20 vol. 4, num. 7, 2014 A QUESTÃO DA DIFERENÇA NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA: REFLEXÕES A PARTIR DE ZYGMUNT BAUMAN Rafael Bianchi Silva1 Alonso Bezerra de Carvalho2 Resumo: O objetivo deste artigo é discutir a questão da diferença e da alteridade a partir das análises da sociedade contemporânea realizadas pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman. O autor observa que as relações humanas estão pautadas pela lógica de custo- benefício, atrelada a valores de descartabilidade presentes na sociedade de consumo. Ao mesmo tempo, tem-se construído formas de eliminação da diferença através da construção de uma política de afastamento daqueles que são considerados estranhos. Para o autor, as cidades são a materialização da ambivalência de estar com o outro na contemporaneidade, sendo o locus de vivência de aproximação e afastamento do outro expressados pelo medo à diferença. Como resultado desse processo, encontra-se o empobrecimento relacional, o sentimento de solidão e uma crise ético-política observada a partir primazia do privado/intimidade em detrimento à dimensão/ação pública. Palavras-Chaves: Zygmunt Bauman; Contemporaneidade; Diferença Abstract: The objetive of this article is discuss the question of difference and alterity presents in analyzes of contemporary society conducted by the polish sociologist Zygmunt Bauman. The author observed that human relations are guided by a logic of cost-benefit connected with values of present in the discardability of consumer society. At the same time, it has built ways of eliminating difference through the construction of a politics of expulsion of those considered strangers. For the author, the cities are the materialization of the ambivalence of live with the other people in contemporary times, being the locus of experience approach and retraction to the other expressed by fear of the difference. The result of this process is the impoverishment relational, the feeling of loneliness and an ethical-political crisis seen that could be seen from the primacy of the private/intimate rather than the public dimention/action. Keywords: Zygmunt Bauman; Contemporary Society; Difference. INTRODUÇÃO O objetivo deste trabalho é discutir a questão da diferença a partir das análises realizadas pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman acerca da sociedade 1 Doutor em Educação (UNESP/Marília). Docente do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia (PPI/UEM) da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Email: tibx211@yahoo.com.br 2 Doutor em Educação (USP) e Livre-Docente em Didática (UNESP). Docente do Departamento de Educação da UNESP/Assis e do Programa de Pós-graduação em Educação da Unesp/Marília. E-mail: alonsoprofessor@yahoo.com.br 21 vol. 4, num. 7, 2014 atual. Essa temática é importante dentro da obra do autor e pode contribuir para melhor compreensão do modo de vida colocado em prática pelos indivíduos no contexto contemporâneo. Entende-se que a sociedade é um tecido vivo que passa por mudanças ao longo da história. Bauman observa em suas análises (2008a) que desde a fundação da sociedade industrial coloca-se como ponto de fundamento o imperativo da ordem, entendido enquanto motor das diferentes instâncias sociais. As transformações encontradas no que é chamado de “sociedade líquido- moderna”, segundo o autor, são derivadas da perda da capacidade irrestrita de controle e previsão, gerando o que ele denomina de “modernidade sem ilusões”. Passa-se a disseminar discursos que apontam para necessidade de flexibilidade e imprevisibilidade, na qual os indivíduos são colocados à deriva à sua própria sorte. Paralelamente a tal processo, paralelamente ocorrem uma série de rupturas que incluem o enfraquecimento institucional, a sensação constante de instabilidade e, por fim, o sentimento de medo. Como consequência, vê-se uma mudança no sentido das relações grupais, interpessoais e comunitárias, gerada pela necessidade de segurança que é paga com forte aumento no nível de restrição individual. Nesse ponto, as certezas do eu são colocadas em questão, constituindo uma nova esfera privada, marcada pelo narcisismo e a minimização da capacidade de enfrentamento das angústias inerentes à existência. Assim, o homem de nosso tempo refugia-se no consumo, tomado como possibilidade de resolução do mal estar contemporâneo. No contexto indicado, observa-se que a dinâmica da vida humana passa a ser baseada em relações que são colocadas no mesmo patamar de objetos de consumo, ou seja, são pautadas pela lógica de custo benefício. Veremos a seguir alguns impactos desse processo. ALTERIDADE E DIFERENÇA Inicialmente, é possível observar que o discurso que vê o homem em sua dimensão de sujeito individual, único e suficiente, dispensa seu envolvimento em questões que incluem o outro. Destaca-se que tal ponto gera efeitos tanto no que diz respeito a dimensão ética como também para o debate da política. Quanto a esse termo, Bauman faz um desdobramento em duas esferas. A primeira, o define 22 vol. 4, num. 7, 2014 enquanto conceito entendido como “[...] a crítica contínua da realidade [...]” (2008a, p.76) e, portanto, um mecanismo de trocas entre os homens. Na segunda, o autor indica que também se trata das formas que os indivíduos se portam no mundo em relação a si próprio e aos outros, construindo, portanto, “políticas da vida”, que se se constituem de um marco individual: “[...] se trata de lutar por um ‘espaço’ da própria identidade individual, preservando a dos outros [...]” (BAUMAN, 2008a, p.210). A vida, portanto, é um projeto que ganha corpo nas experiências e construções realizadas por cada um ao longo de sua existência (BAUMAN, 2009b). Essa construção implica o outro, o que remete a necessidade de debater a questão da alteridade e investigar as formas relacionais entre sujeitos. Bauman (2009c) faz uma longa análise sobre esse processo, indicando a ambivalência das relações amorosas em nosso tempo. Assim, observa-se que “[...] na versão comercial, os laços se transformam em bens, ou seja, são transferidos a outra esfera, regida pelo mercado [...]” (p.98). O autor ainda aponta que: [...] Se os vínculos humanos, como o resto dos objetos de consumo, não necessitam ser construídos como esforços prolongados e sacrifícios ocasionais, senão que são algo cuja satisfação imediata, instantânea, cada um espera no momento da compra [...] então não faz sentido "jogar dinheiro bom em cima de dinheiro ruim” pretendendo salvar a relação, com cada vez mais gasto de energia e menos ainda sofrer com as inquietudes e incômodos que isso implica. Mesmo um pequeno problema pode causar a ruptura da parceria; desacordos triviais se tornam disputas amargas, pequenos atritos são tomados como sinais de incompatibilidade essencial e irreparável [...] (2009a, p.174). Assim, no que diz respeito às relações humanas, antes de se expor ao outro é melhor se precaver. Mas essa prevenção é em relação a que? Ou a quem? A resposta a essas questões passam necessariamente pela construção da diferença pela sociedade de consumo que está relacionada pela capacidade de acesso a determinados objetos, sendo parâmetro de diferenciação social. Dessa forma, os objetos de consumo detêm a chave para o indivíduo mostrar quem é enquanto diferente, sendo que esta diferença é reconhecida e decodificada dentro de um dado campo social que ao mesmo tempo, inclui e exclui tais traços. Vê-se, nesse processo, o surgimento da sensação de pertencimento que oferece um campo 23 vol. 4, num. 7, 2014 sedutor e, ao mesmo tempo, perigoso, de pretensa estabilidade e afastamento daqueles que não são reconhecidos como iguais e, portanto, merecedores de participarem de um grupo. Bauman (2010a) indica, porém, que não se trata de pessoas vinculadas entre si, mas sim uma espécie de “enxame”, no qual os indivíduos “[...] se juntam, se dispersam e voltam a se reunir em ocasiões sucessivas, guiados cada vez mais por temas relevantes, diferentes e sempre em mudança e atraídos por objetivos ou brancos e em movimento [...]” (p.29). A diferença atravessa o mundo sensível para atingir a dimensão do indizível. Como afirma Craia (2005, p.71), ela “[...] não possui uma identidade que a defina, nem um nome que lhe corresponda, ela é, por um lado, princípio nômade [...] por outro, elemento livre que escapa a essa mesma representação, que, paradoxalmente, é permitida por ela – a diferença [...]”. Assim, atuar sobre a diferença é realizar um processo de desconstrução do outro, o que potencializa, como aponta Pierucci (1999, p.120), “[...] a emergência de novas diferenças. Ou seja, ela [a diferença] produz, social e sociologicamente, outras diferenças além dela, por causa dela, contra ela mesma [...]”. Bauman (2010a) faz referência a esse processo a partir do conceito de “outredade” tomado de Levinas, no qual é pontuado o impedimento de planificação do outro pela norma. Esse processo forma uma relação não simétrica com os diferentes indivíduos não dependente a priori de uma reciprocidade no que diz respeito ao outro. Insere-se, porém, a questão de que a existência é inconcebível sem compartilhamento, o que leva ao sentimento e necessidade de responsabilidade de um sujeito em relação ao outro. O autor afirma que “a partir do momento em que o Outro me olha, sou responsável por ele, sem ter assumido responsabilidades quanto a isso [...]” (2009b, p.159). Esse processo nos aproxima da discussão da alteridade, discurso presente na contemporaneidade que aponta para o (re) conhecimento do outro, ou seja, pela sua Diferença em relação a si, o que somente pode ser tomado a partir das relações que vão sendo estabelecidas nos diferentes contextos sociais. Como aponta Jodelet (1998), trata-te de um duplo processo de construção e exclusão separação por uma tênue linha sustentada por uma série de processos representacionais: 24 vol. 4, num. 7, 2014 [...] O outro, como “não-eu”, “não-nós”, deve ser afastado ou tornar- se estranho pelas características apostas àquelas que exprimem o que é próprio da identidade. O trabalho de elaboração da diferença é orientado para o interior do grupo em termos de proteção; para o exterior, em termos de tipificação desvalorizante e estereotipado do diferente [...] (p.51, grifo do autor). Conforme afirma Jovchelovith (1998), a realização da alteridade em sociedades contemporâneas pode ser vista como problemática o que nos faz pensar a maneira com que a dimensão intersubjetiva é constituída. Pensando que somos sujeitos que vivem em dado momento histórico, o mundo “interfere na forma com a confrontação do eu sensível e pensante com o rosto do outro [...]” (BAUMAN, 2010a, p.65). Nesse contexto, encontramos a formação de um campo de relações que em retroalimentação que gera o que Ortega (2004) chama de “tiranias da intimidade”, processo no qual ao invés da potencialização de troca entre os sujeitos, gera-se um olhar íntimo tomado em uma esfera individual, tornando as relações tornam-se mais distantes, ainda que aparentemente próximas. Na contemporaneidade, a proximidade com o estranho comumente é vista como sinal de perigo e por essa razão, visto como uma causa do forte medo e ansiedade vivenciados pelo individuo contemporâneo. Isso se deve como afirmam Bauman e May (2010, p.61), ao fato de que “eles” – os estranhos – “[...] pertencem a um ao outro e formam um só grupo, porque todos e cada um partilham a mesma característica: nenhum deles é “um de nós” [...]”. O estranho se mostra não apenas em sua passividade, mas principalmente pela sua ação. Ele é uma variável que foge às equações de parametrização e a qualquer forma de predição. Essa brecha é sentida como um precipício que impede o indivíduo para alguma forma de enfrentamento (BAUMAN, 2009c). Assim, toda relação trará consigo uma dose de insegurança que implica o confronto com o novo, com o diferente. [...] O estranho perturba a ressonância entre distância física e psíquica: ele está fisicamente próximo, mas permanece espiritualmente distante. Ele traz para o círculo íntimo da proximidade o tipo de diferença e alteridade que são previstas e toleradas apenas a distância — onde podem ser desprezadas como irrelevantes ou repelidas como hostis. O estranho representa uma 25 vol. 4, num. 7, 2014 "síntese" incongruente e portanto ressentida "da proximidade e da distância" [...] (BAUMAN, 1999, p.69, grifo do autor). Por tal razão, conforme escreve o autor (2009b, p.186), viver com o Outro “[...] é verdadeira e plenamente, um inferno [...]”. Como conciliar tal disposição com a condição de medo a qual vivemos? Constituímos uma sociedade fundamentada em certo clima de tensão, movido pelo receio do perigo estar em todo e qualquer lugar. Como consequência, os indivíduos não sabem muito bem em quem se pode confiar. Nesse sentido, a presença do estranho acaba por se constituir como um ponto de suporte para a sociedade líquido-moderna e o modo de vida para ela construído (BRACHT; ALMEIDA, 2006). CIDADE, PROXIMIDADE E ESTRANHAMENTO. Observa-se que as cidades modernas mostram as formas paradoxais de lidar com os estranhos e consequentemente com a diferença. A análise realizada por Bauman aponta que os indivíduos acabam por se deslocar em sua existência, sem conseguir afastar-se por completo da sensação de estranheza que se encontra em todos os lugares nas diferentes relações com os outros. A partir disso, a construção de estratégias para lidar com tal processo torna-se fundamental para afastamento de uma ameaça pressuposta. Encontramos aqui a formulação de demarcação da diferença. A primeira delas está relacionada com a construção de um discurso que identifica o grupo de diferentes como uma espécie de “resto” da comunidade, ou seja, a formação de um grupo que não atende aos critérios de significação possível em um contexto social específico, impedindo a possibilidade de enquadramento, justificando então, sua exclusão do espaço de interrelações demarcado institucionalmente. Parece claro que não se responde de forma meramente passiva as regras de um sistema social, conforme aponta Ruiz (2004, p.79), ao discutir os modos de sujeição, “[...] o indivíduo contemporâneo tem muitas resistências às formas disciplinares extremas ou forçadas [...]”. Isso gera uma condição de inadequação do sujeito ao contexto em que vive. Essa reflexão retoma a problemática de que em 26 vol. 4, num. 7, 2014 maior ou menor grau, todos são diferentes, estranhos, estrangeiros, ou em última análise, resíduos de determinadas comunidades. Assim, manter distância e evitar o estranhamento e a diferença, torna-se uma tarefa difícil de ser realizada. Nas grandes cidades, não há para onde enviar a grande massa populacional residual. Assim, elas se configuram em “[...] espaços em que os estranhos ficam e se movimentam em estreita proximidade uns dos outros” (BAUMAN, 2007, p.90). O desafio quanto aos estranhos, portanto, é isolá-los. Assim, projetos de atendimento a comunidades carentes, desenvolvimento e urbanização de bairros afastados, formação de mão-de-obra qualificada e emprego em áreas próximas aos locais atendidos possuem aqui um caráter ambivalente: ao mesmo tempo em que garantem certa qualidade de vida também mantém os diferentes afastados. A partir de tal perspectiva, vê-se a construção dos chamados “guetos comunitários”: mini-sociedades/comunidades formada para e por aqueles que, de um lado, estão à margem da sociedade de consumo, e de outro, os que dela fazem parte. Determinados grupos se enclausuram e criam barreiras simbólicas impeditivas para os que não pertencem às suas comunidades, fazendo que muitos não se autorizem ou mesmo não ousem se manifestar, ou mantenham postura de recato, contenção ou ainda de manifestações às vezes incompreensíveis fora do grupo de origem (SCHOLZE, 2007, p.66). Porém, há outro tipo de construção comunitária chamada por Bauman (2009d) de “gueto voluntário”. Dentro dessa perspectiva, os laços humanos caracterizados por indivíduos fragilizados fundamentam-se na formação de tribos urbanas moduladas por diferentes traços de obtenção de estéticas “próprias” a partir da utilização de roupas de determinadas marcas, acesso a músicas em determinados espaços, a bebidas de determinados gêneros o que implica, dentro desse contexto, em ser superior a outros que não possuem tal acesso. A formação da sociedade de semelhantes é baseada, no contexto contemporâneo, nos encontros de ocasião, modulados pela afinidade de momento. Na selva de pedra das cidades urbana, a ênfase no agora aponta a direção na qual os indivíduos podem percorrer, indicando caminhos e companhias possíveis. Tais comunidades, [...] supostamente se originam em torno de eventos, ídolos, pânicos ou modas: pontos focais mais diversos que compartilham o traço de 27 vol. 4, num. 7, 2014 uma expectativa de vida mais breve. Não mudam mais tempo que as emoções que as convertem em foco de atenção e impulsionam a união de interesses – fugazes, porém, não por isso menos intensos – que convergem aderindo-se a causa (BAUMAN, 2009c, p.53-54). Nesse ponto é importante destacar dois elementos que convergem: de um lado, a construção de uma espécie de “moda” tomada em seu traço mais radical; de outro, um tipo de vínculo que mesmo provisório, traz em si, o afastamento do diferente. Em outras palavras, constrói-se um novo sentido social acerca da normalidade pautado não mais por critérios científicos e religiosos (marca da modernidade clássica), mas sim, por um tipo de “opinião pública” potencialmente inclusiva, mas concretamente excludente. A partir disso é possível discutir elementos importantes para a compreensão do posicionamento dos indivíduos em relação ao outro. A primeira possibilidade parece estar relacionada com o desenvolvimento de certa “indiferença”, o que se configuraria como uma quase “não-relação”. Diferentemente, do medo à diferença, o sentimento de indiferença é o desdém pelo que vem do outro que não é levado em consideração porque ele praticamente não existe. Como desdobramento, gera-se um fechamento subjetivo em relação ao que vem do outro. Assim, o que cada um vive é de sua alçada privada e não cabe qualquer tipo de comentário ou envolvimento com outro seja ele quem for. Tal posição pode ser observada em dizeres comumente presentes em conversas cotidianas, como por exemplo, “cada um faz da vida o que bem quer” ou ainda “cada um sabe o que é melhor para si mesmo”. Neste contexto, conforme explicam Bauman e May (2010, p.71), “[...] o que se perde no processo é o caráter ético dos relacionamentos; vasta gama de interações humanas é desprovida de significação [...]”. As duas outras posições remetem ao caráter paradoxal e ambivalente as cidades e apontam para a capacidade de misturar-se com o outro. AMIZADE E MEDO À DIFERENÇA A primeira dessas posições é chamada pelo autor de “mixofobia”, ou de forma direta, o medo ao diferente3. Segundo Bauman (2011a, p.191), ela “[...] manifesta-se no impulso de construir ilhas de similaridade e identidade em meio 3 Bauman (2006) também utiliza o termo “heterofobia” para fazer a alusão a tal posicionamento. 28 vol. 4, num. 7, 2014 a um oceano de diversidade e diferença [...]”. Trata-se de uma das consequências da homogeneização dos espaços públicos dentro das grandes cidades, que de certa forma, tem dificultado a convivência entre as pessoas. Ainda que tal diagnóstico seja parcial, a análise realizada por Bauman – influenciada pela obra de Hannah Arendt e Richard Sennett - indica que faltam espaços de trocas entre as pessoas que passam a atuar cada vez mais na dimensão privada, o que fortalece e enfatiza a diferença entre os sujeitos e com ela, as políticas de segregação. Assim, valoriza-se a dimensão interna/íntima/privada em detrimento das trocas realizadas com os outros membros da comunidade humana. Adentramos em uma análise do campo da política a partir da questão do “espaço público”. Bauman (2009e, p.104-105) define o conceito ao afirmar que: [...] o espaço é “publico” na medida em que homens e mulheres aos quais lhes permite a entrada têm probabilidade de entrar sem serem pré-selecionados [...]. A presença em um espaço público é, pois, anônima e, por conseguinte, é inevitável que quem está presentes nesse espaço tendam a ser estranhos entre si [...]. São nesses espaços públicos aonde a vida urbana e tudo aquilo que a diferencia de outras formas de união humana alcança sua máxima expressão, complementada com suas alegrias e penas, premonições e esperanças, mais características. Nas sociedades contemporâneas, houve uma mudança fundamental quanto à formação dos laços comunitários, no sentido restrito do termo. Para que o sentido comunitário exista, são necessários laços que sejam reconhecidos como possuidores de algo “comum”, ou seja, que um número significativo de pessoas em dado contexto identifique traços presentes em outros membros de um dado grupo. Ao falar de um deslocamento para a instância privada, encontra-se o declínio desse reconhecimento e a crescente valorização da ideia de autonomia enquanto expressão de liberdade e independência do Outro. Dessa forma, não há sentido conviver com o diferente e por essa razão, não há porque as cidades serem projetadas para atender a essa demanda. Existem espaços com muitas pessoas, 29 vol. 4, num. 7, 2014 mas que no fundo estas se encontram como átomos sem ligação sendo reconhecidas muito mais pelas suas diferenças do que pelo que há de comum entre si. Assim, “[...] a cidade oferece a possibilidade de permanecermos em um lugar público, mantendo intacta nossa privacidade” (BAUMAN E MAY, 2010, p.70). O risco que enfrentamos é descrito por Bauman (2009c, p.145) ao pontuar que “[...] à medida que cresce a polivocalidade e a variedade cultural do entorno urbano na era da globalização [...] as tensões provocadas por uma indignante/confusa/irritante falta de familiaridade do ambiente seguramente seguirá estimulando impulsos segregacionistas”. Chegamos então ao medo à Diferença, favorecido pela distância do outro. Por consequência, diminui-se a tolerância, irrompe a sensação de ambivalência que serve de base para o aparecimento da angústia, o que pode derivar possível necessidade de isolamento, gerando assim, um processo de retroalimentação do medo. Nesse sentido, o estabelecimento de uma rotina se torna importante elemento para proteção a Diferença. Subjetivamente, toda essa engenharia de manutenção da distância, mostra-se fracassada já que os encontros não deixam de acontecer. O estranho tende a retornar, fazer-se em sua presença, tornando-se relevante. Conforme aponta, “[...] lançar o outro para o fundo do cenário não o faz desaparecer. O fundo inegavelmente está lá [...]” (p.177). Ou em outros termos, “ele [o estranho] entrou no mundo da vida sem ser convidado, com isso lançando-me para o lado receptor da sua iniciativa, transformando-me no objeto da ação de que ele é o sujeito [...]” (1999, p.68). E mais do que isso, reivindica o direito de ser objeto de responsabilidade e de ser, em última instância, tratado como amigo. É necessário uma preparação para o golpe: “[...] a vida líquido- moderna é uma vida de suspeita permanente e vigilância incessante. Não há como saber de que lado do vínculo virá o golpe [...]” (BAUMAN, 2008b, p.66). Assim, o ato de vigiar “[...] torna-se necessidade constante em contextos nos quais as imagens são formadas por preconceito [...]” (BAUMAN E MAY, 2010, p.57). Temos aqui o nascimento de uma espécie de “paranóia mixofóbica”, que: [...] se autoalimenta e funciona como profecia autocumprida. Se é adotada a segregação como cura radical do perigo que representam os estranhos, a coabitação com estranhos se faz cada dia mais difícil. 30 vol. 4, num. 7, 2014 A homogeneização das vivências e a redução ao mínimo inevitável de toda troca e comunicação entre eles é uma receita segura para intensificar e aprofundar o impulso até a segregação e exclusão (BAUMAN, 2009b, p.149). Viver com o outro gera muitas ansiedades. Por essa razão, não é possível afirmar que o medo nasce da mixofobia, sendo esta, um de seus desdobramentos. Bauman (1997) explica que a ansiedade nasce da dissolução da face do Outro nos “Muitos”, ou seja, nas pessoas, aqui entendidas em sua dimensão imagética. Aponta o autor que “[...] máscaras não são confiáveis como faces [...]” (p.133), escondem tanto quanto revelam. E aqui está a situação: deve-se confiar (até certo ponto) nas máscaras, goste ou não e deve-se viver com essa ansiedade. Quando se toma tal sensação como medo de confiar, é necessário proteger os “nossos” desses intensos perigos. Encontro neste ponto a ameaça da perpetuação de tal elemento. Bauman (2009 d, p.49) faz uma alusão à questão ao indicar que “[...] muitas pessoas resolveram transmitir esse ‘instinto de evitar’ às gerações futuras, colocando seus filhos em escolas segregadas, em que podem viver imunes a esse mundo horrendo, ao impacto assustador de outras crianças provenientes [...]” de famílias consideradas tipicamente como “erradas”. Claro que há uma questão de perspectiva. Quando mantemos o outro afastado, do que exatamente nos afastamos, além deste corpo que se mantém distante? Em outras palavras, se cada agrupamento humano constrói um mundo próprio ao qual faz parte, o afastamento do Outro implica em uma não-experiência deste mundo de Diferença. Nessa direção, a sociedade contemporânea não buscou o enfrentamento da Diferença, mas apontou para a postura individualista, materializada no que o autor chamou de “terapia de fuga”: [...] Uma vez que esqueceram ou não se preocuparam em adquirir as habilidades necessárias para uma vida satisfatória em meio à diferença, não é de estranhar que os indivíduos que buscar e praticam a terapia da fuga encarem com horror cada vez maior a perspectiva de se confrontarem cara a cara com estranhos. Estes tendem parecer mais e mais assustadores à medida que se tornam cada vez mais exóticos, desconhecidos e incompreensíveis, e conforme, o diálogo e a interação que poderiam acabar assimilando sua “alteridade” ao mundo de alguém se desvanecem, ou sequer conseguem ter início. A tendência a um ambiente homogêneo, territorialmente isolado, pode ser deflagrada pela mixofobia. Mas 31 vol. 4, num. 7, 2014 praticar a separação territorial é o colete salva-vidas e o abastecedor da mixofobia; e se torna gradualmente seu principal reforço (BAUMAN, 2007, p.94). Tem-se como consequência tanto o delírio (movido pela exclusão de certos critérios de objetividade, conforme indica BAUMAN, 1999) que mantém o estranhamento quanto o empobrecimento da vida a partir da restrição do vivido. É o que o autor chama de “mundos-de-vida separados” (2009 d, p.16), não-comum ou sem-vínculos. Vê-se também que há uma íntima relação com a própria configuração do mundo atual no qual: [...] Ocupados em ganhar mais dinheiro em função de coisas de que crêem para serem felizes, homens e mulheres têm menos tempo para a empatia mútua e para negociações intensas, por vezes tortuosas e dolorosas, mas longas e desgastantes. E ainda menos para resolver seus mútuos desentendimentos e discordâncias. Isso aciona outro círculo vicioso: quanto mais se obtêm êxito em “materializar” a relação amorosa [...], menores são as oportunidades para o entendimento mutuamente compassivo exigido pela notória ambiguidade poder/carinho do amor [...] (BAUMAN, 2008c, p. 153- 154). É exatamente estes apontamentos que a segunda posição indicada por Bauman parece combater. Nomeada “mixofilia”, encontramos nela uma aproximação com a ideia de “amizade” expressa em seu sufixo. Implica na aproximação ao diferente, na experiência de espaços de convívio que fomentam a solidariedade, cooperação e ampliação das visões de mundo, ao mesmo tempo em que potencializam e novos encontros (o que é chamado pelo autor – 2011b -de “metaintegração”). Tal processo pode ser visto inicialmente na construção de espaços públicos que se mostram como “hospitaleiros” e que atraem os habitantes do campo urbano para compartilharem o viver de cada dia. O problema é que esse tipo de experiência tem sido cada vez mais rara, visto que as próprias cidades tornaram-se obstáculo para esse tipo de encontro. Conforme explica Sennett (2003, p.289) em sua análise sobre a arquitetura das cidades e os efeitos na subjetividade humana: O individualismo moderno sedimentou o silêncio dos cidadãos na cidade. A rua, o café, os magazines, o trem, o ônibus e o metrô são lugares para se passar a vista, mais do que cenários destinados a 32 vol. 4, num. 7, 2014 conversações. A dificuldade dos estrangeiros manterem um diálogo entre si acentua a transitoriedade dos impulsos individuais de simpatia pela paisagem ao redor - centelhas de vida não merecem mais que um lampejo de atenção. O mesmo autor faz uma análise interessante acerca da construção das cidades e sua relação com a atuação dos profissionais especialistas, responsáveis pelo planejamento de uma vida sem resistências, o que pode ser entendida pela diminuição da necessidade do indivíduo prestar atenção ao mundo à sua volta. Formula-se um distanciamento e uma concepção na qual “ordem” está relacionada com falta de contato. [...] Ao planejar uma via pública, por exemplo, os urbanistas frequentemente direcionam o fluxo de tráfego de forma a isolar uma comunidade residencial de uma área comercial, ou dirigi-lo através de bairros de moradia, separando zonas pobres e ricas, ou etnicamente diversas. [...] A plenitude dos sentidos e a atividade do corpo foram de tal forma erodidas que a sociedade atual aparece como um fenômeno histórico sem precedentes. Os primeiros indícios dessa transformação são perceptíveis, segundo esses críticos, a partir das mudanças de caráter da população das cidades. A massa de corpos que antes se aglomerava nos centros urbanos hoje está dispersa, reunindo-se em pólos comerciais, mais preocupada em consumir do que com qualquer outro propósito mais complexo, político ou comunitário [...] (2003 p.18-19). O autor afirma que os tradicionais espaços públicos estão sendo cada vez mais suplantados por espaços de produção privada – tanto propriedade quanto administração – ao mesmo tempo em que tais espaços funcionam para a reunião pública (como nos espaços de consumo, por exemplo). O direcionamento ao eu, portanto, transforma o acontecimento de contato com o outro em algo sem passado e sem futuro. Por essa razão, Bauman (2011a, p.43) afirma que “[...] a crise atual da privacidade está bastante ligada ao enfraquecimento, à desintegração e à decadência de todas as relações inter-humanas”. Ao atrelar estranhamento e distanciamento, construímos o que o autor chama de “desencontro”: [...] A arte do desencontro é primeiro e antes de mais nada um conjunto de técnicas que servem para desertificar a relação com o 33 vol. 4, num. 7, 2014 Outro. Seu efeito geral é uma negação do estranho como objeto moral e sujeito moral. Ou melhor, a exclusão de situações que possam dar ao estranho uma importância moral [...] (1999, p.72, grifo do autor). Esse processo é derivado da formação e manutenção de laços a partir de relações de trocas por interesses individuais, próprios à sociedade de consumo. Por essa razão, Considerar uma relação como uma transação comercial não é, em nenhum aspecto, uma cura para a insônia. A inversão realizada na relação é que esta é sempre insegura e está condenada a seguir sendo ainda que um deseje outra coisa é uma dor de cabeça e não um remédio [...]. A solidão provoca insegurança, porém as relações não parecem provocar algo mais diferente [...] (BAUMAN, 2009c, p.31-32). Observa-se, a partir das análises realizadas por Bauman que não existe a problematização das relações face a face, os impactos éticos de tal ausência, o que leva a prejudicar o sentido de proximidade, encontrando este em condição de instabilidade característica do próprio sistema de vida contemporâneo. Nesse sentido, ao investigar as questões da alteridade e da diferença é fundamental compreender que a forma como se apresentam é um dos pilares do modo de construção de subjetividade, atravessando diferentes contextos e instituições sociais (como a escola, o trabalho, a família, etc). Tem-se a constituição de uma política da vida que se torna hegemônica e amplamente disseminada. Por essa razão, a busca por alternativas a esses processos descritos ao longo do artigo passa necessariamente pela análise da condição operante no presente. Como bem aponta Hannah Arendt na introdução de “As Origens do Totalitarismo” (1989, p.12), o processo de compreender nosso tempo histórico “[...] significa, em suma, encarar a realidade sem preconceitos e com atenção, e resistir a ela – qualquer que seja”. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. BAUMAN, Zygmunt. Ética Pós-Moderna. São Paulo: Paulus, 1997. ______________. Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. 34 vol. 4, num. 7, 2014 ______________. Modernidad y Holocausto. Madrid: Ediciones Sequitur, 2006. ______________. Tempos Líquidos. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. ______________. La Sociedade Sitiada. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 2008a. ______________. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008b. ______________. Vida para Consumo: A Transformação das Pessoas em Mercadorias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008c. _____________. Modernidad Líquida. 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