NAYARA FORNAZIERI FORMAÇÃO EM HUMANIZAÇÃO DO SUS: avaliação dos efeitos dos processos de formação de apoiadores institucionais na produção de saúde (recorte campo São Paulo) ASSIS 2017 NAYARA FORNAZIERI FORMAÇÃO EM HUMANIZAÇÃO DO SUS: avaliação dos efeitos dos processos de formação de apoiadores institucionais na produção de saúde (recorte campo São Paulo) Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, para a obtenção do título de Mestra em Psicologia (Área de Conhecimento: Psicologia e Sociedade) Orientador: Prof. Dr. Silvio Yasui Bolsista: CNPq ASSIS 2017 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – Unesp F777f Fornazieri, Nayara Formação em humanização do SUS: Avaliação dos efeitos dos processos de formação de apoiadores institucionais na produção de saúde (recorte campo São Paulo) / Nayara Fornazieri. Assis, 2017. 119 p. : il. Dissertação de Mestrado – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis Orientador: Dr. Silvio Yasui 1. Sistema Único de Saúde (Brasil). 2. Saúde pública - Brasil. 3. Humanização na saúde. 4. Saúde pública - Avaliação. I. Título. CDD 614.0981 AGRADECIMENTOS Inicio esta seção externalizando minha gratidão e honra por ter iniciado o caminhar acadêmico no câmpus Unesp Assis o qual tenho profundo carinho e admiração pelos mestres e colegas de graduação que por meio de constante trocas contribuíram em minha jornada e formação acadêmica, profissional e pessoal. Agradeço sincera e imensamente a disponibilidade, dedicação, implicação e militância dos apoiadores que, prontamente retornaram nossa solicitação de encontro. Algumas pessoas, inclusive, viajaram muitos quilômetros no intuito de estar presente no grupo focal, o qual durante o andamento da pesquisa se configurou como importante momento de troca, inclusive de afetos. Agradeço ao CNPQ pela bolsa concedida. Ao orientador expresso minha gratidão e profunda admiração. À banca agradeço imensamente o carinho, o respeito e empenho, e igualmente por, no momento de qualificação deste trabalho, realizar importantíssimos apontamentos e tecer críticas construtivas que enriqueceram o produto final, esta dissertação. Andreia, companheira de vários momentos com quem tive a honra de participar de outros projetos em diferentes momentos acadêmicos. Cristina Amélia, pelo carinho, cuidado e respeito ao realizar importantes contribuições na escrita do trabalho além de apontar e ofertar material que sanaria importantes lacunas presentes no texto. Ricardo, por compartilhar vivências e experiências tão ricas bem como pela excepcional contribuição acadêmica e afetiva. À minha família e, em especial, minha irmã querida, Ana Júlia, minha avó Lourdes e meu noivo Junior, sempre atentos e disponíveis a oferecer um afago diante de minhas alterações de humor. Às amigas queridas e especiais que de alguma forma (fisicamente próxima ou distante) estiveram presentes em momentos importantes nesse caminhar. Amabile, que por vezes me mandou mensagens com o singelo intuito de me questionar sobre o andamento da escrita. Distantes fisicamente, percorremos a árdua estrada de construir uma dissertação e, por tantas vezes trocamos ideias, sugestões, angústias, alegrias e conquistas. Bárbara, que esteve comigo em diversos momentos. Amiga carinhosa, atenta, sensível e inspiradora. Acompanhou de perto todo o processo de construção desse trabalho e por vezes me amparou, acalentou e me emprestou um pouco de suas forças até que a tarefa estivesse findada. FORNAZIERI, Nayara. FORMAÇÃO EM HUMANIZAÇÃO DO SUS: avaliação dos efeitos dos processos de formação de apoiadores institucionais na produção de saúde (recorte campo São Paulo). 2017. 119 p. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Psicologia). – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2017. RESUMO O presente trabalho surge da experiência na participação da pesquisa “FORMAÇÃO EM HUMANIZAÇÃO DO SUS: Avaliação dos efeitos dos processos de formação de apoiadores institucionais na produção de saúde nos territórios do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo”, projeto construído em parceria entre as universidades UFSC – Santa Catariana, UFRGS – Rio Grande do Sul e UNESP – São Paulo, realizada entre os anos 2012 a 2014. A presente pesquisa foi construída e pautada com o objetivo de definir e caracterizar as especificidades do campo São Paulo, no que se refere a formação dos apoiadores institucionais, a partir dos seus efeitos na produção de saúde dentro das instituições em que atuam. Para a construção da análise desse trabalho foram consideradas 3 Dimensões Analíticas: Produção de si, Produção de Redes e Produção de Práticas. Eixos norteadores construídos por meio de processo em pesquisa com base metodológica ancorada na denominada “Pesquisa de 4ª geração” a qual pretende-se ser qualitativa, avaliativa, interventiva, formativa e participativa. O processo avaliativo considerou 3 ferramentas como material de análise para a construção das considerações: Planos de Intervenção (confeccionados durante o andamento do curso), questionário eletrônico encaminhado aos apoiadores via e-mail e Grupos Focais (realizados posteriormente à finalização do curso). Os resultados construídos apontam para as dificuldades tais como capacitar apenas alguns apoiadores em cada território, a necessidade de que os atores envolvidos nos processos de atenção à saúde tenham conhecimento sobre o equipamento SUS; o (des)conhecimento referente às alternativas para chegar no espaço e movimento desejado, a tentativa de sistematizar reuniões de equipe, a percepção da necessidade em dialogar com seus pares, com a comunidade e com a gestão do serviço, reconhecendo a necessidade da tríplice inclusão (usuários, trabalhadores e gestão), bem como a percepção de mudanças pessoais ocorridas nos participantes que ainda ressoam nos espaços em que se encontram cada um desses apoiadores e suas ações. Como produto desse processo avaliativo, temos o registro dessa experiência e de possíveis encaminhamentos para ações futuras, visando contribuir para as práticas nos mais diversos espaços de atenção à saúde, possibilitando encontrar pontos importantes de consonância com a prática da construção e efetivação de uma política mais humana, e que atenda às necessidades de trabalhadores, gestores e usuários, na efetivação, disseminação e consolidação do SUS. Palavras-chave: Formação, Humanização, SUS, Política Nacional de Humanização FORNAZIERI, Nayara. SUS’ HUMANIZATION CONSTRUCTION: evaluation of the effects of training in institutional suportes on helth production (São Paulo field experience). 2017. 119p. Dissertation (Masters in Psicology). São Paulo State University (UNESP), School of Sciences, Humanities and Languages, Assis, 2017. ABSTRACT The present work is based on the experience of the participation in the research “SUS’s HUMANIZATION: Evaluation’s effects of the institutional formation processes supporters in the production of health in the Rio Grande do Sul, Santa Catarina and São Paulo territories”, a project built in partnership Between UFSC - Santa Catarina, UFRGS - Rio Grande do Sul and UNESP - São Paulo universities, carried out between the years 2012 and 2014. This process was built and based on the objective of defining and characterizing the specificities of the São Paulo field. Refers to the formation of institutional supporters, based on their effects on health production within the institutions in which they operate. For the construction of the analysis of this work were considered 3 Analytical Dimensions: Self-production, Network Production and Production of Practices. Guiding axes constructed by means of a research process based on a methodological base anchored in the so-called “4th Generation Research”; which is intended to be qualitative, evaluative, interventive, formative and participatory. The evaluative process considered 3 tools as an analysis material for the construction of the considerations: Intervention Plans (made during the course), electronic questionnaire sent to the supporters via e-mail and Focal Groups (made after the end of the course). Results show the difficulties such as training only some supporters in each territory, the need for the actors involved in health care processes to have knowledge about SUS’ equipment; (un)knowing alternatives to achieve movement and wanted bases, the attempt to systematize team meetings, the perception of needing dialogue with their peers, community and the management of the service, recognizing the necessity of the triple inclusion (users, employees and management), as well as the perception of personal changes that occurred in participants that still resonate in the spaces where each one of these supporters and their actions are. As a product of this evaluation process, we record this experience and possible referrals for future actions, aiming to contribute to the practices in the most diverse areas of health care, making it possible to find important points in harmony with the practice of building and implementing a more human, and which answer workers, managers and users needs, in SUS’ implementation, dissemination and consolidation process. Key words: assessment; humanization; SUS; national humanization policy LISTA DE SIGLAS Abrasco Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva. AIS Ações Integradas de Saúde. CAP Caixas de Aposentadorias e Pensões. CAPe Comitê Ampliado de Pesquisa. Cebes Centro Brasileiro de Estudos em Saúde. CIB Comissão Intergestores Bipartite. CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. CNS Conferência Nacional de Saúde. CoNaSeMS Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde. CoNaSS Conselho Nacional de Secretários de Saúde. CRFB Constituição da República Federativa do Brasil. DNSP Departamento Nacional de Saúde Pública. ESP Escola de Saúde Pública. FAS Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social. FGTS Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. GF Grupos Focais. GIP Grupo de Interesse da Pesquisa. GTH Grupo de Trabalho em Humanização. IAP Institutos de Aposentadoria e Pensões. IAPM Institutos de Aposentadoria e Pensões do Militar. INAMPS Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social. INPS Instituto Nacional de Previdência Social. MPSA Ministério da Previdência e Assistência Social MESP Ministério da Educação e Saúde Pública. MS Ministério de Saúde. NOB-SUS Normas Operacionais. OMS Organização Mundial da Saúde. PAIS Programa de Ações Integradas de Saúde. PI Plano de Intervenção. PMDC Partido do Movimento Democrático Brasileiro. PNASH Programa Nacional de Avaliação dos Serviços Hospitalares. PNH Política Nacional de Humanização. PNHAH Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar. PR Paraná. PROADI Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde. RAS Redes de Atenção à Saúde RS Rio Grande do Sul SC Santa Catarina. SAMU Serviço de Atendimento Móvel de Emergência. SAS Secretaria de Atenção à Saúde. SES Secretaria de Estado da Saúde. SF Superfamílias. SP São Paulo. SUS Sistema Único de Saúde. UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul. UFSC Universidade Federal de Santa Catarina. UNESP Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho". UP Unidade de Produção. USP Universidade de São Paulo. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................... 13 2 PARADIGMAS EM SAÚDE: CONSTRUINDO O CONCEITO DE SAÚDE COMO DIREITO ........................................................................................................ 19 3 TRAJETÓRIA BRASILEIRA DA CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE SAÚDE COMO DIREITO ........................................................................................................ 31 4 POLÍTICA NACIONAL DE HUMANIZAÇÃO (PNH) COMO APOSTA NA HUMANIZAÇÃO DAS PRÁTICAS DE ATENÇÃO E DE GESTÃO DO SUS ........... 39 5 DEFINIÇÃO, CONSTRUÇÃO E PLANEJAMENTO DO CURSO OFERTADO PELO MINISTÉRIO DA SAÚDE AOS TRABALHADORES DA SAÚDE EM 2008 .. 54 6 PERCURSOS DAS PESQUISAS: MOMENTO PESQUISA NACIONAL E MOMENTO PESQUISA LOCAL ............................................................................... 64 7 PERFIL DOS APOIADORES FORMADOS PELO CURSO NOS TRÊS ESTADOS ACRESCIDO DE RECORTE E ANÁLISE DOS DADOS DOS APOIADORES FORMADOS PELO CURSO EM SÃO PAULO ............................... 78 8 BREVES ANÁLISES E REFLEXÕES POSSÍVEIS ........................................... 90 9 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 102 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 110 BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR ....................................................................... 116 APÊNDICE – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO ............. 118 13 1 INTRODUÇÃO O interesse pelos temas Política Nacional de Humanização e Formação em Humanização iniciou-se ainda no período em que cursava graduação e principiaram- se os estágios curriculares. A partir do início de 2011 acompanhei, juntamente com o orientador de estágio, o decorrer de um processo de Oficinas de Sensibilização para o Sistema Único de Saúde (SUS) e para a Política Nacional de Humanização (PNH). Nesses encontros reuniam-se diversos trabalhadores da atenção básica da região de Presidente Prudente – cidade próxima a Assis, onde cursei graduação. A cada encontro alguns conceitos básicos eram discutidos a partir de questões tais como “O que é e para quem é o SUS”, “O que é a PNH”, “Quais os princípios e dispositivos da PNH”, além de discussões sobre as possibilidades de aplicação dos dispositivos nos territórios. Utilizando-se situações problemas, discussão de caso e leituras, os participantes eram convidados a problematizar aspectos do seu território, de suas práticas e de seus processos de trabalho e, ainda, a apontar possibilidades de aplicação dos conhecimentos construídos em suas práticas cotidianas. Durante esses encontros, que tinham como objetivo principal apresentar e aproximar os trabalhadores do SUS aos princípios, diretrizes e dispositivos da PNH, também me era apresentada uma infinidade de novas informações, de relatos de experiência, de trocas – de saberes, de afetos, de angústias e de medos – e dessa maneira, com o andamento das oficinas, era notório o brilho no olhar que só é possível a quem constrói e vislumbra possibilidades de exercitar o conhecimento, o empoderamento, a autonomia e protagonismo em suas práticas cotidianas – tanto no processo de trabalho quanto na vida. A partir de discussões levantadas no decorrer desses processos de formação em saúde, ficou nítida a diversidade de percepções de conceitos como: saúde, atenção, cuidado, tratamento entre outros. Em 2012, concluído o curso de graduação e partindo dessa experiência de construção do conhecimento, de formação-intervenção no território e nos processos de trabalho, recebi o convite e, consequentemente, a oportunidade de trabalhar como pesquisadora-âncora do estado de São Paulo no processo de pesquisa denominado “Formação em Humanização do SUS: Avaliação dos efeitos dos 14 processos de formação de apoiadores institucionais na produção de saúde nos territórios do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo”, projeto construído em parceria entre a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho"-São Paulo (UNESP-SP), realizado com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (Campo São Paulo e Campo Santa Catarina) e do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (PROADI) (Campo Rio Grande do Sul) e desenvolvido no período entre os anos de 2012 e 2014. No desenrolar desse processo, duas configurações de equipe foram construídas: a) uma grande equipe, o Comitê Nacional, que contemplava a totalidade de participantes envolvidos nos três estados; e b) três pequenas equipes, os pequenos comitês, sendo um em cada estado, totalizando três Comitês Estaduais (Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo), a fim de construir e trabalhar os dados correspondentes aos seus territórios. Nos momentos finais da pesquisa, os dados foram sistematizados de modo a configurar um campo único. Durante todo o processo de pesquisa, o contato e a troca (de saberes e experiências) entre os comitês mantiveram-se constantes. Quando necessário, por exemplo, nos momentos de tomada de decisão, alinhamento entre os três estados, discussão e organização das etapas subsequentes, Oficinas Nacionais eram organizadas (foram 8 Oficinas Nacionais no total). Nesses eventos todos os participantes eram convocados a participar desse momento importantíssimo de alinhamento da metodologia aplicada à pesquisa, de discussão dos dados construídos até aquele momento e de construção dos próximos passos. O sexto capítulo descreve os detalhes de toda essa construção. Uma vez concluída a pesquisa Nacional surgiram as seguintes questões: a) seria possível que houvesse aspectos do campo São Paulo que, por algum motivo, não teriam sido contemplados no resultado do processo Nacional; b) poderia(m) existir alguma(s) especificidade(s) do campo São Paulo que por ventura tenha(m) sido diluída(s) no processo de composição dos dados Nacionais; 15 c) poderiam existir elementos que apenas teriam sido verificados nos estados do Sul ou elementos que apenas teriam sido apresentados no campo São Paulo. A fim de responder as questões apresentadas é que se configurou o presente projeto. Portanto, a importância desta pesquisa encontra-se na possibilidade de destacar as especificidades vivenciadas no campo São Paulo durante o processo de pesquisa. A ideia é, a partir do tratamento dos dados construídos durante a pesquisa Nacional, elucidar o que é especifico do campo em questão, além da possibilidade de apresentar novos dados que, por vários motivos, não puderam ser contemplados nos resultados da pesquisa Nacional. O objetivo central da presente pesquisa pretende avaliar os processos de formação de apoiadores institucionais realizados pela Política Nacional de Humanização da Gestão e da Atenção do SUS em São Paulo – processo de formação ocorrido em 2008 – a partir dos seus efeitos na produção de saúde considerando três Dimensões Analíticas: a) produção de Si; b) produção de Redes; e c) produção de Práticas. Tal avaliação foi composta a partir da apresentação e da análise dos dados que compõem o campo São Paulo, cotejando-os, quando possível e pertinente, com os dados construídos pelos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, apontando as consonâncias e dissonâncias, dentro do recorte Nacional. Assim, destaca-se como objeto do estudo estritamente o processo formativo como estratégia de uma política pública; ademais, o objetivo singular da presente pesquisa é avaliar os efeitos produzidos, especificamente no território do estado de São Paulo, a partir da execução de práticas preconizadas pelos processos de formação- intervenção propagados pela Política Nacional de Humanização. De forma a organizar toda a pesquisa, esta dissertação foi escrita em 9 capítulos: a) capítulo primeiro: Introdução; b) capítulo segundo: Paradigmas em saúde: construindo o conceito de saúde como direito – faz um breve apanhado das diferentes concepções do conceito de saúde e elucida alguns dos principais paradigmas em saúde; c) capítulo terceiro: Trajetória brasileira da construção do conceito de saúde como direito – aponta o caminho percorrido no país em busca da construção 16 do conceito de saúde, ampliado para muito além da perspectiva fisiológica e da ausência de doença; d) capítulo quarto: Política Nacional de Humanização: ferramenta para a consolidação do SUS – faz uma breve trajetória da construção do atual sistema de saúde brasileiro, o Sistema Único de Saúde (SUS) e aponta umas das principais ferramentas do Ministério da Saúde para implementação e consolidação do SUS, a Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS (PNH); e) capítulo quinto: Definição, construção e planejamento do curso ofertado pelo Ministério da Saúde aos trabalhadores da saúde em 2008 – é possível observar a trajetória de construção do processo de elaboração do curso paulista desde participação no curso nacional, que serviu como inspiração e disparador dos demais processos em São Paulo, tais como: o curso de Formação de Formadores e, posteriormente, o curso de Formação de Apoiadores, apresentando, portanto, as condições e o cenário em que tais processos foram construídos; f) capítulo sexto: Percursos das pesquisas: momento pesquisa Nacional e momento pesquisa Local – traz um breve relato da construção e execução da pesquisa Nacional que serviu como alicerce para o desenvolvimento do presente trabalho; g) capítulo sétimo: Perfil dos apoiadores formados pelo curso nos três estados, acrescido de recorte e análise dos dados dos apoiadores formados pelo curso em São Paulo – é composto por uma série de informações relevantes construídas posteriormente à finalização do processo formativo. Tais dados foram obtidos com o auxílio de ferramenta eletrônica disparada via e-mail aos apoiadores. A partir das respostas dos questionários, tornou-se possível construir as informações contidas neste capítulo, referentes aos apoiadores dos três estados, entretanto, especificamente para esse trabalho, foram evidenciados os dados pertinentes ao campo São Paulo; h) capítulo oitavo: Breves análises e reflexões possíveis – é composto por uma série de análises e reflexões construída por meio da participação no processo de pesquisa enquanto grande grupo (Comitê Nacional) bem como outras reflexões que surgiram em decorrência da elaboração do presente trabalho; 17 i) capítulo nono: Considerações finais – são tecidas as considerações finais dessa dissertação. 18 19 2 PARADIGMAS EM SAÚDE: CONSTRUINDO O CONCEITO DE SAÚDE COMO DIREITO Santos (2001) aponta que “os paradigmas socioculturais nascem, desenvolvem-se e morrem” e prossegue sua ideia ao afirmar que a morte de paradigmas e de indivíduos são bem distintas: a morte de um paradigma, ao contrário do que acontece na morte de indivíduos, traz sempre um novo paradigma que sucede o anterior; além disso, essa transição da morte para a vida acontece sem limites claros e apenas é possível assegurar sua falência após muitos anos ou, até mesmo, séculos depois. A partir da citação acima, percebemos que, ao longo dos séculos, o modelo de produção de saúde sofreu inúmeras transformações. No Brasil, de acordo com Scliar (2005) destacam-se como maiores transformações na área da saúde: a) a transposição do modelo baseado na filantropia e no higienismo, o qual existiam locais específicos – hospitais e Santas Casas de Misericórdia - para depositar os doentes (em sua maioria pobres, mendigos, moradores de rua), onde estes permaneciam até o momento da sua morte sem qualquer tratamento ou prognóstico; b) o início da intervenção Estatal, no século XX, que passou a oferecer assistência médica à população, porém o benefício era direito apenas dos trabalhadores formais, ou seja, aqueles que recolhiam impostos para a Previdência Social; e c) o atual modelo em vigência que, além de oferecer assistência médica, está comprometido com prevenção de doenças e promoção de saúde, proteção (campanhas de vacinação e conscientização), cuidado, tratamento e recuperação oferecidos a todos os cidadãos brasileiros independente de cor, raça, credo, religião, orientação sexual, exercício da profissão, idade, etc. (BRASIL, 2010) Scliar (2005) indica que a primeira aproximação a um serviço de saúde com interferência Estatal ocorreu ainda no século XIX, na Alemanha, e foi sistematizado com a intencionalidade de potencializar o desenvolvimento econômico do país. No entanto, sabia-se que contratar mão de obra em troca de salários miseráveis geraria revolta da população, sendo assim, passou a oferecer, além do baixo salário, habitação gratuita, seguro para a velhice e assistência médica como formas de 20 pagamento. Dessa maneira, para esse autor, esse cenário foi o berço do “sistema público” de saúde e continua essa análise ao apontar que com o passar dos anos vários países da Europa passaram a adotar um sistema público de saúde que, inicialmente, foi pensado em uma tentativa de potencializar a mão de obra barata e, ao mesmo tempo, apaziguar revoltas dos trabalhadores. Esses acontecimentos abalaram o paradigma até então em voga: a assistência médica deixou de ser oferecida por meio de caridade e passa a ser um direito conquistado pelo trabalho. No entanto, Scliar (2005) aponta que a implantação desse sistema não foi simples, e muito menos facilmente aceito, os grandes industriais e proprietários rurais eram contra tamanho investimento e os socialistas e sindicalistas defendiam que tal “oferta” era apenas uma estratégia governamental no intuito de iludir a população. Anos mais tarde após o término da Segunda Guerra Mundial foi vez da Grã- Bretanha contribuir para o avanço do modelo, passando a oferecer a sua população, como compensação pelo sofrimento bélico, um serviço que “prometia proteção ‘do berço à tumba’, o Serviço Nacional de Saúde, destinado a fornecer atenção integral à saúde a toda a população” (SCLIAR, 2005, p. 86). Considerando o recorte da trajetória da saúde no Brasil, no decorrer da primeira metade do século XVI iniciou-se a instituição das primeiras cidades brasileiras e, concomitantemente, o processo de investimento na urbanização do território brasileiro. Trata-se do período histórico conhecido como Brasil Colônia em que toda referência aos procedimentos adotados no Brasil decorrem da cultura lusitana. Portanto, segundo Paim (2009), passamos, num primeiro momento, a adotar como modelo as ações de saúde de Portugal. Dessa maneira, os serviços de saúde das tropas militares ficavam subordinados ao cirurgião-mor dos Exércitos de Portugal enquanto que o físico-mor responsabilizava-se pelos cuidados profiláticos das doenças epidêmicas e das questões relativas aos trabalhadores da saúde (médicos, cirurgiões, farmacêuticos, curandeiros, etc.). As figuras de cirurgião-mor e físico-mor eram à época as duas maiores autoridades da saúde. Questões relativas à higiene tais quais: limpezas das cidades, fiscalização dos portos e comércio de alimentos, ficavam a encargo das autoridades locais. Ainda de acordo com Paim (2009), o grande marco da saúde no Brasil aconteceu em 1543, com a inauguração da primeira Santa Casa de Misericórdia na cidade de Santos. Posteriormente, outras Santas Casas foram instituídas nas cidades de Olinda, Belém, Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo. Esses espaços eram 21 dedicados, por meio da caridade cristã, a oferecer assistência aos pobres e enfermos, abrigando e prestando cuidados na maioria das vezes a indigentes, moradores de rua e viajantes. No cenário da saúde brasileira poucos avanços são vislumbrados nos séculos seguintes. É apenas a partir dos anos 1800, após a Independência, e após vivenciar algumas epidemias, como a febre amarela e a peste bubônica, dentre outras, começaram a emergir algumas mudanças significativas na área da saúde no Brasil (EDLER, 2010), dentre elas a criação da Junta de Higiene Pública, da Inspetoria Geral de Higiene, da Inspetoria Geral da Saúde dos Portos e um Conselho Superior de Saúde Pública. No decorrer desse período foram criadas “as primeiras medidas voltadas para a higiene escolar e para a proteção de crianças e adolescentes no trabalho das fábricas” (PAIM, 2009, p. 26). No contexto de final do século XIX e início do século XX durante a transição de Brasil Império para Brasil República acrescido ao processo de início da industrialização brasileira, vislumbra-se um cenário assinalado pela disputa entre diversas teorias que buscavam desvendar o surgimento das doenças e epidemias da época que assolavam a população. Nesse período, embora houvesse embates teóricos referentes às origens e metodologias de controle e combate às doenças, havia consenso entre os médicos da urgência e necessidade em fortalecer e ampliar o prestígio da profissão, dessa maneira, entendiam que “a intervenção da medicina na sociedade era não só possível, mas também, e sobretudo, necessária” (PONTE, 2010, p. 51) acarretando, portanto, um duplo deslocamento visto a atenção que antes era exclusiva do corpo foi desviada para um foco no ”corpo social” e o segundo deslocamento foi a necessidade de atentar-se ao novo objeto privilegiando o aspecto preventivo configurando-se como tentativa de antecipar-se à instalação da doença. Nesse contexto, diferentemente da luta travada no Brasil diante do desafio de configurar mudanças positivas no quadro sanitário e epidemiológico, o cenário europeu apresentava avanços consideráveis na ciência da microbiologia criada por Louis Pasteur. Dessa maneira, Pasteur inaugurou um novo paradigma ao provar a existência de micro-organismos bem como sua incidência em diversos processos de adoecimento. Suas ideias esbarraram-se, inicialmente, na resistência da comunidade médica, entretanto, não tardou a tornar-se um paradigma hegemônico visto que, pela primeira vez, tornou possível o enfrentamento de doenças infecciosas 22 de forma realmente eficaz. Remete-se a esse período a adoção de hábitos largamente incorporados à rotina das populações, tais como a esterilização de utensílios relativos ao cuidado e higiene de bebês bem como de outros utensílios domésticos, o hábito de ferver o leite ou ainda a limpeza de ferimentos, são resquícios da presença da medicina pasteuriana na sociedade atual (PONTE, 2010). As ideias de Pasteur influenciaram uma nova geração de médicos que utilizavam o microscópio como principal ferramenta de trabalho. No Brasil, os pioneiros a estudar essa teoria tornando-se referência nesse trabalho foram, principalmente, Emílio Ribas, Vital Brasil, Adolfo Lutz e Oswaldo Cruz, os quais trabalharam ativamente na identificação e, consequentemente, no combate à peste bubônica que assolou o país no final do século XIX. Como produto direto desse período de trabalho, iniciou-se no Brasil a produção de soro antipestoso, além de outros soros necessários diante das condições epidemiológicas do país. Ponte (2010) sinaliza ainda que a prática desses médicos não se restringiu ao combate à epidemia da peste bubônica ou à criação de laboratórios para a produção de soros, pois suas atuações e atividades “se estenderam por um vasto campo, e as instituições que eles fundaram e ajudaram a consolidar logo ampliaram suas funções para a área da pesquisa e do ensino” (PONTE, 2010, p. 59). Oswaldo Cruz defendia que as doenças eram ocasionadas devido a um agente causal e um vetor que servia como agente transmissor. Sendo assim, a equação para resolução do problema consistia na ruptura da cadeia de transmissão desativando-se o agente causal, uma proposta para atingir tal efeito seria por meio de instrumentos como a vacina ou, como proposta secundária, pela atuação direta na destruição de vetor transmissor da doença, minimizando ou extinguindo totalmente sua presença no ambiente. No alvorecer do século XX, três grandes flagelos assolavam as principais cidades brasileiras: a varíola, a febre amarela e a peste bubônica. Diante da imposição pelo governo de obrigatoriedade de vacinação contra a varíola, indiscriminadamente, emergiu no Brasil o movimento da Revolta da Vacina, que tornou facultativa a vacinação da população. Em decorrência, anos mais tarde, houve nova epidemia da doença no país ocasionando larga busca pela vacina. No cenário brasileiro surge em 1918 a Liga Pró-Saneamento, criada e presidida por Belisário Penna, seu principal objetivo era lutar pela instauração de uma política nacional de saneamento. Nesse período, os sanitaristas obtiveram 23 sucesso parcial nessa luta que reivindicava maior participação do Estado, a fim de propiciar à população [...] condições de saúde e educação como forma de promover o progresso da nação [...] [entretanto], apesar de não ter obtido êxito imediato na sua luta pela criação de um ministério para a área da saúde, a movimentação dos integrantes da Liga Pró-Saneamento do Brasil contribuiu de maneira decisiva para incluir esta questão na agenda de discussão do novo papel do Estado no contexto da Revolução de 1930 (PONTE, KROPF, LIMA, 2010, p. 98-99). Durante esse processo inaugurou-se a ideia de prevenção, visto que o modelo hegemônico de saúde baseava-se na identificação da enfermidade, conjuntamente com a tentativa de extinção de seu agente vetor aliada à imunização da população. De outra parte, tem início nesse período, um movimento por parte da nascente classe trabalhadora urbana objetivando a instauração de mecanismos de seguridade social, tais como aposentadorias e pensões. A partir de 24 de janeiro de 1923 com a promulgação da primeira lei previdenciária no Brasil, a Lei Eloy Chaves, iniciou-se a propagação das Caixas de Aposentadorias e Pensões, as quais ofereciam aos trabalhadores e aos seus dependentes o usufruto de serviços de assistência médica e de seguridade social, mediante efetivação de contribuições mensais realizadas pelos empregados e empregadores. Os recursos arrecadados eram administrados por um colegiado constituído por empregadores e empregados, entretanto, apesar da arrecadação compulsória, era pífia a participação dos últimos na gestão de tais recursos. (PONTE; REIS; FONSECA, 2010). Mediante a inclusão da atenção à saúde do trabalhador no processo de negociação entre empregados e empregadores, surgiram nesse cenário novas organizações que, gradativamente, caracterizaram uma nova vertente da assistência médica no Brasil, amplamente ligada ao complexo previdenciário que começava a constituir-se (PONTE; REIS; FONSECA, 2010). Paim (2009) aponta que, a partir desse cenário, algumas fábricas em São Paulo passaram a oferecer serviços médicos aos seus trabalhadores mediante desconto de 2% nos salários. Surge no Brasil, nesse período, a Previdência Social por meio das Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs). Nessa perspectiva, o que veremos frutificar ao longo de boa parte do século XX é uma crescente separação entre a área da saúde pública e o atendimento médico individualizado propiciado pela medicina previdenciária. 24 A primeira seria financiada pelos recursos do Tesouro Nacional e a segunda, durante longo período, pela contribuição de empregados, patrões e consumidores. Estes últimos, cabe ressaltar, participavam da formação dos fundos de seguridade social de maneira indireta e sem direito aos benefícios do sistema, uma vez que as empresas repassavam (e ainda repassam) para os custos finais de seus produtos e serviços grande parte dos encargos que lhes cabiam enquanto parte constituinte do empreendimento previdenciário. (PONTE; REIS; FONSECA, 2010; p. 117- 118) A partir da era Vargas (1930-1945) iniciou-se o processo de intervenção estatal instaurando-se um novo sistema de previdência, o chamado seguro social. Tal modelo ficou conhecido como “modelo de seguro social” (FLEURY, 2008) no qual a assistência médica é baseada em contratos e a cada setor da classe trabalhadora provinha um contrato diferente, visto que as condições da assistência eram determinadas pelas [...] contribuições pretéritas e à afiliação dos indivíduos a tais categorias ocupacionais que são autorizadas a operar um seguro. A organização altamente fragmentada dos seguros expressa a concepção dos benefícios como privilégios diferenciados de cada categoria, como resultado de sua capacidade de pressão sobre o governo (FLEURY, 2008, p. 64). Poucos setores trabalhistas tinham acesso à assistência médica por meio dos Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs). O primeiro Instituto de Aposentadorias e Pensões criado no Brasil foi o dos Marítimos (IAPM). Nos IAPs a organização dos trabalhadores era feita por categoria profissional (marítimos, comerciários e bancários) e não por empresa (BRASIL, 2011). Em meados da década de 1930 foi criado por Carlos Chagas o Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP) que exercia a função de profilaxia, propaganda sanitária, saneamento, higiene industrial, vigilância sanitária e controle de endemias. Nesse período foi criado também o Ministério da Educação e Saúde Pública (MESP) que ao longo do tempo passou por diversas reformulações. O MESP era responsável por “tudo que dissesse respeito à saúde da população e que não se encontrava na área da medicina previdenciária, desenvolvida no Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio” (BRASIL, 2011, p. 14-15). Sua responsabilidade era prestar serviços: [...] para aqueles identificados como pré-cidadãos: os pobres, os desempregados, os que exerciam atividades informais, ou seja, todos aqueles que não se encontravam habilitados a usufruir os serviços 25 oferecidos pelas caixas e pelos serviços previdenciários (BRASIL, 2011, p. 15). No ano de 1953 mais um importante passo institucional foi dado no Brasil: a criação do Ministério da Saúde (MS). Alguns anos mais tarde, após o golpe militar de 1964, todos os IAP foram unificados e, em 1966 formou-se o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) que passou a concentrar todas as contribuições previdenciárias, gerir as aposentadorias, as pensões e a assistência médica dos trabalhadores formais. Segundo Oliveira e Teixeira (1986) a criação do INPS implantou um modelo de privilegiamento do produtor privado. Destacam-se aqui três características: a) ênfase na prática médica curativa, individual, assistencialista e especializada, b) articulação do Estado com os interesses do capital internacional, via indústrias farmacêuticas e de equipamento hospitalar; e c) a criação do complexo médico-industrial, responsável pelas elevadas taxas de acumulação de capital das grandes empresas monopolistas internacionais na área de produção de medicamentos e de equipamentos médicos. Nesse período o acesso à saúde não era regulamentado como direito já que não estava atrelado à condição de cidadania, sendo assim, cabia a cada indivíduo “a responsabilidade por resolver seus problemas de doenças e acidentes bem como o de seus familiares” (PAIM, 2009, p 33). Como tentativa de enfrentamento dessa situação, surgiram, na segunda metade dos anos 1970, o Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes), em 1976, e a Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco), em 1979, sendo decisivos imbuíram significativa importância na luta pela democratização da saúde e da sociedade brasileira. No que tange à economia no Brasil, a primeira metade da década de 1970 ficou conhecida como “milagre brasileiro” já que o país vivenciou nesse período notável aceleração do crescimento econômico. Nesse momento a população do país atingia 90 milhões de habitantes. Entretanto, o crescimento econômico não resultou em maior distribuição de renda aos habitantes. Diferentemente do que esperava a população brasileira, o que se constatou nesse período foi um vigoroso processo de concentração de riquezas, consequência da organização de grandes conglomerados nacionais pelo progressivo número de multinacionais instaladas no país e pela transmutação do elevado número de pequenas agriculturas familiares e de 26 subsistência para grandes projetos agroindustriais voltados para o mercado de exportação (PONTE, 2010). Em decorrência do processo de industrialização somado ao fomento e consequente crescimento do mercado de serviços, acrescido à possibilidade de acesso e utilização do recurso do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) – direito de todos os trabalhadores formais – houve expressivo aumento da especulação imobiliária, da produção de bens de consumo duráveis e da indústria automobilística, o que ocasionou um largo processo de êxodo rural. Durante esse período houve um aumento significativo da população urbana como nunca antes havia sido vivenciado (PONTE, 2010). Consequentemente, a década de 1970 foi o período no qual o INPS alcançou a maior concentração de recurso financeiro. No entanto, grande parte desse dinheiro foi investida no que Merhy (2002) denominou “tecnologias duras” tais quais construção de hospitais e clínicas, ambos no serviço privados, e ampliação no número de leitos hospitalares. No ano de 1974 inaugurou-se o Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social (FAS) administrado pela Caixa Econômica Federal e composto majoritariamente por recursos advindos da Loteria Esportiva. Estima-se que entre 1974 e 1979 o FAS tenha investido aproximadamente sete bilhões de cruzeiros, entretanto, cerca de 70% desse montante estiveram disponíveis como fonte de financiamento para que empresas de medicina pudessem aplicá-lo na construção ou ampliação de hospitais e clínicas particulares além da compra de equipamentos e insumos (PONTE, 2010). Grande parte desses empréstimos privilegiava esses empresários, pois ofertavam juros subsidiados e correção monetária abaixo da inflação além de extensos prazos para pagamento. O que observamos nesse período é um intenso investimento de recurso público na medicina privada, capitalizando cada vez mais tais empresas e possibilitando a transformação da saúde em um negócio altamente lucrativo. [...] observamos que os 41 hospitais pertencentes ao [Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social] INAMPS em 1978 eram responsáveis por apenas 253 mil internações de um total estimado em aproximadamente 6.286.000. O que significa que, naquele período, 96% das internações ficavam sob a responsabilidade de empresas de saúde contratadas pelo Ministério da Previdência e Assistência Social. (PONTE, 2010, p. 187) 27 Ponte e Nascimento (2010) afirmam que é eloquente o aumento da inauguração de novas unidades hospitalares com fins lucrativos. “Segundo os dados disponíveis, de 1964 até 1974 esses estabelecimentos passaram de 944 para 2.121, aumento que ultrapassa o percentual de 200% em dez anos” (PONTE, 2010, p. 189). Esse financiamento que a política previdenciária forneceu ao setor privado para as construções e reformas de instituições – instituições essas que “tinham mercado garantido por intermédio da compra de serviços pela Previdência” – gerou uma crise nos serviços de saúde, o que possibilitou “a entrada do pensamento reformador e crítico na gestão da política previdenciária de saúde” (FLEURY, 2008, p. 50). É nesse contexto, portanto, que ganha força o Movimento da Reforma Sanitária que pretende alterar a concepção de saúde, deixando de ser um modelo médico-centrado que entende saúde simplesmente como ausência de doença, passando a um modelo em que saúde passa a ser entendido como “produção social” e seria resultado “de complexas redes causais que envolvem elementos sociais, econômicos e culturais que se processam e se sintetizam na experiência concreta de cada sujeito singular, de cada grupo em particular e da sociedade em geral” (PASCHE, 2009, p. 701-702). Em 1978 acontece a Conferência Internacional de Cuidados Primários à Saúde, organizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) cujo produto é a Declaração de Alma-Ata que [...] reafirma enfaticamente que a saúde é um direito humano fundamental, e que a consecução do mais alto nível possível de saúde é a mais importante meta social mundial, cuja realização requer a ação de muitos outros setores sociais e econômicos, além do setor saúde. Reafirma, também, que a promoção e proteção da saúde dos povos é essencial para o contínuo desenvolvimento econômico e social e contribui para a melhor qualidade de vida e para a paz mundial, sendo direito e dever dos povos participar individual e coletivamente no planejamento e na execução de seus cuidados de saúde (BRASIL, 202, p. 33). Nesse documento explicita-se que os cuidados primários de saúde são indispensáveis a toda a população mundial e que tal nível de atenção é crucial para que as pessoas consigam desfrutar de vida social e economicamente produtiva, além de representar o primeiro contato entre a população e o serviço de saúde. É, de acordo com Paim (2012), o primeiro passo para o desenvolvimento da atenção 28 primária à saúde. Tem-se, então, a possibilidade de solucionar questões na área da saúde utilizando-se de “tecnologias simplificadas e de baixo custo” e “era contraposta ao modelo hospitalocêntrico, alimentando uma crítica política-ideológica com propostas de reformulação das políticas públicas e de reorganização do sistema de serviços de saúde” (PAIM, 2012, p. 550-551). No Brasil, acontece em 1979 o I Simpósio de Política Nacional de Saúde da Câmara dos Deputados. Nesse período houve reconhecidas crises da Previdência Social “não apenas crise financeira, mas também crise ideológica acerca do modelo de saúde a ser adotado, que colocou em confronto privatistas e publicistas. (FALLEIROS; LIMA, 2010, p. 239). No ano de 1982 foi organizado o II Simpósio, entre os presentes estavam pessoas ligadas ao movimento organizado da Reforma Sanitária que, nesse evento, propõem a organização de um sistema nacional de saúde integrativo das medidas preventivas e curativas. No início da década de 1980, em meio à crescente mobilização e participação popular, começou a emergir a percepção e construção de nova sociedade no país: plural, participativa e insubordinada ao governo militar vigente. Iniciou-se a manifestação que Reis denominou “sujeito coletivo da história” (REIS, 2010, p. 233). Nesse cenário, ganhava força o movimento em busca por um modelo de atenção à saúde que superasse a proposta assistencialista e capitalista até então vigente, rumo a um sistema único de saúde, público, com a oferta de atendimento integral, universal e integrativo de toda a rede de assistência além da anexação das práticas preventivas e curativas (PAIM, 1986). Em 1983, em 15 unidades da Federação, implantou-se o Programa de Ações Integradas de Saúde (PAIS) e, posteriormente, em 1984 iniciou-se a expansão para os demais estados brasileiros da estratégia das Ações Integradas de Saúde (AIS) envolvendo Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS), Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde, além dos Ministérios da Educação e da Saúde (PAIM, 1986). Falleiros e Lima (2010) apontam que as AIS estavam pautadas em diretrizes como universalização, acessibilidade, descentralização, integralidade e participação popular. Na realidade, com as AIS o movimento sanitário põe em prática a estratégia de ocupar os espaços institucionais para com isto mudar a direção da política de saúde e privilegiar o setor público. A intensa articulação e a 29 consequente adesão de sindicalistas e parlamentares do principal partido de oposição – o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) – fizeram prevalecer as propostas do movimento sanitário nas negociações políticas ocorridas no início da transição do regime autoritário para o regime democrático, particularmente a unificação do sistema de saúde, assim como garantiram a nomeação dos representantes desse movimento para postos- chave da administração pública federal” (FALLEIROS; LIMA, 2010, p. 239- 241). Nesse ínterim, em 1986 na cidade de Ottawa, Canadá, aconteceu nova discussão balizada pelas propostas pactuadas a partir da Declaração de Alma-Ata. Essa conferência foi denominada “I Conferência Internacional Sobre Promoção da Saúde” e foi organizada a partir da crescente demanda por uma saúde pública universal e equânime. De acordo com o documento resultante de tal Conferência, por promoção da saúde entende-se: [...] o nome dado ao processo de capacitação da comunidade para atuar na melhoria de sua qualidade de vida e saúde, incluindo uma maior participação no controle deste processo. Para atingir um estado de completo bem-estar físico, mental e social os indivíduos e grupos devem saber identificar aspirações, satisfazer necessidades e modificar favoravelmente o meio ambiente. A saúde deve ser vista como um recurso para a vida, e não como objetivo de viver. Nesse sentido, a saúde é um conceito positivo, que enfatiza os recursos sociais e pessoais, bem como as capacidades físicas. Assim, a promoção da saúde não é responsabilidade exclusiva do setor saúde, e vai para além de um estilo de vida saudável, na direção de um bem-estar global (BRASIL, 2002, p. 19-20). As discussões emergentes desse encontro produziram ressonâncias na concepção do conceito de saúde e apontaram as condições e os recursos fundamentais para a saúde: paz, habitação, educação, alimentação, renda, ecossistema estável, recursos sustentáveis, justiça social e equidade. Ainda, defenderam a necessidade de capacitação da população, atingindo, consequentemente, busca por maior qualidade de vida e de saúde. A construção e o fomento da autonomia dos sujeitos no sentido do autocuidado implicou em favorecer às pessoas promoção de saúde. As ações de promoção da saúde objetivam reduzir as diferenças no estado de saúde da população e assegurar oportunidades e recursos igualitários para capacitar todas as pessoas a realizar completamente seu potencial de saúde. Isto inclui uma base sólida: ambientes favoráveis, acesso à informação, a experiências e habilidades na vida, bem como oportunidades que permitam fazer escolhas por uma vida mais sadia. As pessoas não podem realizar completamente seu potencial de saúde se não forem 30 capazes de controlar os fatores determinantes de sua saúde, o que se aplica igualmente para homens e mulheres (BRASIL, 2002, p. 21). A produção da Carta de Ottawa (1986) é mundialmente compreendida como referência ao desenvolvimento de ideias e ações de promoção à saúde apontando, para tal, cinco estratégias: a) Implementação de políticas públicas saudáveis; b) Criação de ambientes favoráveis à saúde; c) Reorientação dos serviços de saúde; d) Reforço à ação comunitária; e e) Desenvolvimento de habilidades pessoais. Levando em consideração as singularidades de cada território, de acordo com a Carta de Ottawa, as estratégias e os programas de promoção à saúde devem ser organizados de acordo com as necessidades e especificidades de cada território e é imprescindível o envolvimento de várias esferas tais como governo, setores de saúde, outros setores sociais e econômicos, organizações voluntárias e não governamentais, autoridades locais, indústria e mídia. Emergem, portanto, dessa Conferência diversos conceitos e práticas relacionados à Promoção da Saúde que passam a ser amplamente “divulgados e implementados desde então em sistemas de saúde e espaços acadêmicos em todo o mundo” (BUSS; CARVALHO, 2009, p. 2306) inclusive no Brasil. Nesse mesmo ano (1986), período posterior à ditadura militar e num contexto de redemocratização do país, realizou-se no Brasil a 8ª Conferência Nacional de Saúde (CNS). Buss e Carvalho (2009) ressaltam que tal evento mobilizou grande parcela de profissionais, gestores e cidadãos, tornando-se marco na proposição das bases do movimento da “Reforma Sanitária Brasileira” atingindo o objetivo de incorporação na Constituição Federal de 1988 de seus princípios e diretrizes. 31 3 TRAJETÓRIA BRASILEIRA DA CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE SAÚDE COMO DIREITO Após diversos encontros e articulações almejando nova construção do modelo de saúde e com o intuito de pressupor um olhar atento e universal à saúde, aconteceu no ano de 1986, em Brasília, a 8ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), marco do movimento da saúde pública no Brasil, momento o qual a presença e a pressão popular reivindicaram a ampliação do conceito de saúde, culminando, por conseguinte, na proposta de um novo paradigma, tendo como núcleo um conceito ampliado de saúde, contrapondo-se ao modelo médico-centrado pautado na doença que vigorava até aquele momento. Em edições anteriores da CNS apenas algumas centenas de pessoas reuniam-se para tratar da saúde no Brasil, no entanto, na 8ª CNS, mais de quatro mil pessoas – gestores, trabalhadores, usuários e militantes da saúde – estiveram presentes ativamente no evento que ficou documentado como um “processo altamente participativo, democrático e representativo” (BRASIL, 1986, p.01). Durante o evento aconteceram debates, mesas redondas e trabalhos de grupos, que tiveram como objetivo problematizar o modelo de saúde em voga, almejando reformular o atual paradigma em saúde que já não atendia às demandas da população. O principal produto dessa conjuntura foi a ampla discussão em saúde, que resultou na ampliação de tal conceito e objetivou transpor o modelo de saúde compreendido enquanto ausência de doença e produto de consumo – em que apenas parte da população conseguia acesso – para a compreensão da saúde como direito e garantia do Estado, além de escancarar a iminente necessidade de uma Reforma Sanitária. Desse modo, a 8ª CNS possibilitou a soma das forças do Movimento da Reforma Sanitária e da pressão popular com o intuito de reivindicar mudança no cenário da saúde brasileira. Como consequência desse encontro, foram lançadas as bases para a construção de um Sistema de Saúde Nacional ancorado em quatro grandes pilares na atenção à saúde: a) Promoção de saúde; b) Prevenção de agravos; c) Cuidado; e d) Reabilitação. 32 O produto dessa Conferência foi um Relatório Final que serviu como inspiração para a construção do capítulo “Saúde” da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB) de 1988, que instituiu o Sistema Único de Saúde (SUS), e, posteriormente, resultou na elaboração das Leis Orgânicas de Saúde 8.080/90 e 8.142/90, as quais possibilitaram, em 1990, a implementação do SUS (PAIM, 2009). Destaca-se em seu Relatório Final a seguinte definição de saúde: Em seu sentido mais abrangente, a saúde é a resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde. É, assim, antes de tudo, o resultado das formas de organização social da produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida (BRASIL, 1986, p.04). A idealização/concretização do SUS, portanto, é uma conquista da população, de técnicos da saúde, de trabalhadores, de gestores e de usuários que se mobilizaram na busca por um novo modo de fazer saúde. Foi um movimento que aconteceu de baixo para cima (SANTOS FILHO; SOUZA; GONÇALVES, 2011) e foi, como descrito, gestado ao longo de muitos anos até ser oficialmente concretizado na CRFB de 1988, mas sua regulamentação foi assegurada apenas em 1990 com as leis orgânicas supracitadas. A elaboração e planejamento do que seria o SUS foi um processo que se estendeu, portanto, ao longo de muitos anos. O SUS, desse modo, foi elaborado contrapondo-se ao modelo médico-centrado e tem alicerce em outra lógica de saúde: o atual modelo proposto além de oferecer assistência médica, cuidado, tratamento e recuperação oferecidos a todos os cidadãos brasileiros independentemente de cor, raça, credo, religião, orientação sexual, exercício da profissão, idade, etc. (BRASIL, 2010), também está comprometido com proteção, prevenção de doenças e promoção de saúde. É, portanto, um paradigma em que o conceito de saúde passa a ser entendido como um conceito mais amplo e complexo, passando a contemplar a perspectiva da qualidade de vida e bem-estar tanto físico quanto psíquico (BRASIL, 2010). O SUS é constituído como um sistema complexo, que surge com a proposta de oferecer mais do que assistência médica, consultas, exames e medicamentos. A institucionalização do SUS faz uma aposta na gestão e na atenção ao cuidado em saúde, pretendendo fomentar a construção da autonomia e protagonismo dos 33 sujeitos, desconstruindo, dessa maneira, a relação de passividade do usuário frente ao serviço. Como aponta Pasche (2009), no Brasil, o acesso aos serviços de saúde é assegurado graças a um sistema de saúde descentralizado, o qual a responsabilização sanitária é compartilhada entre as três esferas do governo, em que, preferivelmente, os municípios devem organizar-se numa relação de cooperação entre gestores municipais e demais gestores para a construção do que o autor chama “redes de atenção integral à saúde” (PASCHE, 2009, p. 702) e sinaliza que: A base desta rede, segundo o princípio da integralidade, é a atenção primária, que organizada em todo território nacional, tem, por tarefa, a viabilização de uma orientação simples, mas muito significativa para a construção da efetividade das práticas: todo cidadão tem o direito a uma equipe que cuide dele, com a qual ele estabelece fortes vínculos terapêuticos, sustentáculo de processos de corresponsabilização no cuidado em rede (PASCHE, 2009, p. 702). A Descentralização refere-se “à distribuição de poder político, de responsabilidades e de recursos da esfera federal para a estadual e a municipal” (MATTA, 2010, p.250). As atribuições e competências da União, Distrito Federal, estados e municípios estão descritas na legislação do SUS e nas Normas Operacionais (NOB-SUS) bem como na Lei 8.080/90. Na tentativa de exercer a descentralização de maneira eficiente, foram criadas instâncias de representação, monitoramento e pactuação política e administrativa com abrangência nas três esferas governamentais, tais como o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), a Comissão Intergestores Bipartite (CIB) e a Comissão Intergestores Tripartite (CIT) (FALLEIROS et al., 2010). A legislação do SUS aponta ainda a garantia, inegável e imprescindível, da participação popular na construção cotidiana desse Sistema como Política Pública, conferindo a significação de que a participação popular não ficou e nem deve ficar restrita apenas aos momentos de luta pela consolidação do SUS, como aponta Fleury (2008): A ênfase na participação da sociedade é um aspecto muito salientado no texto constitucional, refletindo uma resposta às reivindicações dos movimentos sociais em toda a década de 1980, bem como às formulações 34 dos grupos reformistas na área da saúde, ao longo dos anos de ditadura (FLEURY, 2008, p. 67). Nesse sentido, o SUS é um sistema compreendido enquanto “produção social” e seria resultado “de complexas redes causais que envolvem elementos sociais, econômicos e culturais que se processam e se sintetizam na experiência concreta de cada sujeito singular, de cada grupo em particular e da sociedade em geral” (PASCHE, 2009; p. 701-702). A garantia da diretriz que fomenta a Participação Popular na gestão do SUS surge com a aprovação da Lei 8.142 de 1990, que institui a Conferência de Saúde e o Conselho de Saúde – instâncias colegiadas dos SUS em cada esfera de governo – e tem como objetivo a regulação e controle social da gestão do SUS. A primeira deve manter reuniões periódicas a cada quatro anos e deve contar com representantes dos segmentos sociais, deve ser convocada pelo poder executivo ou extraordinariamente pela própria Conferência ou pelos Conselhos (MATTA, 2010; p.254). As Conferências de Saúde (municipais, estaduais e nacionais) visam “avaliar a situação de saúde e propor as diretrizes para a formulação da política de saúde nos níveis correspondentes” (PAIM, 2009, p. 64). O segundo é formado paritariamente por usuários do SUS (50%), trabalhadores da saúde (25%) e prestadores e gestores (25%), tem caráter permanente e deliberativo e sua atuação compreende a formulação de estratégias em saúde e no controle da execução da política de saúde (MATTA, 2010; PAIM, 2009). Os princípios norteadores do SUS, ou seja, os valores que regem o sistema de saúde brasileiro são: Universalidade, Integralidade e Equidade. A universalidade garante que a atenção à saúde seja um direito de todo e qualquer cidadão. Por meio desse princípio exerce-se a defesa feita pelo direito à vida e à igualdade sem distinção de cor, raça, religião, sexo ou qualquer outra forma de discriminação dos cidadãos brasileiros. A equidade refere-se à percepção de que cada indivíduo é único e, portanto, cada qual tem suas necessidades e especificidades; a equidade garante que a atenção à saúde dos cidadãos não seja prejudicada e que cada indivíduo possa receber aquilo que lhe é necessário, independente do grau de complexidade da ação. 35 O princípio da equidade é fruto de um dos maiores problemas históricos da nação: as injustiças sociais e econômicas. Essas iniquidades levam a desigualdades no acesso, na gestão e na produção de serviços de saúde. Portanto, para alguns autores, o princípio da equidade não pressupõe a noção de igualdade, mas significa, sim, tratar desigualmente o desigual, atentando para as necessidades coletivas e individuais e procurando investir onde a iniquidade é maior. Isso implicaria reconhecer a pluralidade e diversidade da condição humana em suas potencialidades (FALLEIROS et al., 2010, p. 248-249). A integralidade visa o reconhecimento da impossibilidade da fragmentação, visto que cada sujeito configura-se em uma totalidade indivisível e integrante de uma comunidade. A integralidade também está presente no conjunto indissociável de ações de promoção, proteção e recuperação que caracterizam uma totalidade indivisível, tal qual a rede de serviços, em seus múltiplos graus de complexidade, integram uma totalidade indivisível representando um complexo sistema capacitado a ofertar assistência integral (BRASIL, 1990). Além dos Princípios que regem o SUS, existem Diretrizes que regem a organização do sistema de saúde brasileiro, dentre elas, temos as que foram aprovadas na CRFB de 1988 – Descentralização, Integralidade e Participação da comunidade. No entanto, outras Diretrizes também merecem destaque como a regionalização e hierarquização das redes de serviços de saúde, divulgação de informações e organização dos serviços públicos de modo a evitar duplicidade de meios para fins idênticos (PAIM, 2009). A diretriz Regionalização e Hierarquização trata sobre a organização da rede de serviços e está intrinsicamente relacionada à noção de território com o intuito de nortear as ações em saúde, baseando-se nas necessidades especificas da população de acordo com os indicadores epidemiológicos, condições sociais e perfil populacional de cada região (MATTA, 2010, p.253). Os serviços devem ser organizados em níveis de complexidade tecnológica crescente, dispostos numa área geográfica delimitada e com a definição da população a ser atendida. Isto implica na capacidade dos serviços em oferecer a uma determinada população todas as modalidades de assistência, bem como o acesso a todo tipo de tecnologia disponível, possibilitando um ótimo grau de resolubilidade (solução de seus problemas) (BRASIL, 1990). Como bem aponta Paim (2009), a diretriz de hierarquização da rede de serviços não condiz com a ideia de escala de importância ou de poder do serviço, mas sim por estar mais próxima da noção de racionalização do uso (em oposição ao 36 racionamento). A racionalização do uso do serviço diz respeito à forma de utilização e de organização dos serviços. Tal organização pode ser feita de acordo com o grau de complexidade do serviço (atenção básica, média complexidade [tecnológica] e alta complexidade [tecnológica]) e mediante acordos entre unidades de saúde, pequenos municípios, municípios pólo, regiões de saúde, etc. É possível pontuar diversas mudanças no paradigma da saúde: a transição entre um serviço centrado na doença, elitista e mercantilizado em que apenas uma pequena parcela da população tinha acesso aos serviços de saúde (contribuintes sociais, deixando, portanto, desassistidas crianças, desempregados, trabalhadores informais e idosos) rumo a uma nova construção de modelo de saúde que faz uma aposta em uma universalidade do cuidado, integralidade da assistência e equidade do acesso, e, mais do que isso, a garantia de que saúde é um direito de todos e dever do Estado (BRASIL, 2010). No entanto, apesar dos esforços em romper com o paradigma de saúde centrado na doença, ainda vivemos um tensionamento de paradigmas coexistentes: de um lado, vislumbramos a indústria médica, farmacêutica, de equipamentos e insumos ainda arraigada à ideia de que a produção de saúde se dá ao acessar as últimas novidades e descobertas da medicina moderna com os procedimentos mais complexos, utilizando-se, para isso, a ideia de saúde como mercantilização dos procedimentos em saúde. Esse é o modelo ideal de saúde comercializado pelas grandes indústrias dos planos de saúde e hospitais particulares. Nesse modelo a busca pelo serviço de saúde ocorre quando o indivíduo está acometido por enfermidade, onde, normalmente, a demanda inicial é pela resolutividade momentânea do incômodo (fazer cessar a dor, por exemplo). Em contrapartida, de outro lado, existe o modelo centrado no sujeito, que compreende as pessoas como seres bio-psico-sociais inseridos em um território com suas especificidades. Dessa maneira, o olhar disponibilizado a esse sujeito deve pautar-se nessa integração, bem como, propiciar que o usuário do serviço de saúde possa exercitar seu protagonismo e autonomia ao construir conjuntamente com a equipe o projeto de cuidado que atenderá às suas necessidades. Verifica-se, portanto, uma transição proposital de foco entre os dois paradigmas: um contempla a doença o outro dedica- se ao indivíduo. Pasche (2010) sinaliza que os efeitos da luta pelo SUS e sua implantação não são visíveis apenas como tentativa de transposição do paradigma da saúde, eles 37 também ressoam nas esferas política, ética e cultural: na esfera política porque o Brasil passa a reconhecer as diferenças dos cidadãos brasileiros e tem nos espaços públicos o processamento dessas diferenças; na esfera ética porque a saúde passa a ser um direito civil, não mais regulada por seguros sociais ou por aquisição como bem de consumo; e na esfera cultural porque amplia-se cada vez mais a compreensão de que saúde é mais do que assistência médica, saúde é também qualidade de vida. Saúde como produção social significa reconhecer que quanto mais desigual for a distribuição das riquezas, quanto mais precário for o acesso dos grupos sociais aos bens de consumo e a políticas públicas redistributivas, mais serão heterogêneos e injustos os padrões de adoecimento e mortalidade (PASCHE, 2009, p. 702). O que irrompe em decorrência dessas construções sociais é o prelúdio de um processo de novas concepções e pactuações nas políticas públicas em saúde, visando reafirmar o SUS em seus aspectos constitucionais. Uma dessas ferramentas foi a Política Nacional de Humanização (PNH), que surge como instrumento de enfrentamento, resistência e superação dos modos prescritivos, verticalizantes e hierárquicos de gestão e de cuidado em saúde, visto que é notório a existência de diversos desafios recorrentes enfrentados diariamente pelos trabalhadores da saúde, sendo que [...] um dos desafios enfrentados no cotidiano das práticas de saúde reside exatamente nos modos verticalizados de gestão e na dissociação entre modelos de atenção (modos de cuidar) e modelos de gestão (modos de gerir). Tal separação tem ratificado práticas que concebem a gestão como reduzida à administração do sistema de saúde e centrada na figura do gestor. Desse modo, há aqueles que planejam e pensam a ordenação do sistema de saúde (os gestores) e aqueles que executam e operacionalizam os planejamentos formulados por outrem. De um lado os que planejam/pensam e, de outro, os que fazem/cuidam (BRASIL, 2010, p. 16). Para tanto, a PNH nasce em 2003 como ressonância da 11ª CNS. Este encontro “sinalizava a necessidade de princípios metodológicos que indicassem modos de como tornar realidade os princípios e diretrizes do SUS prescritos na sua base jurídico-legal” (OLIVEIRA, 2011, p.35). Portanto, a PNH surge como efeitos dos acúmulos do SUS, da percepção dos avanços conquistados ao longo dos anos, da análise de suas incongruências e desafios, bem como consequência da experimentação enquanto política pública e 38 prática social. É, por conseguinte, pautada no compromisso em incitar um movimento ético, político e institucional almejante de enfrentamento e superação das incongruências vividas até então nos modos de atenção e de gestão da saúde pública, dessa maneira, esta Política reforça a garantia do direito ao acesso universal e equitativo da população às práticas e ações integrais nos serviços de saúde (OLIVEIRA, 2011). A PNH deve ser compreendida enquanto uma política transversal, ou seja, uma política pública que atravessa diferentes ações e instâncias, nos diversos espaços de gestão e/ou de oferta de cuidado no SUS. É compreendida como uma importante ferramenta de enfrentamento ao desafio de transposição dos modelos de atenção e de gestão em saúde empenhando-se em ressaltar e fomentar a autonomia e protagonismo dos sujeitos que, ao produzirem novas situações e desafios na prática cotidiana dos serviços e da gestão, constroem, por conseguinte, a si mesmos como novos sujeitos. A PNH aposta na afirmação da inseparabilidade entre gestão e atenção à saúde, consequentemente, compreende que a gestão e a prática em saúde requerem permanentemente trocas de saberes entre as equipes que realizam as práticas em saúde cotidianamente e os atores que operam a gestão dos serviços. Do ponto de vista da inseparabilidade entre gestão e atenção, a recíproca é verdadeira. Assim, a referida política faz uma aposta ao empenhar-se em qualificar tanto a gestão quanto a atenção à saúde e, para tal, estimula e incentiva inovações nas práticas de gestão e atenção à saúde, fomentando que os diversos atores envolvidos nestas práticas para que possam experimentar distintas maneiras de organização dos serviços, bem como novos modos de produção (de conhecimento, de análises, de práticas) possibilitando entre os sujeitos uma nova configuração de circulação do poder. 39 4 POLÍTICA NACIONAL DE HUMANIZAÇÃO (PNH) COMO APOSTA NA HUMANIZAÇÃO DAS PRÁTICAS DE ATENÇÃO E DE GESTÃO DO SUS Mesmo com os desdobramentos pontuados a partir da discussão do modelo de saúde, da construção do SUS e, consequentemente, sua implementação como Política Pública, durante o final da década de 90, a partir da percepção de cenário problemático referente às condições na qualidade da atenção ao usuário e também às condições de trabalho das equipes de saúde, constatou-se a necessidade de reorganização das prioridades na agenda do Ministério de Saúde (MS). Era real e urgente produzir novas discussões com o intuito de enfrentar e minimizar os problemas elencados pelos profissionais, além de possibilitar propostas de novos modos de atuação em saúde. Foi nesse contexto que aconteceu no ano 2000 a 11ª CNS, que teve como título “Acesso, qualidade e humanização na atenção à saúde com controle social” e buscou intervir nas agendas das políticas públicas de saúde. Por meio da criação do Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH), que vigorou entre 2000 a 2002, o tema da humanização em saúde é formalmente inserido na pauta institucional do Ministério da Saúde. Tal programa propôs, inicialmente, a criação de comitês de humanização nas instituições hospitalares almejando, num primeiro momento, a ampliação na qualidade da atenção e do serviço prestado ao usuário (BENEVIDES; PASSOS, 2005). A criação de tal programa contou com participação direta de profissionais envolvidos na área técnica de saúde mental, diante de um número expressivo de queixas e relatos de usuários e familiares apontando maus-tratos durante atendimento em hospitais públicos (MORI; OLIVEIRA, 2009). Seus principais objetivos incluíam o fortalecimento e a articulação de iniciativas humanizadas – em andamento – a ampliação da qualidade e da eficácia no atendimento dos profissionais em relação aos usuários, bem como a formação dos profissionais atuantes nos hospitais “para um conceito de atenção à saúde que valorize a vida humana e a cidadania.” (MARTINS; BERSUSA; SIQUEIRA, 2010, p. 943) Posteriormente, alargou-se a ampliação do olhar não apenas aos usuários, mas também para o trabalhador (BENEVIDES; PASSOS, 2005) provocando, dessa maneira, ressonâncias no cenário da saúde coletiva. 40 Ainda segundo Benevides e Passos (2005), nesse ínterim, o Ministério da Saúde lançou outras diversas ações e programas pautados pelos temas da humanização e da qualidade da atenção ao usuário do serviço público de saúde, dentre eles: Carta ao Usuário (1999), Programa Nacional de Avaliação dos Serviços Hospitalares – PNASH (1999), Programa Centros Colaboradores para a Qualidade e Assistência Hospitalar (2000), Programa de Humanização no Pré-Natal e Nascimento (2000), Norma de Atenção Humanizada de Recém-Nascido de Baixo Peso – Método Canguru (2000) e Programa de Acreditação Hospitalar. Dessa maneira, no decorrer da 12ª CNS, realizada no ano de 2003, um dos pontos mais discutido foi a emergente necessidade de avanço e qualificação do SUS, para tal, discutiu-se o tema da humanização em/nas/das práticas em saúde. Como consequência, iniciou-se em 2003 a implantação da Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS (PNH), uma política idealizada na tentativa de “intensifica[r] esta aposta na humanização das práticas de gestão e de atenção (nos modos de gerir e nos modos de cuidar)” (PASCHE; PASSOS, 2008, p. 92). A construção dessa política proporcionou nova possibilidade no modo de pensar, fazer, gerir e cuidar em saúde coletiva, pois é uma política “que atravessa/transversaliza as diferentes ações e instâncias gestoras do SUS” (BRASIL, 2010, p. 17). Nesse aspecto, Benevides e Passos (2005) apontam que: Aumentar os graus de transversalidade é superar a organização do campo assentada em códigos de comunicação e de trocas circulares nos eixos da verticalidade e horizontalidade: um eixo vertical que hierarquiza os gestores trabalhadores e usuários e um eixo horizontal que cria comunicações por estames. Ampliar o grau de transversalidade é produzir uma comunicação multivetorializada construída na intercessão dos eixos vertical e horizontal (BENEVIDES; PASSOS, 2005, p. 393). Nota-se que para essa nova construção foi intencionalmente utilizado o termo “Política”, e não “Programa”, com o intuito de “destacar que a humanização deve ser transversal às diversas ações e instâncias gestoras, traduzindo os seus princípios nos modos de operar dos diferentes equipamentos e sujeitos da rede” (MARTINS; BERSUSA; SIQUEIRA, 2010, p. 943). O caráter transversal da PNH viabiliza o exercício da humanização em qualquer âmbito da rede, da assistência ou da gestão. Sendo assim, trata-se de uma política que se expressa necessariamente na articulação com outras políticas/projetos/programas, sem que para isso tenha que 41 partir de um serviço, de uma ação ou de um programa que lhe seja específico e próprio. Outras implicações da transversalização da Política constituem a construção de um sentido positivo para o termo humanização, que parte da “desidealização do Homem” (BENEVIDES; PASSOS, 2005), orientando práticas de atenção e gestão do SUS a partir da experiência concreta do trabalhador e usuário; fomenta e mantém trocas solidárias e comprometidas com a dupla tarefa de produção de saúde e de produção de sujeitos, além de ofertar um eixo articulador das práticas em saúde, destacando o aspecto subjetivo nelas presente (BRASIL, 2010). A ampliação no conceito de humanização pressupõe sua compreensão enquanto conceito ampliado que transpõe a concepção de humanização como referência ao “homem bom”, a “boas ações” ou ainda à ideia de voluntariado (BENEVIDES; PASSOS, 2005). Dessa maneira, no processo de construção e ampliação do conceito, o termo humanização é adotado pela PNH pautado na valorização dos diferentes sujeitos comprometidos com o processo de produção de saúde e utiliza-se do fomento da autonomia, protagonismo e corresponsabilidade desses sujeitos como modo de operar tal valorização (BRASIL, 2010). A PNH enquanto política pública, que atravessa as diferentes ações e instâncias gestoras do SUS, apresenta-se como uma potente proposta para enfrentamento do desafio de mudança dos modelos de atenção e de gestão das práticas de saúde, estruturando-se a partir de Princípios, Método, Diretrizes e Dispositivos. Princípio é “o que causa ou força a ação, ou que dispara um determinado movimento no plano das políticas públicas” (BRASIL, 2010; p. 23). Os três princípios apresentados pela PNH são: a) Transversalidade: pressupõe um aumento no grau de comunicação intra e intergrupos com o intuito de possibilitar a existência de diversos modos de funcionamento para que as equipes dos serviços possam se relacionar e se comunicar, fomentando, como consequência, um borramento entre as fronteiras dos saberes, dos territórios de poder e das relações nos processos de trabalho; b) Indissociabilidade entre atenção e gestão: o ato de gerir e o ato de cuidar são inseparáveis tais quais produção de saúde e produção de sujeitos, exige-se, 42 para tanto, integralidade do cuidado e integração dos processos de trabalho; e c) Protagonismo, corresponsabilidade e autonomia dos sujeitos e dos coletivos: implica envolver os sujeitos compreendidos tanto no território como no processo de trabalho, possibilitando que sejam tomadas decisões construídas coletivamente, pois assim, fomenta-se a produção de autonomia dos sujeitos que se percebem implicados e envolvidos nos processos e, consequentemente, afirma-se a autonomia e o protagonismo nos processos de gestão, de cuidado e de autocuidado. Para a PNH, o método é o como fazer, o caminho. O caminho da PNH é o da inclusão dos diferentes agentes implicados nos processos de produção de saúde. A seguir, será apresentado brevemente, o método da tríplice inclusão e suas respectivas ferramentas: a) inclusão dos diferentes sujeitos: pressupõe-se, a inclusão de gestores, trabalhadores e usuários fomentando, dessa maneira, a produção de autonomia, protagonismo e corresponsabilidade, por exemplo, por meio de realização de rodas de conversa; b) inclusão do coletivo: pode ser um movimento social organizado, um grupo de trabalhadores de saúde ao atuar como coletivo, por exemplo, por meio do fomento das redes; e c) inclusão dos conflitos. a inclusão dos analisadores sociais, que se aplica a qualquer situação “que desestabilizam os modelos tradicionais de atenção e de gestão, acolhendo e potencializando os processos de mudança”, para tal faz-se necessária a ferramenta de “análise coletiva dos conflitos, entendida como potencialização da força crítica das crises” (BRASIL, 2010, p. 25). Pasche (2009) indica que a garantia do método da tríplice inclusão é apontado como importante estratégia para o movimento de elaboração de processos coletivos, visto que proporciona em espaços públicos a possibilidade de contemplar e contrastar posicionamentos discordantes. Dessa maneira, considera-se a expressão do coletivo, necessariamente plural, na elaboração do comum na diferença. O autor ainda afirma que: [...] incluir o outro e incluir a perturbação desta inclusão impõe a necessidade de lidar de forma menos paranóica com a diferença; e a lidar com/e gerir conflitos, entendidos como espaços de abertura, de passagem 43 do outro, condição necessária para a produção de mudança (PASCHE, 2009, p. 705). Nesse sentido, somos convidados “a aprender a habitar – tal como no fio da navalha – esse lugar instável do limite: entre o que comuna e o que difere; entre o que conecta os diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde e o que nessa conexão tensiona” (PASCHE; PASSOS, 2010, p. 440). As diretrizes são orientações gerais e, para a PNH, suas diretrizes estão intrinsecamente ligadas ao método da inclusão. São exemplos de diretrizes da PNH: Clínica Ampliada, Co-gestão, Acolhimento, entre outras. O autor prossegue indicando que a prática dessas diretrizes pressupõe constantemente indagar sobre os modos de fazer, “o que, na perspectiva da PNH, implica a inclusão dos sujeitos, de coletivos, de analisadores sociais e na produção multi-interessada de novas realidades” (PASCHE, 2009, p. 706). Os dispositivos são maneiras possíveis de organização das diretrizes da política nos processos de trabalho, compreendidos não enquanto imposições, e sim como maneiras possíveis de organização dos processos de trabalho, podem, portanto, assumir novos sentidos partindo de cada experiência única e singular, e serem capazes de, inclusive, atualizarem-se e modificarem-se. Alguns exemplos de dispositivos são: Grupo de Trabalho em Humanização (GTH), Colegiado Gestor, Sistemas de escuta qualificada para usuários e trabalhadores da saúde: gerência de “porta aberta”, Ouvidorias, Grupos Focais, Acolhimento com Classificação de Riscos, Projeto Memória do SUS que dá certo, entre outros (BRASIL, 2010). No entanto, a PNH não deixa de considerar que os próprios sujeitos/apoiadores podem construir o dispositivo necessário para implementar as ações indispensáveis para as transformações no meio em que estão inseridos. A PNH propõe, então, um novo modo de fazer gestão em saúde e possibilita que todos os atores sociais envolvidos em seu funcionamento possam repensar seu processo de trabalho. O objetivo da PNH é provocar nos sujeitos envolvidos uma “produção de transformações no modo de fazer gestão e atenção em saúde, tendo como objeto de intervenção os próprios processos de trabalho” (SANTOS FILHO; SOUZA; GONÇALVES, 2011, p. 259). Nesse sentido, a perspectiva do modelo ampliado de saúde propõe-se a fomentar investimento na produção de protagonismo e autonomia dos diversos atores envolvidos nas três dimensões da atenção à saúde: (co)gestão do serviço, 44 processo de trabalho e processo de cuidado e autocuidado. Para alcançar tais objetivos o MS lançou mão de uma série de processos de formação e de fomento na ampliação do protagonismo e autonomia ofertados em distintos territórios, pois como bem apontam Benevides e Passos (2005) para a realização de: [...] mudanças dos processos de produção de saúde exige também mudanças nos processos de subjetivação, isto é, os princípios do SUS só se encarnam na experiência concreta a partir de sujeitos concretos que se transformam em sintonia com a transformação das próprias práticas de saúde. [Sendo assim] apostar numa Política Nacional de Humanização do SUS é definir a Humanização como a valorização dos processos de mudança dos sujeitos na produção de saúde (BENEVIDES; PASSOS, 2005, p. 392). A partir dos anos 2000 o termo apoio surgiu no contexto da saúde brasileira despontando em publicações teórico-técnicas e científico-acadêmicas nomeando “uma função ou uma metodologia de trabalho possível de ser desempenhada por um profissional ou por um grupo de profissionais da saúde” (MOURA; LUZIO, 2014, p. 959). Segundo aponta Oliveira (2011), a PNH propõe a função apoio como ferramenta capaz de concretizar a diretriz da inclusão, permitindo e fomentando a participação de todos os atores envolvidos diretamente e indiretamente na gestão dos processos de trabalho e nas práticas de atenção em saúde. Isto posto, é possível afirmar que o apoio contempla em sua proposta uma série de recursos que ampliam as possibilidades de lidar com os processos da saúde em sua conexão entre a dimensão estrutural das instituições/serviços de saúde e as necessidades imediatas dos sujeitos. Destarte, a função apoio tem sido vivenciada como método que possibilita a articulação entre os objetivos institucionais e os saberes e interesses dos trabalhadores e usuários, pois contempla tanto a percepção da necessidade de considerar a bagagem de conhecimento e experiência que o grupo carrega quanto a necessidade de trazer algo externo ao grupo, já que a função apoio pressupõe o entendimento de que, em algum grau, todos exercem funções de gestão e tal exercício é experimentado entre sujeitos, independentemente de seus distintos graus de saber e de poder. Desse modo, o apoio surge enquanto processo que visa a ativação de políticas públicas de acordo com as necessidades de cada território. Como bem sinaliza Oliveira (2011) a proposta do apoio “é o tensionamento de produzir o comum no regime das 45 diferenças, não propriamente a partir do que ‘temos em comum’, do que nos iguala e serializa” (OLIVEIRA, 2011, p. 37, grifo do autor). Ademais, o apoio assegura a garantia do exercício da indissociabilidade entre atenção e gestão visto que sua principal aposta fundamenta-se: [...] na troca de saberes entre equipes e entre profissionais em torno da busca de ofertas de ações/serviços que tenham potência para modificar positivamente os problemas de saúde (no seu amplo sentido) de sujeitos, com o uso, o mais racional possível, de toda ordem de recursos disponíveis (OLIVEIRA, 2011, p. 40). A percepção da centralidade que tal conceito ocupa na proposta arquitetada pela PNH suscitou na elaboração de diversos processos formativos fomentados por esta Política como uma aposta na formação de apoiadores com o intuito de propagar a Humanização na saúde. Logo, a formação ocupa posição estratégica de propalação e capilarização da Política. Por conseguinte, a aposta nos processos de formação com a intencionalidade de formar novos apoiadores que sejam polinizadores da política segue como um dos objetivos centrais da PNH. Deste modo, o processo formativo pauta-se em princípios e diretrizes metodológicas partindo do pressuposto da impossibilidade em dissociar formação e produção de conhecimento da atuação e intervenção nas práticas cotidianas do serviço. Deste modo, o MS entende que a formação em saúde é estratégia essencial para disseminação e capilarização da PNH. Por esse motivo, um dos instrumentos utilizados pelo MS e pela coordenação da PNH para alcançar tal fim foi a oferta de oficinas e cursos de aproximação da PNH, oportunidades essas próprias para abordar o tema SUS. Tais processos formativos foram realizados em diversos estados brasileiros. Os cursos de humanização abordados na presente pesquisa podem ser compreendidos enquanto uma das ferramentas construídas pela PNH baseada em sua aposta no avanço e fortalecimento do SUS. Efetiva-se, por meio de processos de formação organizados de maneira a possibilitar o encontro entre diferentes trabalhadores, propiciar troca de experiências e saberes, tornando possível um exame do território com o intuito de verificar quais as reais demandas e quais os espaços potentes existentes nos diferentes territórios, análise esta que permite, a 46 partir dessa nova ótica, elencar os problemas e as potencialidades do local em estudo. A partir da construção dessa perspectiva, os cursos de humanização passam a ser compreendidos enquanto instrumentos de fortalecimento e difusão do SUS e, paralelamente, fomentam a capacidade dos apoiadores em formação em construir análises referentes aos serviços e territórios, os quais, à época, estavam vinculados. Tal análise foi efetivada por meio da construção de Planos de Intervenção (PI). A confecção dos PIs teve fundamental importância metodológica, pois foi vivenciada pelos apoiadores como ferramenta que buscou por meio da articulação de coletivos e, nesse processo, fomentou a reflexão-problematização das práticas ao provocar nos apoiadores indagações referentes aos processos de trabalho, modos de fazer e modos de comunicação vigentes nos mais diferentes níveis, como por exemplo, entre sujeitos (trabalhadores, gestores, usuários), entre setores, estabelecimentos, serviços, programas, etc. com o intuito de construir novas redes de cooperação intra e inter equipes/serviços além de fortalecer as redes já existentes. Ao averiguar os resultados e efeitos produzidos pelos processos de formação promovidos pela PNH, percebe-se uma crescente demanda por avaliações metodologicamente coerentes com os princípios e diretrizes estabelecidos pelo SUS e, conseguinte, pela PNH. Nesse sentido, a avaliação em saúde deve ser compreendida enquanto estratégia de fortalecimento e potencialização dos princípios do SUS bem como de suas diretrizes (PASSOS et al., 2008). Dessa maneira, perante o desafio de responder à crescente necessidade e demanda por avaliação em saúde, as diversas políticas e programas do SUS têm sido paulatinamente convocadas a discutir e recriar novos desenhos de pesquisa e de subsídios metodológicos que contemplem a diversidade de campos e objetos de investimento. Diante desse cenário, é possível contemplar o comprometimento de diversas áreas de atenção em saúde em atrelar ao escopo de suas ações cotidianas não apenas metodologias de avaliação quantitativas como também as qualitativas. [...] é bom ressaltar que no campo das pesquisas científicas avaliativas há um intenso debate sobre as limitações e avanços das metodologias quantitativas e qualitativas (em suas diferentes vertentes), debate que tem avançado na medida em que se observa a pertinência de se utilizarem dos 47 diferentes métodos desde que adequadamente conformados ao objeto avaliado (BRASIL, 2012, p. 11). Uma discussão relativamente necessária é levantada por Silva e Formigi (1994), na qual ratificam a concepção de que a avaliação é indiscutivelmente compreendida como um elemento imprescindível ao processo de planejamento e gestão em saúde. Entretanto, levantam um questionamento referente ao tema da avaliação em saúde: embora tal avaliação seja compreendida como um recurso largamente lembrado sua prática ainda é escassa. Ademais, nos chama também a atenção para o fato de posteriormente à sua realização não existe uma vasta divulgação para a população a respeito dos resultados obtidos ou construídos que, hoje sabemos, podem variar de acordo com a metodologia empregada. Desse modo, a partir do início dos anos 2000, houve por iniciativa da PNH um investimento prioritário na construção de uma agenda específica para avaliação, preocupando-se, para além da análise especificamente de suas ações, em sistematizar um marco referencial avaliativo condizente com os princípios e diretrizes da avaliação construtivista e participativa (BENEVIDES; PASSOS, 2005). Trata-se, então, de um modelo avaliativo que pretende ser, sobretudo, formativo, visto que seu produto confere conhecimentos produzidos com a intencionalidade de (retro)alimentar todo o processo desencadeado, tornando assim, a prática totalmente associada à intervenção e vice-versa dado que: [...] apostar no método da inclusão como modo de fazer a avaliação nos compromete a pôr em análise modos de trabalhar que, no caso da saúde, repetem a separação entre atenção e gestão, entre clínica e política, entre trabalhador e gestor, entre avaliador e avaliado (PASSOS et al., 2008, p. 218). Como bem aponta ALVAREZ et al. (2008) a garantia da participação coletiva por meio da inclusão dos diferentes atores está intrinsecamente ligada pela maneira como a avaliação será conduzida, porém, mais do que isso, é indispensável também assegurar e fomentar o exercício do protagonismo desses diferentes sujeitos, visto que ao incluir a diferença faz-se uma aposta na transversalização dos processos avaliativos, certificando que a ação de integrar as diferenças e divergências possa agir como catalizador de produção de tensões e de problematizações essenciais e imprescindíveis para que aconteçam mudanças no sistema avaliado. 48 Destarte, a execução de uma pesquisa que se propõe ser formativa e interventiva, requer, pois, que haja efetiva participação dos atores envolvidos em razão de que, esse processo, ao incorporar as diferenças possibilita a emergência e potencialização de outros saberes, até então marginalizados ou excluídos, garantindo, desse modo, “a legitimidade e a importância do conhecimento produzido por trabalhadores e usuários no cotidiano dos serviços da rede [...] além de afirmar a dimensão coletiva dessa produção” (ALVAREZ et al, 2008, p. 302). Corroborando essa ideia, Pasche e Passos (2010) defendem a impossibilidade de exercitar o método da inclusão por passividade, ao contrário, sua realização decorre por meio de posicionamento crítico ao material exposto pelo que o outro entende como verdade, vontade e desejo. Esse impasse e, consequentemente, a construção de novos conhecimentos, pode ser resolvido apenas por meio do debate, discussão, compromisso e produção de contrato. A pesquisa avaliativa produz intervenção pelo fato de que o seu processo opera não apenas a inclusão de diferentes atores/setores, mas também a inclusão de analisadores disparados pelo encontro dessas diferenças. [...] O objeto avaliado ganha protagonismo, deslocando-se da posição de quem sofre a avaliação para a de quem realiza a avaliação. Pesquisador e pesquisado tornam-se, assim, posições que se distinguem, mas que não mais separam sujeito e objeto da pesquisa. Não há, portanto, neutralidade do pesquisador, pois na pesquisa-intervenção, sujeito e objeto, pesquisador e campo de pesquisa se constituem ao mesmo tempo (ALVAREZ et al., 2008, p. 302-303) Por conseguinte, diante da ascensão das demandas e das complexidades na gestão e na prática cotidiana de atenção à saúde, surgem novas metodologias para a realização de avaliações em saúde que emergem dessa nova realidade, enquanto tentativa de fomentar e [...] enfatizar os modos de produção da informação e de sua análise no cotidiano dos serviços, de maneira a chamar a atenção para o próprio processo de construção e apropriação da informação pelos diferentes atores com ela envolvidos [...] [pautado na aposta de que] a informação em seu potencial de evitar a alienação dos trabalhadores, na medida em que possa permitir reflexão sobre seu fazer cotidiano, sendo utilizada como norte para pensar sua prática e os resultados de seu trabalho. [Portanto trabalha-se com a ideia da] informação em seu potencial de fomentar autonomia e protagonismo de coletivos, na medida em que possa se colocar como elemento capaz de provocar a reunião de diferentes pessoas/profissionais/ saberes (equipes) em torno de dados que passem a ser objeto de coanálise e decisões (BRASIL, 2012, p. 7). 49 Nesse sentido, conforme apontam PASSOS et al. (2008) a produção de avaliação resulta na produção de atores capacitados a exercer um olhar avaliativo, em vista disso, tornam-se atores que estão implicados e envolvidos com o processo, resultando em análise de suas implicações na produção de saúde e na avaliação dessa produção. Com isso, tais sujeitos envolvidos nesse processo avaliativo acabam formando-se também pesquisadores, não pesquisadores no sentido acadêmico, mas no aspecto da constante eminência da construção de si, possibilitando a cada sujeito construir a ideia de investigação do seu próprio processo de trabalho, da análise da configuração das redes de atenção, possibilitando o fomento tanto da manutenção das redes existentes quanto da construção de novas redes necessárias. Nessa perspectiva, essa ampliação da proposta de avaliação, que deixa de ser meramente qualitativa, ao agregar outras dimensões – quais sejam as concepções de formação, participação, intervenção, dentre outras – condiz perfeitamente com o objetivo central da PNH, o qual concerne na ocupação em qualificar a gestão e a atenção à saúde. Visando alcançar tal objetivo, a PNH incentiva que os diferentes sujeitos, coletivos, equipes e serviços vivenciem a experimentação de novas maneiras de organização das práticas e dos serviços ao proporcionar a elaboração de análises dos processos de trabalho bem como a elaboração coletiva de novos modos de produzir e de fazer circular a discussão e a construção de novas propostas, tanto para as práticas gerenciais quanto para as práticas de atenção à saúde. [...] as avaliações qualitativas vão demarcar sua contribuição peculiar ao tomar como matéria prima a interpretação dos sujeitos sobre a ação avaliada, sobre sua própria participação nesta ação, contextualizando este campo de opiniões, crenças e valores às suas condições sociais de produção (DESLANDES, 2008, p. 69). Nesse sentido, Silva e Formigli (1994) sinalizam que a permanente avaliação em saúde pressupõe a constante expectativa referente à construção de novos recursos e medidas baseadas no aprimoramento de práticas já existentes bem como na difusão de situações exitosas. Para as autoras, tanto o aperfeiçoamento das práticas quanto a propalação das experiências exitosas funcionam como agentes catalisadores no processo de ampliação da capacidade de análise e atuam, também, enquanto possibilidade de modificação das práticas e/ou serviços de saúde 50 que ofertam cuidado às necessidades de determinada população diante da realidade de cada território. Nesse sentido, a avaliação em saúde traz para primeiro pl