo Kung Fu chinês viu o interesse pelo esporte crescer entre os jovens de seu país através de convênios e parcerias que intensificou a difusão do esporte e do interesse pela China no país. (HAN, 2016). Esses são apenas pequenos relatos dentre vários reportados, principalmente pela mídia chinesa. É claro que tudo tem dois lados e consequentemente os projetos da iniciativa Cinturão e Rota são acusados por moradores e autoridades governamentais de infringirem regras ambientais, acabar com a economia local, falta de transparência. A lista de acusações é extensa e não ignoramos que a execução dos projetos de financiamento em infraestrutura pode ser amparada por diferentes narrativas sejam verdadeiras ou falsas. O ponto é que também não podemos ignorar que a iniciativa Cinturão e Rota concede benefícios tanto para a China quanto aos demais participantes e mostrar isso é importante porque o ponto de partida e um dos objetivos da política externa da China com a iniciativa Cinturão e Rota é consolidar e desenvolver relações com os países em desenvolvimento. Nas visitas ao exterior, o presidente 39 Xi Jinping transmitiu, mais de uma vez, a seguinte mensagem: “Devemos trabalhar juntos para estabelecer uma nova parceria global mais igualitária e equilibrada, aumentar os interesses comuns de toda a humanidade e tornar a Terra um lar ainda melhor” (XI, 2014, p. 541). Nessa busca de amparo pelo diálogo e cooperação, a iniciativa Cinturão e Rota é um bom mecanismo para essa articulação. A prioridade da iniciativa Cinturão e Rota é a conectividade de instalações, ou seja, os projetos de infraestrutura. No topo da prioridade está a construção de infraestrutura em transporte, rodovias, estradas. Contudo, a proposta da iniciativa Cinturão e Rota tem potencial para expandir sua área de atuação, como já acontece atualmente na iniciativa. E por isso, sonho chinês e Iniciativa Cinturão e Rota estão lado a lado. 2.5 Xi Jinping e a Comunidade de Futuro Compartilhado O foco da Iniciativa Cinturão e Rota é na contemplação e realização dos projetos de financiamento em infraestrutura, todavia, isto não impediu que a iniciativa permitisse ao presidente Xi Jinping abordar novos campos de atuação - como veremos melhor no próximo capítulo. A Comunidade de Futuro Compartilhado para Humanidade foi uma dessas áreas. O agrupamento de nações, somado ao propósito do projeto, deu ensejo para que o presidente Xi Jinping tocasse no ponto de criar uma comunidade a partir do trabalho que está sendo realizado no Cinturão e Rota. O tema de formar uma comunidade de futuro compartilhado para a humanidade já tinha sido cogitado em oportunidades anteriores, como por exemplo, nos discursos na Assembleia Geral das Nações Unidas. A importância internacional da vocação comunitária para o futuro da humanidade e do planeta se manifestou em numerosas cúpulas internacionais e documentos da política externa chinesa. No entanto, uma das ocasiões mais recentes e relevantes é a Resolução 43/21 do Conselho de Direitos Humanos de 22 de junho de 2020 intitulada "Promoção da cooperação mutuamente benéfica no campo dos direitos humanos", que reconhece a importância de promover as relações internacionais com base no respeito mútuo, equidade, justiça e cooperação mutuamente benéfica e construir uma "comunidade com um destino compartilhado para a humanidade" na qual todos gozem dos direitos humanos. Note-se, então, como a internacionalização da comunidade através da fórmula da “comunidade de destino compartilhado” coincide com a progressiva afirmação do direito internacional dos direitos humanos na China. Liu Huawen enfatiza que "as leis e organizações internacionais oferecem um consenso jurídico da comunidade, ou melhor, uma norma comum” (Liu, 2008, p. 7), e recentemente foi inserido no “Pensamento de Xi Jinping sobre o Estado de Direito” (Liu, 2020), o estado de direito de Xi Jinping reflete a conexão orgânica 40 entre o estado de direito nacional e o estado de direito internacional. Portanto, há um novo paradigma se desenvolvendo na China, que é construir um novo tipo de relações internacionais e construir uma comunidade com um futuro compartilhado para a humanidade. (STAIANO, 2022, p. 05-06, tradução nossa). A comunidade de futuro compartilhado para a humanidade quer contribuir para que as relações internacionais possam ser mais equânimes, o que pode parecer uma utopia ou até mesmo um objetivo “quase” impossível de ser alcançado, tendo em conta todas às disparidades internacionais que adentraram por séculos e persistem até os dias atuais. Todavia, em algum momento o discurso precisa ser superado pela ação, e por isso os movimentos que o presidente Xi Jinping tem feito representam uma tentativa de mudança, cujo êxito não depende apenas da China e por isso não temos como afirmar se a comunidade de futuro compartilhado vai ser concretizada. Inclusive a China busca compreender de que maneira ela poderia ser instituída e como funcionaria. O fato de a China propor uma comunidade de futuro compartilhado para humanidade no sistema internacional de acordo com Staiano (2022, p. 6) representa “uma nova solução de governança global proposta pela China, que prevê a criação de “um cinco em um global” que inclui política, segurança, economia, cultura e ecologia”. E, portanto, a comunidade de futuro compartilhado é mais uma proposta de governança global fora dos moldes da atual governança global liderada pelos Estados Unidos. A "comunidade" refere-se ao conjunto de estados, pequenos e grandes, que coexistem pacificamente entre si (relacionalidade). através de valores comuns inspirados por países líderes como responsáveis pela ordem internacional (autoridade humana), respeitando e ajudando uns aos outros (simbiose). Nesta ocasião, será aprofundada a teoria chinesa das relações internacionais da simbiose, que tenta esclarecer a evolução da sociedade aplicada às relações internacionais. O sistema simbiótico internacional é uma teoria das relações internacionais proposta pela chamada "Escola de Xangai", que uniu os conhecimentos da sociologia, biologia e filosofia com as relações internacionais. (STAIANO, 2022, p. 6-7). Nesse sentido, na visão de Staiano (2022, p. 10) a proposta da comunidade de futuro compartilhado para a humanidade é uma tentativa válida de buscar que as relações internacionais passem por um processo de “democratização”, a partir de valores comuns partilhados. Isso nos mostra como a comunidade de futuro compartilhado é um desafio de grande envergadura porque até o momento não conseguimos em nenhum âmbito institucional agrupar a totalidade dos participantes e fazer com que todos trabalhem em prol dos mesmos valores. 41 Além disso, a China insiste na possibilidade de concretizar a comunidade como um elemento a mais que trabalharia em prol do sonho chinês. Todavia, importante pontuar que a comunidade de futuro compartilhado não é essencial para a concretização do sonho chinês. Ela é importante para contribuir com o processo de mudança que alguns países estão pedindo junto com a China, conforme já apontamos. A comunidade sozinha não seria capaz de alcançar as metas estabelecidas para o sonho chinês, para essa tarefa a Iniciativa Cinturão e Rota já foi escolhida. E pelo escopo do sonho chinês estar projetado no Cinturão e Rota, a comunidade surge como um elemento a mais no que podemos chamar de momento pós- concretização do sonho chinês, mas a comunidade precisa começar a ser construída no atual momento para que possa funcionar no futuro. Enquanto esse momento não acontece e a China encontra uma proposta que torne a comunidade viável, o presidente Xi Jinping ensaia algumas possibilidades dentro da Iniciativa Cinturão e Rota. O presidente Xi Jinping considera algumas iniciativas do Cinturão e Rota dentro do escopo da comunidade de futuro compartilhado, como por exemplo, o Parque Industrial China-Bielorrússia é consider