UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA ‘JÚLIO DE MESQUITA FILHO’ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENSINO E PROCESSOS FORMATIVOS FACULDADE DE ENGENHARIA GISLAINE APARECIDA PUTON ZORTÊA CONHECIMENTOS “DE” E “SOBRE” GEOMETRIA DE DUAS PROFESSORAS INICIANTES NO CONTEXTO DE UM GRUPO COLABORATIVO Ilha Solteira 2018 GISLAINE APARECIDA PUTON ZORTÊA CONHECIMENTOS “DE” E “SOBRE” GEOMETRIA DE DUAS PROFESSORAS INICIANTES NO CONTEXTO DE UM GRUPO COLABORATIVO Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Ensino e Processos Formativos, da Faculdade de Engenharia, UNESP/Ilha Solteira-SP, como requisito para a obtenção do título de Mestre em Ensino e Processos Formativos. Linha de Pesquisa: Educação Matemática Agência de Fomento: CAPES Orientadora: Profa. Dra. Zulind Luzmarina Freitas (UNESP) Coorientador: Prof. Dr. Klinger Teodoro Ciríaco (UFMS) Ilha Solteira 2018 AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente a Deus, pela oportunidade de cursar este mestrado e por tudo que me concedeu ao longo desse um ano. À minha mãe, Jane, pelo apoio durante o período em que morei longe, pois ela não poupou forças para me ajudar. Mãe, obrigada por seus esforços para que eu pudesse estudar e realizar esse sonho. Ao meu padrasto, Sergio, que sempre foi um pai, obrigada por todo apoio. Ao meu pai, Valdir, que mesmo distante sempre se preocupou. Aos meus irmãos, Vanderson e Lorena, por me proporcionar momentos de alegria mesmo na distância. Ao meu noivo, George, pelo incentivo e compreensão nos momentos de ausência, além de seu companheirismo ao longo dessa jornada. À Profa. Dra. Zulind, por acreditar em meu trabalho e sempre me auxiliar nos momentos de dúvida, obrigada por todo carinho que teve comigo. Ao Divo Prof. Dr. Klinger, por toda confiança, amizade e carinho que sempre dedicou a mim, obrigada por acreditar que eu seria capaz de chegar mais longe, e por todas as vezes que me disse “você não está só”, suas palavras me deram força para seguir em frente. Aos professores doutores Nelson Pirola (UNESP-Bauru) e Thiago Donda (UFMS- Paranaíba), por aceitarem participar como avaliadores desse trabalho. À minha cunhada, Erika, que sempre me auxiliou nos momentos de dúvidas. À minha amiga Emeline que se fez presente mesmo distante. As minhas primas Claudiana e Vanessa, pelos momentos de risos e pelo apoio quando estive desanimada. Aos meus amigos, Fabiana, Willian, Thalita, Elquer e Paulinha que fizeram das férias em casa dias melhores. À Viviane Modesto, pessoa que tive oportunidade de conhecer e conviver, obrigada pelo companheirismo em terras distantes. À Bruna, que sempre acreditou que eu seria capaz de ir mais longe e sabe o quão dura foi essa jornada. À Andrezza e aos colegas que conheci na Pós-Graduação, por terem feito parte dessa história. Aos funcionários da Seção de Pós-Graduação da FEIS/UNESP pela disposição e agilidade em todos os momentos. À Escola Municipal Maria Aquino por fornecer o espaço de encontro com as professoras iniciantes. As professoras e graduandas participantes dessa pesquisa, obrigada por compartilhar suas experiências ao longo dos encontros. A Gerência Municipal de Educação de Naviraí/MS, pelo empenho e auxílio na pesquisa e por fornecer dados da rede, sempre quando solicitadas. A CAPES, pelo apoio financeiro através da concessão de Bolsa. Um professor que não aproveita os momentos de dúvida das situações do cotidiano para refletir sobre suas ações, como também não estuda as atitudes dos alunos em sala de aula, pratica sua docência moldada em verdades prontas (BEDNARCHUK, 2012, p. 37). RESUMO A presente dissertação vincula-se à linha de pesquisa “Educação Matemática” do Programa de Pós-Graduação em Ensino e Processos Formativos da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” de Ilha Solteira – SP (FEIS/UNESP) e teve como objetivo verificar em que sentido a experiência de compartilhar e narrar suas experiências em Geometria contribui para o aprender e ensinar em um grupo com características colaborativas. A metodologia adotada se enquadra no campo dos estudos qualitativos na modalidade de pesquisa ação-estratégica. Os dados foram coligidos no contexto de sessões reflexivas, bem como por meio de dois roteiros de entrevista semiestruturada com duas docentes em início de carreira no ambiente da colaboração. Adotamos um referencial teórico que discute aspectos da formação para o ensino de Matemática em cursos de Pedagogia, a presença da Geometria na Educação Básica a partir de uma articulação com as bases para o ensino de Lee Shulman (conhecimento específico de conteúdo, conhecimento pedagógico de conteúdo e conhecimento curricular de conteúdo) e processos de colaboração experienciados por grupos colaborativos no Brasil no campo da Educação Matemática. O contato direto com a situação problematizada nesta dissertação possibilitou caracterizar a fase do início da docência como sendo um momento conturbado, conflituoso e, ao mesmo tempo, de aprendizagens intensas para professoras iniciantes, uma vez que, no cotidiano da profissão, elas acabam por mobilizar saberes para “sobreviver” aos desafios que lhes são apresentados tanto pela escola quanto pela prática pedagógica em Matemática. No espaço do grupo, foi possível verificar que a interação com os demais membros proporcionou, pelo que indicam os dados, a ampliação do repertório didático-pedagógico em relação aos conteúdos ligados à Geometria, o que acaba por contribuir para o resgate desse campo matemático no cotidiano das aulas, como ainda para a prática de reflexão “de” e “sobre” seu ensino. Um elemento importante foi que no decorrer da experiência de pesquisa, com a prática de estudo coletivo, organização e planejamento das aulas, as professoras iniciantes passaram a gravar fragmentos de episódios de Geometria e compartilharam no grupo, razão que nos permite afirmar o potencial do recurso da videogravação como elemento de reflexão. Com o término desta investigação, é possível afirmar que as duas docentes tiveram contribuições importantes para a constituição de suas próprias práticas, promovendo autonomia e autocrítica ao se desenvolverem profissionalmente com apoio do grupo colaborativo. Palavras-chave: Início da docência. Geometria. Grupo colaborativo. ABSTRACT The present work is linked to the line of research “Mathematical education” of the Postgraduate Program in Teaching and Formative Processes of the São Paulo State University “Júlio de Mesquita Filho” from Ilha Solteira – SP (FEIS/UNESP) and its aim was to verify in which sense the experience of the sharing and talking about experiences on Geometry contributes to the learning and teaching in a group with collaborative characteristics. The adopted methodology is fitted to the area of the qualitative studies in the modality of action-strategic research. The data were collected on the context of reflexive sections as well through use of two semi structured interview scripts with two teachers in the beginning of their carrier on the collaboration ambient. We have adopted a theoretical referential that discusses aspects of the formation to the teaching of the Mathematic in Pedagogy courses, the presence of the Geometry in the Basic Education from an articulation with the basis to the teaching of Lee Shulman (specific content knowledge, pedagogical content knowledge and curricular content knowledge) and processes of collaboration observed by collaborative groups in Brazil in the area of Mathematical Education. The direct contact with the problematic situation in the present work allowed to characterize the phase of the beginning of the teaching as being a troubled and conflicted moment but, at the same time, as a phase of intense learning by the beginning teachers, since, in the daily of the profession, they mobilize knowledge to “survive” amid the challenges presented by the school and the pedagogic practice in Mathematic. In the space of the group, it was possible to verify that the interaction with other members promoted the enlargement of the didactic-pedagogic repertoire in relation to the content liked to Geometry. This affirmation was supported by the observed data and it contributes to the rescue of this mathematical campus in the classes daily, as to the practice of the reflection on “of” and “about” its teaching. During the experience of the research with the practice of the collaborative studies, organization and planning of the classes, the beginning teachers have started to recording fragments of the episodes of Geometry and also to sharing with the group, reason the support the potential of the video recording as a reflection element. With the ending of this investigation, it is possible to affirm that both teachers had important contributions for the constitution of their practices through of the promotion of the autonomy and self-criticism to their professional development with the support of the collaborative group. Keywords: Beginning of the teaching. Geometry. Collaborative group. LISTA DE QUADROS QUADRO 01: Tendência investigativa dos trabalhos publicados no ENEM e SIPEM por seguimento de ensino. .................................................................................................... 39 QUADRO 02: Categorização das pesquisas dos anos inicias a partir das tendências em Educação Matemática apresentadas no ENEM E SIPEM .............................................. 41 QUADRO 03: Conhecimentos específicos de Geometria mencionados em publicações do Ministério da Educação (MEC) – PNAIC e PCN .......................................................... 48 QUADRO 04: Conteúdos de Geometria presentes nos documentos norteadores do currículo ........................................................................................................................................ 60 QUADRO 05: Grupos colaborativos em Educação Matemática. .................................. 70 QUADRO 06: Relação entre os objetivos da pesquisa e os indicadores de análise de dados. ........................................................................................................................................ 81 QUADRO 07: Caracterização das participantes do grupo. ............................................ 83 QUADRO 08: Textos discutidos pelas professoras no grupo colaborativo. ................ 103 QUADRO 09: Planejamento da aula de Joana. ............................................................ 113 QUADRO 10– Descrição dos aspectos do vídeo da professora Joana. ....................... 113 QUADRO 11: Planejamento da aula de Paula. ............................................................ 118 QUADRO 12– Descrição dos aspectos do vídeo de Paula. ......................................... 119 LISTA DE FIGURAS Figura 01: Vicente Rego Monteiro..................................................................................50 Figura 02: A face da Guerra, de Salvador Dali. ............................................................. 50 Figura 03: Folha de árvore.............................................................................................. 51 Figura 04: Asas da borboleta. ......................................................................................... 51 Figura 05: Geoplano................... .................................................................................... 55 Quadro 05: Grupos colaborativos em Educação Matemática. ....................................... 70 Figura 06: Representação da dinâmica do movimento intersticial. ................................ 72 Figura 07: Estudos fundamentação teórica......... ............................................................ 99 Figura 08: Atividade com jujuba......................... ........................................................... 99 Figura 09: Atividade de Simetria ................................................................................... 99 Figura 10: Planejamento.................. ............................................................................... 99 Figura 11: Flashes da aula de Joana. ............................................................................ 106 Figura 12: Cena 01 da aula de Joana. ........................................................................... 115 Figura 13: Cena 02 da aula de Joana. ........................................................................... 116 Figura 14: Cena 01 da aula de Paula. ........................................................................... 119 Figura 15: Cena 02 da aula de Paula. ........................................................................... 120 Figura 16: Cena 03 da aula de Paula. ........................................................................... 120 Figura 17: Cena 04 da aula de Paula. ........................................................................... 120 Figura 18: Cena 05 da aula de Paula. ........................................................................... 121 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 12 2 FORMAÇÃO DE PROFESSORES, INICIAÇÃO À DOCÊNCIA E A MATEMÁTICA EM CURSOS DE PEDAGOGIA ................................................. 17 2.1 Formação de professores: problemas e perspectivas .............................................. 17 2.2 O começo da carreira e os desafios dos professores iniciantes ............................... 23 2.3 A Matemática em cursos de Pedagogia .................................................................... 29 3 A GEOMETRIA NA EDUCAÇÃO BÁSICA E AS BASES DO CONHECIMENTO PARA O ENSINO .................................................................... 35 3.1 Marcas e ausências do ensino de Geometria na Educação Básica ......................... 35 3.2 Ensinar e aprender Geometria nos anos iniciais: o que dizem os trabalhos publicados no ENEM e SIPEM? ............................................................................... 39 3.3 Bases de conhecimento para o ensino de acordo com Lee Shulman ...................... 44 3.3.1 O conhecimento específico de conteúdo de Geometria .............................................. 46 3.3.2 O conhecimento pedagógico de conteúdo para o ensino de Geometria .................... 52 3.3.3 O conhecimento curricular de conteúdo de Geometria ............................................. 57 4 PRÁTICAS DE COLABORAÇÃO EM EDUCAÇÃO MATEMÁTICA ............. 64 4.1 Pressupostos teórico-metodológicos do trabalho de grupos colaborativos no Brasil ............................................................................................................................ 64 4.2 Grupos colaborativos em Educação Matemática: experiências de algumas pesquisas ...................................................................................................................... 69 4.3 Colaboração: múltiplos olhares e a síntese de um conceito .................................... 74 5 DELINEAMENTO METODOLÓGICO ................................................................. 78 5.1 O Grupo de Práticas Colaborativas em Educação Matemática nos Anos Iniciais – GPCEMai/UFMS – e a retomada das reuniões com o foco em Geometria ........... 80 5.1.1 Sobre a caracterização das integrantes do GPCEMai ............................................... 82 5.1.2 Sobre a dinâmica da prática de colaboração instituída a partir dos instrumentos de coleta das informações junto ao grupo ....................................................................... 84 5.1.3 Sobre o papel das entrevistas semiestruturadas .......................................................... 86 5.2 Itinerários da produção e análise de dados .............................................................. 87 6 DESCRIÇÃO E ANÁLISE DE DADOS .................................................................. 90 6.1 Dificuldades relacionadas à carreira e ao ensino de Geometria declaradas pelas professoras ................................................................................................................... 90 6.2 Apresentação e negociação da proposta de trabalho do GPCEMai em 2017 ....... 97 6.2.1 Sobre a prática de estudo e as possibilidades de desenvolver conhecimentos para a docência em Geometria ............................................................................................ 100 6.3 O vídeo enquanto elemento de reflexão da prática no início da docência ........... 111 6.3.1 Planejamento e cenas da aula da professora Joana ................................................ 112 6.3.2 Planejamento e cenas da aula da professora Paula ................................................. 118 6.4 O que o grupo possibilitou? Percepções das professoras no final das sessões com o GPCEMai em 2017 ................................................................................................... 125 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 134 REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 138 12 1 INTRODUÇÃO Como professor devo saber que sem a curiosidade que me move, que me inquieta, que me insere na busca, não aprendo nem ensino (FREIRE, 2016, p. 83). Esta dissertação surge do interesse em compreender, na busca que me inquieta1, como um grupo colaborativo que tem como integrantes algumas professoras iniciantes lida com a Geometria nos anos iniciais Ensino Fundamental I (1º ao 4º ano). A curiosidade movida pela produção desta investigação decorre de experiências da formação inicial em que aprendi que é por meio da problematização e, principalmente, do ato de compartilhar saberes e fazeres que o sujeito pode modificar suas crenças e concepções sobre um determinado objeto. A necessidade de conhecer de forma mais aprofundada essa problemática surge em decorrência de minha participação ativa no Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Início da Docência e Ensino de Matemática – GEPIDEM/UFMS/CNPq, que se dedica a pensar em ações voltadas para estudos e reflexões sobre os problemas da formação inicial de professores para o ensino e aprendizagem dos conceitos escolares, como também questões ligadas ao professor iniciante em diferentes níveis de atuação. Tal participação, durante o período em que cursava licenciatura em Pedagogia2, fez-me entender o quanto é importante o ensino da Geometria nos anos inicias. Após a inserção no ambiente do referido grupo de estudos, investi esforços no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID/CAPES), em que fui bolsista pelo período de 12 meses (fevereiro de 2015/fevereiro de 2016), fato que me possibilitou conhecer melhor os conteúdos da Matemática Escolar em uma sala de aula de segundo e terceiro ano do Ensino Fundamental, bem como quais eram as maiores dificuldades dos alunos e das próprias professoras com relação aos conceitos. Essa experiênca acarretou na percepção de como essas professoras se organizavam para preencher lacunas advindas de uma formação precária quando se tratava de conteúdos matemáticos. Dessa forma, propus no trabalho de conclusão de curso (ZORTÊA, 2015) estudar quais eram as dificuldades de professoras iniciantes em relação aos conteúdos matemáticos, estudo esse que possibilitou identificar e compreender que essa área carece de atenção especial, sobretudo, para propostas de investigações que visem intervir em determinados contextos no sentido de auxiliar os professores no exercício de sua atividade profissional. 1 Trecho redigido em primeira pessoa por se tratar de experiências pessoais da pesquisadora. 2 Na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS, Câmpus Naviraí. 13 A conclusão do TCC permitiu constatar que os desafios centrais na organização do trabalho pedagógico residem, no caso pesquisado, na utilização do material concreto e no ensino de geometria, justamente porque as professoras não compreendiam adequadamente essa área do currículo. Por essa razão, muitas vezes, no ensino de conteúdos matemáticos tendem a se tornar predominante e restrito o bloco “números e operações”, conforme constatam Mandarino (2006) e de Ciríaco (2012) . Contudo, esse fato não necessariamente é consciente e de responsabilidade dos docentes, mas sim de um processo histórico de formação docente com sérios problemas ligados, principalmente, à unidade conceitual da Matemática e isso recaí, sem dúvidas, no abandono do ensino de Geometria conforme descreve Pavanello (1993). Dessa maneira, a constatação dessa realidade implica “[...] a necessidade de investimentos em pesquisas sobre metodologias mais apropriadas para a abordagem desse conteúdo e em ações destinadas a proporcionar aos professores condições para a melhoria da qualidade desse ensino” (PAVANELLO, 1993, p. 16). Nesse sentido, buscamos compreender, por meio desta dissertação de mestrado, em que medida interações propiciadas em um grupo formado por professoras experientes e iniciantes, contribuem para desenvolvimento da docência em Geometria nos anos iniciais do Ensino Fundamental também para a promoção da ampliação dos repertórios didático-pedagógicos das professoras iniciantes a partir da reflexão sobre a própria atuação. Nesse ambiente de colaboração, tanto professoras quanto pesquisadora buscaram a construção de uma identidade profissional na perspectiva da pesquisa-ação estratégica, com vistas à vertente emancipatória no campo da docência em Matemática, uma vez que essa disciplina tem se constituído, nos últimos anos, no “calcanhar de Aquiles” dos professores dos anos iniciais, por conta de problemas ligados ao processo de ensino/aprendizagem na escola e também à sua formação inicial. A Matemática tem sido apresentada no curso de Pedagogia de forma fragmentada. Por essa razão a formação acaba sendo centrada em processos metodológicos de ensino, ou seja, no “como ensinar” e não no “que ensinar”, não contribuindo para a formação específica dos acadêmicos (CURI, 2004). Com isso, a abordagem conceitual de Geometria e suas propriedades são raramente exploradas de forma adequada pelos docentes da Pedagogia nas aulas com os futuros professores. Curi e Pires (2008, p. 162) afirmam que “[...] as disciplinas relativas à matemática e seu ensino que constam das grades curriculares dos cursos de pedagogia têm uma carga horária bastante reduzida [...]”, dado possível de se observar através do estudo das ementas das 14 disciplinas destinadas à Matemática em 36 instituições investigadas pelas autoras. Identificou- se que elas têm uma carga horária entre 36 e 120 horas, o que não colabora para desmistificar “[...] uma concepção dominante de que o professor polivalente não precisa ‘saber Matemática’ e que basta saber como ensiná-la” (CURI, 2004, p. 77). Da mesma forma, Pavanello (2004) enfatiza que muitas vezes a formação inicial não tem dado conta de preparar o professor para a tarefa de ensinar geometria e aponta para o abandono do ensino dessa área do conhecimento matemático. Complementando, a autora explica que: As dificuldades de professores no reconhecimento de figuras geométricas planas, de seus elementos e propriedades, e, portanto, em atividades de classificação, indicam que o trabalho pedagógico realizado com eles nas diferentes instâncias de sua formação não lhes permitiu elaborar devidamente seus conceitos de figuras planas (PAVANELLO, 2004, p. 135). Ainda sobre as dificuldades na abordagem dos conteúdos geométricos, Vasconcellos (2008, p. 83) coloca que: [...] os professores ainda não têm a devida compreensão acerca deste assunto. Em função disso, comprometem o desenvolvimento dos alunos por priorizarem, na escola, o trabalho com figuras geométricas sem o estabelecimento de relações entre elas e o espaço no qual estão inseridas. A partir das características identificadas no perfil do trabalho com a Geometria nos anos iniciais, expostas nas pesquisas e estudos referenciados anteriormente, o movimento de constituir uma experiência de colaboração no decorrer desta pesquisa de mestrado tem como base responder o seguinte questionamento: em que sentido a experiência de compartilhar e narrar experiências em Geometria pode contribuir para o aprender e ensinar em um grupo com características colaborativas? Para que possamos responder a essa pergunta, foram elaborados os seguintes objetivos específicos:  Levantar os sentimentos de inserção na carreira docente;  Identificar as dificuldades conceituais em relação à Geometria;  Descrever quais estratégias metodológicas são adotadas pelas professoras iniciantes para o ensino de Geometria em sala de aula;  Caracterizar a formação matemática obtida no curso de Pedagogia e suas relações com as experiências em Geometria. 15 A problemática de pesquisa em que essas indagações se inserem diz respeito à constatação de que existem dificuldades no trabalho pedagógico com a Geometria nos primeiros anos de escolarização (FONSECA et al, 2005), decorrentes tanto do processo de formação inicial em cursos de Pedagogia (PAVANELLO, 1993; ZAMBON, 2010) quanto das condições do trabalho docente. Desse modo, mais do que um estudo descritivo que expõe problemas e perspectivas de atuação, esta dissertação propõe buscar caminhos teórico-metodológicos de forma reflexiva “com” as professoras, que contribua para a constituição do ser educadora matemática do nível infantil, principalmente de sua aprendizagem em Geometria, para ensinar os conteúdos previstos no ano escolar em que atua. Essa vertente encontra respaldo no fato de que é preciso ampliar a discussão acerca da formação geométrica dos professores, ressignificando seus saberes. Com vistas a atingir os objetivos propostos nesta introdução, a dissertação foi organizada em sete capítulos. No capítulo 2, apresentaremos um referencial teórico que procura dialogar com a literatura especializada em temas sobre formação de professores, início da carreira e a formação para o ensino de Matemática. A priori fizemos uma reflexão acerca do início da docência, bem como sobre as dificuldades que os professores têm enfrentado durante essa fase de sua atividade profissional e também como se lida com os problemas encontrados na formação inicial para o ensino de Matemática. No capítulo 3, destacamos alguns aspectos que marcam a ausência do ensino e o abandono da Geometria na Educação Básica e apontamos também a tendência investigativa dessa temática em dois eventos: ENEM e SIPEM. Para tanto, abordamos o lugar da Geometria na formação inicial do pedagogo e as bases de conhecimentos necessários à docência pautados em Shulman: conhecimento de conteúdo, conhecimento pedagógico de conteúdo e o conhecimento curricular de conteúdo da matéria de ensino. No capítulo 4, refletimos sobre práticas de colaboração em Educação Matemática. Nele procuramos delimitar e conceituar “colaboração” e “grupos colaborativos”, como também caracterizar as contribuições de alguns grupos de trabalho existentes em nosso país e que vêm se destacando pelo potencial formativo desta proposta metodológica de atuação/pesquisa. No capítulo 5, apresentamos o delineamento metodológico, momento em que expomos a perspectiva metodológica adotada – pesquisa-ação estratégica –, a caracterização do grupo por meio da apresentação das professoras integrantes e seus anos de atuação na escola, como ainda o percurso da caminhada do grupo, agora com enfoque no estudo da Geometria. 16 No capítulo 6, apresentamos alguns resultados e discussões obtidas com o grupo colaborativo. Ainda nesse capítulo, foram redigidas as percepções das professoras sobre sua iniciação à docência, por meio de uma entrevista inicial, e aspectos presentes nas reuniões no sentido de destacar elementos constitutivos da colaboração e do processo de reflexões oportunizadas pelo ambiente formativo vivenciado durante os encontros (de março a dezembro de 2017). Apresentamos, também, as entrevistas finais com as professoras iniciantes sobre suas aprendizagens compartilhadas e do processo de atividade profissional. Por fim, redigimos nossas “Considerações Finais” na tentativa de apontar possibilidades do trabalho com o ensino de Geometria durante os primeiros anos da docência, a partir da experiência em que estivemos imersos e de princípios estruturadores relativos ao processo de colaboração em um contexto de trabalho em que a reflexão sobre a atuação tornou-se a base para o planejamento e desenvolvimento de aulas. Assim, diante das questões problematizadas, tivemos pretensão de realizar uma pesquisa específica, com o Grupo de Práticas Colaborativas em Educação Matemática nos anos iniciais – GPCEMai – vinculado à Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS, Câmpus Naviraí, em desenvolvimento desde 2013, e que se propôs a constituir momentos de estudos e planejamentos coletivos ligados à Geometria. 17 2 FORMAÇÃO DE PROFESSORES, INICIAÇÃO À DOCÊNCIA E A MATEMÁTICA EM CURSOS DE PEDAGOGIA Reunimos neste capítulo elementos teóricos para compreender como ocorre o ingresso na carreira docente e como são superadas dificuldades dos primeiros anos na profissão. Além disso, buscaremos retratar os processos de formação para o ensino de Matemática presentes em cursos de Pedagogia com base nos resultados de estudos e pesquisas desenvolvidos nas últimas décadas, bem como caracterizar o lugar da Geometria no contexto da formação inicial de professores para os primeiros anos de escolarização. Para esse fim, estruturamos o texto em três eixos de discussão: a) problemas e perspectivas da formação inicial de professores; b) o começo da carreira docente; e b) a formação para o ensino de Matemática em cursos de Pedagogia e suas relações com a Geometria. 2.1 Formação de professores: problemas e perspectivas A opção por um curso de licenciatura, assim como a escolha de qualquer carreira, é uma decisão profissional difícil. Huberman (1995, p. 40) afirma que essa decisão não é fácil, tendo em vista que se comprometer com a carreira significa fazer “[...] a escolha de uma identidade profissional, e este acto (escolher e renunciar) representa justamente a transição da adolescência, em que ‘tudo é possível’ para a vida adulta, em que os compromissos surgem mais carregados de conseqüências”. O momento de escolha da carreira é essencial para a formação da identidade profissional. Gatti (2010), em seus estudos, aponta que grande parte dos alunos que ingressam em cursos de licenciaturas o faz pelo fato de haver pouca concorrência e que, geralmente, eles são jovens de baixa renda que provêm em sua maioria de escola pública. Para Pimenta (2005, p. 07), a maior parte dos problemas que afetam os professores é decorrente das limitações da formação docente que se acumulam ao longo de toda sua trajetória, índices “[...] precários devido a formação aligeirada e muitas vezes frágil teórica e praticamente, em cursos nos quais a didática e as metodologias são meros discursos técnicos sobre o ensinar.”. Por essa razão, é importante que o futuro professor, enquanto estudante, tenha uma formação acadêmica adequada, que tenha conhecimentos e saberes específicos acerca do conteúdo a ser ministrado. O professor em formação, portanto, deve ir além das aulas do curso de licenciatura, no sentido de explorar suas concepções e praticar ações mais didáticas para que possa ter contato com a escola e conhecer o que irá ensinar. 18 As Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Pedagogia, CNE/CP Nº 1, de15 de maio de 2006, em seu artigo 3º, afirmam que: O estudante de Pedagogia trabalhará com um repertório de informações e habilidades composto por pluralidade de conhecimentos teóricos e práticos, cuja consolidação será proporcionada no exercício da profissão, fundamentando-se em princípios de interdisciplinaridade, contextualização, democratização, pertinência e relevância social, ética e sensibilidade afetiva e estética. Parágrafo único. Para a formação do licenciado em Pedagogia é central: I - o conhecimento da escola como organização complexa que tem a função de promover a educação para e na cidadania; II - a pesquisa, a análise e a aplicação dos resultados de investigações de interesse da área educacional; III - a participação na gestão de processos educativos e na organização e funcionamento de sistemas e instituições de ensino (BRASIL, 2006, p. 1). Para atender as Diretrizes, o curso de licenciatura necessita se organizar de forma a observar o tripé da formação universitária (ensino, pesquisa e extensão). Para tanto, em atividades de ensino, nas distintas disciplinas que compõem a grade do curso, o acadêmico pode vir a entrar em contato com a prática enquanto componente curricular de sua formação em metodologias e práticas de ensino, por exemplo. No que se refere à pesquisa, para além do trabalho de conclusão de curso, essencial para a formação docente numa perspectiva crítica- reflexiva, refletir sobre o ensino na escola e problematizar as práticas em ações de estágio e de intervenção na escola podem ser aspectos basilares deste pilar. No tocante ao último pilar, ao participar da extensão é possível aproximar a escola básica da universidade na perspectiva de propiciar interlocução entre saberes universitários e os saberes profissionais (TARDIF, 2000). Entretanto, estudos como o de Guarnieri (2000) afirmam que os professores em formação não sabem como ensinar, organizar, selecionar os conteúdos, escolher como irão ensinar, propor atividades aos alunos, avaliar o trabalho da classe, corrigir cadernos, trabalhar com os alunos que apresentam dificuldades, utilizar a lousa, distribuir componentes curriculares, entre outros. Essas dificuldades são percebidas a partir da atuação do recém- formado em sala de aula. Não é algo que a universidade prepara o aluno para lidar. Por esse motivo, Marcelo García (1999), em seu livro “Formação de Professores para uma mudança educativa”, afirma que o professor em início de carreira pode vir a cometer quatro erros, quais sejam: 1) a reprodução do que foi ensinado sem questionar os pares; 2) o isolamento entre ele 19 e seus colegas de profissão; 3) a dificuldade de ensinar o que viu na formação inicial e; 4) assumir uma compreensão do ensino, vendo a educação exclusivamente como bancária3. Seguindo essa linha de raciocínio, Castro (1995) a corrobora apresentando outras dificuldades que parecem residir nas licenciaturas. De acordo com a autora, quando os professores estão saindo do curso de formação, tendem a apresentar falta de domínio dos conteúdos teóricos e não conseguem relacionar teoria com prática, o que acentua ainda mais a dificuldade da implementação de metodologias que busquem o melhoramento das aulas. Essas constatações evidenciam a necessidade dos cursos de formação inicial se organizarem para que seja possível a construção de bases de iniciação profissional no sentido de oportunizar, aos futuros professores, saberes alicerçados nos ofícios da carreira. Sobre essa necessidade, reconhecemos atualmente a importância de ações como, por exemplo, a do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), projeto financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). O PIBID, desde 20094, em diferentes cursos de licenciatura das universidades brasileiras vem fortalecendo práticas de iniciação profissional de futuros professores ao inserir alunos, que ainda se encontram na graduação, no contexto de escolas públicas em projetos de intervenção escolar, supervisionados por professores universitários (coordenadores de área) e professores da Educação Básica (supervisores). Assim, os principais objetivos desse programa são: [...] incentivar os jovens a reconhecerem a relevância social da carreira docente; promover a articulação teoria-prática e a integração entre escolas e instituições formadoras; e contribuir para elevar a qualidade dos cursos de formação de educadores e o desempenho das escolas nas avaliações nacionais e, consequentemente, seu IDEB (BRASIL, 2010, p. 01). Contudo, o PIBID não é um mecanismo de formação que atinge todo o grupo da licenciatura, mas restringe-se a subprojetos em pequenos grupos no curso de formação. Apesar de reforçar e, sem dúvida, auxiliar na construção de elementos da prática docente de forma interessante, não atende a todo o público alvo da licenciatura que tem um projeto semelhante em vigência. Embora haja esse incentivo – e dada a fragilidade de interrupção do mesmo no contexto das políticas de financiamento da educação no período atual de nosso país – é notável ainda o 3 Paulo Freire conceitua o modelo tradicional da prática docente como sendo “educação bancária”, pois o compreende que tal perspectiva de trabalho pedagógico visa à mera transmissão de conteúdos de maneira passiva por parte do professor, o qual assume uma postura como supostamente aquele que tudo sabe, sendo ele o que deposita conhecimentos na mente do aluno, que, por sua vez, assume o lugar daquele que nada ou pouco sabe, apenas recebe. 4 Decreto nº 6.755, de 29 de janeiro de 2009. 20 que Feimam (2001, apud MARCELO GARCÍA, 2010, p.14) pontua, chamando “[...] a atenção sobre o divórcio que existe entre a formação inicial e a realidade escolar”. Apesar dos problemas existentes na formação inicial, cabe acrescentar que é papel da formação contínua contribuir para o aprimoramento das práticas pedagógicas e, portanto, ela precisa ser situada com o objetivo de atuar junto às necessidades formativas dos docentes ao longo da carreira. De acordo com Gatti (2010), os conteúdos a serem ministrados em sala de aula, geralmente não são ensinados na licenciatura. Na visão da autora, os cursos de Pedagogia têm se centrado na perspectiva de metodologias voltadas a processos de “como” ensinar em detrimento de “o que” se ensinar. Apenas 28,9% das disciplinas dos cursos analisados por Gatti (2010) são voltadas para a formação específica. Esses dados apontam a insuficiência de formação específica, cuja causa é o “[...] grande desequilíbrio entre teorias e práticas, em favor apenas das teorizações mais abstratas” (GATTI, 2010, p. 1368). Ao caracterizar problemas da formação docente no Brasil, Gatti (2010, p. 1372) constata a existência de elementos insuficientes no processo formativo em cursos de Pedagogia, as quais são: a) o currículo proposto pelos cursos de formação de professores tem uma característica fragmentária, apresentando um conjunto disciplinar bastante disperso; b) a análise das ementas revelou que, mesmo entre as disciplinas de formação específica, predominam as abordagens de caráter mais descritivo e que se preocupam menos em relacionar adequadamente as teorias com as práticas; c) as disciplinas referentes à formação profissional específica apresentam ementas que registram preocupação com as justificativas sobre o porquê ensinar; entretanto, só de forma muito incipiente registram o que e como ensinar; d) a proporção de horas dedicadas às disciplinas referentes à formação profissional específica fica em torno de 30%, ficando 70% para outro tipo de matérias oferecidas nas instituições formadoras; cabe a ressalva já feita na análise das ementas, segundo a qual, nas disciplinas de formação profissional, predominam os referenciais teóricos, seja de natureza sociológica, psicológica ou outros, com associação em poucos casos às práticas educacionais; e) os conteúdos das disciplinas a serem ensinadas na educação básica (Alfabetização, Língua Portuguesa, Matemática, História, Geografia, Ciências, Educação Física) comparecem apenas esporadicamente nos cursos de formação e, na grande maioria dos cursos analisados, eles são abordados de forma genérica ou superficial, sugerindo frágil associação com as práticas docentes; f) poucos cursos propõem disciplinas que permitam algum aprofundamento em relação à educação infantil. 21 Diante desses apontamentos, percebemos que é preciso uma reorganização das ementas para que o conteúdo fique menos fragmentado e as especificidades das áreas do conhecimento como a Matemática, por exemplo, ganhe espaço e garanta seu lugar na formação de professores. A autora ainda pontua que a formação “[...] não pode ser pensada a partir das ciências e seus diversos campos disciplinares, como adendo destas áreas, mas a partir da função social própria à escolarização [...]”, ou seja, é necessário “[...] ensinar às novas gerações o conhecimento acumulado e consolidar valores e práticas coerentes com nossa vida civil” (GATTI, 2010, p. 1375), propiciando condições de formação para que o trabalho educativo com as novas gerações tenha efeito. Nessa perspectiva, entendemos que o professor tende a se inserir na escola ainda quando do momento de suas primeiras experiências com a prática na graduação e que essa inserção precisa ser mediada explorando os limites e as práticas possíveis no contexto educacional, o que sinaliza para a importância da organização formativa do docente universitário e de sua responsabilidade nesse ambiente. Giovanni e Guarnieri (2014, p. 37) declaram que “[...] a imersão no local de trabalho (em situações de estágio e mesmo de 'residência pedagógica'), por si só não propicia conhecimentos suficientes para exercer a docência”, constatação que coloca em destaque críticas à carga horária de prática como componente curricular. O estágio obrigatório e as disciplinas ligadas aos conteúdos da prática ou metodologia de ensino precisam se articular para que o professor em formação tenha a escola e o ensino como objeto de sua aprendizagem e atividade profissional. Para Barbosa (2009, p. 91), apesar das experiências vividas durante o estágio supervisionado/obrigatório ser ainda insuficientes e se caracterizarem como recortes esporádicos da profissão, [...] tornam-se indispensáveis à formação do futuro professor, pois permitem vivenciar situações que vão além do exercício “técnico” da função. São as experiências de estágio que permitem o contato dos acadêmicos com o aluno, ser humano que é a razão do trabalho do professor. Não obstante, o estágio permite explorar situações teóricas e práticas, que envolvem a interação, o respeito e os vínculos estabelecidos na relação entre professor e aluno. A pesquisa de Gatti (2010) pontua que, muitas vezes, esse período em sala de aula tem se tornado o único com o qual o acadêmico consegue ter contato com as dificuldades que irá encontrar no futuro, podendo ser acometido por sentimentos de descoberta. Assim, o estágio no período de pré-inserção na carreira ganha destaque na formação, haja vista que mesmo de forma 22 reduzida “[...] o número de horas (...) nos cursos de Pedagogia visa proporcionar aos alunos um contato mais aprofundado com as redes de ensino básico” (GATTI, 2010, p. 1371). Tardif e Lessard (2005, p. 53), por outro lado, enriquecem a discussão ao acrescentarem que o estágio é importante por permitir ao aluno de graduação vivenciar situações da sala de aula “[...] trata-se também de uma experiência social, na medida em que o revés e o sucesso de uma ação são igualmente categorias sociais através das quais um grupo define uma ordem de valores e méritos atribuídos à ação”. Apesar da importância inquestionável desse componente curricular na formação inicial e para a atuação do futuro professor, a grande questão a ser superada é a atividade de observação a qual o estágio parece se restringir. Na análise feita por Gatti (2010, p.1371), as conclusões recaem na questão de que as atividades de observação não se constituem “[...] em práticas efetivas dos estudantes de Pedagogia nas escolas”. Alguns estudos – como os de Zeichner (1992), Pérez Gómez (1992), Marcelo García (1998) e Barbosa e Amaral (2009) – apontam problemas ao delegar as escolas à corresponsabilidade pela formação inicial, tendo em vista que não há um processo de seleção para saber em qual sala o aluno ficará, o que resulta na exposição desse sujeito (futuro professor) a práticas inadequadas. Em relação a essa constatação, Barbosa e Amaral (2009, p. 3683) destacam aspectos a serem superados, tais como “[...] a aceitação real do estagiário por parte dos professores regentes, que em alguns casos, consideram o estagiário um intruso [...]” ou ainda “[...] o tempo para preparar aulas e articulação do período de estágio com o trabalho (...), a falta de experiência em sala, articulação entre teoria e prática, apresentação didática [...]”, aspectos que também têm sido vistos como instrumentos capazes de dificultar a aprendizagem da docência. Saviani (2011, p. 16) destaca que a formação de professores se dá atrelada à concepção e às práticas do trabalho docente por parte dos formadores na universidade. Se a universidade não oferece suporte para que se tenha um desenvolvimento dos saberes adequados, “[...] os cursos de formação dos professores se desenvolverão em condições insatisfatórias, o que resultará numa formação igualmente insatisfatória” (SAVIANI, 2011, p. 16). Em síntese, como pudemos verificar, a fragmentada formação inicial pode acarretar em algumas dificuldades tanto no início da carreira quanto no ensino específico de conteúdos escolares. No próximo item da discussão teórica veremos algumas reflexões a respeito da construção da prática profissional durante os primeiros anos de docência. 23 2.2 O começo da carreira e os desafios dos professores iniciantes Em vista do perfil de formação oferecida nos cursos de licenciatura, conforme discutido no tópico anterior, temos um norte de quão complexo é atuar na Educação Básica, existindo uma multiplicidade de fatores que podem interferir no processo de ensino/aprendizagem de conceitos e na constituição dos saberes da docência pelos alunos/futuros professores. Nessa direção, estudar professores iniciantes e os desafios presentes na estruturação de suas práticas pedagógicas têm sido objeto de muitas pesquisas nos últimos anos. Ao caracterizarem essa fase da vida docente, esses trabalhos trazem contribuições teórico- metodológicas para compreensão de como a iniciação profissional pode ser menos “traumática” (VEENMAN, 1984; HUBERMAN, 1995; FREITAS, 2000; FRANCO, 2000; GATTI, 2010). A discussão que antecede esta seção evidenciou alguns desafios da formação inicial que podem refletir na constituição do ser professor nos primeiros anos da docência. O modelo formativo vigente no Brasil, principalmente em cursos de Pedagogia, objeto desta dissertação, e formação das docentes colaboradoras da pesquisa apresentam alguns distanciamentos da prática em relação às particularidades do conhecimento específico e curriculares do conteúdo5. Muito do que se aprende na profissão docente acaba por ser oriundo do saber da prática no contato com o contexto do trabalho pedagógico. Tardif (2007) expõe que os professores quando ingressam na carreira iniciam um processo de aprendizagem da docência via exploração, no tatear constante, o que resulta em saberes experienciais. Veenman (1984), ao retratar problemas perceptíveis por professores iniciantes, descreve que os aspectos mais agravantes na estruturação de uma prática são: a) a indisciplina; b) a falta de motivação dos alunos; c) a dificuldade em lidar com a individualidade de cada um; e d) a relação com a família. Em sua iniciação profissional, o professor sofre com a insegurança, buscando sempre construir sua identidade, a qual só é reconhecida pelos colegas de profissão com o tempo no magistério. A identidade profissional se constrói e continua em construção durante toda a vida do docente, pois cada um tem vivências únicas e intransferíveis, fato que pode proporcionar momentos formativos positivos ou negativos. Desse modo, compreendemos que as relações sociais fazem parte do processo de formação e, portanto, as práticas de colaboração e de compartilhamento das experiências parecem ser momentos constituintes da identidade e do fortalecimento da prática pedagógica, uma vez que a docência não se consolida de forma isolada em um contexto de individualidade. 5 No próximo capítulo teremos seções específicas para discutir as bases do conhecimento da docência a partir das categorias elencadas por Shulman (1986). 24 Em outras palavras, podemos considerar que a construção da identidade de um professor é um processo evolutivo que se produz no decorrer da vida, está sempre inacabado, proporciona um compromisso com seus alunos e o prazer em transferir conhecimento, ou seja, demonstra o interesse em permanecer em sala de aula. Todo esse sentimento permite que o professor em início de carreira, mesmo com dificuldade, suporte os primeiros anos da profissão que são cheios de incertezas e medos. Assim, os professores quando ingressam na carreira iniciam um processo de aprendizagem da docência via exploração constante, o que resulta em saberes experienciais (TARDIF, 2007). Por isso, faz-se importante que em todo o processo de formação seja proporcionado aos futuros professores reflexões sobre os conteúdos programados e os métodos de resolução de problemas, fazendo com que o futuro professor experiencie na prática o aprender e o ensinar. Com bases nessas reflexões, é possível inferir que o período de iniciação é dotado de características próprias que marcam a singularidade de cada professor, resultando em seu estilo de docência, ou seja, seu saber característico, que é resultado das suas experiências, com as quais aprende e exercita sua atividade. Ainda de acordo com Veenman (1984), são muitos os problemas que o professor encontra nessa fase de sua vida, dentre os quais o mais complexo refere-se ao “choque de realidade6”, sentimento decorrente das expectativas iniciais em relação à carreira e da realidade vivenciada nas escolas, ou seja, a diferença entre o que é visto durante a formação inicial e o que vivido efetivamente em sala de aula. Tardif (2002) denomina o mesmo sentimento como sendo “choque de transição”, que nada mais é do que a passagem do estado de estudante para o professor. É nesse momento que o egresso da licenciatura sente a dicotomia entre a formação inicial e o início de carreira. Acaba por compreender que o saber ofertado pela universidade, em muitos casos, parece não corresponder com as necessidades da realidade vivenciada no seu ofício. Ao ingressar na carreira, o iniciante busca o equilíbrio para que possa “sobreviver” ao período conturbado do exercício da docência. Souza (2009) considera que é nesse começo que o professor se vê à mercê da sorte, sem ter com quem compartilhar suas dificuldades. Em decorrência dessa realidade, a autora afirma ainda que, pelo fato de o professor recém-formado não ter experiência profissional, ele “[...] acaba apoiando sua prática em ações que vivenciou na época de estudante, reproduzindo a prática de seus antigos professores [...]” 6 Na literatura existem divergências com relação à denominação desse momento. Logo, em uma ampla leitura acerca da temática, observamos autores que o denominam como “choque com a realidade”, “choque de realidade”, “choque da realidade” e/ou “choque com o real”. 25 (SOUZA, 2009, p. 37). No caso do ensino de Matemática, essa reprodução acaba por contribuir para o fortalecimento de práticas profissionais que, de acordo com a literatura, contribuem para o abandono do ensino de Geometria pela falta de conhecimento específico do conteúdo. Nesse entendimento, o iniciante reforça modelos e práticas vivenciados por ele enquanto aluno da Educação Básica e, assim, os saberes mobilizados para a prática pedagógica reforçam um ensino pautado em técnicas e reproduções de estruturas que pouco contribuem para a formação do pensamento matemático e geométrico de seus alunos. A autora também enfatiza que se para o professor os primeiros são “[...] os piores anos, também [eles] constituem um momento profícuo para mudanças e desenvolvimento profissional [...]” (SOUZA, 2009, p.38). Esse início conflituoso pode instigar o professor estreiante a ter uma maior consciência de seus métodos de ensino, levando-o a investigar, por meio de suas vivências, inseguranças e experiências, seus acertos e erros, para saber como atuar, adotando esse momento como fundamental para a constituição de uma identidade profissional. Há duas vertentes que marcam o início da docência: primeiramente, há uma complexidade inicial que distancia a realidade vivida em sala de aula das teorias estudadas; em contra partida, há o entusiasmo em conhecer a melhor forma de lidar com os conteúdos programados que, por vezes, são dados como abstrusos, assim o “[...] turbilhão de sentimentos como angústia, insegurança, vivenciados pelo professor, dialeticamente [...]” passa a ser “[...] combustível para que este possa se reafirmar na profissão” (SOUZA, 2009, p. 39). Alguns estudos (LIMA, 1996; GUARNIERI, 1996) entram em consenso de que esse momento é dado como sofrido, pois além de vivenciar as dificuldades encontradas ao ensinar conteúdos que, por muitas vezes, são pouco compreendidos pelo próprio professor, ainda ele deve lidar com a organização das escolas e com o comportamento dos alunos. Embora o início da carreira docente seja difícil, essa é uma etapa importante para o professor principiante por se configurar como sendo um período de transição e construção da sua identidade com a profissão. Sobre o período do enquadramento que caracterizam o tempo considerado como início da docência, autores como Huberman (1995) caracterizam a docência em fases e estipulam o início da carreira como sendo de 1 a 3 anos de profissão. Já Cavaco (1995) afirma que a fase inicial vai até o quarto ano. Veenman (1984) conceitua esse período como os primeiros cinco anos de atividade e Tardif (2002) defende que esse período compreende até o sétimo ano. Nesta dissertação, concordando com Veenman (1984), entendemos a fase de iniciação como os primeiros cinco anos por acreditarmos que a confluência entre o período delimitado pelos autores especializados na área e as experiências profissionais dos professores serem mais 26 intensas e predispostas à mudança nesse período. Por conseguinte, as professoras participantes do grupo colaborativo que contribuíram com nossa pesquisa, encontram-se entre 1 e 5 anos de carreira. Para Huberman (1995), o início é muitas vezes considerado complexo e marcado por estágios que traduzem sentimentos de “sobrevivências” e “descobertas”. O primeiro sentimento (sobrevivências) faz com que o professor se questione se está sendo coerente com o que aprendeu durante a graduação, o que tem feito na sua prática, se está conseguindo ensinar os seus alunos. Já o segundo (descobertas) demonstra a vontade de permanecer na sala de aula “[...] traduz o entusiasmo inicial, a experimentação, a exaltação por estar, finalmente, em situação de responsabilidade (ter a sua sala de aula, os seus planos, o seu programa) [...]” (HUBERMAN, 1995, p. 39). Esses dois sentimentos permitem que o professor iniciante suporte os primeiros anos da profissão que estão repletos de incertezas. Quando o professor ingressa na carreira está cheio de teorias e ideias para corroborar, porém, a instituição tem parâmetros previamente impostos que limita esse profissional, conforme elucida Huberman (1995, p. 39): [...] a exploração é limitada por parâmetros impostos pela instituição: as pessoas têm oportunidade de “explorar” poucas turmas para além das suas, poucos estabelecimentos, para além do seu, poucos papéis para além do de responsável pelas suas turmas. No caso de um compromisso provisório, à partida, esta fase pode prolongar-se, uma vez que as pessoas irão medir bem as consequências de um comprometimento definitivo com uma profissão que terão procurado com algum desagrado ou na sequência de grandes hesitações. A partir dessa concepção, é possível o professor recém-formado compreender a realidade encontrada em sala de aula e dos alunos. Segundo Huberman (1995), é na “descoberta” que o professor toma para si o “comprometimento definitivo” (p.39), ou seja, o principiante acaba por se sentir mais seguro das ações de sua prática, já que, após a “sobrevivência”, ele finalmente tem um reconhecimento como docente e acaba por se sentir mais livre para traçar novos caminhos com maior autonomia, sem ter medo do julgamento dos colegas de profissão. Pereira (2015, p. 181) destaca que: O professor iniciante, ao entrar na carreira docente, está impregnado de perspectivas de mudanças e transformações na escola. O que ocorre, muitas vezes, é que ele acaba encontrando uma instituição escolar fechada, burocrática em relação às suas regras e orientações; e as perspectivas iniciais vão cedendo lugar, aos poucos, à desilusão com a realidade escolar. A entrada na carreira docente passa a constituir-se, para alguns professores, como um momento traumático. 27 Marcelo García (2010) enriquece a discussão ao esclarecer que o conhecimento do conteúdo envolve muito além dos processos metodológicos, ou seja, engloba o conhecimento específico do conteúdo a ser ensinado (SHULMAN, 1987) e a articulação entre o “como” e “o que” ensinar aos alunos precisa ser a base da aprendizagem nos primeiros anos da docência. Essa situação demonstra que o docente iniciante necessita tanto do apoio institucional quanto dos colegas com mais experiência para entender a dinâmica da escola e aprender a ensinar. Contudo, isso nem sempre é observado. Temos percebido que a prática escolar vem demonstrando, em seus resultados e experiências, que o novato na docência é, muitas vezes, testado como profissional pela instituição e avaliado pelos professores mais antigos, o que faz com que a entrada na carreira se torne um momento marcado por solidão e isolamento, sentimentos esses que são favorecidos pela própria forma da organização escolar (TARDIF, 2002). A configuração dessa realidade se agrava ainda mais quando são atribuídas para os iniciantes as turmas mais difíceis e colocam no professor novato toda a responsabilidade pelos índices de desempenho escolar de seus alunos (MARIANO, 2012). Tardif e Raymond (2000, p. 226) apontam que as bases dos saberes da docência constituem-se nos primeiros anos e “[...] o início da carreira constitui também uma fase crítica em relação às experiências anteriores e aos reajustes a serem feitos em função das realidades do trabalho”. Esse fato indica a importância de encarar essa fase como um projeto de formação coletivo que deveria ter mais atenção e destaque dentro das instituições escolares e de implementação de políticas públicas que busquem promover a inserção e a permanência na carreira. O início da carreira traz para a sala de aula as dificuldades que a formação inicial não deu conta de suprir e é nesse instante que o professor vai constituindo sua identidade. De acordo com Fiorentini (2001, p. 27), “[...] os saberes da atividade profissional, entretanto, adquirem sentido no próprio contexto da prática docente [...]”. Por esse motivo é de suma importância o professor iniciante buscar meios de fazer a articulação entre a teoria e a prática, pois dessa forma conseguirá experiências práticas com a intenção de propor direcionamentos sobre o aprender a ensinar. Desse modo, nesse período encontramos um momento propício para a implementação de práticas colaborativas que busquem direcionar e contribuir com o desenvolvimento profissional, o que se enquadra na proposta de investigação que desenvolvemos e que será relatada mais a frente neste trabalho. Mariano (2012, p. 90) constata que é no momento do início da carreira “[...] que o professor ainda não possui experiência, que lhe são atribuídas as turmas mais difíceis [...]”, bem como os conteúdos que os demais docentes têm mais dificuldade (Matemática), forçando-o a 28 “[...] lidar com situações constantemente adversas e que exigem maior complexidade, tanto no que se refere à indisciplina quanto às estratégias didáticas”. Diante do desafio de ter que lidar com as classes mais difíceis, o professor com menos experiência acaba ficando em um estado de desequilíbrio profissional, tendo sentimentos como insegurança, sobrevivência, adaptações, conformismo, alienação. Também ao estudar essa fase da vida docente, Cavaco (1995, p. 175) advoga que: Trata-se de um período de tensões, de desequilíbrios e de reorganizações frequentes de ajustamentos progressivos das expectativas e aspirações ocupacionais ao universo profissional. É ainda, muitas vezes, uma época de desenvolvimento pessoal e social acelerado, mas que passa, no docente, por uma fase de acentuado egocentrismo [...]. Huberman (1995) afirma ainda que o início da carreira pode ser fácil ou difícil, dependendo de como o professor irá enfrentar o isolamento encontrado em sala de aula, bem como lidará com a dificuldade de ensinar o que aprendeu, ou seja, a adaptação da transição de aluno para professor. Embora os professores tenham essas dificuldades, ainda assim, caracterizam como mais difícil a questão de lidar com a aprendizagem dos alunos, conforme as conclusões da pesquisa de Lima et. al. (2007). Silveira (2002), em sua dissertação de mestrado, ao estudar o sucesso escolar por meio da vivência de uma professora em seu primeiro ano de atuação na escola pública, trabalhou com sua própria história de vida profissional quando na condição de iniciante atuando em uma classe de 2ª série do Ensino Fundamental da rede municipal de São Carlos – SP. Na experiência de narrar suas dificuldades, por meio da escrita de um diário de bordo, a autora afirma que o início da docência é avassalador, pois é necessário lidar com as adversidades da sala de aula, uma vez que, em suas concepções, ela acreditava na superação do fracasso escolar de seus alunos. Na sua conclusão da dissertação, ela afirma que foi possível perceber, apesar de todo insucesso escolar, a possibilidade de obter resultados positivos, de gostar do que está fazendo e de ter vivências durante os primeiros anos escolares que fazem com o que o professor suporte/sobreviva ao início da docência. Muitas vezes a professora precisa acolher o aluno e conhecer sua vivência para ter comprometimento com a escola, conclui Silveira (2002). Ademais, com base nas considerações apresentadas nesta seção, acreditamos que esses sentimentos constituem bases para que o futuro docente construa sua própria identidade e que é no meio das incertezas, provocadas pela “sobrevivência”, que o professor vai se assegurando de seu fazer, ao passar por desafios iniciais que, quando superados, resultam no sentimento de “descoberta” com o tempo. 29 2.3 A Matemática em cursos de Pedagogia As primeiras experiências no ambiente escolar resultam em “[...] um período muito importante da história profissional do professor, determinando inclusive seu futuro e sua relação com o trabalho” (TARDIF, 2002, p.84). De forma geral, o início da docência é marcado por algumas crises conforme discutimos anteriormente e, especificamente, em relação à Matemática, no curso de Pedagogia, objeto de reflexão deste tópico e campo de atuação profissional das professoras participantes da pesquisa, os aspectos de suas propriedades vêm sendo apresentados de maneira fragmentada e superficial, centrando-se mais na perspectiva de metodologias de ensino, renegando, assim, o campo conceitual dos conteúdos matemáticos para segundo plano da formação (CURI, 2004). Shulman (1992) releva que na década de 20, os livros para formação de professores apresentavam diversos temas do currículo escolar e que isso foi desaparecendo nos cursos e deram origem, a partir dos anos 30, a livros que enfocavam tópicos mais gerais como, por exemplo, os de memorização, aprendizagem, motivação e desenvolvimento. Tal fato demonstra que ainda hoje esses conceitos estão presentes no curso de formação de professores e, com isso, foi sendo deixado de lado o objeto de ensino e a ênfase dada passou a se configurar numa perspectiva mais genérica ligada as metodologias de “como ensinar”. Nesse perfil de formação, o professor compreende questões sobre como se deve ensinar e passar a conhecer alguns recursos destinados à abordagem dos conceitos, mas não se apropria de aspectos conceituais do conteúdo em si. Isso muitas vezes faz com que ele reproduza a forma com a qual seus professores o ensinavam quando ele era aluno na escola básica. Seguindo esse modelo, ele ensina como aprendeu e isso poderá acarretar em inúmeros equívocos de natureza tanto didática quanto conceitual, como também a possível transferência de cargas negativas atreladas às suas crenças, concepções e atitudes em relação à Matemática (MORAES; PIROLA, 2015). Pirola, Sander e Tortora (2013, p. 25) afirmam que “[...] professores com atitudes negativas, oriundas de experiências frustrantes com relação à Matemática, podem ter um comportamento [evasivo], o que significa não ensinar (ou ensinar de forma mecanizada) determinados conteúdos matemáticos.”. Sem dúvida, essa postura acaba tendo relação com a profissão que o aluno escolherá, ou seja, pode ser que ele acabe “fugindo” da área de Exatas por não ter tido uma boa experiência na escola. Almeida e Lima (2012, p. 445) consideram que o curso de Pedagogia é “dono” de um amplo currículo que abrange áreas “[...] relacionadas ao processo de aprendizagem dos alunos 30 das séries iniciais, como é o caso da Matemática, História, Geografia, Português, entre outras”. Por ser um curso tão abrangente, o ensino acaba sendo voltado para processos metodológicos, conforme apontam Nacarato, Mengali e Passos (2009) e, por ter essa característica, os acadêmicos do curso de licenciatura em Pedagogia acabam não sabendo como lidar com conhecimentos específicos do conteúdo dessas áreas, dentre eles o da Matemática. Sobre essa questão, Gomes (2002, p. 364) afirma que: [...] a aprendizagem matemática ainda se constitui em um grande problema, tanto para crianças quanto para os professores que estão sendo formados nos cursos de Pedagogia. Isso justifica, muitas vezes, que a própria opção pelo curso seja determinada pela inexistência de matemática em sua grade curricular. Assim, quando é observado pelos acadêmicos de Pedagogia que terão de lecionar conteúdos da Matemática, é possível verificar que muitos não sabem como lidar com esses conteúdos em sala de aula, uma vez que irão concluir os “[...] cursos de formação sem conhecimentos de conteúdos matemáticos com os quais irão trabalhar [...]” (CURI 2004, p. 76). Isso ocorre por haver a concepção de que o professor polivalente não necessariamente precisa “saber Matemática”, basta que saiba como ensiná-la (CURI, 2004). Para entender melhor essa defasagem conceitual, Curi (2004, p. 08) buscou verificar, na sua pesquisa de doutorado, como se organizam as disciplinas de Matemática em cursos de Pedagogia. Ela constatou que: [...] a organização da disciplina de Metodologia do Ensino de Matemática, em algumas instituições, era unificada a outra referente aos conteúdos matemáticos. Na maioria, porém, a disciplina tinha caráter mais metodológico, com predominância de temas de caráter mais geral do ensino de Matemática em detrimento de discussões metodológicas sobre temas matemáticos previstos para serem desenvolvidos nos anos iniciais do ensino fundamental. Além disso, a autora constata que as disciplinas relacionadas ao ensino dessa área nos cursos analisados têm uma carga horária que varia entre 36 e 120 horas/aulas e apresentam nas ementas das disciplinas referenciais sobre jogos e brincadeiras, mostrando o empobrecimento da formação matemática na Pedagogia, uma vez que, as discussões declaradas nos documentos referiram-se a procedimentos mais didáticos sem uma relação com o conteúdo específico. A pesquisa de Gatti e Nunes (2009) também evidencia a fragmentação do currículo de formação. Ao pesquisarem 71 matrizes curriculares, verificaram que ao todo constam 3.107 disciplinas referentes aos conteúdos de Alfabetização, Português, Matemática, História, 31 Geografia, Ciências e Educação Física, sendo eles explorados apenas como disciplinas de metodologia e/ou práticas de ensino. As autoras sinalizam que os conhecimentos e saberes específicos dessas áreas do conhecimento escolar não têm sido preocupação central dos programas, o que demonstra uma lacuna que pode contribuir para problemas na fase de iniciação da docência. Como, por exemplo, um professor poderá ensinar Geometria sem saber conceitualmente o tema? Bednarchuk (2012) evidencia que o curso de Pedagogia vem sofrendo “duras” críticas a respeito da formação de professores que ensinam Matemática. A justificativa se dá pelo fato de que a “[...] carga horária mínima para as disciplinas que tratam da formação matemática, as ementas das mesmas se apresentam esvaziadas de aspectos conceituais e conteúdos matemáticos” (p. 38). Almeida e Lima (2012) esclarecem que na formação inicial de professores que ensinam Matemática é importante o domínio conceitual porque é por meio do conteúdo específico que o docente se instrumentaliza para o desenvolvimento tanto de seu trabalho quanto de habilidades/competências ligadas ao conhecimento matemático, requeridas pelos alunos e pela sociedade atual. Na visão das autoras, é com base na compreensão conceitual que o professor desenvolve melhor suas competências pedagógicas ao abordar os conceitos em sala de aula. Nessa perspectiva, é necessário considerar também “por que” e “para quem” ensinar. Ao defender a importância da formação no conteúdo específico (o que ensinar) e a sua íntima articulação com o conteúdo pedagógico (como ensinar), consideramos que a licenciatura não pode abrir mão de discutir por que ensinar e para quem ensinar. Somente articulando esses elementos (o que ensinar, como ensinar, por que ensinar e para quem ensinar), a licenciatura dará, ao futuro professor, as condições mínimas necessárias para que ele desenvolva um trabalho com os saberes matemáticos que esteja em sintonia com as novas demandas que a sociedade vem exigindo da educação escolar (ALMEIDA; LIMA, 2012, p. 457). É importante ressaltar que o conteúdo específico é a base para qualquer professor, pois é necessário se ter o domínio conceitual do conteúdo a ser ensinado. O pressuposto basilar de uma ação docente é compreender para si o que se propõe que o outro venha a aprender. Por esse motivo, torna-se importante pensar na assertiva de Almeida e Lima (2012) quando mencionam a necessária articulação entre as especificidades do conteúdo e os princípios pedagógicos para que se responda o que e para quem se ensina, uma vez que, dependendo do contexto, a prática pedagógica e a abordagem do conteúdo exigirão recursos e saberes diferentes, pois ensinar, por exemplo, Geometria para turmas de Educação Infantil é diferente de abordar essa área nos anos iniciais do Ensino Fundamental. 32 Ciríaco e Morelatti (2016, p. 273) complementam essa necessidade de articulação dos conhecimentos ao evidenciarem que muitas das dificuldades decorrentes da Matemática escolar parecem residir em experiências e marcas negativas dos professores que estão arraigadas “[...] por um processo de escolarização mecanizado do ensino, baseado em cópia, reprodução de regras e procedimentos matemáticos que pouco valorizam a investigação, problematização e comunicação nas aulas”. Desse modo, Gomes (2002) aponta que na maioria dos cursos que formam professores para as séries iniciais torna-se evidente que os alunos sentem “fobia” em ensinar conteúdos matemáticos. Nesse sentido, o grande desafio do professor formador está em desmitificar as crenças do processo de escolarização tradicional e auxiliar os futuros professores no sentido de mudança de suas atitudes perante a disciplina, tarefa complexa justamente pela pouca carga horária destinada à Matemática nos currículos da Pedagogia. Faz-se necessário que os cursos de formação inicial ofereçam aos futuros professores oportunidades de trabalho com o conhecimento matemático de forma a não privilegiar o domínio das técnicas, mas, sobretudo, a compreensão dos conceitos e propriedades matemáticas subjacentes aos conteúdos que terão de um dia ensinar. E isso é importante para o aluno que vivencia a Matemática compreender que ela é dotada de significado, tomando assim uma consistência teórica sobre os conteúdos. Para Nacarato, Passos e Carvalho (2004), um dos maiores desafios dos professores que formam professores é provocar a consciência dos alunos para que eles compreendam que o ensino de Matemática foi fragmentado e que eles reflitam e (re)signifiquem o que aprenderam. Para isso, é necessário que os cursos envolvam de forma articulada os conteúdos específicos com as teorias metodológicas de ensino, pois isso ajudará o aluno de Pedagogia a superar o sentimento de impotência em relação à Matemática, tendo em vista que muitas vezes o processo de formação da Educação Básica foi marcado por fracasso no que diz respeito a essa disciplina. As autoras enfatizam que um ensino sem significado poderá gerar uma prática pedagógica embasada em senso comum, deixando de lado aspectos importantes da Educação Matemática. Gomes (2006, p. 53), em seus estudos sobre os obstáculos epistemológicos em relação à Matemática, aponta que é necessário modificar a forma como os estudantes se relacionam com essa disciplina. Em outras palavras: “[...] o ensino deve voltar-se para a construção de conhecimento de modo que as crianças sejam encorajadas a solucionar diferentes situações- problemas [...]”. Mas, antes que isso aconteça com o aluno, é necessário oportunizar ao futuro professor oportunidades de aprender Matemática com base nesses pressupostos para que possa futuramente implementar em sua sala de aula no sentido de chegar um dia a fazer o mesmo. 33 Para a autora, é essencial que o aluno que irá se formar professor compreenda aspectos conceituais da Matemática no decorrer de sua formação inicial. Entretanto, isso pouco tem acontecido. Pavanello (1993, p. 8) afirma que o “[...] ensino da matemática na escola primária é essencialmente utilitário: busca-se o domínio das técnicas operatórias necessárias à vida prática e às atividades comerciais. Com a mesma orientação trabalham-se algumas noções de geometria”. Entendemos, assim, que a insuficiência de fundamentação em Geometria nas séries iniciais se alonga por todo Ensino Médio e torna-se ainda mais evidente nos cursos de formação de professores que migram para o campo da Pedagogia por acreditarem que não precisarão trabalhar com a área de Exatas. Tal fato parece explicar, em parte, que uma significativa parcela dos problemas relativos ao ensino e aprendizagem da Matemática se refere ao processo de formação que vem apresentando falhas e lacunas em sua realização (BRASIL, 1997). Curi (2004, p. 162) corrobora essa constatação ao afirma que “[...] quando professores têm pouco conhecimento dos conteúdos que devem ensinar, despontam-se dificuldades para realizar situações didáticas, eles evitam ensinar temas que não dominam, mostram insegurança e falta de confiança [...]”. Nesse caso, se o curso de Pedagogia não oportunizou condições sólidas para o ensino da Matemática, o professor tende a reproduzir o que está no livro ditádico sem uma reflexão sistemática sobre a relação entre o currículo declarado e o praticado no contexto de sua atuação e, assim, acaba por “excluir” o direito de aprendizagem da Geometria pelas crianças, uma vez que, a falta de domínio conceitual deste campo faz com o que ele, inconscientemente, abanone/esqueça essa área do currículo matemático (PAVANELLO, 2002). Os resultados da pesquisa de Curi (2004) reforçam a tese de que os défits do processo de ensino/aprendizagem matemática na escola podem estar fortemente atrelados à formação inicial para o ensino desses conteúdos. A pesquisadora evidenciou que quando o professor trabalhava Geometria em cursos de Pedagogia o fazia pelo método de nomear figuras de modo que os alunos as decorassem. Ou seja: embora o conteúdo estivesse inserido em “Espaço e forma”, seu ensino era centrado nas classificações orais de formas geométricas e as demais propriedades. Assim, por exemplo, as explorações espaciais e a localização de objetos no espaço pouco ou nunca eram trabalhados. Nos cursos analisados pela pesquisadora, os conteúdos mais frequentes em “Conteúdos e Metodologia do Ensino de Matemática” foram “[...] a construção do número e as quatro operações com números naturais e racionais” (CURI, 2004, p. 68). Percebemos que além dos cursos se centrarem mais nos processos metodológicos, na maioria dos casos, temos observado a inexistência da Geometria como objeto da formação dos futuros professores. 34 Em suma, tanto a Matemática quanto (e em especial) a Geometria acabam sendo “abandonadas” na formação do professor. Para entendermos melhor esse abandono e como os professores lidam com os conhecimentos geométricos, no capítulo a seguir enfocaremos as bases de conhecimento denominadas por Lee Shulman. 35 3 A GEOMETRIA NA EDUCAÇÃO BÁSICA E AS BASES DO CONHECIMENTO PARA O ENSINO O objetivo deste capítulo é apresentar construtos teóricos acerca da presença da Geometria na Educação Básica, especificamente nos primeiros anos escolares (ciclo da alfabetização). Para tanto, estruturamos um referencial teórico que busca articular as recomendações do bloco de conteúdo “Espaço e Forma” com as bases de conhecimento para o ensino de Lee Shulman: a) conhecimento pedagógico de conteúdo; b) conhecimento específico de conteúdo e; c) conhecimento curricular de conteúdo. Além disso, apresenta-se um levantamento dos artigos publicados nas duas últimas edições do Encontro Nacional de Educação Matemática – ENEM (2013 e 2016) – e do Simpósio Internacional de Pesquisa em Educação Matemática – SIPEM (2012 e 2015). 3.1 Marcas e ausências do ensino de Geometria na Educação Básica Se a Matemática vem sendo apresentada nos cursos de Pedagogia de modo fragmentado, conforme demonstrado o capítulo anterior, podemos afirmar que a Geometria tem sido, por consequência, esquecida quando os professores lecionam a disciplina para alunos nos anos iniciais. Esse esquecimento é fruto do “abandono” dessa área do conhecimento (PAVANELLO, 1989). Na pesquisa de mestrado de Regina Pavanello, ainda na década de 80, já se alertava para algumas causas e consequências do esquecimento da Geometria na escola. A autora, em um estudo histórico, a partir da análise de movimentos da Educação Matemática no Brasil e no mundo, afirma que “[...] com o ensino em geral torna evidente que a luta pelo conhecimento pode ser vista como uma luta pelo poder. As decisões relativas ao ensino não podem, pois, serem vistas como desvinculadas do contexto histórico, político e social” (PAVANELLO, 1989, p. 06). Um fator relevante que contribuiu para o afastamento da área da Geometria foi o Movimento da Matemática Moderna que gerou mudanças nos currículos. Para que possamos entender melhor esse abandono é preciso saber que a Matemática era dividida em três áreas específicas: Aritmética, Álgebra e Geometria. Foi a partir de 1930, com a reforma de Francisco Campos, que essas áreas foram unificadas. Assim, as escolas do século XX passaram a negligenciar grande parte dos conhecimentos geométricos, dando ênfase a Aritmética e Álgebra 36 (ZAMBON, 2010), o que colaborou para que os conteúdos mais complexos fossem deixados de lado naquele momento. De acordo com Pavanello (1993), foi com o Movimento da Matemática Moderna, em meados da década de 60, que a Geometria passou a ser ensinada com rigidez e formalidade, dado que, mais tarde, contribuiu para que se assumisse para a Geometria uma posição secundária na escola. A relutância dos professores para ensinar esse conteúdo também foi um fator que contribuiu efetivamente para o menor rendimento dos alunos em Matemática, pois a Lei de Diretrizes e Bases do Ensino de 1º e 2º Graus, 5692/71 facilitou o abandono da Geometria ao permitir que cada professor elaborasse seu plano de ensino a partir de suas concepções (PAVANELLO, 1993). [...] a idéia central da Matemática Moderna consistia em trabalhar a matemática do ponto de vista de estruturas algébricas com a utilização da linguagem simbólica da teoria dos conjuntos. Sob esta orientação, não só se enfatizava o ensino da álgebra, como se inviabilizava o da Geometria da forma como este era feito tradicionalmente (PAVANELLO, 1989, p. 103). Portanto, ao longo do tempo, podemos perceber que houve uma defasagem no ensino dessa área, justamente por ficar a cargo dos professores decidirem o que iriam ensinar. Por se tratar de um campo do conhecimento matemático que envolve um enfoque para além de aspectos estruturais e da linguagem simbólica, a Geometria parece ter ficado exposta ao esquecimento e os elementos constituintes de sua sistematização a partir de noções primitivas, elaboradas pela experiência, parecem não mais fazer parte do repertório de sua abordagem conceitual. Ademais, pode-se inferir que grande parte dos problemas relacionados a esse abandono decorre de resquícios do Movimento da Matemática Moderna em nosso país e no enfoque dado a simbologia matemática, características evidentes e possíveis de representações no campo da Aritmética e da Álgebra. Contudo, no caso da Geometria, a orientação dada naquela época ocorria “[...] sob o enfoque das transformações, assunto não dominado pela grande maioria dos professores secundários, acaba por fazer com que muitos deles deixem de ensinar geometria sob qualquer abordagem, passando a trabalhar predominante a álgebra [...]” (PAVANELLO, 1989, p. 164-165). Ainda para Pavanello (1989, p. 165), a “[...] Lei 5692/71, por sua vez, facilita este procedimento ao permitir que cada professor adote seu próprio programa “de acordo com as necessidades da clientela [...]”. Nessa perspectiva, muitos dos alunos do 1º grau acabam por aprender pouco sobre Geometria, uma vez que os “[...] professores das quatro séries iniciais limitam-se a trabalhar somente a aritmética – e as noções de conjunto” (PAVANELLO, 1989, p. 165). 37 Segundo Passos (2000, p. 58) “A Geometria passou a desempenhar, após a reforma modernista a função de subsidiar a construção de conceitos e a visualização de propriedades aritméticas e algébricas”. Assim, só era ensinada, de fato, no Ensino Médio, quando era solicitado. Para além das questões históricas, que em certa medida explicam o percurso que resultou na forma como as relações geométricas são ou não exploradas no ambiente educacional brasileiro, outro elemento do qual não podemos fugir é a questão da formação docente, conforme destacamos no capítulo anterior. Se o professor não compreende aspectos conceituais da área, tão pouco será capaz de abordá-los com seus alunos e/ou quando o fizer será de forma muito limitada, o que comprometerá o desenvolvimento da construção do pensamento geométrico desde as primeiras vivências infantis com essas noções. Pavanello (2001) destaca que alguns professores chegam a ter aversão à Geometria, além de demonstrarem insegurança ao ensinar os conteúdos relacionados a ela. Segundo a autora, as maiores dificuldades estão ligadas à identificação, nomeação, definição de figuras e também a representação do plano espacial, compreender essas propriedades é de suma importância “[...] quando se considera a repercussão que isso pode ter no processo de ensino/aprendizagem a que serão submetidas as crianças que estão começando um trabalho mais sistematizado com a Geometria” (PAVANELLO, 2001, p.181). Almouloud (2004, p. 99) aponta que a formação contribui para o agravamento de tais dificuldades ao se organizar de maneira insuficiente. A licenciatura, explica,: [...] é muito precária quando se trata de geometria, pois os cursos de formação inicial não contribuem para que façam uma reflexão mais profunda a respeito do ensino e da aprendizagem dessa área da matemática. Por sua vez, a formação continuada não atende ainda aos objetivos esperados em relação à geometria. Assim, a maioria dos professores do ensino fundamental e do ensino médio não está preparada para trabalhar segundo as recomendações e orientações didáticas e pedagógicas dos PCNs. Pavanello (1993) enfatiza que o abandono da Geometria pode estar prejudicando a formação dos alunos da Educação Básica, porque interfere diretamente no pensamento necessário para resolução de problemas matemáticos. Assim, esses alunos, quando egressos do Ensino Médio, estão se inserindo no curso de licenciatura em Pedagogia e são sujeitos a quem foram negligenciados os conteúdos geométricos. Marquesin e Nacarato (2011, p. 104) enriquecem nosso entendimento ao caracterizar que outro fator contribuinte para esse abandono é a “[...] não vivência com esse campo do saber, 38 na trajetória estudantil e profissional dessas docentes, determina que ele fique ausente do currículo ou, quando trabalhado, que o seja de forma bastante reducionista [...]”, ou seja, o conhecimento acaba se minimizando ao reconhecimento de figuras planas, sem um objetivo específico para a realização de sua abordagem conceitual. Seguindo essa linha de raciocínio, podemos inferir que é constituído um ciclo vicioso, no qual o aluno não aprende conceitos geométricos em sala de aula, por causa da defasagens tanto do professor quanto do currículo (uma vez que, geralmente, esses conteúdos são deixados para o final do ano letivo e a “falta de tempo” acaba se tornando uma desculpa para a não abordagem conceitual). Esses mesmos alunos passam pela formação superior em cursos de licenciatura e irão se tornar professores carregando marcas negativas em que a Geometria é praticamente ausente e acabam por desenvolverem práticas pedagógicas pouco fundamentadas em termos do conhecimento matemático. Reportando nossas reflexões aos objetivos deste trabalho de pesquisa, podemos identificar que se torna emergente pensar em ações que busquem contribuir para o desenvolvimento da organização do trabalho com a Matemática nos anos iniciais, em especial com a Geometria. Em síntese, os reflexos tanto da Educação Básica quanto dos cursos de Pedagogia trazem consequências para a constituição da docência em Geometria nos primeiros anos da carreira. Uma delas reside na quase inexistência de atividades exploratórias que promovam a valorização das experiências infantis na construção de relações geométricas. É comum os professores ainda enfatizarem mais conteúdos ligados ao bloco “Números e Operações” em detrimento das demais noções matemáticas que precisam ser desenvolvidas de forma igualitária nos anos iniciais garantindo direitos de aprendizagem dos alunos. Atualmente, pode-se recorrer a diferentes tendências metodológicas para o aprender/ensinar Geometria como, por exemplo, a Resolução de Problemas, a História da Matemática, as tecnologias, materiais concretos, jogos, Modelagem Matemática, entre outros. A importância do ensino de Geometria e do resgate da necessidade de ensiná-la na escola é inquestionável, haja vista que favorece o desenvolvimento de habilidades na resolução de problemas, instiga a prática/percepção investigativa, auxilia na capacidade de síntese e análise, na argumentação e iniciativa, pontos primordiais para a formação do aluno crítico perante a sociedade em que vivemos. 39 3.2 Ensinar e aprender Geometria nos anos iniciais: o que dizem os trabalhos publicados no ENEM e SIPEM? Nesta seção apresenta-se um levantamento dos trabalhos publicados em relação à Geometria. Para esse fim, selecionamos dois eventos que produzem significativos avanços de pesquisas na área da Educação Matemática: Encontro Nacional de Educação Matemática (ENEM) e Simpósio Internacional de Pesquisa em Educação Matemática (SIPEM). Ao delimitarmos os eventos, em suas duas últimas edições, ocorreu a leitura de todos os resumos dos artigos que se encaixaram na palavra-chave “Geometria”. Após o mapeamento, foi elaborado um quadro classificando-os por segmentos de ensino: a) Geometria na Educação Infantil; b) Geometria nos anos iniciais; c) Geometria nos anos finais; d) Geometria no Ensino Médio; e) Geometria no Ensino Superior; e f) Revisão teórica acerca da Geometria. QUADRO 01: Tendência investigativa dos trabalhos publicados no ENEM e SIPEM por seguimento de ensino. EVENTO / ANO Trabalhos de Geometria Educação Infantil Anos Iniciais Anos Finais Ensino Médio Ensino Superior Revisão Teórica Número de trabalhos publicados XI ENEM – 2013 2 4 32 24 57 10 XII ENEM – 2016 1 14 27 26 45 19 V SIPEM – 2012 - 2 1 - 3 - VI SIPEM – 2015 - 2 1 2 4 3 Subtotal por seguimento de ensino 3 22 61 52 109 32 TOTAL GERAL DE TRABALHOS PUBLICADOS 279 Fonte: A autora. Na Educação Infantil a tendência dos estudos recai sobre a formação de professores (1) e ao desenvolvimento do pensamento geométrico na infância (2). Já os trabalhos dos anos iniciais, que serão destacados mais à frente de forma detalhada, apontam perspectivas da abordagem da Geometria a partir de recursos metodológicos que contribuam à aprendizagem matemática de forma mais exploratória. 40 Em relação aos anos finais do Ensino Fundamental, a maioria dos trabalhos versa sobre aprender geometria por meio de softwares educacionais (16); utilizando materiais manipuláveis para desenvolver raciocínio geométrico dos alunos (18); práticas com a inclusão de deficientes visuais e/ou surdos (4); Etnomatemática (2); pensamento algébrico a partir da exploração da Geometria(3); intervenções curriculares (2); ações do PIBID desenvolvidas com os alunos (7); utilização de meios recicláveis (1); Geometria fractal (1); revistas em quadrinhos (1); modelagem matemática (3); Geometria euclidiana e a análise dos aspectos linguísticos nas aulas (3). No Ensino Médio tratam de assuntos como, por exemplo, materiais manipuláveis (12); ações do PIBID (3); Resolução de Problemas (3); uso de software/tecnologias, destaques para a exploração do GeoGebra (18); Geometria não euclidiana (1); Geometria plana e espacial (7); Geometria analítica (2); construção do pensamento geométrico (2); Etnomatemática (2) e a Modelagem Matemática (2). Os trabalhos do Ensino Superior versam destacam pesquisas de formação de futuros professores e professores para o uso de softwares/tecnologias (30); oficinas e minicursos por meio de materiais manipuláveis (29); Geometria euclidiana e não-euclidiana para docentes e discentes (5); Geometria plana e espacial (5); aprendizagem na formação inicial de professores (16) ; Resolução de Problemas (2); atitudes e concepções de professores ( 8); Geometria analítica (10) e Etnomatemática (4). As revisões bibliográficas abordaram discussões que contribuem para o avanço do campo teórico em: reformas curriculares; adoção do livro didático a partir dos dados históricos (32). Sobre os anos iniciais do Ensino Fundamental, dentre os 22 trabalhos, categorizamos estes a partir das tendências em Educação Matemática que, de acordo com Bittar e Freitas (2005, p. 22), são “[...] propostas inovadoras que valorizam o trabalho com campos de significado, tais como: problematização contextualizada, evolução histórica de conceitos, abordagem interdisciplinar, articulação de conteúdos, uso de novas tecnologias [...]”. Neste contexto, foi elaborado um quadro como forma de ilustrar a disposição dos artigos em relação às tendências recorridas para o ensino de Geometria, como podemos verificar: 41 QUADRO 02: Categorização das pesquisas dos anos inicias a partir das tendências em Educação Matemática apresentadas no ENEM E SIPEM7 EVENTO / ANO Resolução de problemas Material concreto/Jogos História da Matemática Tecnologia Número de trabalhos publicados nas edições XI ENEM – 2013 1 1 - 2 XII ENEM – 2016 2 11 - 2 V SIPEM – 2012 - - - - VI SIPEM – 2015 1 1 - 1 Subtotal por tendência 4 13 0 5 TOTAL GERAL 22 artigos Fonte: A autora. Analisando os dados do quadro, é possível inferir que nos eventos supracitados nenhum trabalho fez uma abordagem à “História da Matemática” com destaques para a Geometria. Esse dado sinaliza para uma necessária articulação com essa tendência, haja vista que podemos, com base nela, compreender determinadas aplicações geométricas e a origem deste campo enquanto atividade humana de demarcação de terras, por exemplo. Na Resolução de Problemas, foi possível encontrar textos que versam sobre o desenvolvimento o pensamento geométrico (CURI, 2016; CÂNDIDO, 2013), cultura da sala de aula para o ensino de Geometria (CUSTÓDIO; NACARATO, 2016), desenvolvimento conceitual de figuras planas (TORTORA; PIROLA, 2016), todos com o objetivo de problematização para que o aluno, por meio de tentativas, confirme ou não seu pensamento. Em relação ao uso do “Material Concreto”, os textos versam acerca de: a) desenvolvimento do pensamento geométrico (SILVA; BARBOSA, 2016; FERNANDES; HEALY; SERINO, 2012; CEDRO; SILVA; COUTINHO; SOUSA, 2016 e NASCIMENTO, 2016); b) pouca atratividade que a Geometria tem sem o uso do material manipulável; e à aprendizagem por meio da manipulação dos objetos (SILVA; COSTA, 2016; LIMA; ARAÚJO; SALES, 2016; FREITAS; ARNALDI, 2016 e SOUZA; ROSSI, 2016). Nos trabalhos em que os autores recorreram à “Tecnologia”, em Vieira e Costa (2015) e Vieira e Costa (2016) foi possível identificar que estes trazem as vivências de três professoras 7 A categorização apresentada foi realizada com base nos pressupostos de Bittar e Freitas (2005). 42 que ensinam Geometria, a partir de uma abordagem da classificação de figuras espaciais e planas por meio dos seguintes softwares Régua e Compasso, SketchUp e Construfig3D. Oliveira, Anjos e Rocha (2016) e Ciríaco (2013) relataram experiências com a utilização do software SuperLogo como sendo uma possibilidade de exploração com a tecnologia que coloca o aluno frente ao feedback do computador ao trabalhar o desenho geométrico e polígonos regulares, por exemplo. Silva, Coletti e Moretto (2016) se apoiaram na utilização do Word e Paint, recursos estes que foram apresentados aos alunos e solicitado que fosse feito um mapa com o percurso da sala de aula até a sala da “inspetora”. Ao tomarmos contato com o conteúdo de cada artigo publicado foi possível identificar os objetivos e o segmento de ensino em que se enquadravam, questão que contribuiu para que elegêssemos, como objeto de análise, os estudos sobre “início da carreira de pedagogos” e o “ensino de Geometria nos anos iniciais”, aqueles que são de natureza de resultados de pesquisas desenvolvidas nos últimos anos, pois em ambos eventos é comum também a publicação de relatos de experiências, tendo sido esses excluídos do âmbito de nossa análise. Nessa direção, como o foco deste trabalho é o ensino nos primeiros anos com professoras iniciantes, cumpre salientar que foi evidenciado dentre os artigos relacionados especificamente a esse ponto da investigação que se relata na dissertação que desenvolvemos: dos 3 (três) trabalhos, 2 (dois) dizem respeito a professoras com mais de 5 (cinco) anos de experiência profissional e 1 (um) diz respeito ao início da carreira, sendo o foco da investigação centrado em formação para o ensino de Geometria e, portanto, os apresentados a seguir. Na pesquisa de Silva, Santana e Oliveira (2016), intitulada “Saberes docentes sobre o ensino da Geometria nos anos iniciais do ensino fundamental”, relata-se uma investigação com 6 (seis) professoras, das quais 5 (cinco) tinham mais de dez anos de experiência. Para a coleta de dados foram elaborados questionários com o objetivo de compreender o perfil das docentes e verificar qual a didática utilizada para o ensino de Geometria. Com base nesse instrumento, afirmaram que durante a formação inicial não tiveram suporte para explorar as áreas da Matemática no que se refere ao conhecimento específico dos conteúdos. Ficou evidenciado, pelas respostas das professoras, que mesmo com tantos anos de experiência ainda havia lacunas conceituais no ensino. As professoras dão maior ênfase à Aritmética, demonstrando que a Geometria causa-lhes certo desconforto. Carvalho e Ferreira (2016), em seu trabalho “O conhecimento matemático para o ensino de Geometria na visão de três professores dos anos iniciais do ensino fundamental”, descrevem encaminhamentos e resultados de uma pesquisa com 3 (três) professores, dos quais 2 (dois) têm mais de dez anos de carreira e 1 (um) ainda está em processo de formação. O foco do estudo 43 buscou compreender como os professores percebem o ensino de Geometria no desenvolvimento de suas pr