Esta obra apresenta uma refl exão coletiva sobre um tema cada vez mais presente nos círculos acadêmicos brasileiros: o debate sobre o lugar das Ciências Humanas na universidade. Se não são recentes os desencontros do diálogo das Humanidades com outras ciências, o desafi o contemporâneo da interdisciplinaridade estabelece novos contornos para essa relação. Os textos aqui coligidos remetem a um processo iniciado em 2010, com a constituição da Comissão de Ciências Humanas da Pró-Reitoria de Pesquisa (PROPe) da Unesp. A iniciativa impulsionou a realização de uma série de estudos e debates sobre as Humanidades, expressos na organização de dois fóruns reunindo pesquisadores de diversas áreas do conhecimento. Esta coletânea reúne alguns dos trabalhos discutidos nesses espaços e procura expor um panorama geral dos problemas e impasses que a produção científi ca em Ciências Humanas apresenta na Unesp, partindo-se do princípio de que tais questões não são exclusivas de uma ou outra instituição, mas impõem-se a toda universidade brasileira. CIÊNCIAS HUMANAS EM DEBATE ANGELO DEL VECCHIO DOROTÉA M. KERR FLÁVIA A. M. DE OLIVEIRA JEAN CRISTTUS PORTELA MARIA EUNICE Q. GONZALEZ MARIA SUZANA DE S. MENIN (ORGS.) D E S A F I O S C O N T E M P O R Â N E O S A N G ELO D EL V EC C H IO , D O RO T ÉA M . KER R , FLÁ V IA A . M . D E O LIV EIR A , JEA N C . PO RT ELA , M A R IA E. Q . G O N Z A LEZ , M A R IA S. D E S. M EN IN (O R G S.) C IÊN C IA S H U M A N A S EM D EB A T E CiênCias Humanas em debate Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 1 15/10/2013 09:06:52 FUNDAÇÃO EDITORA DA UNESP Presidente do Conselho Curador Mário Sérgio Vasconcelos Diretor-Presidente José Castilho Marques Neto Editor-Executivo Jézio Hernani Bomfim Gutierre Superintendente Administrativo e Financeiro William de Souza Agostinho Assessores Editoriais João Luís Ceccantini Maria Candida Soares Del Masso Conselho Editorial Acadêmico Alberto Tsuyoshi Ikeda Áureo Busetto Célia Aparecida Ferreira Tolentino Eda Maria Góes Elisabete Maniglia Elisabeth Criscuolo Urbinati Ildeberto Muniz de Almeida Maria de Lourdes Ortiz Gandini Baldan Nilson Ghirardello Vicente Pleitez Editores-Assistentes Anderson Nobara Jorge Pereira Filho Leandro Rodrigues Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 2 15/10/2013 09:06:52 Angelo Del Vecchio DorotéA MAchADo Kerr FláViA ArlAnch MArtins De oliVeirA JeAn cristtus PortelA MAriA eunice Quilici gonzAlez MAriA suzAnA De steFAno Menin (organizadores) CiênCias Humanas em debate Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 3 15/10/2013 09:06:53 © 2013 Cultura Acadêmica Direitos de publicação reservados à: Cultura Acadêmica Praça da Sé, 108 01001-900 – São Paulo – SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 Fax: (0xx11) 3242-7172 www.editoraunesp.com.br www.livrariaunesp.com.br feu@editora.unesp.br CIP – Brasil. Catalogação na publicação Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ C511 Ciências humanas em debate / organização Angelo Del Vecchio... [et al.]. – 1 ed. – São Paulo: Cultura Acadêmica, 2013. il.; 21 cm. ISBN 978-85-7983-417-2 1. Ciências sociais. 2. Humanidades. 3. Pesquisa – Metodologia. I. Del Vecchio, Angelo, 1953- 13-04650 CDD: 320 CDU: 32 Editora afiliada: Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 4 15/10/2013 09:06:53 Sumário Apresentação 1 Julio Cezar Durigan Prefácio 7 Maria José Soares Mendes Giannini sobre a natureza da pesquisa em ciências humanas 13 Angelo Del Vecchio, Dorotéa Machado Kerr, Flávia Arlanch Martins de Oliveira, Jean Cristtus Portela, Maria Eunice Quilici Gonzalez, Maria Suzana de Stefano Menin Parte I O caráter interdisciplinar da pesquisa em Ciências Humanas 33 Multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade nas ciências humanas 35 José Luiz Fiorin A pesquisa em humanidades: contribuições da interdisciplinaridade 61 Mariana C. Broens Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 5 15/10/2013 09:06:53 VI ANGELO V. – DOROTéA K. – FLÁVIA O. – JEAN P. – MARIA G. – MARIA M. (ORGS.) Pesquisa na universidade: qual e por quê? 73 Reginaldo Moraes A pesquisa em ciências humanas 79 Maria Alice Rezende de Carvalho ciências humanas: fronteira, especificidade e formas de coerção 91 Anderson Vinícius Romanini Parte II A prática interdisciplinar: experiências e reflexões 105 A experiência de uma rede de pesquisa 107 Maria Encarnação Beltrão Sposito Dicionário histórico do português do Brasil (séculos XVi a XViii): do projeto à sua concretização 127 Clotilde de Almeida Azevedo Murakawa uma experiência interdisciplinar 135 Alfredo Pereira Júnior o Qualis das ciências humanas e o contexto da unesp 147 Gladis Massini-Cagliari Pesquisa em grupo e “produtivismo” 173 João Batista Toledo Prado As métricas da avaliação: precarização e intensificação do trabalho docente 197 Sueli Guadelupe de Lima Mendonça Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 6 15/10/2013 09:06:53 CIêNCIAS HUMANAS EM DEBATE VII Apêndices 205 i Fórum de ciências humanas da unesp 207 Angelo Del Vecchio, Dorotéa Machado Kerr, Flávia Arlanch Martins de Oliveira, Jean Cristtus Portela, Juliano Maurício de Carvalho, Maria Eunice Quilici Gonzalez, Maria Suzana de Stefano Menin ii Fórum de ciências humanas da unesp 219 Angelo Del Vecchio, Dorotéa Machado Kerr, Flávia Arlanch Martins de Oliveira, Jean Cristtus Portela, Maria Eunice Quilici Gonzalez, Maria Suzana de Stefano Menin temas de pesquisa dos programas de pós-graduação da área de humanidades da unesp 229 sobre os organizadores e autores 237 referências bibliográficas 241 Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 7 15/10/2013 09:06:53 Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 8 15/10/2013 09:06:53 Apresentação gostaria de parabenizar a Pró-reitoria de Pesquisa da unesp e os organizadores desta obra, pois nesta iniciativa reside a distinção de uma universidade que se preocupa com uma ver- dadeira prática de formação (na melhor acepção da palavra) em vez de se contentar em dar andamento a uma política de simples repasse da informação. nesse esforço conjunto de reflexão está a diferença entre a superficialidade do conhecer e a profundidade do saber. entre a instituição para o desenvolvimento de tarefas e a formação para uma vida produtiva. entre o docente que ape- nas recebe o seu salário e aquele que se preocupa em melhorar a vida das pessoas. entre as ações pontuais e tênues tomadas de modo oportunista e uma política perene e vigorosa para a valo- rização definitiva dessa importante área da nossa universidade, as humanidades. obras como esta permitem que adentremos um pouco mais profundamente no rol das dificuldades e no âmago das reais possibilidades dos nossos cursos e do nosso trabalho no ensino superior do país, que é um bem público e imperativo estratégico para todos os outros níveis educacionais; permitem também buscar caminhos diferenciados para a educação superior que visa Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 1 15/10/2013 09:06:53 2 ANGELO V. – DOROTéA K. – FLÁVIA O. – JEAN P. – MARIA G. – MARIA M. (ORGS.) não só a um país de pessoas com competências técnicas sólidas, mas também à formação de cidadãos éticos, comprometidos com a construção da paz, da defesa aos direitos humanos e dos valores da democracia plena. A universidade não deve deixar, jamais, de se constituir em nicho fecundo para o desenvolvimento, discussão, apoio ou con- traposição de ideias. A instituição universitária, por causa da sua natureza, possui luz própria e, justamente por isso, pode operar com liberdade em relação às circunstâncias histórico-sociais que estão em sua base, apesar dos problemas do dia a dia, dos entraves e da burocracia administrativa, da instabilidade gerada pela dependência externa de recursos, do impacto das novidades tecnológicas sucessivas, das incertezas e das inseguranças. Vários são os fatores que podem bloquear a interação profícua e dinâmica entre os indivíduos, frear a criatividade e reforçar roti- nas improdutivas, fazendo que as organizações se desencantem e passem a registrar “déficits” de sentido. nas últimas décadas, ao lado das tentativas de modernização e de racionalização, foram desenvolvidas políticas equivocadas e abertos flancos importantes para o descrédito, o desestímulo e a acomodação. Para romper com tal situação, não bastam operar as indignações, a resistência e a denúncia. é necessário criar condições para sua superação, transformando as inquietações em iniciativas renovadoras e ações transformadoras. Apesar dos problemas que, naturalmente, possam pesar sobre nossa uni- versidade, esforços como este aproximam e animam as pessoas, buscam fixar novas perspectivas de ação e integração, trabalham na valorização de identidades coletivas e atam os fragmentos que a vida foi separando. A universidade é uma instituição eminentemente social, cuja razão de ser é publicamente reconhecida e legitimada, na mesma medida em que se reporta, o tempo todo, à sociedade e ao estado, à cultura, à política e à economia. De certa maneira, a Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 2 15/10/2013 09:06:53 CIêNCIAS HUMANAS EM DEBATE 3 universidade recebe uma “delegação” da sociedade, que transfere a ela determinadas responsabilidades e circunstâncias. tudo o que é humano lhe interessa e diz respeito, tudo o que há de mais típico nas épocas históricas e nas estruturas sociais reverbera em seu interior, dando a ela uma existência dinâmica e socialmente referenciada. seus movimentos como instituição seguem as demandas e expectativas da sociedade, ainda que não se submetam passivamente a elas. sustentada pelos princípios da autonomia do saber, da liber- dade de expressão e da reflexão desinteressada, a universidade é uma instituição que se põe, diante do mundo, como sujeito simultaneamente ativo e reativo. Deve observar demandas e expectativas sociais variadas, às quais precisa responder, mas ao mesmo tempo deve agir para propor pautas e agendas, contribuir para a construção da autoconsciência social, alargar fronteiras culturais e submeter à crítica tanto a realidade, como as estruturas sociais e as relações de dominação. A universidade é uma decisiva referência do estado, enquanto comunidade política, e vincula-se a este como aparato adminis- trativo e de governo. no primeiro caso, recebe uma atribuição ética, educacional e política; no segundo, muitas incumbências e algumas restrições. Precisa ser livre, laica e autônoma para respirar e cumprir seu papel, ao mesmo tempo que tem de se viabilizar como organização, ou seja, cuidar de si própria, admi- nistrando corretamente os recursos que dispõe ou que recebe do poder público. o estreitamento das relações entre universidade e mercado afeta a finalidade mesma da primeira; o modo como ela se con- cebe e o lugar que nela tem a ideia de ciência e formação. como instituição que se dedica à produção e transmissão de conhecimento, a universidade reage ao modo como as épocas e as sociedades entendem o conhecimento. Por estar sempre so- cialmente referenciada, a ideia de conhecimento oscila conforme Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 3 15/10/2013 09:06:53 4 ANGELO V. – DOROTéA K. – FLÁVIA O. – JEAN P. – MARIA G. – MARIA M. (ORGS.) os movimentos da história, a correlação de forças, as disputas de hegemonia e dominação. é ele, o conhecimento, um valor em si, voltado para o crescimento intelectual e normal das pessoas, ou um recurso para que as pessoas se adaptem melhor ao mundo? o conhecimento pode ser pensado como um fim em si mesmo, que liberta, promove e emancipa, ou como um instrumento de desenvolvimento profissional e ajuste, com o qual as pessoas melhoram sua posição relativa diante do mercado de trabalho? Ambas as visões evidentemente coexistem; a estrutura social faz suas escolhas e a adesão a uma ou outra dessas visões cer- tamente não é sem importância. A universidade, sobretudo dentro da área de humanidades, deve conhecê-las, entendê- -las e debatê-las. só não consegue e nem deve estar alheia a esse processo. inevitável, portanto, que a universidade espalhe em si, com uma dose adicional de dramaticidade, todas as características, vanta- gens e adversidades da época histórica e das sociedades concretas em que está inserida. se o ambiente geral trepida ou é turbulento, a universidade o acompanha. se o risco e a incerteza prevalecem, a universidade tende a se sentir igualmente insegura. enfim, ao re- fletir sobre o mundo, acaba por refleti-lo. se engana quem acha que a solução para os problemas que decorrem dessas tensões está na apresentação de jornadas ou receitas prontas. no entanto, não devemos entender que apenas a objetivação e o foco em assuntos relacionados à especificidade e adequação têm importância, como, por exemplo, é prática cor- rente na avaliação docente das diferentes áreas. Fazer ciência não pode ser um ato reduzido a uma prática puramente instrumental, pragmática, vazia de aventura, risco e fantasia. entretanto, a produção da ciência não pode se resumir ao sonho, a devaneios dissociados de uma real preocupação com a melhoria da vida das pessoas. esta só pode ser obtida pela Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 4 15/10/2013 09:06:53 CIêNCIAS HUMANAS EM DEBATE 5 criatividade, pela inovação e pelo esforço centrado e dirigido a algumas atividades, em todas as áreas do conhecimento, em especial na área de humanidades. Julio Cezar Durigan Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 5 15/10/2013 09:06:53 Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 6 15/10/2013 09:06:53 Prefácio este livro representa o trabalho de um grupo de docentes que concebeu e organizou os dois fóruns de ciências humanas da unesp, realizados em novembro de 2010 e agosto de 2011. ele é fruto de um arrojado projeto coletivo, que teve à frente a comissão de ciências humanas da Pró-reitoria de Pesquisa (ProPe) da unesp, formada pelos professores Angelo Del Vecchio (Faculdade de ciências e letras da unesp de Araraquara); Dorotéa Machado Kerr (instituto de Artes da unesp de são Paulo); Flávia Arlanch Martins de oliveira (Faculdade de ciências e letras da unesp de Assis); Jean cristtus Portela (Faculdade de Arquitetura, Artes e comunicação da unesp de Bauru); Maria eunice Quilici gonzalez (Faculdade de Filosofia e ciências da unesp de Marília) e Maria suzana de stefano Menin (Faculdade de ciências e tec- nologia da unesp de Presidente Prudente).1 À essa comissão foi posto o encargo de refletir sobre a pesquisa em ciências humanas e propor ações para fortalecê-la no âmbito de nossa universidade. 1 A formação inicial da comissão contou também com a participação do professor Juliano Maurício de carvalho (Faculdade de Arquitetura, Artes e comunica- ção da unesp de Bauru), que colaborou na realização do i Fórum de ciências humanas. Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 7 15/10/2013 09:06:53 8 ANGELO V. – DOROTéA K. – FLÁVIA O. – JEAN P. – MARIA G. – MARIA M. (ORGS.) nos dois fóruns de ciências humanas, que reuniram pesqui- sadores de várias subáreas das humanidades, algumas questões de debate apareceram como demandas vitais para o fortaleci- mento dessa área, como, por exemplo: 1) estimular linhas de pesquisa integradoras de projetos; 2) compreender, na avaliação da pesquisa, a especificidade da área de ciências humanas com suas diferentes metodolo- gias de divulgação científica e temporalidades; 3) valorizar e incentivar as redes de pesquisa estimulando o compartilhamento de competências; 4) desenvolver espaços de convívio entre pesquisadores. A Pró-reitoria de Pesquisa entende que essas demandas podem ser atendidas por um plano de ação que envolva: 1) a criação de grupos de pesquisa valorizando a interdisci- plinaridade, utilizando elos entre as pesquisas existentes (compromisso para o futuro); 2) a criação de um banco de dados sobre pesquisas existentes com informações completas (projetos/pesquisadores/ grupos de pesquisa), via escritório de Pesquisa; 3) a apresentação de dados comparativos da área de ciências humanas nas universidades brasileiras além da compara- ção com as demais áreas; 4) o desenvolvimento de atividades, encontros e seminários temáticos, para aproximar e agregar pesquisadores; 5) a elaboração de um estudo quantitativo das pesquisas em ciências humanas na unesp (mapa institucional); 6) a valorização dos docentes que conseguem fazer trabalhos conjuntos com outros câmpus da unesp e de outras uni- versidades brasileiras ou estrangeiras. Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 8 15/10/2013 09:06:53 CIêNCIAS HUMANAS EM DEBATE 9 Julgo que este livro já é consequência do acolhimento das propostas elencadas anteriormente, o que representa importan- tes avanços para a pesquisa na área de ciências humanas. nela os objetos e métodos, se comparados com as chamadas “ciências duras”, podem parecer fugidios e até distantes das questões mais práticas e emergentes da sociedade, já que suas investigações tangem, por exemplo, a imaginação, o especulativo, a tradição, o espiritual e o sugestivo. no entanto, um exame, mesmo super- ficial, de qualquer momento da história da ciência apontará necessariamente a contribuição das humanidades ao desenvol- vimento das sociedades e do homem. A pesquisa em ciências humanas, não raramente, desen- volve-se a partir do esforço individual de um professor, que, isolado, dedica-se à sua investigação, que tem por sede biblio- tecas, arquivos, museus etc. As obras que resultam desse estudo fazem parte de um diálogo permanente sobre o significado e as possibilidades da existência humana, que remonta a tempos antigos e reflete sobre o nosso futuro comum. no entanto, as pesquisas em ciências humanas podem e devem estar abertas para a adoção de novos modos de organiza- ção. um projeto de pesquisa, por exemplo, pode envolver vários professores de diferentes universidades e o compartilhamento de informações em um fórum on-line. um professor pode colaborar com um colega de outra área de estudo para ter uma perspectiva alternativa sobre seu próprio objeto de pesquisa. um estudioso pode publicar pesquisas em andamento em um periódico para conhecer a ressonância de seu trabalho, não só no seu próprio campo de atuação, como em outros correlatos. o fazer ciência em qualquer área reveste-se de grande dose de paixão e curiosidade entrelaçada com inovação. A ciência revo- luciona a vida diária das pessoas, afeta nossa organização social, nossos modos de ser e costumes. As estruturas universitárias devem permitir que se construam elos de cooperação e devemos Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 9 15/10/2013 09:06:53 10 ANGELO V. – DOROTéA K. – FLÁVIA O. – JEAN P. – MARIA G. – MARIA M. (ORGS.) ser capazes de lidar com a complexidade dos grandes desafios que daí decorrem. esperamos que o debate suscitado pela presente obra con- tribua para que se instale um novo olhar sobre as ciências humanas em nossa universidade, de modo que possamos alcançar a liderança em um ou mais campos do saber dessa área. A área de humanas pode trazer contribuições para a solução dos grandes problemas atuais. As pesquisas, sejam elas oriundas das ciências experimentais, sejam originadas no campo das huma- nidades, devem se pautar pelo enfrentamento das questões que se apresentam para o futuro de todos os cidadãos, para o futuro do mundo. A investigação em ciências humanas nos ajudará a encontrar o caminho para reorganizar as nossas vidas, compreender cultu- ras e contribuir fortemente para a compreensão e superação dos desafios globais. este livro irá certamente estimular novos debates sobre como realizar parcerias de pesquisa bem-sucedidas, que apresentem reflexos nas bases locais, nacionais ou, ainda, naquelas mais amplas, de esforço global. Barreiras já foram ultrapassadas com o impacto de ambientes virtuais de pesquisa e o desenvolvimento de redes de pesquisa. este é um momento de transição e os pesquisadores realizam seu trabalho dentro de uma cultura cada vez mais ampla. é um momento de grandes oportunidades. os desafios com que nos deparamos exigem uma mudança de paradigma. talvez seja o momento de um novo renascimento, no qual, como no passado, cabe às humanidades papel preponderante. nosso mundo está mudando. estamos diante de grandes desafios. As soluções a esses desafios vão exigir novas ideias, descobertas, talentos e inovações, que só podem ser frutos da pesquisa e do conhecimento. Devemos criar um ambiente em que as ideias circulem e prosperem, e em que a excelência seja Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 10 15/10/2013 09:06:53 CIêNCIAS HUMANAS EM DEBATE 11 reconhecida. essas são grandes exigências, e implicam uma mudança fundamental em nossa maneira de pensar, trabalhar e pesquisar. Maria José Soares Mendes Giannini Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 11 15/10/2013 09:06:53 Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 12 15/10/2013 09:06:53 Sobre a natureza da pesquisa em Ciências Humanas Angelo Del Vecchio Dorotéa Machado Kerr Flávia Arlanch Martins de oliveira Jean cristtus Portela Maria eunice Quilici gonzalez Maria suzana de stefano Menin Parece ser fato inconteste que há certo desconforto com o lugar destinado atualmente às ciências humanas nas universida- des brasileiras. Muitos trabalhos já tocaram nessa questão; quase todos produzidos por praticantes dessas ciências empenhados na defesa de seu próprio campo, sendo recorrente nessa reflexão o emprego da expressão “mal-estar” para qualificar a condição das ciências humanas no âmbito da universidade. é notável que o debate mobilize tal expressão, que tem cono- tação particular nas humanidades. empregado pioneiramente por Freud ([1930] 1978) no ensaio “o mal-estar na civilização”, o termo “mal-estar” foi utilizado pelo pensador austríaco para explicar o antagonismo entre as pulsões naturais e a civilização. A ideia de Freud é de que haveria um descompasso entre esses dois elementos constitutivos da natureza humana, um descompasso que se justifica pelo avanço inexorável do efeito normativo da civilização sobre o domínio da pulsão. transladada para o contexto do presente debate sobre as humanidades e a vida acadêmica institucionalizada, a menção ao “mal-estar” remete às situações em que as ciências humanas e seus praticantes estabelecem uma relação de antagonismo ou Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 13 15/10/2013 09:06:53 14 ANGELO V. – DOROTéA K. – FLÁVIA O. – JEAN P. – MARIA G. – MARIA M. (ORGS.) de simples estranhamento com a prática da ciência (ou com o discurso sobre essa prática) que supostamente grassa em nossos departamentos de ensino, faculdades, institutos e órgãos de fomento e avaliação da pesquisa. esse “mal-estar” parece dever-se à inconveniência de um julgamento pautado por valores e objeti- vos que seriam extrínsecos às humanidades e, por consequência, ensejariam avaliações orientadas por critérios inapropriados de dimensionamento do escopo, do alcance e da relevância dessa área na universidade. nos últimos anos, pode-se citar como exemplo dessa matriz de argumentação em favor das ciências humanas a aguda intervenção de olgária Matos (2009), para quem “o abandono da universidade cultural e sua substituição pela ‘universidade da excelência’ ou do ‘conhecimento’ dizem respeito à dissolução do papel filosófico e existencial da cultura”. A Matos se uni- ram outras exposições sobre o tema no registro do “mal-estar”, entre as quais se destacam safatle (2009) e trein e rodrigues (2011). essa linhagem de crítica e de críticos do modo atual de desenvolvimento da universidade em relação às ciências huma- nas foi preconizada por Marilena chaui (2001) em meados dos anos 1990. Assumindo uma posição radical perante os rumos que tomava a instituição universitária naquele momento, chaui (2001, p.159) externa: A percepção, no campo das pesquisas, do esgotamento histórico não só de algumas disciplinas e áreas, mas de suas próprias teorias, pressupostos e finalidades, de sorte que em lugar das humanidades e das ciências sociais como produtoras e reprodutoras de ideologias, tem-se a desaparição da própria necessidade social e política do campo inteiro das humanas. A filósofa toca em um ponto muito sensível não só para a ava- liação da universidade brasileira, mas também para a definição Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 14 15/10/2013 09:06:53 CIêNCIAS HUMANAS EM DEBATE 15 da própria conformação que se pretende dar a essas instituições. A recorrência do tom e da forma desse debate, em si mesma, já seria motivo suficiente para refletirmos sobre a pesquisa em ciências humanas. Ademais, esse exercício é de particular importância no âmbito da unesp, com sua conformação multicâmpus, que propicia que cursos e programas de pós-graduação da área de humanas, não raro, sejam replicados em diferentes unidades, com consequên- cias nem sempre vantajosas para a própria unesp e mesmo para o avanço do campo científico. o que se ganha em abrangência ou em diversidade corre-se o risco de perder em coerência e em con- tundência, sobretudo quando o assunto é a concepção e a defesa de determinada posição sobre a situação das ciências humanas em nossa universidade. refletir sobre a natureza da pesquisa em ciências humanas na universidade brasileira ou, mais especificamente, na unesp é, portanto, um problema complexo e de ampla abrangência, para cuja compreensão podem ser reivindicadas razões de ordens diversas. segundo nossa compreensão da atual conjuntura da pes- quisa brasileira em humanidades e do percurso que a conduziu até aqui, ao menos duas hipóteses que explicariam o “mal-estar” das ciências humanas podem ser detidamente examinadas. A compreensão como princípio fundador Primeiramente, é preciso considerar a natureza da pesquisa científica em nosso campo do conhecimento, tanto em relação ao que produzimos quanto ao modo como o produzimos. somos geradores de um tipo de conhecimento peculiar, que, muito fre- quentemente, não encontra enquadramento preciso e adequado nas denominações pelas quais se convencionou classificar as ciên- cias. A produção na área de humanidades tem a singularidade Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 15 15/10/2013 09:06:53 16 ANGELO V. – DOROTéA K. – FLÁVIA O. – JEAN P. – MARIA G. – MARIA M. (ORGS.) de ser reflexiva, isto é, ao mesmo tempo que deslindamos nossos problemas, sejam eles a sociedade, a cultura ou a linguagem ou, ainda, o próprio conhecimento e as formas de conhecer, modifi- camo-nos e provocamos transformações nos próprios elementos que, em última instância, nos servem de objeto. isso não nos con- dena sumariamente à falta de precisão, à falta de cientificidade ou à pura aporia, mas faz que estejamos atentos ao mundo que nos cerca e ao modo como damos sentido a esse mundo. Assim, vê-se que é próprio à natureza das ciências humanas colocar sob suspeita o seu objeto e, mais especialmente, o sujeito da ciência e seus métodos. nosso objeto privilegiado, para retomar a oposição entre explicação e compreensão consagrada por Dilthey (2010), e tantas vezes retomada por ricoeur (1986, 1999), é sem dúvida a compreensão. é essa hipótese, que instaura a compreensão no âmago das humanidades, que gadamer (2006, p.12) tem em mente quando afirma: As ciências humanas contribuem para a compreensão que o homem tem de si mesmo, embora não se igualem às ciências natu- rais em termos de exatidão e objetividade, e se elas assim o fazem é porque possuem, por sua vez, o seu fundamento nessa mesma compreensão. essa característica apresenta consequências relevantes quando consideramos a produção do conhecimento no âmbito das ciências humanas. A rigor, somente em casos muito espe- cíficos, especialmente quando estamos diante de problemas de quantificação, frequência e representatividade de determinados fenômenos, buscamos compreender os fundamentos científicos ao modo das demais ciências. Por isso, também mais raramente, geramos ciência básica. De outra parte, tampouco produzimos necessariamente pesquisa básica inspirada pelo uso – por exem- plo, a descoberta de determinados germes para combater certa Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 16 15/10/2013 09:06:53 CIêNCIAS HUMANAS EM DEBATE 17 infecção – e nem mesmo fazemos pesquisa puramente aplicada, tal como aquelas que geraram as inúmeras descobertas de tho- mas edson (Moraes, 2010, p.10). nossa faina para gerar “a compreensão que o homem tem de si mesmo” produz uma pesquisa científica que, não sendo preci- samente de nenhum dos três tipos anteriormente mencionados, resulta em constante revisão de interpretações consagradas, sistematicamente colocadas à prova, seja por meio de novos dados ou documentações, seja, ainda, pelo questionamento de sua própria consistência lógica. Avançamos, por assim dizer, em espiral, e nesse percurso produzimos não apenas novo conhe- cimento, mas também, e não menos importante, formamos recursos humanos: pesquisadores, professores – e não somente em ciências humanas – que são orientados a edificar suas certe- zas sempre circunstanciais em princípios críticos e explícitos de compreensão. A condição específica da pesquisa em nossa área requer, portanto, a atenção para esses aspectos quando da consideração sobre seu papel na universidade, seja no que tange a critérios de avaliação, seja no que se refere às expectativas sobre a contribui- ção que ela pode oferecer à compreensão da universidade e à sua própria inserção na vida social. expostas essas características que definem basilarmente a natureza da pesquisa em ciências humanas, apresentamos a se- guir, em complemento à linha de raciocínio aqui desenvolvida, questões de ordem histórica sobre a formação da universida- de brasileira que acreditamos ser relevantes para a compreensão do atual “mal-estar” pelo qual passam as ciências humanas em nossas instituições universitárias. Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 17 15/10/2013 09:06:53 18 ANGELO V. – DOROTéA K. – FLÁVIA O. – JEAN P. – MARIA G. – MARIA M. (ORGS.) Notas sobre a formação da universidade brasileira o processo de constituição da universidade no Brasil é relati- vamente recente, pode-se dizer mesmo tardio, se comparado com as experiências latino e norte-americana e, sobretudo, europeia. A despeito das vantagens e desvantagens oriundas dessa con- dição, tal processo permite que a moldagem dessas instituições tenha por referência iniciativas levadas a curso nos outros países, das quais extraímos modelos e procuramos adequá-los às con- dições locais. sobre esse tema, nagle (2001, p.168) afirma que: nos fins do período imperial a questão da universidade brasileira se apresentou, pela primeira vez, de maneira intensa e ampla, com tendência a radicalizar-se em diversos modelos que então serviam para angariar adeptos entre os intelectuais e homens públicos da época. A disputa por adesão a determinados modelos desenvolveu- -se por um período de quase cinquenta anos, ao longo dos quais alguns marcos de referência foram estabelecidos e resultaram na criação da universidade do rio de Janeiro, em 7 de setembro de 1920, e da universidade de são Paulo (usP), em 25 de janeiro de 1934. em relação à primeira, grosso modo, esse percurso testemunha uma posição que projeta a nascente universidade como resultado “do agrupamento ou justaposição de três faculdades existentes; o espírito de integração não presidiu ao seu estabelecimento” (nagle, 2001, p.170). À época, houve debate um tanto acirrado, em muito estimulado pelas críticas ao princípio que presidiu a criação da universidade do rio de Janeiro, constante da agre- gação de três faculdades profissionais (engenharia, Medicina e Direito), sem que, contudo, se instituísse um “instituto de altos Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 18 15/10/2013 09:06:53 CIêNCIAS HUMANAS EM DEBATE 19 estudos” que conferisse corpo ao que se denominou “espírito universitário moderno” (nagle, 2001, p.175). um ponto importante nas preocupações das lideranças intelectuais e políticas da primeira metade do século XX, a neces- sidade de construção de institutos ou centros de altos estudos surgiu também no Manifesto de Fundação da escola livre de sociologia e Política de são Paulo, empreendimento encabeçado por roberto simonsen que buscava suprir a falta de um certo centro de cultura político-social apto a inspirar interesse pelo bem coletivo, a estabelecer a ligação do homem com o meio, a incentivar pesquisas sobre as condições de existência e os problemas vitais de nossas populações, a formar personalidades capazes de colaborar eficaz e conscientemente na direção da vida social. (Kan- tor; Maciel; Assis simões, 2009) A escola livre de sociologia e Política, nos limites de seus propósitos, cumpriu por um bom tempo a função de um cen- tro dessa natureza. no entanto, como núcleo de um projeto de universidade, esse instituto acabou por se materializar em 1934, quando da criação da Faculdade de Filosofia, ciências e letras (FFcl), a partir da qual se constituiu a própria universidade de são Paulo. Até mesmo no texto da lei que criou a FFcl (Decreto esta- dual n.6.283, de 25 de janeiro de 1934, são Paulo–sP), já se pode observar as elevadas expectativas em relação à nova faculdade. Por sua vez, nos considerandos assinados pelo interventor Armando de salles oliveira, torna-se proeminente o papel da FFcl, à qual se incumbia “a organização e o desenvolvimento da cultura filosófica, científica, literária e artística, [que] constituem as bases em que se assentam a liberdade e a grandeza de um povo”. em razão da longevidade e da projeção daquela institui- ção, pode-se dizer que, com efeito, em boa medida ela cumpriu Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 19 15/10/2013 09:06:53 20 ANGELO V. – DOROTéA K. – FLÁVIA O. – JEAN P. – MARIA G. – MARIA M. (ORGS.) tal objetivo, de modo a servir de padrão para a constituição de outras universidades públicas que nos anos imediatamente seguintes viriam a se constituir nas bases do nascente sistema universitário brasileiro, então anunciado e disciplinado pelo Decreto n.19.851, de 11 de abril de 1931, em cujo texto encon- tra-se a proposição de papel fundamental para as faculdades de filosofia, ciências e letras, que passam a figurar ao lado das tradi- cionais escolas profissionais, como requisito para a estruturação da universidade. nos termos daquele diploma: Art. 5o A constituição de uma universidade brasileira deverá atender às seguintes exigências: i – congregar em unidade universitária pelo menos três dos seguintes institutos do ensino superior: Faculdade de Direito, Facul- dade de Medicina, escola de engenharia e Faculdade de educação, ciências e letras. Pioneira e depositária de importantes ambições de setores da elite paulista, a FFcl surgiu como entidade vocacionada a mar- car seu tempo e o futuro, destino que se cumpriu com todas as consequências que os processos de tal natureza acarretam, entre as quais se ressalta a difusão não só do modelo institucional que a inspirou, mas também dos elementos de certa tradição criada em torno dela, ou seja, de um conjunto de práticas normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. (hobsbawm; ranger, 1984, p.9) Dito de outro modo, a experiência de fundação da usP serviu de inspiração para a criação de muitas outras universidades no Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 20 15/10/2013 09:06:53 CIêNCIAS HUMANAS EM DEBATE 21 Brasil, ao mesmo tempo que conferiu certa marca às FFcls, e, por extensão, ao modo como as ciências humanas se institucio- nalizaram na universidade brasileira. se tomarmos os testemunhos de alguns de seus instituido- res, veremos que os anseios iniciais da FFcl não pecam pela modéstia. Witter (2006) compilou ampla série de depoimentos de intelectuais e professores que participaram da criação da FFcl. chamam a atenção algumas imagens hiperbólicas uti- lizadas por esses expoentes da ciência brasileira daquele tempo. Witter relata o testemunho de rômulo Almeida, o qual assevera que entre as escolas da nova universidade “no seu papel de coordenadora das diretrizes mentais, a Faculdade de Filosofia, ciências e letras é a mais responsável pela formação do espírito universitário” (Witter, 2006, p.30). Já André Dreyfus, por sua vez, exalta a “obra grandiosa de organizar uma Faculdade de Filosofia, ciências e letras, coluna vertebral de uma verdadeira universidade” (Witter, 2006, p.31). em suma, as alusões a essa faculdade modelar colocam-na não apenas como centro da universidade, mas também como componente importante de um projeto de “reconstrução de são Paulo e da nacionalidade” (cardoso, 1982, p.97). essa condição permitiu à faculdade adquirir contornos paradigmáticos que posteriormente se estenderam ao campo das ciências humanas no país. talvez por esse motivo, gilberto Freyre tenha chamado a atenção sobre a prática de certa historiografia do ensino supe- rior, e em particular das ciências humanas brasileiras, orien- tada pela reafirmação entusiasta “das glórias paulistas” (Freyre, 1973, p.187). está claro que o arguto sociólogo pernambucano se refere, senão somente, mas também à tradição criada em torno da FFcl, a qual, a despeito das críticas de que é alvo, reprodu- ziu-se por décadas, com vigor aparentemente inabalado, a ponto de Witter, cinquenta anos após a sua fundação, afirmar que, em Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 21 15/10/2013 09:06:53 22 ANGELO V. – DOROTéA K. – FLÁVIA O. – JEAN P. – MARIA G. – MARIA M. (ORGS.) relação à usP, a FFcl “foi sempre considerada sua célula-mãe” (Witter, 2006, p.29). em vista dessas considerações, cabe a indagação sobre quais seriam as razões para que as ciências humanas, ao menos no estado de são Paulo, uma vez institucionalizadas no sistema universitário, caminhassem da condição de “coordenadora das diretrizes mentais”, de “coluna vertebral de uma verdadeira universidade”, ou de “célula-mãe” da universidade, ao ambiente de mal-estar que alguns dos mais proeminentes membros desse campo científico denunciam. As razões a serem examinadas são variadas e complexas, no entanto, acreditamos que uma hipótese, entre tantas possivelmente válidas, merece ser submetida à prova. nossa hipótese parte do conjunto dos efeitos encadeados pela reforma universitária de 1968, especialmente aqueles pro- vocados pela lei Federal n.5.540, de 28 de novembro de 1968, que, ao sagrar indissociáveis as atividades de ensino e pesquisa (legislação Federal, 1968, art.32), determina igualmente que “Fica extinta a cátedra ou cadeira na organização do ensino superior do País” (legislação Federal, 1968, art.33, §3o). essa reforma foi uma resposta do governo costa e silva às pressões que se acumulavam desde a década anterior e que advinham da expansão das matrículas no ensino médio, combinada à tendên- cia das “classes médias a encarar a educação superior como uma estratégia para a concretização de seu projeto de ascensão social” (Martins, 2009, p.19). Promulgada em uma circunstância de agravamento da crise política que levaria ao Ato institucional n.5, a reforma carregou a marca forte do tempo em que ocorreu e das mentes que a ani- maram, de forma que ao contrário do que ocorrera no período populista, durante o qual vigorou uma discussão pública visando à construção de uma uni- versidade crítica de si mesma e da sociedade brasileira, a política Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 22 15/10/2013 09:06:53 CIêNCIAS HUMANAS EM DEBATE 23 educacional do regime autoritário seria confiada a um pequeno grupo designado pelo poder central. (Martins, 2009, p.19) ora, antes desse cenário, a têmpera do debate sobre a sociedade e sobre a própria universidade era oferecida pelas humanidades, e lhes conferia marca distintiva. claro está que tal modalidade de reflexão, embora comporte em alguma medida a possibilidade de produção da ciência aplicada, não tem nesta seu princípio norteador. indo de encontro a certos princípios essen- ciais das humanidades, os mandantes da reforma universitária de 1968 introduziram uma política segundo a qual “a educação superior deveria ter objetivos práticos e adaptar seus conteúdos às metas do desenvolvimento nacional” (Martins, 2009, p.20). Perdendo a sua prerrogativa que era a de capitanear esse tipo de reflexão, a área de humanas ficou diante do complexo desafio de encontrar outro impulso que a mantivesse como “coluna ver- tebral da universidade”. Além disso, a almejada extinção da cátedra, cujo caráter democrático era consenso nas propostas de reformulação da universidade, apresentou consequências que viriam a expandir a importância da pesquisa institucionalizada, pois, com o fim do sistema de cátedras, introduziu-se o regime departamental, institucionalizou-se a carreira acadêmica, a legislação pertinente acoplou o ingresso e a progressão docente à titulação acadêmica. Para atender a esse dispositivo, criou- -se uma política nacional de pós-graduação, expressa nos planos nacionais de pós-graduação e conduzida de forma eficiente pelas agências de fomento do governo federal. (Martins, 2009, p.16) o protagonismo das agências federais de fomento à pes- quisa, especialmente do sistema capes e cnPq, apresentou mais uma nova exigência à grande área de ciências humanas. Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 23 15/10/2013 09:06:54 24 ANGELO V. – DOROTéA K. – FLÁVIA O. – JEAN P. – MARIA G. – MARIA M. (ORGS.) se a reforma de 1968 impôs a necessidade de repensar o próprio papel desse campo no interior da universidade, os sucessivos Planos nacionais de Pós-graduação (PnPgs) tocaram em outro ponto nevrálgico no que se refere ao próprio modo pelo qual as humanidades produzem conhecimento e são, por isso, avalia- das. em outros termos, essas mudanças impuseram um tipo de profissionalização que favoreceu o progressivo isolamento dos vários ramos desse campo científico, entre outras razões porque, segundo trigueiro (2001, p.39): em 1976, por exemplo, a capes introduziu o sistema de “avaliação por pares”, em pleno acordo com setores relevantes da comunidade e com o aval das maiores sociedades científicas. no planejamento (concepção e implementação) de c&t, a comunidade científica, através de suas sociedades representativas, passou a ser elemento fundamental. o primeiro Plano nacional de Pós-graduação foi aprovado para o período 75/79 e, com ele, o Plano institucional de capacitação de Docentes (PicD). o final dos anos 70 foi palco da proliferação de sociedades e associações político-profissionais variadas, inclusive científicas. é desse período a criação generalizada de associações de docentes, de associações profissionais, até mesmo de profissões ainda não reconhecidas, com o fito de torná-las reconhecidas e regulamenta- das, como as de sociólogos. era a busca de proteção e de defesa dos interesses das diferentes corporações profissionais. Deslocadas de sua posição original de fundamento da univer- sidade e postas diante da necessidade de apresentar respostas ao formato institucional que as macropolíticas de ciência e tecno- logia dos governos militares lhes impuseram, as humanidades desenvolveram estratégias de adaptação que, grosso modo, repro- duziram a maneira de organização das disciplinas profissionais. no plano da projeção dos interesses em âmbito social, esse campo Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 24 15/10/2013 09:06:54 CIêNCIAS HUMANAS EM DEBATE 25 científico apresentou-se cada vez mais cindido, projetando na esfera da sociedade identidades marcadas pelo viés da formação específica. no plano acadêmico, as vocações disciplinares foram cada vez mais aprofundadas e, à medida que esse movimento ocorria, os pontos de contato com as demais disciplinas da área tornaram-se escassos, resultando no esgarçamento dos liames metodológicos e mesmo na aparição de práticas analíticas her- méticas, pontuadas por termos e conceitos somente inteligíveis para grupos restritos de iniciados. se válidas as hipóteses por nós aqui apresentadas, temos que as humanidades não só deixam de exercer a função que lhes é própria e que nenhum outro órgão realiza, qual seja, a de realizar a “crítica de si mesma e da sociedade brasileira”, como também sua inserção no sistema de ciência e tecno- logia a levou, até o momento, a institucionalizar-se de forma fragmentária. se tomarmos, por exemplo, os programas de pós-graduação em ciências humanas, em sentido amplo, que abrangem, além da chamada grande área de ciências humanas, as grandes áreas de letras, linguística e Artes e de ciências sociais Aplicadas, teremos um total de 1.079 progra- mas, ou seja, aproximadamente 31% do total dos programas de pós-graduação existentes no país. tamanha diversificação já é objeto de advertência para os comitês avaliadores da área que, em vista desse quadro, estão a indicar a interdisciplinaridade como um caminho para a recomposição da unidade do campo, bem como para o progresso científico em geral. em documento recente, por exemplo, a coor- denação da área de sociologia da capes assevera que: é crescente a tendência de construção de problemas teóricos e de pesquisa empírica que utilizam recursos multidisciplinares, não res- peitando barreiras entre as ciências sociais básicas, sociais aplicadas, humanas e mesmo entre essas e as demais ciências. Mesmo que a Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 25 15/10/2013 09:06:54 26 ANGELO V. – DOROTéA K. – FLÁVIA O. – JEAN P. – MARIA G. – MARIA M. (ORGS.) ênfase seja colocada na explicação dos processos sociais, a sociologia tem acompanhado a tendência internacional ao usar instrumental teórico e metodológico das ciências humanas, da vida, exatas e da terra. (Brasil, 2012) o entendimento da comissão de ciências humanas da Pró- -reitoria de Pesquisa (ProPe) da unesp, que assina o presente texto, é muito próximo desse diagnóstico da coordenação da área de sociologia da capes. não só a sociologia, mas muitas outras áreas do conhecimento em ciências humanas (entendidas aqui no sentido amplo evocado anteriormente), como a história, a educação, a Filosofia, a linguística e, em especial, as Artes, parecem estar reconhecendo de maneira crescente o papel das pesquisas interdisciplinares como potente elemento restaurador do papel e do alcance das humanidades em nossas universidades. esse papel restaurador da interdisciplinaridade, em nossa expe- riência, é acentuado pelo estabelecimento de verdadeiras redes de pesquisa, de caráter multi ou interdisciplinar, que atuam, reunindo diferentes abordagens, experiências e competências, sob o signo da cooperação institucional e disciplinar. A volta natural, como verdadeiro Zeitgeist, da abordagem interdisciplinar, depois de tantos anos de conformação da univer- sidade brasileira aos modelos iminentemente disciplinarizantes implantados pelas políticas científicas a partir de 1974, não deixa de ser um fenômeno curioso que a psicanálise freudiana, evocada nas primeiras linhas deste texto, chamaria de “retorno do recalcado”. O projeto Ciências Humanas em Debate Quando a comissão foi constituída pela ProPe em 2010 para refletir sobre o modo como se pensa e se faz ciências humanas na Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 26 15/10/2013 09:06:54 CIêNCIAS HUMANAS EM DEBATE 27 unesp, procurou-se inicialmente esboçar um mapa da pesquisa nesse campo na universidade em nível de pós-graduação, que deu origem ao temário interdisciplinar que integra os apêndices desta obra (“temas de pesquisa dos programas de pós-graduação da área de humanidades da unesp”). Foi a partir desse temário, cujo objetivo é agregar competências na comunidade unespiana em torno de dez grandes temas transversais (cultura e identi- dade; semiótica, tecnologia e ética da informação e Mídias; Meio ambiente; trabalho e modernidade; Políticas públicas e educação; estado e Políticas públicas; ensino e aprendizagem; epistemologia, Filosofia ecológica e história da Filosofia; estu- dos de linguagem; Arte, ciências e Processos criativos), que o valor da abordagem interdisciplinar, pelo viés da cooperação, surgiu e se concretizou nos eventos cujos relatos estão coligidos igualmente nos apêndices: “i Fórum de ciências humanas da unesp” (são Paulo–sP, novembro de 2010) e “ii Fórum de ciên- cias humanas da unesp” (Bauru–sP, agosto de 2011). é em torno das ideias e experiências apresentadas e debatidas nesses dois fóruns que apresentamos à comunidade científica esta coletânea chamada Ciências Humanas em debate. os traba- lhos oriundos dos fóruns foram selecionados e organizados de modo a fornecer ao leitor um panorama geral dos problemas e impasses que a produção científica em ciências humanas apre- senta em nossa universidade, partindo do princípio de que esses problemas e impasses não apenas se nos impõem, mas a toda uni- versidade brasileira. A ênfase sobre a interdisciplinaridade, que verificamos e reiteramos no percurso de gestação desta obra, pode ser vista na organização das partes que compõem a coletânea: “o caráter interdisciplinar da pesquisa em ciências humanas” e “A prática interdisciplinar: experiências e reflexões”. na primeira parte deste livro, reunimos os trabalhos que refletem sobre a definição e a viabilidade teórico-metodológica do conceito de “interdisciplinaridade” nas ciências humanas. Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 27 15/10/2013 09:06:54 28 ANGELO V. – DOROTéA K. – FLÁVIA O. – JEAN P. – MARIA G. – MARIA M. (ORGS.) essa reflexão, em “Multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade nas ciências humanas”, de José luiz Fiorin, é realizada a partir de definições e explorações lexicais que implicam um coerente e sofisticado projeto epistemoló- gico para pensar a área de linguística segundo um viés menos disciplinar e mais afeito às demandas do objeto de estudo complexo que é a linguagem humana. Já em “A pesquisa em humanidades: contribuições da interdisciplinaridade”, Mariana c. Broens nos apresenta os antecedentes medievais interdis- ciplinares das humanidades, em especial da Filosofia, que consagraram o pensamento como atividade solitária, para então defender a suspensão estratégica da atividade solitária em função da necessidade permanente de diálogo e interlocução em torno de problemas concretos. essa reflexão sobre a natureza dos problemas abordados no âmbito das ciências humanas e das ciências em geral é que fun- damenta o dilema proposto por reginaldo Moraes em “Pesquisa na universidade: qual e por quê?”. nesse ensaio, Moraes expõe as linhas gerais do que considera uma política de pesquisa viável na contemporaneidade para defender a realização de pesquisas de todas as ordens, mesmo daqueles tipos que não têm outros objetivos além de formar pesquisadores, seres pensantes, prepa- rados para criar e inovar. nessa sociedade que valoriza a pesquisa em todas as suas manifestações, tal atividade é o lugar da prática privilegiada da educação. centrada na discussão sobre dois modelos para representar e dimensionar a atividade científica (os modelos mertoniano e trans- versalista), Maria Alice rezende de carvalho, em “A pesquisa em ciências humanas”, discorre sobre o desafio de ler a sociedade por meio de sua atividade científica e vice-versa, estabelecendo como elementos balizadores a institucionalização da pesquisa nas universidades e a gestão de políticas científicas. Ainda no que diz respeito à representação contemporânea das ciências em Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 28 15/10/2013 09:06:54 CIêNCIAS HUMANAS EM DEBATE 29 uma época que deveria assistir à prevalência do interdisciplinar, o leitor encontrará ao final da primeira parte desta obra a instigante reflexão do ensaio “ciências humanas: fronteira, especificidade e formas de coerção”, de Anderson Vinícius romanini. em seu texto, o autor apresenta as ciências humanas como o conjunto de ciências que estaria, por definição, em posição de capitanear o projeto interdisciplinar, buscando diálogos com as ciências exatas e Biológicas. Ao final de sua exposição, desenvolve uma contundente exortação do comportamento dos pesquisadores que se limitam ao conforto disciplinar e se alojam estrategicamente em seus nichos de pesquisa, embotando o diálogo necessário à boa prática epistemológica. na segunda parte desta coletânea, “A prática interdisciplinar: experiências e reflexões”, agrupamos as contribuições que nos pareceram exemplares das várias formas de praticar a pesquisa em ciências humanas, seja pelo viés da pesquisa em grupo, da experiência pessoal, seja, ainda, por meio da reflexão sobre assuntos que estão mais ou menos explícitos em nossas preocu- pações e conversas de corredores: a recepção e circulação da nossa produção, o “produtivismo” estéril e a precarização do trabalho docente. nos relatos “A experiência de uma rede de pesquisa”, de Maria encarnação Beltrão sposito, e “Dicionário histórico do português do Brasil (séculos XVi a XViii): do projeto à sua con- cretização”, de clotilde de Almeida Azevedo Murakawa, temos duas experiências muito bem-sucedidas, com reconhecimento das instituições parceiras e de órgãos de fomento, do trabalho em cooperação institucional e disciplinar. na experiência de sposito, as cidades médias atuaram como objeto agregador de compe- tências no Brasil e na América latina, constituindo uma grande rede de pesquisa, que, como bem mostra o relato da pesquisa- dora, impõe desafios no seu gerenciamento. o texto tem como qualidade adicional expor a metodologia da rede de pesquisa Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 29 15/10/2013 09:06:54 30 ANGELO V. – DOROTéA K. – FLÁVIA O. – JEAN P. – MARIA G. – MARIA M. (ORGS.) coordenada pela autora, o que pode auxiliar o pesquisador que quer formar ou integrar uma rede do gênero. no relato de Mura- kawa, percebemos como elementos objetivos e subjetivos da pesquisa compõem o cenário complexo de gerenciamento de um projeto dessa proporção. esse projeto, que possui uma estrutura mais compacta do que a do projeto sobre cidades médias, reúne pesquisadores de linguística e de computação na formação de um banco de dados sobre o português dos séculos XVi ao XViii que servirá não só ao projeto, mas a toda comunidade acadêmica. no âmbito da experiência pessoal, encontra-se o relato “uma experiência interdisciplinar”, de Alfredo Pereira Júnior, que nos conta como se deu o seu percurso de filósofo e professor de Filo- sofia da ciência nos cursos de Medicina Veterinária e zootecnia da unesp de Botucatu. essa trajetória, marcada por intensas trocas acadêmicas interinstitucionais e intercâmpus no Brasil e no exterior, foi pautada por um esforço pessoal de compreensão e produção, que, embora por vezes incompreendido pelos comitês de área dos órgãos de fomento, em um dado momento foi aco- lhido e valorizado. o artigo de gladis Massini-cagliari, “o Qualis das ciências humanas e o contexto da unesp”, após uma apresentação minu- ciosa da distribuição e dos critérios de avaliação e enquadramento dos períodos de ciências humanas segundo o Qualis-capes, apresenta como dilema a fazer face na divulgação científica em humanidades o modelo de publicações em livros e em capítulos de livro. essa questão, que do ponto de vista da área de humanas está longe de configurar exatamente um problema, na perspectiva da avaliação das nossas pesquisas, sobretudo em comparação com a produção científica de outras ciências, revela equívocos de compreensão e dimensionamento da produção científica em ciências humanas. esses equívocos, em larga medida, tenderiam a ser minimizados pelo Qualis livros. A despeito dos descami- nhos do universo da avaliação da produção científica ou, ainda, Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 30 15/10/2013 09:06:54 CIêNCIAS HUMANAS EM DEBATE 31 em resposta justamente a esses descaminhos, Massini-cagliari conclama os humanistas, na esteira de lindsay Waters, a fazerem seu trabalho enquanto críticos da razão. o trabalho “Pesquisa em grupo e ‘produtivismo’”, de João Batista toledo Prado, advoga pela construção de critérios de avaliação e de programas de pesquisa que respeitem a dinâmica intrínseca das áreas específicas das ciências humanas, em con- traponto a diretrizes extrínsecas, articuladas tendo como base outros modelos de produção de ciência e objetivos políticos e econômicos desconectados da lógica própria da produção de conhecimento. em sua área de pesquisa, que é a de estudos clássicos, relata-nos como, desde os anos 1980, uma escola de latinistas e, portanto, um grupo sólido de pesquisa, se erigiu em torno da figura de Alceu Dias lima – aposentado compulsoria- mente em 2000 como titular da cadeira de língua e literatura latinas da Faculdade de ciências e letras da unesp de Arara- quara –, muito tempo antes das exigências que estão na ordem do dia para os órgãos reguladores da pesquisa. conferindo uma dimensão política e ética aos critérios de avaliação do trabalho docente, a segunda parte desta coletânea encerra-se com o trabalho “As métricas da avaliação: precarização e intensificação do trabalho docente”, de sueli guadelupe de lima Mendonça. nesse trabalho, a universidade é chamada à sua responsabilidade cultural e social, o que a coloca em explícita contradição com os meios correntes de avaliar e gerir a produção de conhecimento em nossos dias, que tem um perfil liberal típico dos sistemas privados, cuja base é a competição e o produtivismo. A solução preconizada pela autora para romper o círculo vicioso da produção com fins meramente quantitativos é a reflexão sobre a natureza, a razão, a finalidade última e a metodologia do nosso trabalho cotidiano. Por fim, nos “Apêndices” da obra, o leitor encontrará os rela- tos “i Fórum de ciências humanas da unesp” e “ii Fórum de Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 31 15/10/2013 09:06:54 32 ANGELO V. – DOROTéA K. – FLÁVIA O. – JEAN P. – MARIA G. – MARIA M. (ORGS.) ciências humanas da unesp”, ambos assinados pela comissão de ciências humanas da ProPe, e o documento “temas de pes- quisa dos programas de pós-graduação da área de humanidades da unesp”, preparado pela mesma comissão, todos com o obje- tivo de registrar e oferecer ao debate essa importante iniciativa da ProPe, que, de maneira pioneira, dispôs-se a conhecer e dar atenção às demandas da área de ciências humanas na unesp. As reflexões sobre a natureza da pesquisa em ciências hu- manas que apresentamos neste texto, assim como nossa apresen- tação desta obra e os próprios trabalhos que abrigamos nos dois fóruns realizados pela comissão e que aparecem aqui coligidos, evocam encontros e mais encontros dos membros desta comis- são, e de seus membros com outros colegas de dentro e de fora da unesp, refletem dúvidas, aspirações e valores assumidos como projetos de pesquisa e de vida, e testemunham, em suma, os meandros de um percurso de estudos e reflexões que em meados de 2013 completa três anos. cabe ao leitor a tarefa de julgar esse percurso e de se juntar, em complemento ou em contraponto, ao debate que aqui propomos. Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 32 15/10/2013 09:06:54 Parte I O caráter interdisciplinar da pesquisa em Ciências Humanas Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 33 15/10/2013 09:06:54 Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 34 15/10/2013 09:06:54 Multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade nas Ciências Humanas José luiz Fiorin Kiakudikila, kiazanga... luandino Vieira (2004, p.60)1 ... le cose tutte quante hann’ordine tra loro; e questo è forma che l’universo a Dio fa simigliante. Dante, Paraíso, i, 103-1052 Introdução A questão da multidisciplinaridade, da interdisciplinaridade e da transdisciplinaridade é particularmente importante, porque, de um lado, como se mostrará neste texto, ela transformou-se num ideal a ser atingido pelas atividades de ensino e de pesquisa; de outro, porque está prestes a converter-se em políticas a ser incentivadas fortemente pelas agências de fomento. 1 “o que se mistura separa.” 2 trad.: “... ordem constante/ As coisas entre si; esta é a figura/ Que o universo ao senhor faz semelhante.” (n. e.) Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 35 15/10/2013 09:06:54 36 ANGELO V. – DOROTéA K. – FLÁVIA O. – JEAN P. – MARIA G. – MARIA M. (ORGS.) segundo a Revista da Fapesp de janeiro de 2012 (p.48-49), esteve em são Paulo, em novembro de 2011, Mihai roco, um dos mais importantes pesquisadores em nanotecnologia dos estados unidos e conselheiro da national science Fondation. o objetivo de sua visita foi “motivar os colegas brasileiros a trabalhar em con- junto com colegas de outras áreas em projetos amplos, ambiciosos, de alto impacto científico, econômico e social”. os pesquisadores, segundo ele, devem realizar trabalhos multidisciplinares, que atualmente são chamados trabalhos de convergência tecnológica. esse tema está na ordem do dia dos debates científicos na europa, nos estados unidos, no Japão, na Austrália. segundo roco, “não é nada fácil convencer um cientista a levar realmente a sério o que um colega de outra área está fazendo”, pois isso significa tirá-lo de sua zona de conforto. Diz ele que as especialidades são necessárias, mas não precisamos permanecer o tempo todo nelas. Podemos integrar nossas áreas e voltar a ver a ciência como uma coisa só [...] A convergência tecnológica implica começar um trabalho a par- tir dos problemas a ser resolvidos, não das disciplinas envolvidas. implica também buscar objetivos comuns, compartilhar teorias e enfoques de trabalho, valorizar as capacidades das pessoas e os resultados e antecipar e gerenciar oportunidades e riscos. Para pôr em prática essa maneira de realizar pesquisas, é necessário haver mudanças na forma de dirigir universidades, agências de fomento e institutos de pesquisa de modo a valorizar “uma visão de longo prazo, transformadora, inclusiva, cola- borativa e visionária”. Para o pesquisador, é nessa estratégia, principalmente na área chamada nBic, que reúne nanotecnolo- gia, Biologia, informática e ciências cognitivas, que apostam os estados unidos para manter-se na liderança científica mundial. Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 36 15/10/2013 09:06:54 CIêNCIAS HUMANAS EM DEBATE 37 Phillip sharp e robert langer, em artigo publicado em julho de 2011 na revista Science, afirmam que nas décadas passadas houve duas revoluções biomédicas, a biologia molecular e a genômica [...] A convergência de campos representa uma terceira revolução, em que o pensamento e a análise multidis- ciplinares permitirão a emergência de novos princípios científicos e em que engenheiros e físicos sejam parceiros, em igualdade de condições, com biólogos e médicos enquanto lidam com os novos desafios médicos. essa abordagem multidisciplinar pode trazer avanços, segundo os autores, em todos os setores da ciência, como saúde, energia, agricultura e clima. e no Brasil? segundo esper Abrão cavalheiro, pesquisador da unifesp, ex-presidente do cnPq e assessor do centro de gestão e estudos estratégicos (cgee) do Ministério da ciência e tecnologia, órgão encarregado de pensar as ações futuras para o desenvolvimento científico brasileiro, “se o Brasil não entrar no debate sobre as convergências tecnológicas correrá o risco de ver países desenvolvidos decidindo por nós”. lélio Fellows Filho, também assessor do cgee, mostra que a convergência tecnoló- gica implica “uma nova maneira de olhar problemas” e procurar soluções. continua ele: “Precisamos diminuir a desconfiança e as distâncias entre áreas do conhecimento de práticas, costumes e ideários diferentes. temos de vencer a inércia das áreas de conhecimento e motivar os pesquisadores a sair de suas zonas de conforto e se envolver em iniciativas de risco e de ruptura” (Revista da Fapesp, jan. 2012, p.49). Aprofundemos a questão. As diferentes ciências, mesmo com práticas rigorosamente disciplinares, ao estabelecer seus objetos teóricos, têm em seu horizonte outras ciências. tomemos, por exemplo, a linguística. Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 37 15/10/2013 09:06:54 38 ANGELO V. – DOROTéA K. – FLÁVIA O. – JEAN P. – MARIA G. – MARIA M. (ORGS.) sobre o que se debruça essa área do conhecimento? ela tem por finalidade elucidar o funcionamento da linguagem humana, descrevendo e explicando a estrutura e o uso das diferentes lín- guas faladas no mundo. esse é seu objeto empírico. se levarmos apenas esse objeto em consideração, ela paira isolada dos demais ramos do conhecimento. no entanto, quando verificamos seus objetos observacionais e seus objetos teóricos,3 vemos a proxi- midade que ela tem com outras ciências. Podemos estudar os universais da linguagem, isto é, as propriedades e características universais que definem o que é inerente à natureza mesma da linguagem; as operações cognitivas envolvidas no processamento linguístico, bem como a perda da capacidade da linguagem por lesões no cérebro. nesse caso, a lin- guística confina com a Biologia e as ciências cognitivas. Podemos debruçar-nos sobre as diferenças entre as línguas e então a lin- guística faz fronteira com a Antropologia e a etnologia. Podemos ocupar-nos da variação no espaço, como fazem a Dialetologia e a geolinguística, e aí a linguística acerca-se da geografia. Pode- mos examinar a variação de grupo social para grupo social e, nesse caso, a linguística limita-se com as teorias sociológicas. Podemos observar a variação de uma situação de comunicação para outra e, assim, a linguística faz limites com a teoria da comunicação. Podemos pesquisar a mudança linguística e a evolução de uma língua ou de uma família de línguas e aqui a linguística avizinha- -se da história. Podemos analisar a aquisição da linguagem e aí, dependendo da posição teórica com que se faz a análise, a lin- guística confina com a Biologia ou com a Antropologia. Podemos ver a linguagem como um sistema formal e então a linguística se 3 o objeto observacional é a “região” do objeto empírico que será objeto de estudo. sendo ele delimitado, estabelecem-se entidades básicas, a partir das quais serão atribuídas propriedades aos fenômenos pertencentes ao campo de análise, e serão determinadas relações entre eles. o objeto observacional converte-se então em objeto teórico. Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 38 15/10/2013 09:06:54 CIêNCIAS HUMANAS EM DEBATE 39 aproxima da Matemática e da computação. Podemos investigar as unidades maiores do que a frase, isto é, o discurso e o texto. nesse caso, quando se põe acento na dimensão linguística, os estudos do discurso têm vizinhança com a retórica, com a dialética, com a teoria da literatura. Quando se enfatiza a dimensão histórica do discurso, a análise deste é limítrofe da história. Poderíamos continuar a dar exemplos de formas de aborda- gem do fenômeno da linguagem, mas cremos que os elementos expostos são suficientes para mostrar que a linguagem é, como dizia saussure (1969, p.17), “multiforme e heteróclita”; está “a cavaleiro de diferentes domínios”; é, “ao mesmo tempo, física, fisiológica e psíquica”; “pertence [...] ao domínio individual e ao domínio social”. Por isso, confina com diferentes campos do saber, não só das ciências humanas, mas também das ciências exatas e Biológicas. A linguística pelos próprios objetos observacionais e teóricos parece ter uma função interdisciplinar. Antes de avançar é pre- ciso pensar outra questão. nas letras, o campo dos estudos da linguagem tradicionalmente divide-se em, de um lado, os estudos de língua e, de outro, as investigações sobre a literatura. cada um desses domínios é presidido por uma disciplina teórica: a linguística para o primeiro e a teoria da literatura para o segundo. o primeiro, como já se disse, tem por objeto o estudo dos meca- nismos da linguagem humana por meio do exame das diferentes línguas faladas pelo homem. o segundo tem por finalidade a compreensão de um fato linguístico singular, que é a literatura. embora claramente distintos, esses dois módulos dos estudos da linguagem deveriam manter relações muito estreitas. De um lado, um literato não pode voltar as costas para os estudos linguísticos, porque a literatura é um fato de linguagem; de outro, não pode o linguista ignorar a literatura, porque ela é o campo da linguagem em que se trabalha a língua em todas as suas possibilidades e em que se condensam as maneiras de ver, de pensar e de sentir de Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 39 15/10/2013 09:06:54 40 ANGELO V. – DOROTéA K. – FLÁVIA O. – JEAN P. – MARIA G. – MARIA M. (ORGS.) uma dada formação social numa determinada época. A literatura é a súmula de toda a produção do espírito humano ao longo da história. Já lembrava o grande linguista roman Jakobson (1969, p.162) em texto antológico: essa minha tentativa de reivindicar para a linguística o direito e o dever de empreender a investigação da arte verbal em toda a sua amplitude e em todos os seus aspectos conclui com a mesma máxima que resumia meu informe à conferência que se realizou em 1953 aqui na universidade de indiana: Linguista sum; linguistici nihil me alienum puto. se o poeta ranson estiver certo (e o está) em dizer que “a poesia é uma espécie de linguagem”, o linguista, cujo campo abrange qualquer espécie de linguagem, pode e deve incluir a poesia no âmbito de seus estudos. A presente conferência demonstrou que o tempo em que os linguistas, tanto quanto os historiadores literários, eludiam as questões referentes à estrutura poética ficou, felizmente, para trás. em verdade, conforme escreveu hollander, “parece não haver razão para a tentativa de apartar os problemas literários da linguística geral”. se existem alguns críticos que ainda duvidam da competência da linguística para abarcar o campo da Poética tenho para mim que a incompetência poética de alguns linguistas intolerantes tenha sido tomada por uma incapacidade da própria ciência linguística. todos nós que aqui estamos, todavia, compreen- demos definitivamente que um linguista surdo à função poética da linguagem e um especialista de literatura indiferente aos problemas linguísticos são, um e outro, flagrantes anacronismos. este trabalho pretende pensar o problema da interdiscipli- naridade, da multidisciplinaridade e da transdisciplinaridade utilizando como exemplo, principalmente, a linguística. Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 40 15/10/2013 09:06:54 CIêNCIAS HUMANAS EM DEBATE 41 Modos de fazer ciência Parece haver duas formas básicas de fazer ciência: uma é regida por um princípio de exclusão e a outra, por um princípio de participação (Fontanille; zilberberg, 2001, p.27).4 esses dois princípios criam dois grandes regimes de funcionamento das ati- vidades de pesquisa. o primeiro é o da exclusão, cujo operador é a triagem. nele, quando o processo de relação entre objetos atinge seu termo leva-se à confrontação do exclusivo e do excluído. As atividades reguladas por esse regime colocam em comparação o puro e o impuro (Fontanille; zilberberg, 2001, p.29). o segundo regime é o da participação, cujo operador é a mistura, o que leva ao cotejo do igual e do desigual. A igualdade pressupõe grandezas intercambiáveis; a desigualdade implica grandezas que se opõem como superior e inferior (Fontanille; zilberberg, 2001, p.29). Assim, há dois tipos fundamentais de fazer científico: o da exclusão e o da participação, ou, em outras palavras, o da triagem e o da mistura. Até meados do século XVii, embora houvesse uma dis- ciplinarização do conhecimento, que remontava aos gregos,5 predominava o fazer científico regido pelo princípio da mistura. num certo tempo, por exemplo, não há diferença nítida entre Alquimia e Química ou entre Astronomia e Astrologia. A ciência busca menos o modo de funcionamento do mundo do que seus grandes fins, menos o como dos fenômenos do que seu porquê. Assim, Kepler, ao estabelecer as leis da mecânica celeste, queria 4 zilberberg e Fontanille desenvolvem os conceitos de regimes de mistura e de triagem, para mostrar como os valores tomam forma e circulam no discurso e não para analisar os modos de fazer ciência. tomamos as noções dos dois semio- ticistas para estudar os valores relativos à disciplinarização e a sua superação. 5 Pense-se, por exemplo, no septennium medieval, que reunia as artes liberais, base de formação de todo homem bem-educado e de preparação para os estudos teológicos. ele organizava-se no trivium, em que se encontravam as disciplinas linguísticas (gramática, dialética e retórica), e no quadrivum, em que se achavam as disciplinas científicas (aritmética, geometria, astronomia e música). Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 41 15/10/2013 09:06:54 42 ANGELO V. – DOROTéA K. – FLÁVIA O. – JEAN P. – MARIA G. – MARIA M. (ORGS.) menos saber como se estrutura o universo e muito mais demons- trar que um mundo matematicamente perfeito só poderia ressoar a perfeição divina. Desse modo, ele estava mais próximo das concepções analógicas do pensamento medieval, como mostra a epígrafe de Dante no início deste trabalho, que das operações da ciência moderna. A partir do século XViii, começa um movimento de espe- cialização nas atividades científicas, ou seja, uma atividade de investigação gerida pelo princípio da triagem. estabelecem-se objetos muito precisos, que não se misturam. o ecletismo cons- titui um grave erro. os objetos são puros, são autônomos. Assim, por exemplo, saussure estabelece que o objeto da linguística é a langue. esse objeto não se contamina da Física, da Fisiologia, da Psicologia etc. A língua será estudada em si mesma e por si mesma (saussure, 1969, p.15-25). o gesto científico fundamen- tal é dividir o objeto, para examinar seus elementos constituintes e, a partir daí, recompor o todo. Assim, a linguística começa por dividir os períodos em orações; estas, em palavras; estas, em morfemas; estes, em sílabas; estas, em fonemas. estudam-se, exaustivamente, esses componentes para chegar à compreen- são do objeto, a língua. esse movimento de triagem chegou ao seu apogeu no século XiX e atingiu dimensões alarmantes no século XX, com especializações cada vez mais restritas, mais particulares. não é preciso dizer que a especialização e a conse- quente disciplinarização6 produziram resultados notáveis. são elas que explicam o extraordinário desenvolvimento científico a que se assistiu nesse período. o método da divisão e recom- posição produz análises muito finas e possibilita a ampliação do 6 comte, na 60a lição do Curso de filosofia positiva (1869, t.6, p.723-774), mostra que a ciência é especulação ou ação: no primeiro caso, ela desvenda as leis dos fenômenos e a possibilidade de prevê-los; no segundo, descobre sua utilidade e sua aplicação; foi essa formulação que distinguiu a ciência pura da aplicada. cf. também comte (1869, t.1, p.47-88). Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 42 15/10/2013 09:06:54 CIêNCIAS HUMANAS EM DEBATE 43 conhecimento. Mas principalmente é preciso dizer que opera uma mudança radical do que se compreende como ciência: é a atividade que pretende descobrir o funcionamento das coisas. A especialização não produziu só maravilhas. De um lado, é preciso considerar que o próprio desenvolvimento da ciência propõe novos problemas que não cabem nesse programa cientí- fico. De outro, ela deu lugar a uma institucionalização danosa do fazer científico, regulada também pelo princípio da triagem. os grupos de pesquisa atuam cindidos num regime de concorrência selvagem, cada um competindo com outros. A pesquisa torna- -se secreta, o que é avesso ao ideal científico da construção do conhecimento em um processo de comunicação universal. com a especialização, a triagem continua a operar e aí surgem os dog- mas, as igrejas, as purezas, as heresias, as excomunhões, os sumos sacerdotes, os cães de guarda... no entanto, não são esses os aspectos mais ruinosos da especialização. o mais grave é o que ela produz sobre a formação e a cultura dos homens de ciência. nos anos 1920, ortega y gasset, de modo premonitório, pois estávamos longe do auge do processo, já denunciava a “barbárie da especialização”: Porque outrora os homens podiam dividir-se, simplesmente, em sábios e ignorantes, em mais ou menos sábios e mais ou menos ignorantes. Mas o especialista não pode ser submetido a nenhuma dessas duas categorias. não é um sábio, porque ignora formalmente o que não entra na sua especialidade, mas tampouco é um ignorante, porque é “um homem de ciência” e conhece muito bem sua porciún- cula do universo. Devemos dizer que é um sábio-ignorante, coisa sobremodo grave, pois significa que é um senhor que se compor- tará em todas as questões que ignora, não como um ignorante, mas com toda a petulância de quem na sua questão especial é um sábio. (ortega y gasset, 1962, p.174) Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 43 15/10/2013 09:06:54 44 ANGELO V. – DOROTéA K. – FLÁVIA O. – JEAN P. – MARIA G. – MARIA M. (ORGS.) como diz Millôr Fernandes, com mais humor, nas coletâneas de frases de sua autoria que circulam na internet, “especialista é o que só não ignora uma coisa”. no domínio do conhecimento da linguagem, separam-se nitidamente os estudos linguísticos e os literários. Ficam de cos- tas um para o outro. embora, como se mostrou antes, Jakobson considere essa atitude um verdadeiro anacronismo, linguistas e especialistas em literatura ignoram-se. isso produziu uma con- sequência devastadora: de um lado, é constrangedor verificar a ignorância literária dos linguistas e, mais ainda, constatar que eles não dão à literatura nenhuma importância; de outro, é ainda mais embaraçoso ouvir especialistas em literatura enunciando, com a petulância dos sábios-ignorantes, banalidades do senso comum, eivadas de preconceito e de falsidade, sobre a língua. em um texto famoso, snow (1995) mostrava o distancia- mento progressivo das ciências naturais das humanidades, com prejuízo para uma e outra. é curioso que, no domínio dos estudos da linguagem, parecem reproduzir-se essas duas culturas. com efeito, algumas especialidades da linguística aproximaram-se das ciências Biológicas ou das ciências exa- tas, enquanto a literatura permanece solidamente ancorada entre as humanidades. um jovem professor de literatura, com a arrogância dos que têm um solene desprezo pelos outros, assim resumiu essa dupla cultura no campo das letras: os linguistas marcham e os especialistas em literatura sambam. Qualquer brasileiro sabe o que é eufórico e o que é disfórico na perspectiva desse jovem ignorante. Mas não são apenas filósofos, humanistas e cientistas sociais que se preocupam com as consequências da especialização selva- gem. norbert Wiener (1985, p.24), o criador da cibernética, diz: Atualmente, podem contar-se nos dedos de uma mão os cientis- tas que não sejam exclusivamente matemáticos, físicos ou biólogos. Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 44 15/10/2013 09:06:54 CIêNCIAS HUMANAS EM DEBATE 45 Pode haver topólogos, especialistas em acústica ou coleopteristas, que dominam o jargão de sua especialidade e conhecem toda a lite- ratura de sua área e suas ramificações, porém na maioria das vezes considerarão qualquer outra disciplina como algo que pertence a um colega, que trabalha no mesmo corredor, três portas adiante, e crerão que qualquer interesse de sua parte pelo tema é uma injustificável violação de privacidade. na linguística, essa especialização faz-se sentir fortemente. Já não se encontram mais linguistas, mas foneticistas, sintaticistas, fonólogos, semanticistas, analistas do discurso e assim por diante. num processo de cissiparidade, talvez já não se encontrem mais semanticistas, mas semanticistas formais, semanticistas lexicais etc. torna-se cada vez mais difícil encontrar alguém com uma formação linguística abrangente. A preocupação, mesmo dos cientistas, com a especialização crescente, deriva do fato de que os especialistas trabalham ape- nas no domínio restrito, fazem progredir a ciência somente no interior de um dado paradigma. no entanto, as grandes criações científicas não foram feitas por especialistas, mas pelos sábios, que tinham uma formação abrangente, multidisciplinar, aberta a todos os campos do saber. gilbert Durand mostra que, se olhar- mos, na história da ciência, para cada um dos grandes criadores, vamos verificar que eles não eram especialistas, mas cultivavam a mistura, com sua abertura, sua amplitude, sua largueza e sua profundidade: os sábios criadores do fim do século XiX e dos dez primeiros anos do século XX, esse período áureo da criação científica em que se perfilam nomes como os de gauss, lobohevsky, riman, Poin- caré, Becquerel, curie, Pasteur, Max Planck, niels Bohr, einstein etc., tiveram todos uma larga formação pluridisciplinar, herdeira do velho trivium (as “humanidades”) e quadrivium (os conhecimentos Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 45 15/10/2013 09:06:54 46 ANGELO V. – DOROTéA K. – FLÁVIA O. – JEAN P. – MARIA G. – MARIA M. (ORGS.) científicos e também a matemática) medievais, prudente e parci- moniosamente organizados pelos colégios dos jesuítas e dos frades oratorianos e pelas pequenas escolas jansenistas do novo humanismo de lakanal. (Durand, 1991, p.36) Atualmente, estamos num momento de mudança da forma de fazer ciência. estamos passando de um fazer científico regido pela triagem para um fazer investigativo governado pela mistura. Fala-se em interdisciplinaridade, pluridisciplinaridade, multidis- ciplinaridade, transdisciplinaridade e mesmo indisciplinaridade. hoje, esses termos são universais positivos do discurso, enquanto a especialização é vista como algo fora de moda, relacionada a um pensamento autoritário. Afinal, a destruição das fronteiras é um fenômeno contemporâneo: as grandes entidades transna- cionais, como a união europeia e o Mercosul, derrubaram as fronteiras econômicas, permitindo a livre circulação de bens e de capitais; a queda do muro de Berlim deitou abaixo uma linha se- mântica divisória entre duas visões de mundo, a famosa cortina de ferro; o espaço shengen demoliu alfândegas e controles en- tre os estados nacionais. Por outro lado, estamos num tempo do elogio das margens, do descentramento, da alteridade, da hetero- geneidade, do dialogismo, vivemos num tempo de mestiçagens e de imigrações, de recusa da pureza. esse ar do tempo leva a pôr em questão as divisões disciplinares, as fronteiras rígidas en- tre os campos do saber. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento da ciência, impulsionado por essa episteme do que foi chamado a pós-modernidade, leva os pesquisadores a começar a pensar problemas que estão situados na fronteira das disciplinas e que, durante muito tempo, foram deixados de lado. Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 46 15/10/2013 09:06:54 CIêNCIAS HUMANAS EM DEBATE 47 Multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade Mas sabemos o que é realmente interdisciplinaridade? e multi- disciplinaridade? e pluridisciplinaridade? transdisciplinaridade então? e essa tal de indisciplinaridade? ninguém sabe direito. Vamos tentar uma definição a partir da etimologia das palavras.7 esse conjunto de termos tem um radical comum, -disciplina, um sufixo comum, -dade, e prefixos distintos in-, multi-, pluri-, inter-, trans-. não se criam diferentes palavras para expressar o mesmo sentido. A distinção do sentido está na parte diversificada e não na parte idêntica dos vocábulos. Disciplina provém do latim disciplina, formada do radical indo-europeu dek-, que significa “receber” e está na base de discere, “aprender”, discipulus, “o que aprende”; disciplina, “o que se aprende”. Modernamente, a palavra tem dois grandes sentidos: a) ramo do conhecimento, principalmente entendido como componente de um currículo; b) normas de conduta. o sufixo -dade é formador de substantivos abstratos a partir de adjetivos. Para definir os termos, a questão é pensar os prefixos, todos de origem latina, sempre a partir das raízes indo-europeias: in < ne (indica negação e aparece em palavras como nulo, neutro, negar, ninguém, inútil); inter < en (denota “dentro de”, “entre” e ocorre, por exemplo, em interior, íntimo, interno, entrar, intestino); pluri < pel (remete ao sentido de “encher”, “abundância”, “grande número” e está presente em vocábulos como plural, plenitude, plenipotenciário, cheio, pleno, suprir); multi < mel (traduz a noção de “abundância quantitativa ou qualitativa” e aparece em muito, multidão, múltiplo, multipli- cação, melhor etc.); trans < ter (quer dizer “atravessar, chegar ao fim” e ocorre em termo, término, determinar, traduzir, transportar, 7 essas definições elaboradas a partir da etimologia não diferem do que avança Piaget (1970, p.253-377) em seu lúcido ensaio sobre a interdisciplinaridade. Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 47 15/10/2013 09:06:54 48 ANGELO V. – DOROTéA K. – FLÁVIA O. – JEAN P. – MARIA G. – MARIA M. (ORGS.) trás-os-montes e assim por diante). observando a etimologia das palavras em que aparecem os prefixos pluri e multi, pode-se dizer que há um matiz diferenciador entre eles: o primeiro indica abun- dância de elementos homogêneos, enquanto o segundo não traz essa ideia de homogeneidade. no entanto, essa nuança de sentido perdeu-se na história. Podemos, pois, dizer que multidisciplina- ridade e pluridisciplinaridade querem dizer a mesma coisa. Além disso, se deixarmos de lado o termo indisciplinaridade, porque, apesar do charme dado pela conotação libertária, indica apenas uma negação, sem qualquer valor positivo, temos três termos a definir: pluri e multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade. Pode-se pensá-los como o continuum de um processo. na multidisciplinaridade (ou pluridisciplinaridade), várias disciplinas analisam um dado objeto, sem que haja ligação neces- sária entre essas abordagens disciplinares. o que se faz é pôr em paralelo diferentes maneiras de enfocar um tema, que são coor- denadas com vista ao conhecimento global de uma determinada matéria. tomemos, por exemplo, o caso da energia. esse assunto deve necessariamente ser enfocado multidisciplinarmente: a Física estuda as formas e transformações da energia; a Biologia investiga os processos para obtenção da biomassa; a geologia examina as formas de descobrir jazidas de recursos não renováveis de produção de energia, como o carvão mineral, o xisto, o petróleo e o gás natural; as engenharias pesquisam como aproveitar a ener- gia, como extraí-la, como distribuí-la; a economia analisa a oferta e a procura de energia, as vantagens e desvantagens econômicas do uso de uma dada forma de energia; a ecologia avalia os efeitos do uso de certo tipo de energia no meio ambiente; a sociologia e a Antropologia observam os efeitos do uso da energia em determi- nada comunidade humana e assim por diante. A interdisciplinaridade pressupõe uma convergência, uma complementaridade, o que significa, de um lado, a transferência Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 48 15/10/2013 09:06:54 CIêNCIAS HUMANAS EM DEBATE 49 de conceitos teóricos e de metodologias e, de outro, a combinação de áreas. Assim, por exemplo, a sociologia pode utilizar conceitos da economia, como faz Pierre Bourdieu quando se serve dos con- ceitos de capital, mercado e bens para todas as atividades sociais e não somente as econômicas, ou quando faz largo uso da noção de troca. com muita frequência, a interdisciplinaridade dá ori- gem a novos campos do saber, que tendem a disciplinarizar-se.8 A Bioquímica, unindo Biologia e Química, estuda os processos químicos que ocorrem nos organismos vivos. A sociobiologia é a tentativa de explicar biologicamente os comportamentos sociais. Quando as fronteiras das disciplinas se tornam móveis e fluidas num permeável processo de fusão, temos a transdiscipli- naridade. é transdisciplinar uma poética da ciência. na poesia, percebem-se analogias, observam-se correspondências, não se respeita a autoridade dos códigos, das estruturas, da tradição, dos significados, do discurso. Da mesma forma, a transdisci- plinaridade é domínio da audácia, que leva a examinar todo o conhecimento, não somente a partir dos três axiomas da lógica clássica (o do terceiro excluído, o da identidade e o da não con- tradição) nem apenas com base nos princípios que fundam a ciência moderna (o da ordem, que engloba o da determinação; o da separação e o da redução), mas a partir de fundamentos ana- lógicos, de conceitos como caos, irreversibilidade, degradação. As interciências, como as ciências cognitivas e a ecologia, são transdisciplinares. A ecologia é o campo transdisciplinar emble- mático, pois contém um saber científico diversificado, utilizado em uma concepção generosa, universalizante e redentora da vida do homem no planeta. examinemos mais detidamente a interdisciplinaridade, que é uma das formas mais interessantes e produtivas de trabalho cien- tífico de nossa época. Poderíamos dizer que temos, basicamente, 8 cf. Piaget (1970, p.369). Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 49 15/10/2013 09:06:55 50 ANGELO V. – DOROTéA K. – FLÁVIA O. – JEAN P. – MARIA G. – MARIA M. (ORGS.) duas práticas interdisciplinares: a) transferência, que é a passa- gem de conceitos, metodologias e técnicas desenvolvidos numa ciência para outra; b) intersecção, em que duas ou mais discipli- nas se cruzam para tratar de determinados problemas. como se vê, a interdisciplinaridade não pressupõe a diluição das fronteiras disciplinares num ecletismo frouxo. Assim, a interdisciplinari- dade da linguística com outras ciências não é o apagamento dos contornos da ciência da linguagem e sua transformação em outros campos do conhecimento. não é a biologização, a matematiza- ção, a sociologização, a antropologização etc. da linguística. como dizia sírio Possenti, em recente conferência, o papel dos linguistas não é fazer uma história ou uma sociologia de segunda, mas uma linguística de primeira. A interdisciplinaridade supõe disciplinas que se interseccionam, que se sobrepõem, que se reor- ganizam e que buscam elementos em outras ciências. Relação da Linguística com outras ciências como se disse, a interdisciplinaridade pressupõe, de um lado, a transferência de conceitos teóricos e de metodologia e, de outro, a intersecção de áreas. Mostremos, com alguns exemplos, como isso se deu na linguística. Transferência de conceitos da Linguística para outras ciências A antropologia estrutural importa da linguística, antes de tudo, um modelo de cientificidade. toma métodos e noções da linguística, considerada então ciência piloto das ciências humanas. Antes de lévi-strauss, a Antropologia estava ligada às ciências da natureza e comprometida com toda sorte de racis- mos e com a noção de determinismo biológico. o antropólogo Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 50 15/10/2013 09:06:55 CIêNCIAS HUMANAS EM DEBATE 51 francês, para estudar as estruturas elementares de parentesco, toma da Fonologia a ideia da busca de constantes presentes sob a imensa variabilidade da realidade. sob as múltiplas práticas matrimoniais, aparecem as invariantes, as estruturas elemen- tares, que determinam, basicamente, com quem se pode e com quem não se pode casar. lévi-strauss coloca a proibição do incesto como um universal, entendido não como um interdito moral, mas como uma regra de positividade social, destinada a proteger a espécie contra os efeitos funestos dos casamentos con- sanguíneos. Assim, ele desbiologiza o fenômeno do parentesco, deslocando a questão das relações consanguíneas para o caráter de transação, de comunicação, que se instaura com a aliança matri- monial. Diz ele que a “proibição do incesto exprime a passagem do fato natural da consanguinidade ao fato cultural da aliança” (lévi-strauss, 1976, p.70). A Antropologia deixa a natureza e é colocada no terreno exclusivo da cultura. A linguística, em particular a Fonologia, permite, com seus métodos, suas teorias e suas noções, ultrapassar o estágio dos fenômenos conscientes para atingir aquilo que é inconsciente; possibilita não ver os termos em sua positividade, mas apreendê-los em suas relações internas, ou seja, tomar por base da análise as relações entre os termos e não os próprios termos; propicia descobrir os sistemas e pôr em evidência suas estruturas; proporciona desvendar leis gerais. lévi-strauss mostra que se podem analisar certos fenômenos sociais, como, por exemplo, o parentesco, de maneira análoga à da Fonologia, porque eles são elementos dotados de significação, integram-se em sistemas inconscientes, resultam de leis gerais, dado que se encontram fenômenos similares em regiões bastante afastadas umas das outras.9 Diz o antropólogo francês que, como os fonemas, os termos de parentesco só adquirem significação 9 Diz lévi-strauss (1975, p.65) que “o sistema de parentesco é uma linguagem”; afirma ainda: “postulamos que existe uma correspondência formal entre a estrutura da língua e a do sistema de parentesco” (1975, p.79). Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 51 15/10/2013 09:06:55 52 ANGELO V. – DOROTéA K. – FLÁVIA O. – JEAN P. – MARIA G. – MARIA M. (ORGS.) quando se integram em sistemas (lévi-strauss, 1975, p.48). na busca das invariantes para além da multiplicidade das variedades percebidas, ele põe de lado todo recurso à consciência do sujeito.10 Dá prevalência à sincronia. Da mesma forma, os mitos formam estruturas: as variantes de um mesmo mito integram-se num sistema no qual cada elemento se opõe a todos os outros. lacan teve, para a Psicanálise, o mesmo papel que lévi- -strauss para a Antropologia. A linguística oferece para a Psicanálise lacaniana um modelo de cientificidade. Por volta dos anos 1950, na França, reinava uma biologização das conquistas freudianas e a Psicanálise dissolvia-se na Psiquiatria. lacan denuncia também o behaviorismo, dominante nos estados unidos, como uma adaptação do indivíduo às normas sociais, como uma teoria que tem uma função de ordem, de normaliza- ção. Deseja a desmedicalização e a desbiologização do discurso freudiano e a retirada do inconsciente do seio das estruturas psicologizantes behavioristas. Propõe uma ruptura enraizada na obra de Freud, uma volta a Freud (lacan, 1966, p.145). esse retorno dar-se-ia, levando em conta o modelo da linguística (lacan, 1966, p.165). Para lacan, há uma prevalência da dimen- são sincrônica na organização do inconsciente. Portanto, ele não considera essencial em Freud a teoria dos estágios sucessivos, mas a existência de uma estrutura edipiana de base, caracterizada por sua universalidade, indiferente às contingências de tempo e de espaço. Para ele, o homem só existe enquanto tal pela função simbólica. ele é, pois, produto da linguagem, efeito dela. isso permite ao psicanalista francês criar sua famosa fórmula: “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”. A existência simbólica do ser humano deixa clara a importância dada à lin- guagem, à relação com o outro. Dessa forma, ele desmedicaliza a 10 esse é o modo de proceder de um fonólogo. observe-se, por exemplo, a argu- mentação de câmara Jr. (1970b, p.48-50) para explicar por que o português não tem vogais nasais. Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 52 15/10/2013 09:06:55 CIêNCIAS HUMANAS EM DEBATE 53 abordagem do inconsciente, objeto da Psicanálise, considerando- -o como um discurso. A Psicanálise deixa de ser uma disciplina médica e passa a ser uma disciplina analítica. lacan fundamenta-se na teoria saussuriana do signo, apor- tando-lhe uma série de modificações e mesmo de torções (lacan, 1966, p.250-289). saussure mostrara que o signo não une um nome a uma coisa, mas um conceito a uma imagem acústica. ele separou, portanto, o signo de qualquer relação com o referente (saussure, 1969, p.79-81). o signo, sem qualquer vínculo com o referente, é, para lacan, o fundamento da condição humana. no entanto, diferentemente de saussure, ele relega o significado a um lugar acessório. A fala, cortada de qualquer acesso ao real, veicula apenas significantes que remetem uns aos outros. o inconsciente, objeto que funda a identidade científica da Psicanálise, é uma cadeia de significantes. o inconsciente é um efeito da linguagem, de suas regras, de seu código. lacan recorre aos conceitos de metáfora e de metonímia desenvolvidos por Jakobson e assimila-os aos dois processos de funcionamento do inconsciente: a condensação e o deslocamento. Além desses modelos gerais, lacan toma conceitos particula- res da linguística: por exemplo, de Damourette e Pichon vem a divisão entre o je e o moi e o conceito de forclusão.11 o primeiro 11 Pichon era, além de gramático, psicanalista. A forclusão é um fenômeno grama- tical que diz respeito à negação. o francês faz uma negação com um morfema descontínuo. o primeiro elemento da negação é considerado por Damourette e Pichon da ordem da discordância. o segundo elemento da negação é deno- minado “forclusivo”. seu semantismo originário é o de uma ocorrência mínima (pas, goutte, miette, aucun, nul, personne, rien). essa ocorrência remete a um paradigma: personne, por exemplo, é a ocorrência mínima que remete ao para- digma dos animados humanos; rien, ao paradigma dos não animados; pas, assim como nullement, ao paradigma das quantificações. o que é dado por forclos (ou excluído, isto é, localizado num exterior nocional) é então a representação de um paradigma, evocado em intensão, qualitativamente; em outras palavras, definido por uma propriedade e não construído em extensão (Damourette; Pichon, 1970, t.6, p.113-143). Ciencias_humanas_em_debate__(MIOLO)__Graf-v1.indd 53 15/10/2013 09:06:55 54 ANGELO V. – DOROTéA K. – FLÁVIA O. – JEAN P. – MARIA G. – MARIA M. (ORGS.) serve para pensar a divisão entre o sujeito do inconsciente e o da consciência com seu imaginário; o segundo, para mostrar que há um processo de fracasso do recalcamento originário, em que não se conserva o que se recalcou, por