unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP Isadora de Paula Eduardo Cucolicchio AQUISIÇÃO DO INGLÊS POR UMA CRIANÇA EM UMA ESCOLA BILÍNGUE: contexto e formas de alteridade. ARARAQUARA – S.P. 2021 Isadora de Paula Eduardo Cucolicchio AQUISIÇÃO DO INGLÊS POR UMA CRIANÇA EM UMA ESCOLA BILÍNGUE: contexto e formas de alteridade. Dissertação de Mestrado apresentada ao Conselho, Programa Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Letras. Linha de pesquisa: Ensino/Aprendizagem de Línguas Orientador: Profa. Dra. Alessandra Del Ré Bolsa: Capes ARARAQUARA – S.P. 2021 C963a Cucolicchio, Isadora de Paula Eduardo AQUISIÇÃO DO INGLÊS POR UMA CRIANÇA EM UMA ESCOLA BILÍNGUE : contexto e formas de alteridade / Isadora de Paula Eduardo Cucolicchio. -- Araraquara, 2021 122 p. : il., tabs., fotos Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara Orientadora: Alessandra Del Ré 1. Bilinguismo escolar. 2. Aquisição de L2. 3. Dialogismo. 4. Formatos. 5. Multimodalidade. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. Isadora de Paula Eduardo Cucolicchio AQUISIÇÃO DO INGLÊS POR UMA CRIANÇA EM UMA ESCOLA BILÍNGUE: contexto e formas de alteridade. Dissertação de Mestrado apresentada ao Conselho, Programa de Pós em Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Letras. Linha de pesquisa: Ensino/Aprendizagem de Línguas Orientador: Profa. Dra. Alessandra Del Ré Bolsa: Capes Data da defesa: 19/02/2021 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Prof.ª Dr.ª Alessandra Del Ré UNESP - FCLAr. Membro Titular: Prof.ª Dr.ª Paula Cristina Bullio Membro Titular: Prof. Dr. Lourenço Chacon Jurado Filho UNESP- IBILCE Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara Agradecimento Agradeço a Deus, a minha família, meu namorado, meus amigos, minha orientadora, meus professores e todos que participaram deste processo. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Resumo Considerando-se a escassez de trabalhos na área de Aquisição de L2, sobretudo no Brasil, realizados de forma sistemática e que acompanham o percurso linguageiro da mesma criança, em um ambiente escolar bilíngue, este trabalho pretende contribuir com essas pesquisas, ao realizar um estudo de caso ao observar uma criança (A.), entre 1;5 a 5;5 anos, brasileira, falante de português e francês em ambiente familiar, e que frequenta uma escola bilíngue português-inglês do interior paulista. O objetivo é observar a relação da criança com o inglês por meio das respostas que ela produz nesse ambiente escolar, durante a interação com professores e colegas. Partindo de uma abordagem dialógico-discursiva (Bakhtin 1997, 2006; Del Ré et al, 2014 a e b), em diálogo com os trabalhos de Vygotsky (1985) e Bruner (2003, 2004), acreditamos que, independentemente da maneira como a criança responde às perguntas formuladas em inglês pelas professoras ou pela observadora, por meio de pistas discursivas multimodais (enunciados vocalizados, gestos, olhares etc., Cavalcante, 1994) ela participa da comunicação, se colocando enquanto sujeito ativo no discurso. A pesquisa faz parte de um projeto mais amplo sobre “Bilinguismo/multilinguismo em contexto familiar e escolar: diferentes panoramas” e os dados que compõem o corpus envolvem filmagens periódicas coletadas em ambiente escolar, de cunho naturalístico, transcritas a partir do CHAT (CLAN), disponível na plataforma CHILDES (MacWhinney, 2000), adaptadas para o português (Hilário et al, 2011), e que fazem parte do banco de dados do grupo NALíngua (Del Ré et al, 2016). Os resultados revelam que A. é um sujeito ativo nas situações comunicativas e que, desde muito cedo, a criança participa dos contextos em que são produzidos apenas enunciados em inglês. Mostram ainda que a maior parte da produção de enunciados por parte da criança está ancorada em situações em que se observa o formato lúdico- didático, i.e., momentos de brincadeiras, rodas de conversa, discussões etc, e que, embora alternando entre produções em inglês ou em português, e uma linguagem multimodal – gestos, matriz gesto-fala e vocal, a criança estabelece uma relação com a outra língua (inglês), participando e se constituindo como sujeito no processo comunicativo. Palavras – chave: Bilinguismo escolar; Criança; Aquisição de L2; Dialogismo; Multimodalidade; Formatos. ABSTRACT Giving the circumstances that, especially in Brazil, the research in L2 Acquisition field is scarce, particularly when it comes to systematic studies that accompany the language path of the same child in a bilingual environment; the present work intends to contribute in such studies through observing a child (A.) between 1;5 and 5;5 years old, Brazilian, Portuguese and French speaker in a familiar ground, who goes to a bilingual (Portuguese-English) school in São Paulo State. The objective of this work is to observe the child’s relationship towards English through her responses in the scholar area, while she interacts with friends and teachers. Moreover, leading by a dialogical-discursive approach (Bakhtin 1997, 2006; Del Ré et al, 2014 a and b) together with Vygotsky’s (1985) and Brunner’s work (2003, 2004), we hold the belief that independent of the chosen path to answer the questions in English, she is part of the communicative domain, she is an active subject in the speech; due to discursive multimodal clues (vocalized statements, gestures, looks and more, Cavalcante, 1994). This research is part of a wider project on “Bilingualism/ Multilingualism in a scholar and familiar context: different panoramas”. Therefore, the data which compose the corpus involve periodic filming collected in a scholar environment, this took place as a naturalistic manner and such filming was transcript using CHAT (CLAN), available on the platform CHILDES (MacWhinney, 2000), adapted to Portuguese (Hilário et al, 2011), and they are part of NALíngua group’s data bank (Del Ré et al, 2016). The results reveal that A. is an active subject in communicative situations and that, early on, this child enrolls in English only contexts. Furthermore, the results also show that most of her production is aligned to situations proved playful-didactical format, i.e., playing moments, talks, discussions, etc. Still, the study demonstrates that, even though she alternates between Portuguese and English speech production, and a multilingualism language – gestures, gesture-speech matrix, vocal – the child establishes a relationship with the other language (English), joining and incorporating herself as a subject in the communicative process. Key-words: Scholar bilingualism; child; L2 Acquisition; Dialogism; Multimodally; Formats LISTA DE FIGURAS Figura 1. Foto obtida a partir da gravação da turma toda.............................p. 53 Figura 2. Foto obtida a partir da gravação de L., F. e A...............................p. 54 Figura 3. Manual CLAN/CHAT em português...............................................p. 58 Figura 4. Banco de dado na plataforma CHILDES – consulta por categorias......................................................................................................p. 59 Figuras 5 e 6. Banco de dado na plataforma CHILDES – consulta por língua.............................................................................................................p. 60 LISTA DE QUADROS Quadro 1. Informações sobre os dados selecionados para análise.............p. 60 Quadro 2. Resultados das análises..............................................................p. 86 LISTA DE SITUAÇÕES Situação 1: Sessão A - A. (1;5) “Léo”......................................................... p. 68 Situação 2. Sessão B - A. (1;9) “lanche” ......................................................p. 69 Situação 3: Sessão C - A. (2 ;3) “irmão” .................................................... p. 71 Situação 4: Sessão D - A. (2;11) “casa”.....................................................p. 73 Situação 5: Sessão D - A. (2;11) “lego” .....................................................p. 74 Situação 6: Sessão E - A. (3;3) “apito” .......................................................p. 75 Situação 7: Sessão F - A.(3;4) “alimentos” .................................................p. 76 Situação 8: Sessão F - A.(3;4) “cores” .......................................................p. 78 Situação 9: Sessão G - A. (4 ;5) “animais” .................................................p. 79 Situação 10: Sessão H - A.(4;7) “cachorra” ................................................p. 81 Situação 11: Sessão I - A.(5;1) “dia anterior” .............................................p. 82 Situação 12: Sessão J - A.(5;3) “contagem” ...............................................p. 85 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1. Matriz gesto-fala X língua.............................................................p. 89 Gráfico 2. vocal X língua...............................................................................p. 90 Gráfico 3. Gestual X formato........................................................................p. 91 Gráfico 4. Matriz gesto-fala X formato..........................................................p. 92 Gráfico 5. Vocal X formato............................................................................p. 92 Gráfico 6. Gestual X relação pergunta-resposta...........................................p. 94 Gráfico 7. Matriz gesto-fala X relação pergunta-resposta............................p. 95 Gráfico 8. Vocal X relação pergunta-resposta..............................................p. 95 Gráfico 9. Português X relação pergunta-resposta.......................................p. 97 Gráfico 10. Inglês X relação pergunta-resposta...........................................p. 98 Gráfico 11. Code-switching X relação pergunta-resposta............................p. 99 Gráfico 12. Formato livre X língua..............................................................p. 100 Gráfico 13. Formato guiado X língua..........................................................p. 101 Gráfico 14. Formato livre X relação pergunta-resposta..............................p. 102 Gráfico 15. Formato guiado X relação pergunta-resposta..........................p. 103 SUMÁRIO Introdução ........................................................................................................................... 11 Capítulo 1: Fundamentação teórica .................................................................................... 17 1. A aquisição da linguagem e a perspectiva dialógico discursiva .................................. 17 1.1. A multimodalidade ....................................................................................................... 25 1.2 Gênero e formatos ........................................................................................................ 27 1.3 Atitude responsiva ........................................................................................................ 32 2. Bilinguismo ...................................................................................................................... 34 2.1 Diferentes concepções do fenômeno ........................................................................... 34 2.2 Educação Bilíngue.......................................................................................................... 38 2.2.1. Bilinguismo de língua minoritária em escolas ........................................................... 38 2.2.2 Bilinguismo de língua majoritária (Inglês) em escolas ............................................... 40 2.3. O code-switching .......................................................................................................... 44 2.4. Pesquisas sobre crianças bilíngues ............................................................................... 44 Capítulo 2: Metodologia ...................................................................................................... 48 2.1. A coleta de dados em Aquisição da Linguagem ........................................................... 49 2.2 Sobre os nossos dados .................................................................................................. 50 2.3 A escola em questão ..................................................................................................... 53 2.4 Ferramenta de transcrição dos dados ........................................................................... 54 2.5 Seleção dos dados para análise ..................................................................................... 57 2.6 Categorias de análise..................................................................................................... 58 Capítulo 3: Análise e descrição dos dados .......................................................................... 64 Capítulo 4. Discussões e resultados .................................................................................... 82 Capítulo 5. Considerações finais ....................................................................................... 102 Capítulo 6 Bibliografia ....................................................................................................... 104 Anexo 1. TCLE.....................................................................................................p. 113 Anexo 2. Aprovação do conselho de ética..........................................................p. 117 Anexo 3. Significados dos símbolos usados na transcrição – normas CHAT..................................................................................................................p. 120 11 Introdução Considerando-se a escassez de trabalhos na área de Aquisição de L21, sobretudo no Brasil, realizados de forma sistemática e que acompanham o desenvolvimento da mesma criança, em um ambiente escolar bilíngue, este trabalho pretende contribuir com essas pesquisas, através de um estudo de caso ao observar uma criança (A.), entre 1;5 a 5;5 anos, brasileira, falante de português e francês em ambiente familiar, e que frequenta uma escola bilíngue português-inglês do interior paulista. O objetivo é observar a relação da criança com o inglês que é usado para condução das atividades, por meio das respostas que ela produz nesse ambiente escolar, durante a interação com professores e colegas, a fim de verificar sua atuação nas situações comunicativas. De acordo com Bakhtin (1997), o encadeamento dialógico dos enunciados exige uma atitude responsiva ativa, ou seja, exige que os falantes forneçam respostas a enunciados anteriores. Interessados na descoberta de como essas respostas revelam o processo de aquisição de uma língua e como interferem na constituição do sujeito, nosso objeto de análise recai sobre elas, as respostas. Nossa pergunta de pesquisa nos coloca para pensar na forma como a criança se coloca no discurso e como ela responde ao contexto de interação e, a partir dela, levantamos a hipótese de que, independentemente da maneira pela qual a resposta se manifesta, seja ela através de gestos, vocalizações ou a mistura entre eles (multimodalidade, Cavalcante, 1994), a criança (A.) vai estabelecendo uma relação com a língua inglesa, posicionando-se e constituindo-se na linguagem, e pela linguagem, como sujeito. Para tanto, trazemos os dados da criança A. (1;5 a 5;5), aprovados pelo Comitê de Ética local - 5400 - UNESP - Faculdade de Ciências e Letras - Campus Araraquara - (CAAE: 18119719.4.0000.5400), obtidos em contexto escolar bilíngue e que fazem parte do banco de dados do grupo NALíngua (Del Ré et al, 2016), transcritos a partir do CHAT (CLAN), disponível na plataforma CHILDES 1 Levando em conta os nossos objetivos para esta pesquisa, não trataremos das possíveis discussões que envolvem L2, LE, aquisição e aprendizagem. 12 (MacWhinney, 2000), adaptados para o português (Hilário et al, 2011). Para analisá-los, levaremos em consideração uma abordagem dialógico-discursiva (Del Ré et al, 2014 a e b), baseada nas ideias do Círculo de Bakhtin, Vygotsky (1934), Bruner (1997) e Cavalcante (2018), trabalhando com as questões da interação, do dialogismo, gêneros e formatos, além de ponderar sobre a multimodalidade. Vale dizer que esta pesquisa faz parte de um projeto mais amplo sobre “Bilinguismo/multilinguismo em contexto familiar e escolar: diferentes panoramas” (Bueno, 2017, Bullio, 2014, Bullio et al, 2014, Mroczinski, et al, 2016, Del Ré et al, 2017 etc.), que conta com a colaboração da Profa. Ranka Bijeljac-Babic (Université Réné Descartes – Paris 5). Desde 2015, o grupo GEALin-FCLAr começou a recolher dados nessa escola bilíngue no estado de São Paulo, os quais serviram de base para desenvolvimento de diversas pesquisas sobre o tema do bilinguismo, considerando uma abordagem dialógico-discursiva da aquisição da linguagem.Dentre eles, ressaltamos o trabalho realizado por Bullio (2008, 2014, 2017), no mestrado, doutorado e pós-doutorado discorreu, respectivamente, sobre mediação cultural no processo de aquisição de uma língua estrangeira (inglês), referência e code-switching na linguagem de uma criança bilíngue, e o humor, code-switching e bilinguismo; Gonçalves (2017) em uma pesquisa de iniciação científica, em que analisou de maneira mais ampla a compreensão e a produção do inglês de três crianças incluídas nesse contexto escolar (uma dessas crianças é a A. cujos dados servem de base para esta pesquisa); De Santis (2017 e 2020) realizou pesquisas sobre Linguagem Dirigida à Criança (doravante, LDC) também nesse contexto. Além dos trabalhos do grupo, destacamos igualmente outras pesquisas que se dedicaram ao estudo de crianças bilíngues em contexto escolar, como os de Soares (2004) e Leite (2013), que analisaram a linguagem de crianças inseridas em escolas bilíngues (inglês/português). Os resultados de todos esses trabalhos nos mostram o contexto2 é essencial para o processo de ensino- 2 "O contexto extraverbal do enunciado é composto por três aspectos: 1) o horizonte espacial comum dos falantes (a unidade do visível); 2) o conhecimento e a compreensão da situação 13 aprendizagem de L2, mas não tratam exatamente das produções multimodais das respostas produzidas pelas crianças diante de perguntas em inglês feitas pela professora. Ademais, não tratam exatamente da interferência do formato para esse tipo de aquisição. E é nesse sentido que o nosso trabalho vem contribuir com essas pesquisas já realizadas. Vale dizer que esses trabalhos que fazem parte de uma revisão de literatura e aparecerão de forma mais detalhada adiante, na fundamentação teórica. A eleição desse contexto escolar bilíngue como lócus de estudo justifica- se considerando que o bilinguismo inglês/português, segundo Siqueira (2015), vem crescendo exponencialmente no cenário brasileiro nas últimas décadas. É interessante observar, se traçarmos um breve histórico do tema, que, durante muito tempo, acreditou-se, como argumenta Cavalcanti (1999), numa realidade linguística homogênea no país. Entretanto, é evidente que tal realidade não se confirma frente à realidade multilíngue existente. Essa falsa crença sobre a condição linguística do Brasil fez crescer o que chamamos de mito do monolinguismo, um imaginário de unidade. Nesse sentido, embora haja essa tentativa de apagamento das diversidades linguísticas, o país permanece sendo plurilíngue. Estima-se que coexistem mais de 200 línguas no território nacional (OLIVEIRA; PHILIPPSEN, 2019). Desta forma, além das línguas estigmatizadas, as quais, muitas vezes, sofrem com o desejo de aniquilamento, há também as línguas majoritárias3, aquelas de maior prestígio social, que sofrem uma supervalorização no país. São exemplos desse tipo de língua o inglês, o francês, o alemão e o espanhol. Segundo Cavalcanti (1999, p.387), o bilinguismo apenas é reconhecido no país quando “(...) relacionado às línguas de prestígio no que se convencionou denominar bilinguismo de elite”. As demais formas de coexistências linguísticas tornam-se invisíveis para a massa opressora, ou seja, o senso comum associa o ensino bilíngue apenas como aquele de línguas de prestígio. Os ensinos comum aos dois [aos participantes]; e finalmente 3) a avaliação comum dessa situação." (VOLÓCHINOV, 2019, p. 118 e 119) 3 Termo utilizado para se referir não à quantidade de falantes, mas, sim, à valorização social das línguas. 14 bilíngues de línguas estigmatizadas, muitas vezes, sofrem a tentativa de apagamento. No Brasil, observamos que o surgimento do bilinguismo escolar de prestígio se deu a partir de uma necessidade mercadológica que se elevou frente à afirmação do senso comum de que quanto antes as crianças aprendessem uma língua estrangeira (doravante LE), melhor seria. Essa afirmação tem origem em estudos desenvolvidos em diferentes áreas como: Psicologia, Fonoaudiologia, Linguística e Linguística Aplicada (pesquisas como Houwer,1990; Harmers & Blanc, 2000; Grosjean, 1997). Sendo assim, surgiu a integração do ensino da língua fornecido por escolas de idiomas e do ensino regular. Esse novo cenário é bastante típico da realidade brasileira e ainda não há muitos estudos sobre o tema. Até 2019, não havia uma regulamentação para essas escolas, mas, devido ao exponencial crescimentos das mesmas e de solicitações para tal, foi criado o Conselho Nacional de Educação (CNE), com o objetivo de, através do documento “As Diretrizes Curriculares Nacionais para a oferta de Educação Plurilíngue”, regimentar esse tipo de ensino bilíngue no país. Esse tópico será melhor explicado no capítulo destinado à educação bilíngue. A escolha de um currículo bilíngue pela escola acarreta, entre outras coisas, na incorporação de uma língua diferente daquela falada pela maioria dos alunos para o desenvolvimento das atividades escolares. Isso possibilita o uso alternado das duas línguas em contextos diversos na instituição, uma vez que elas serão usadas para explicação de conteúdos, em brincadeiras, momentos de refeição, etc. Essas escolas que optam pelo uso da língua estrangeira tida pelo senso comum como majoritária são as chamadas escolas bilíngues de prestígio, já que a principal razão para a existência das mesmas é o prestígio social alcançado através do uso de uma língua diferente, geralmente o inglês, da usada pela comunidade. O principal intuito dessas escolas é proporcionar uma educação compatível com o mundo globalizado, além de ter contato com a cultura que permeia a língua. Esse tipo de bilinguismo (de elite) que dá destaque ao inglês (mais que a outras línguas) é, portanto, o que tem feito crescer o número de escolas 15 bilíngues português/inglês no Brasil e que serve de pano de fundo para a presente pesquisa. Com os resultados obtidos neste trabalho pretende-se, assim, contribuir para os estudos sobre esse crescente contexto educacional, na medida em que analisaremos os dados de uma criança que se insere neste contexto e ainda tem a particularidade de ter, além do PB (falado pela mãe, brasileira), o francês em casa (pai francês), caracterizando-se como um caso singular. Apesar de a criança ter esta outra língua no ambiente familiar, o foco deste estudo é entender a relação que a criança cria com o inglês, no meio escolar. As questões metodológicas serão pormenorizadas adiante. Vale dizer que, diante da grande relevância dos dois contextos bilíngues em que a criança A. está inserida, ela também foi filmada em meio familiar e esses dados que também compõem o banco de dados do grupo NALíngua serão analisados em pesquisas futuras. Dessa forma, este trabalho visa responder à seguinte questão, mais ampla: Como o sujeito A. (1;5 – 5;5), no ambiente escolar bilíngue, interage com o inglês e se coloca ativamente na situação comunicativa? Para responder a essa questão mais ampla e como não é possível dar conta de todo o processo comunicativo, daremos foco às respostas da criança, a partir de situações comunicativas em que o inglês é usado como língua de instrução no ambiente escolar, e a relação que se estabelece entre elas, os formatos e as perguntas/enunciados do outro/professora. Observaremos assim: a) como se manifestam as respostas da criança (se ela se utiliza só de gestos, se verbaliza, se mistura gesto e vocal); b) se a língua que ela utiliza para responder é o inglês, o português do Brasil (PB) ou uma mistura das duas; c) qual a relação entre a resposta da criança e o formato (Bruner, 2003, 2004); e, finalmente, a d) relação entre essa resposta dada pela criança e a pergunta/enunciado da professora. Interessa-nos, assim, observar e analisar, independentemente da forma com que se revelam as produções de A. quando decorrente de uma pergunta 16 produzida em inglês por outro sujeito, como a criança se coloca no discurso, como se constrói o sentido na relação dialógica. Feitas essas considerações, trazemos a seguir as partes que compõem o presente trabalho. No primeiro capítulo, apresentaremos um breve percurso histórico das teorias de aquisição, dentre elas, aquela que serve de base para esta pesquisa, a saber, o viés dialógico-discursivo (Bakhtin, 2006, 1997; Del Ré et al 2014 a e b), e que se pauta em uma visão de linguagem socialmente construída, estabelecendo uma relação intrínseca entre sujeito, discurso e realidade, e sob a perspectiva multimodal da língua, considerando intrínsecos à aquisição/aprendizado da língua aspectos como gesto, olhar, prosódia e fala (CAVALCANTE, 2012). Sabendo que Bakhtin não se ocupou das questões sobre aquisição da linguagem, utilizaremos de suas principais ideias sobre a linguagem, a interação, gêneros do discurso e o dialogismo, responsividade, em diálogo com Vygotsky (1991a) para explicar o desenvolvimento da linguagem da criança, bem como as de Bruner (2007) sobre os formatos e as brincadeiras. No segundo capítulo, ainda discutindo questões teóricas, trataremos dos conceitos de bilinguismo, bilinguismo escolar e code-switching. No capítulo seguinte (terceiro), mostraremos o processo metodológico da pesquisa, evidenciando informações sobre a coleta de dados, detalhes do contexto escolar e dos participantes envolvidos, além de discorrer sobre o processo de organização e transcrição dos dados através da plataforma CLAN. Há também neste capítulo uma breve discussão sobre a importância dos dados nas pesquisas em Aquisição da Linguagem. Ainda no terceiro capítulo, serão apresentadas e explicadas as categorias de análise que serão consideradas a fim de obter os resultados pretendidos. Na sequência, serão apresentadas as análises e, diante delas, explanados os resultados da pesquisa, analisados pelo viés teórico- metodológico apresentado nos dois primeiros capítulos e pela categoria de análise apresentada na parte metodológica. 17 Terminamos o trabalho com algumas considerações finais que pretendem contribuir com os estudos da área. Capítulo 1: Fundamentação teórica 1. A aquisição da linguagem e a perspectiva dialógico discursiva Há anos a natureza do desenvolvimento da linguagem infantil tem sido motivo de interesse dos estudiosos, principalmente daqueles que se debruçam a estudar a área de aquisição da linguagem. Assim, entender o processo pelo qual a criança percorre até o desenvolvimento da capacidade linguística e comunicativa – verbal e não verbal – é o foco desta grande área. Segundo Scarpa (2017, p.207) “A aquisição da Linguagem é, pelas suas indagações, uma área híbrida, heterogênea ou multidisciplinar. Isso porque ela abrange diversas subáreas, como a aquisição de língua materna, aquisição de L2 e/ou LE, aquisição da escrita, aquisição bilíngue, entre outros.” Essa última abordagem será a pormenorizada nesta pesquisa. Essa linha teórica está presente desde os séculos passados, com buscas e relatos acerca da primeira palavra emitida no mundo, até os dias de hoje com questões e análises mais complexas e aprofundadas, primando também pela interdisciplinaridade com outras áreas do conhecimento como a Psicologia, a Educação, a Fonoaudiologia, etc. Tendo em vista a abrangente esfera acerca dos estudos da aquisição da linguagem e da fala da criança, traçaremos assim, um breve panorama a partir de diferentes olhares e abordagens teóricas. Inicialmente, o pesquisador Skinner (1957), debruçado na corrente empirista/ behaviorista, propõe que a aprendizagem da linguagem pela criança se dá a partir da exposição ao meio quando há mecanismos de estímulo e resposta. “A teoria behaviorista acredita que a criança é uma “tábula rasa”” (DEL RÉ, 2006, p. 18). Como reação a essa teoria, Chomsky (1957), pensador inatista, afirma que a linguagem é uma competência genética, e que, quando em 18 exposição à fala de uma língua, desabrocha a gramática específica dessa língua na criança. Desta forma, o gerativismo de Chomsky admite a existência da linguagem “(...)num domínio cognitivo e biológico” (MUSSALIM; BENTES, 2012, p. 246), considerando a operacionalização de uma Gramática Universal no ser humano, a qual possuiria princípios e parâmetros referentes às línguas do mundo. Estes serão despertados (DAL) de acordo com a língua à qual a criança é exposta. Esta teoria inatista tem sido refutada por correntes que defendem a dependência de outros elementos, além do biológico, para o desenvolvimento da linguagem, como o desenvolvimento de processos cognitivos, o contexto de interação e o contexto social. Surge, então, o pensamento construtivista, o qual defende a formação do conhecimento a partir do desenvolvimento da inteligência da criança e da interação desta com o mundo. Nesta perspectiva, J. Piaget (1965) desenvolve, através de seus estudos, uma teoria construtivista do desenvolvimento cognitivo humano, uma abordagem que considera os estágios de desenvolvimento cognitivo da criança. Desta forma, ele acredita que o conhecimento da linguagem é alcançado quando a criança, em um determinado momento de maturação do cérebro, reage cognitivamente quando em contato com o mundo. Julgando como um processo individual, Piaget não dá enfoque ao papel do social e da interação com as pessoas para o desenvolvimento do conhecimento da criança. É neste contexto que surgem os pensamentos de Vygotsky (1986, 1991, 2000), os quais, além de considerar o desenvolvimento do sistema cognitivo, argumentam acerca do social, em que o adulto/pessoa mais experiente é o mediador das trocas comunicativas no percurso da linguagem. Engajado nas discussões acerca do pensamento e da linguagem4, Vygotsky propõe um estudo a fim de analisar as raízes genéticas dos mesmos, e conclui que os primeiros estágios da fala (balbucio e choro) não tem nenhuma relação com a evolução do pensamento. 4 Vygotsky, L. S., Pensamento e Linguagem. 4ªed. São Paulo: Martins Fontes, 2008 19 Entretanto, com o passar do tempo, “(...) a fala começa a servir ao intelecto, e os pensamentos começam a ser verbalizados (...)” (Vygotsky, 2008, p. 53). Nesse momento “(...) a criança sente a necessidade das palavras e, ao fazer perguntas, tenta ativamente aprender os signos vinculados aos objetos. Ela parece ter descoberto a função simbólica das palavras.” (Vygotsky, 2008, p. 53 e 54). A partir de então, de acordo com o autor, o pensamento se torna verbal e a fala racional, ou seja, o pensamento passa a existir por meio de palavras. É também nesse estágio que as estruturas externas são internalizadas. Assim, “a fala, resultante da internalização da ação e do diálogo, servirá de suporte para que a criança comece a controlar o ambiente e o próprio comportamento.” (Del ré, 2006, p. 23) Sendo assim, Vygostky (2008, p. 63) afirma que “a natureza do próprio desenvolvimento se transforma, do biológico para o sociohistórico. O pensamento verbal não é uma forma de comportamento natural e inata, mas é determinado por um processo histórico-cultural e tem propriedades e leis específicas que não podem ser encontradas nas formas naturais de pensamento e fala.” Observa-se, portanto, que se trata de um processo sociohistórico, ou seja, da construção social da linguagem através das trocas comunicativas, principalmente com o adulto, que se coloca como regulador/mediador. Dessa forma, a criança se desenvolve e aprende com o outro (adulto) que fornece informações do meio, já que ela ainda não é capaz de fazer isso sozinha. Nessa fase, a criança encontra-se na Zona de Desenvolvimento Proximal, pois corresponde a um momento tênue entre o que ela não realiza de forma independente, mas sim com o auxílio do adulto e o que ela realiza sozinha. A criança, assim, constrói seus valores e sua linguagem através da interação. Além disso, levando em conta os processos de desenvolvimento do pensamento e da fala, Vygotsky (2008) afirma que num primeiro estágio, o pensamento da criança se manifesta através de uma única palavra, mas “à medida que seu pensamento se torna mais diferenciado, a criança perde a capacidade de expressá-lo em uma única palavra, passando a formar um todo composto.” (p. 158). Tanto a produção de uma única palavra quanto enunciados 20 compostos são essencialmente sociais e dependem da reação de outras pessoas. Nesse sentido, para o autor, a linguagem é responsável pelo desenvolvimento cognitivo da criança, sendo assim, o desenvolvimento da linguagem é acompanhado da desenvolução de funções como a atenção, memória, compreensão etc. Além de Vygotsky, ao discorrer sobre o processo de aquisição da linguagem, Bruner afirma que o desenvolvimento da linguagem é fortemente influenciado pelo desenvolvimento cognitivo e também pelo contexto cultural em que ocorre o processo. Nesse sentido, partindo da concepção de aquisição da linguagem que toma o contexto como fundamental, Bruner (1997) afirma que a língua se desenvolve melhor quando a criança já está apta a entender o significado do que está sendo falado ou da situação. Sendo assim, o contexto é fator importante para que a criança aprenda, não só o vocabulário, mas também os aspectos gramaticais de uma língua. Para além do desenvolvimento da linguagem, Bruner retrata que o desenvolvimento humano deve ser visto não apenas como algo individual, mas através de uma relação intrínseca com o mundo que o rodeia, uma vez que o homem está inserido na cultura. Segundo ele, “para que a psicologia avance na compreensão da natureza e da condição humanas, ela deve aprender a entender a interação sutil da biologia com a cultura. A cultura é provavelmente o último grande truque evolutivo da biologia.” (BRUNER, 2001, p. 171) Engajado na importância do contexto e na interação da criança com o mundo e com o adulto que “... oferece um suporte à aquisição da linguagem (Language Acquisition Support System – LASS) (2004, p. 15), estruturando a entrada da criança na linguagem através da interação.” (HILÁRIO, 2011, p. 570), em especial a mãe, Bruner argumenta que “(...) as estruturas da ação e da atenção do homem se refletem nas estruturas linguísticas e, à medida que a criança vai dominando gradualmente essas estruturas, a partir do processo de interação do qual o adulto participa, a linguagem vai sendo adquirida.” (DEL RÉ, 2006, p. 23 e 24) 21 Engajado na interação da criança com o mundo e com o outro, Bruner (1991, 2007) discorre acerca da importância dos jogos e da interação social para o desenvolvimento da linguagem e da determinação das funções gramaticais. Isso porque, além de trabalhar questões de atenção partilhada, permite-se a troca de turnos entre o adulto que fala e a criança (interlocutor) e numa etapa seguinte, a inversão dos papéis. O lúdico, portanto, seria uma forma estruturada de exploração e criatividade que permite a construção de conhecimento. Isso porque, segundo o autor, esses contextos lúdicos auxiliam em questões como a atenção partilhada, a troca de turnos entre o adulto que fala e a criança (interlocutor) e, numa etapa mais adiantada, permite a inversão dos papéis, e consequentemente a tomada de voz por parte da criança. Todo o processo só é alcançado, entretanto, segundo Bruner, na presença do tutor que fornece orientações e tem o papel de mesclar a brincadeira livre com informações sistematizadas, a fim de guiar a descoberta, o novo saber. Na sequência, as informações disponíveis são internalizadas, e o conhecimento é adquirido pela criança. Nesse sentido, as crianças, partindo dos conhecimentos que já possuem, colocam-se como agentes da aprendizagem, entretanto não fazem isso de forma isolada, e sim a partir da interação com os demais e com a ajuda do mediador, que se coloca como facilitador do processo. A linha interacionista, sobretudo sob o viés de Vygotsky e Bruner, servem de base para o olhar dialógico-discursivo (Del Ré, 2014 a e b), adotado neste trabalho. Segundo as teorias de Bakhtin e do Círculo (1997, 2006) que consideram os fatores sociais, comunicativos e culturais como fundamentais para a aquisição da linguagem, a linguagem é socialmente construída, todo o mundo que nos cerca, de uma forma ou de outra, tem influência sobre as categorias linguísticas de uma criança em processo de aquisição da linguagem. Isso se dá pelo fato de que ela não é um aprendiz passivo, pelo contrário, coloca-se como um sujeito ativo que constitui sua subjetividade na relação com o outro e com o mundo. 22 Segundo Bakhtin (1993), o processo de ser é sempre participativo e experimentado. Partindo da perspectiva dialógica da linguagem, pressupõe-se o seu funcionamento através de uma vertente sociocultural. Assim, ao pensar em linguagem, consideramos, de acordo com a linha que adotamos, que o sujeito se constitui na e pela linguagem. “Sendo fundamentalmente dialógica, ela não pode ser entendida fora do fluxo da comunicação verbal, como produto acabado, mas como algo que se constitui continuamente dentro da corrente comunicativa. [...] A fala (o discurso) não é tida como individual e inédita, mas como apropriação, reformulação e reiteração da fala do outro. Há um jogo de vozes sociais que repercutem na enunciação e no significado, que também é construído socialmente.” (HILÁRIO, 2011, p. 568) Assim, o signo, responsável pela constituição linguística do sujeito é, de acordo com Bakhtin (1992), ideológico, já que é colocado em uso por um sujeito, em um tempo-espaço, com valores sócio-histórico-culturais. Sendo assim, as significações dos enunciados se dão a partir de relações históricas e sociais, ou seja, baseadas no encadeamento social dos grupos humanos e de seus interesses, não havendo, assim, enunciados neutros. Sendo assim, discorrendo sobre o processo de aquisição da linguagem, ao incorporar esse signo que é ideológico, a criança ainda internaliza práticas culturais, as quais são constitutivas do desenvolvimento da criança. Ao adquirir linguagem, portanto, “[...] sua fala está permeada por contextos, rotinas e julgamentos de valores embutidos nos modos de dizer. Todos esses fatores devem ser levados em consideração na análise do discurso infantil, pois compõem, juntamente com os fatos linguísticos, a significação dos enunciados.” (HILÁRIO, 2011, p. 569) Seguindo a linha bakhtiniana, os atos discursivos ocorrem em arenas de conflito, já que, segundo o Círculo, é a partir da diferença que nasce o sentido. Estes, por mais subjetivos que sejam, serão sempre dialógicos, uma vez que dependem de um sujeito enunciador que está sempre presente na interação social, e esta interação não existe sem diálogo, mesmo que seja um discurso interior. O enunciador, por mais que carregue a sua versão do mundo, é ainda assim, um sujeito que revela um enfrentamento de vozes, que advém da presença do outro. 23 Por este ângulo, estão presentes na interação questões sociais, pessoais e históricas. Ela ainda envolve aspectos do ambiente cultural, da situação particular e das relações entre grupos e épocas, e de outros elementos sociais que interferem na interação. Assim, é por meio desse dialogismo, ou seja, do “...permanente diálogo, nem sempre simétrico e harmonioso, existente entre os diferentes discursos que configuram uma comunidade, uma cultura, uma sociedade. [...] elemento que instaura a constitutiva natureza interdiscursiva da linguagem.” (Brait, 2005, p. 94 e 95) é que a criança construirá o mundo a seu redor, reconhecendo e compreendendo-o. Essa constituição do sujeito na e pela linguagem requer processos de desenvolvimento contínuos para construir sua subjetividade. Se estamos em contato constante com o meio e com os sujeitos, estamos em constante transformação. “Se o sujeito é responsável, porque se faz participativamente respondente no processo de construção do que sempre está a ser alcançado, [...] então esse sujeito é um sujeito que está se fazendo, está sempre inconcluso, nunca é igual a si mesmo [...]” (Geraldi, 2015, p. 145) Desta forma, é impossível pensar no ser humano fora das relações com o outro e com o mundo que o cerca. Daí a dependência e a dinamicidade da interação dos falantes. Existe, portanto, segundo Bakhtin, uma relação intrínseca entre o eu e o outro. Isso refere-se à alteridade que é constitutiva do sujeito. “...eu tomo consciência de mim e me torno eu mesmo unicamente me revelando para o outro, através do outro e com o auxílio do outro...”[...] Ser significa ser para o outro e, através dele, para si.” (BAKHTIN, 1997, p.341). Sendo assim, a subjetividade de cada ser se forma a partir de uma relação de alteridade. Assim, considerando que todo ser individual e singular se constitui historicamente e a partir de relações interpessoais, Bakhtin revela que o sujeito é uma forma de sociabilidade. Sendo assim, embora cada sujeito tenha seu selo de individualidade, esse selo é social. Assim, nas palavras de Bakhtin (2002, p. 59) “[...] meu pensamento, desde sua origem, pertence ao sistema ideológico e é subordinado a suas leis.” 24 Nesse sentido, os signos são concebidos como um produto social capaz de assinalar realidades objetivas, assumindo a condição de construção subjetiva compartilhada por diferentes sujeitos e também uma construção subjetiva individual que se realiza por processos de apropriação de significações correntes nas práticas sociais (BARROS, 2012, p. 142) Sendo assim, a tomada de posição frente a outros discursos, se manifesta por meio de um discurso que é fruto da combinação de vozes verbais de outros sujeitos. É evidente que a materialização da linguagem não abarca toda a subjetividade dos sujeitos, mesmo porque esses estão em um processo em constante transformação, e, consequentemente, a subjetividade que resulta da relação do eu com o outro também segue esse movimento de constituição e modificação. Nesse âmbito, trazendo as reflexões bakhtinianas para os estudos de Aquisição da Linguagem, salientamos o conceito de alteridade, uma vez que todo enunciado, aqui em especial o enunciado da criança, depende efetivamente da significação dada pelo outro, no caso, pelo adulto. Existe, dessa forma, uma relação direta entre o eu e o outro quando se diz respeito à significação dos enunciados. Além disso, nas palavras de Faraco (2001, p. 6) “a apreensão e a compreensão das realidades humanas passam sempre e necessariamente por processos inter-relacionais.” O sentido se constrói através da interação. No caso da nossa pesquisa, é fundamental a relação entre a criança e os professores e também entre a criança e os amigos. De acordo com Geraldi (2015, p. 128) “[...] é a sociedade atual que imagina um futuro e com base nesta “memória de futuro” seleciona do passado os valores, saberes e conhecimentos que quer ver realizados.” A significação de um enunciado é resultado de eventos interacionais os quais correlacionam uma situação social mais imediata e um meio social mais amplo. Isto posto, o sentido do dizer depende da interação entre grupos humanos. Assim, de acordo com as ideias do círculo, [...] a língua não se transmite; ela dura e perdura sob a forma de um processo evolutivo contínuo. Os indivíduos não recebem a língua pronta para ser usada; eles penetram na corrente da comunicação 25 verbal; ou melhor, somente quando mergulham nessa corrente é que sua consciência desperta e começa a operar. É apenas no processo de aquisição de uma língua estrangeira que a consciência já constituída – graças à língua materna – se confronta com uma língua toda pronta, que só lhe resta assimilar. Os sujeitos não “adquirem” sua língua materna; é nela e por meio dela que ocorre o primeiro despertar da consciência. (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1992, p. 108) Ao levar estas reflexões para o recorte de ensino bilíngue, podemos dizer que o sujeito falante entra, assim, em contato com dois contextos linguísticos diferentes, já que cada língua carrega seus valores e suas ideologias. Isto porque a língua humana é produto da cultura. Para tanto, ao aprender uma nova língua, diferente da materna, o indivíduo passa por uma reorganização de signos ideológicos e consequentemente uma reorganização subjetiva. Já sabemos que a produção de um enunciado depende da relação social que o circunda. Sabemos também que o discurso de um “eu” é perpassado pelo discurso do “outro”. Desse modo, para compreender e produzir enunciados em uma nova língua, é necessário o contato com contextos de comunicação permeado tanto pela língua (estruturas linguísticas) como pela cultura, a fim de tornar esta língua uma língua viva para o sujeito que com ela se relaciona. Assim, após apresentada a nossa perspectiva sobre o processo de aquisição de linguagem pela criança, abordaremos, na sequência, a questão da multimodalidade. 1.1. A multimodalidade A multimodalidade diz respeito a elementos que envolvem a fala, o gesto e o olhar ou outras partes do corpo que, juntos, compõem a língua(gem). Assim, os pesquisadores dessa área consideram que a linguagem não é apenas o que “[...] é dito pela fala como veículo de interação, mas sim, o conjunto de elementos que dão à interação um sentido mais amplo e completo.” (ALMEIDA; CAVALCANTE, 2017, p. 527). McNeill (1982) afirma ser indissociável a relação de gesto e fala em um conjunto de linguagem. Isso porque “os elementos vocais e gestuais são constitutivos de um único sistema, que se estabelece na matriz 26 multimodal, sendo impraticável pensar nesses elementos separadamente (ALMEIDA; CAVALCANTE, 2017, p. 527). Uma abordagem multimodal dialoga com a nossa perspectiva, dialógico- discursivo, na medida em que, segundo Voloshinóv (2017, p. 107) “Todos esses discursos verbais estão correlacionados, é claro, com outros tipos de manifestação e interação por meio de signos: com a expressão facial, a gesticulação, os atos convencionais e assim por diante.” Ademais, Kendon (2008) também discorre sobre a presença destes elementos multimodais na comunicação humana, e sobre a importância dos mesmos nas interações infantis. Para o autor, os enunciados linguísticos vão além das vocalizações, além de ritmo e entonação, neles há também manifestações como movimento dos braços, olhos, cabeça etc. Assim, concordamos com a ideia de que, desde cedo, gesto e fala, juntos, formam uma rede de significação. Os atos multimodais fazem parte da situação comunicativa e são tão relevantes quanto as vocalizações. Exemplo disso é a afirmação que diz que “...certos gestos podem projetar um próximo turno de fala, do mesmo modo como foi escrito para conduta vocal” (JEFFERSON, 1984, apud CAVALCANTE, 2019, p. 69). De acordo com Cavalcante (2019), a interação humana é corporal, sendo assim, ao participar de uma situação de interação através de turnos conversacionais, os participantes usam os elementos corporais disponíveis, gestos e fala, para construírem suas ações. Desse modo, esses elementos constituem um único sistema linguístico e “[...] corroboram para uma mesma finalidade significativa.” (ALMEIDA; CAVALCANTE, 2017, p. 528) Nesta pesquisa, daremos foco aos gestos físicos. Almeida e Cavalcante (2017, p. 528) definem a gesticulação como sendo “[...] produzida principalmente com os braços e as mãos, mas não é restrita a essas partes do corpo, já que a cabeça, as pernas e os pés também podem aparecer como gestos. Segundo McNeill (1985,2002), a palavra “gesto” recobre uma multiplicidade de movimentos comunicativos, principalmente os de mãos e braços. 27 Sendo assim, levando em conta o que é produtivo para as nossas análises e nossos objetivos, consideraremos para este trabalho apenas gestos como movimento de braços, apontamentos e balanço de cabeça. Olhares e expressões faciais não serão analisados neste momento, pois a [...] troca de olhares compõe outra instância dentro da multimodalidade.” (Almeida e Cavalcante, 2017, p. 528). Nas análises, esses gestos serão analisados como formas de manifestação dos enunciados, que podem ser exclusivamente gestuais, exclusivamente vocais, ou produzidos através da junção de ambas as manifestações, gestuais e vocais. Sabemos que todos os enunciados, aqui tomados em sua multimodalidade, manifestam-se através de gêneros5 e formatos6, assim cabe- nos discorrer um pouco sobre esse outro diálogo no próximo item. 1.2 Gênero e formatos De acordo com as reflexões de Bakhtin e do Círculo, toda atividade humana, independentemente de qual seja, está permeada de linguagem (verbal ou não verbal), que se manifesta em formas de enunciados. “Para o autor, os gêneros do discurso organizam nossa fala tanto quanto as formas gramaticais o fazem. “[...] Aprender a falar significa aprender a construir enunciados...” (BAKHTIN, 2006, p. 283), e isso não acontece através de frases, orações ou palavras isoladas. Até mesmo as intenções comunicativas mais despretensiosas são determinadas por formas de gênero, sejam elas mais rígidas ou mais flexíveis.” (HILÁRIO, 2011, p. 571). Esses enunciados são estruturas de linguagem que permitem a interação dos sujeitos entre si, do sujeito com o mundo e também do sujeito com ele mesmo. Toda manifestação dessas estruturas se dá através de gêneros do discurso. Para o Círculo, compreende-se como gênero termos como conteúdo temático, forma composicional e estilo. Sendo assim, os gêneros são organizadores da atividade discursiva de qualquer falante [e], enquanto organizadores da atividade discursiva de qualquer comunidade 5 Ideia proposta por Bakhtin e o Círculo. 6 Ideia proposta por Bruner. 28 linguística, podem apontar caminhos para a compreensão do processo de aquisição da linguagem verbal, sendo que a criança é vista, desde o início, como sujeito na relação com a palavra do outro (é significada como tal). (HILÁRIO, DE PAULA, BUENO, 2014, p. 31.) Valendo-nos de uma abordagem dialógico-discursiva da aquisição de linguagem (BAKHTIN, 2006, DEL RÉ et al 2014 a e 2014b), abordaremos o conceito de gênero, muito discutido pelo Círculo, como essencial para as reflexões sugeridas, uma vez que o mesmo aparece de forma muito explícita nos dados analisados. Para tanto, consideraremos que “A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana. O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas [...] cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso.” (BAKHTIN, 1997, pg. 290) Sendo assim, toda interação se dá por meio dos gêneros do discurso, já que eles são organizadores do enunciado, ou, segundo Voloshinov (1992, p. 45), “formas e tipos da comunicação discursiva.” Essas formas, entretanto, não são fixas e rígidas, mas sim dinâmicas e concretas, uma vez que sempre há a possibilidade de se constituir um gênero novo, mas que surge a partir de um outro já existente. De acordo com Sobral (2009), ao discutir a mudança e a estabilidade dos gêneros, considera-se a noção da não existência de algo completamente novo ou algo completamente igual, pois “o “absolutamente novo” pressuporia sujeitos que conhecem tudo o que existe para então criá-lo ou identificá-lo; o “absolutamente mesmo” pressuporia a total imutabilidade do mundo humano...” (p. 118). Dessa forma, compreende-se a relação entre “...o repetível e o irrepetível, a atividade geral e os atos específicos dessa atividade, presentes na concepção do ato.” (p.118) Os filósofos do Círculo de Bakhtin afirmam que a recriação dos gêneros é inúmera e infinita tanto quanto as atividades humanas. Assim, através da comunicação com os ‘outros’ que nos rodeiam, os enunciados vão sendo incorporados ao desenvolvimento linguístico da criança. Elas, então, produzem seus enunciados a partir da compreensão e atitude responsiva em relação aos demais enunciados. 29 É em decorrência dos gêneros discursivos e de suas possibilidades de criação e recriação que a criança entra na linguagem e desenvolve-a. Além disso, os gêneros são sempre associados a uma esfera de atividade dotada de valores socio-histórico-ideológicos do mundo, ou seja, não se trata apenas de uma organização do discurso a partir da relação entre sujeitos, mas também da relação com o espaço social e o momento histórico em que se insere. Tudo isso interfere de forma direta na “escolha” do gênero. Em um ambiente escolar, por exemplo, o espaço, o momento, a relação entre os sujeitos ali inseridos, interferem na forma de organização e manifestação dos enunciados. Esses serão diferentes, por exemplo, de enunciados organizados e proferidos em uma roda de conversa entre amigos, em um restaurante. Cabe lembrar que embora sejam gêneros distintos, é inevitável a existência a hibridização e intercalação de gêneros. “As construções híbridas caracterizam-se pela junção de duas linguagens, separadas social e/ou historicamente, no âmbito de um mesmo enunciado...” (SOBRAL, 2009, p. 123) O gênero do discurso que é inerente a todo e qualquer discurso, e qualquer interação, se divide em gêneros primários e secundários. Os primários referem-se às situações comunicativas mais simples do dia a dia, informais, sem planejamento prévio, como diálogos cotidianos, cartas espontâneas. Já os secundários relacionam-se com situações comunicativas mais complexas, como textos escritos do tipo romance, artigo científico, etc. Segundo Bakhtin (1997, p.281) “Durante o processo de sua formação, esses gêneros secundários absorvem e transmutam os gêneros primários (simples) de todas as espécies, que se constituíram em circunstâncias de uma comunicação verbal espontânea. Os gêneros primários, ao se tornarem componentes dos gêneros secundários, transformam-se dentro destes e adquirem uma característica particular: perdem sua relação imediata com a realidade existente e com a realidade dos enunciados alheios...” A divisão de gêneros primários e secundários não é verdadeiramente produtiva para desenvolvimento de nossas pesquisas, considerando a vasta possibilidade de hibridização dos gêneros, portanto não faremos essa diferenciação em nossas análises. 30 Do ponto de vista do estudo do discurso da criança, interessa-nos principalmente a discussão que envolve a noção de gênero e de formatos, esta última proposta por Bruner, apresentada no trabalho de Hilário, de Paula e Bueno (2014). A entrada da criança nos diferentes gêneros do discurso integra-a em um mundo de sentido e simultaneamente fornece informações sobre elementos sociais que estão associados à interação entre sujeitos. (HILÁRIO, DE PAULA, BUENO, 2014). Essa interação por meio dos gêneros pode ser associada aos formatos, ou seja, interações rotinizadas, as quais dão propostas por Bruner (1983). De acordo com Bruner (1985) “O formato é um microcosmo regido por regras em que o adulto e a criança fazem coisas entre si. Em seu sentido geral, é o instrumento de interação humana padronizada. [...] Um formato envolve [...]pelo menos duas partes atuantes, contingente no sentido de que as respostas de cada membro podem ser mostradas como dependentes de uma resposta anterior do outro.” (p. 39, tradução nossa)7 Bruner (1972, 1976), como dissemos, discorre sobre estudos envolvendo brincadeiras como parte do desenvolvimento de bebês e crianças. Segundo ele, os jogos são uma forma de estruturar funcionalmente a comunicação da criança, uma vez que os mesmos são constituídos por regras, convenções, ou seja, englobam um uso sistemático da linguagem da criança e do adulto. Esse uso sistemático – estável – vai sendo incorporado pela criança, até que, num processo de alternância de papéis entre o adulto e a criança, a mesma consiga assumir o papel do adulto e manipular a linguagem. Além disso, Bruner afirma, através de sua teoria, que a brincadeira é um facilitador de aprendizagens, uma vez que ela permite que a criança dê maior atenção ao processo, e não apenas ao produto da aprendizagem. Daí a 7 Trecho original: “The format is a rule-bound microcosm in which the adult and child do things to and with each other. In its most general sense, it is the instrument of patterned human interaction. […] A format entails formally a contingent interaction between at least two acting parties, contingent in the sense that the responses of each member can be shown to be dependent upon a prior response of the other.” (BRUNER, 1985, p. 39) 31 importância de se usar esse tipo de interação rotinizada nas escolas, principalmente como ferramenta para aquisição da linguagem. Esses formatos lúdicos são essenciais para a entrada da criança na linguagem, pois garantem o auxílio do adulto na interação. Sendo assim, funcionando como suporte à aquisição da linguagem, as rotinizações asseguram o desenvolvimento da fase pré-linguística para a linguística. Nesse sentido, o desenvolvimento linguístico se dá pela existência de um sistema de suporte/andaime, como proposto por Bruner (1983b). Assim, segundo ele, esse sistema se dá através de frases gramaticais mais simples, uso de fala e gestos, criação e recriação de uma situação através da linguagem, troca de turno de fala, pedido, nomeação etc. Sendo assim, Bruner (1983b) afirma que os gestos “são uma rica fonte de oportunidade para a aprendizagem e utilização da linguagem” (p. 36), em mais um diálogo, portanto, com uma abordagem que envolve a multimodalidade. Dessa forma, Bruner (1997) afirma que no processo de aquisição da linguagem, a criança é muito sensível ao contexto, sendo assim, por meio de atividades rotinizadas, as crianças conseguem ‘capturar’ a construção dos significados, e o desenvolvimento linguístico acontecerá de forma mais satisfatória quando a criança compreende esses significados e a situação comunicativa. Nesse sentido, ao se debruçar sobre o processo de aquisição da linguagem infantil, os formatos são fundamentalmente considerados e analisados. Assim faremos no presente trabalho. 8 Além da importância do contexto, seguindo a abordagem bakhtiniana, a relação entre os enunciados é fundamental no estudo da linguagem da criança. Sendo assim, partiremos para as discussões a respeito do encadeamento discursivo. 8 Ressalta-se aqui, a dificuldade de dissociação entre as noções de gênero e formato. Sendo assim, consideramos as especificações do gênero escolar que são fundamentais para o processo de aquisição da linguagem e, dentre essas especificações, estão as atividades rotinizadas - formatos. 32 1.3 Atitude responsiva A partir da relação dialógica entre discursos proposta pelas reflexões bakhtinianas, quebra-se a noção de que a troca de enunciados é algo fixo e restrito, isso porque o diálogo não se restringe a uma pergunta e a uma resposta, ou seja, o ouvinte não é mero receptor passivo da mensagem. Considerando que a enunciação “é produto da interação entre falantes e em termos mais amplos, produto de toda uma situação social em que ela surgiu” (Bakhtin 2004, p. 79), quando o ouvinte recebe a informação do falante, o mesmo se coloca em uma atitude responsiva ativa. A alteridade discursiva – relação entre eu e o outro - pressupõe então não um interlocutor que apenas compreende o locutor, mas que responda a ele, materializando sua resposta de forma externa ou interna. Segundo Faraco, todo enunciado é “...um ato singular, irrepetível, concretamente situado e emergindo de uma atitude ativamente responsiva, isto é, uma atitude valorativa em relação a determinado estado de coisas. Em outras palavras, estabelece-se aqui a correlação estreita entre o enunciado e a situação concreta de sua enunciação, bem como entre o significado do enunciado e uma atitude avaliativa ” (2009, p. 24). Essa atitude responsiva em relação ao que é dito pelo locutor, segundo Bakhtin (1993), sempre possui uma apreciação valorativa, isso porque todo enunciado é perpassado por inúmeras ideologias. Essa apreciação parte das avaliações que fazemos dos fatos e do mundo a partir de nossos conhecimentos, os quais adquirimos em relação com outros sujeitos e em diferentes contextos sócio-históricos. Nesse sentido, é possível afirmar que todo enunciado emerge de uma atitude responsivo-avaliativa em relação à realidade e em relação a outros enunciados. Há, portanto uma relação dialógica entre todos os discursos, seja uma relação explícita ou implícita. Levando em consideração o pensamento bakhtiniano e avançando nos estudos de Aquisição da Linguagem, Chacon Jurado Filho e Zaniboni (2014) escreveram sobre o par dialógico pergunta e resposta, e afirmam que o mesmo é definido como ciclo em que uma pergunta é seguida por uma resposta, mantendo uma ligação entre elas. 33 Dessa forma, nota-se uma constante relação na organização conversacional em que, dentro de uma relação dinâmica e recíproca, a resposta mantém uma ligação contínua com o discurso anterior, ou seja, a pergunta. Nesse sentido, os autores propõem uma classificação das respostas em: desenvolvidas ou não-desenvolvidas. As primeiras, respostas desenvolvidas, seriam aquelas em que “além de o falante (co)responder às solicitações enunciadas pelo interlocutor, ele – o falante – se estende no seu dizer, progredindo sua fala de modo a acrescentar e a enriquecer a informação que lhe foi solicitada” (Chacon e Zaniboni, 2014, p. 247) Por outro lado, as respostas não-desenvolvidas são aquelas em que “o falante não se estende no seu dizer, nem mostra progressão em sua fala, já que não acrescenta elementos nem enriquece a informação solicitada.” (Chacon e Zaniboni, 2014, p. 247) Assim, ao considerar as reflexões propostas acima e levando em conta a noção de alteridade proposta por Bakhtin e da importância da interação com o adulto proposto por Vygotsky e Bruner, observa-se que, estando criança e adulto em uma situação conversacional, as perguntas e instigações feitas pelo adulto contribuem para a construção e para o desenvolvimento do discurso infantil, uma vez que essas perguntas suscitam respostas, e essas respostas vão aumentando conforme a criança vai adquirindo conhecimentos na relação com o meio. Ao analisar as respostas da criança e considerando o papel importante que o outro assume em nossa perspectiva teórica, um aspecto importante a se levar em consideração é o fato de que o tipo de pergunta feita pelo adulto pode direcionar a um tipo de resposta que não permite que a criança inove, complete e desenvolva (são questões mais diretivas) ou, ao contrário, pode deixá-la mais livre para produzir (perguntas abertas que permitem que a criança fale o que quiser, sem haver, portanto, apenas duas opções, como, por exemplo, sim e não). Não se trata, portanto, de uma total autonomia no sentido de se desligar totalmente da fala do “outro”, se considerarmos, em consonância com a teoria bakhtiniana, que nossos discursos dialogam o tempo todo com outros discursos, mas de atribuir um olhar para o desenvolvimento na aquisição da linguagem que 34 permite à criança, usar essa língua, sem se restringir a manifestações “mais simplificadas” e restritas ao que é solicitado na pergunta. Assim, apresentados os referenciais teóricos relacionados à perspectiva teórica adotada neste trabalho, faremos agora uma reflexão acerca do bilinguismo, fenômeno linguístico a ser discutido a partir dessa abordagem, em contexto escolar. 2. Bilinguismo 2.1 Diferentes concepções do fenômeno O fenômeno do bilinguismo pode ser estudado sob diversas vertentes e sob diferentes pontos de vista. Interessa-nos abordar a questão de modo a discutir tal fenômeno, a partir da Aquisição da Linguagem, em uma abordagem dialógico-discursiva, a partir de dados de uma criança que tem duas línguas em casa e outra na escola, ambiente este último que está sendo estudado aqui. São, portanto, muitas nuances, particularidades a serem consideradas com relação a esse tema. Tendo em vista as mais diversas definições de bilinguismo, apresentaremos, aqui, algumas dessas discussões. Inicialmente, propostas amplas como a de Maher (2007) afirmam que ser bilíngue significa fazer uso de mais de uma língua. Entretanto, por se tratar de uma definição muito genérica, não é possível delimitar, de fato, quem é sujeito bilíngue e o que se entende por ‘usar uma língua’. Bloomfield (1933), um dos primeiros autores a discorrer sobre as definições de sujeito bilíngue, afirmou que o bilíngue é aquele capaz de controlar duas línguas assim como faz um monolíngue. Assim, um bilíngue (inglês- português) seria capaz de administrar o uso das línguas assim como faria um nativo de língua inglesa e também um nativo de língua portuguesa. Entretanto, por considerar um uso idealizado por parte do falante, uma vez que prevê a aproximação com competências linguísticas de sujeitos nativos, sua definição foi alvo de críticas de muitos estudiosos da área. 35 Nesse sentido, Maher (2007, p. 73) afirma que O bilíngue – não o idealizado, mas o de verdade – não exibe comportamentos idênticos na língua X e na língua Y. A depender do tópico, da modalidade, do gênero discursivo em questão, a depender das necessidades impostas por sua história pessoal e pelas exigências de sua comunidade de fala, ele é capaz de se desempenhar melhor em uma língua do que na outra – e até mesmo de se desempenhar em apenas uma dela sem certas práticas comunicativas. Assim, considerando que as competências linguísticas de sujeitos bilíngues não devem ser comparadas com as de falantes monolíngues, Grosjean (1984) discorre sobre o uso de diferentes línguas, demonstrando que a demanda de utilização de uma língua ou de outra são diferentes, e que, portanto, dependendo do contexto e do uso, as necessidades de comunicação variam. Sendo assim, bilíngue é aquele que utiliza, no dia a dia, duas línguas diferentes, e não apenas domina as competências dessas línguas. Nessa perspectiva, ser bilíngue ou não se relaciona muito com a utilidade e adaptação do sujeito em relação à(s) língua(s) em situações cotidianas. Segundo o mesmo autor (2001), dependendo da situação, dos participantes envolvidos no contexto comunicacional, da temática em questão, do nível de formalidade etc, o sujeito pode utilizar o modo monolíngue ou o modo bilíngue. Dessa forma, o falante, ao comunicar-se com um sujeito monolíngue, irá utilizar apenas uma língua, mas, por outro lado, quando estiver em contato com um sujeito bilíngue, fará a mistura das línguas (code-switching). Há, portanto, uma mudança de postura dependendo da circunstância. Nas palavras de Grosjean (1984, p. 16), “A pessoa torna-se bilíngue porque precisa se comunicar com o mundo ao seu redor pelo intermédio de duas línguas.” Ainda em oposição ao pensamento de Bloomfield, Macnamara (1967) conceitua o indivíduo bilíngue como sendo qualquer sujeito que tenha competência, por menor que ela seja, em uma das quatro habilidades: compreensão, produção, leitura ou escrita. Nessa perspectiva, há, igualmente, o abandono da noção de bilíngue ideal/perfeito. Houwer (1990), por outro lado, afirma que existem muitas situações que podem tornar uma criança bilíngue, entre elas, saber apenas uma língua e aprender a segunda com o passar dos anos, ou a criança pode nascer em um 36 ambiente em que duas ou mais línguas são faladas, ou ainda ela pode falar uma língua inicialmente e, com o passar do tempo, aprender outra que a substitua etc. De acordo com a autora, uma língua não impede o desenvolvimento de outra. Ademais, Houwer (2000) discute que estar exposto e interagir em duas línguas não é garantia de que a criança se torne falantes de ambas. Há a possibilidade da criança se comunicar apenas em uma ou outra, e isso se deve a diferentes fatores, entre eles a interferência da língua da comunidade, situação socioeconômica, língua utilizada pelos pais etc. De maneira mais geral, ainda sobre as definições de bilinguismo, Harmers & Blanc (2000) afirmam que o bilinguismo é algo complexo que depende de muitas instâncias de análise, entre elas análises individual, interpessoal, intergrupal e social. Entretanto, tal definição contém entraves, uma vez que os autores consideram “que as culturas seriam conjuntos de traços ou características fixas, imutáveis, que cada grupo que vive em determinado país possuiria e que o faria ser reconhecido como pertencente a uma nacionalidade específica.” (MEGALE, 2019, p. 20). Discordamos dessa concepção pois acreditamos no aspecto dinâmico das línguas e, portanto, das culturas em que elas estão inseridas. Bullio (2014, p. 32) afirma que considera o fenômeno do bilinguismo “[...] como um processo comparável (mas não igual) ao de aquisição de LM, em que o indivíduo adquire duas línguas simultaneamente independentemente de seu nível de competência [...].” Em síntese, diferentes autores dirigem seus olhares ao sujeito bilíngue, uns considerando habilidades de fala, leitura e escrita e aproximação do uso de nativos, outros considerando, de maneira mais ampla, a exposição e uso de duas ou mais línguas. Diante da amplitude de conceitos e discussões sobre o bilinguismo, nesta pesquisa, concordamos com a perspectiva adotada por Bullio (2014) e Santis (2020), que adotam as reflexões de Grosjean9, uma vez que o mesmo, além de considerar aspectos socioculturais e interacionais, fato que 9 Alternância de línguas motivada pelos contextos de utilização. 37 dialoga com a perspectiva bakhtiniana que seguimos, não estabelece definições fixas de bilinguismo. Nesse âmbito, sem abandonar o viés proposto por Grosjean, ou seja, considerando o uso das línguas em relação às funções e domínios sociais, Zimmer, Finger e Scherer (2008, p. 4) afirmam compreender o bilinguismo como a habilidade de usar duas línguas, e o multilinguismo como a habilidade de usar mais do que duas línguas. Essa definição, calcada no uso, implica uma visão dos bi/multilíngues como pessoas com diferentes graus de competência nas línguas que usam. Assim, os bilíngues e multilíngues podem ter mais ou menos fluência numa língua do que em outra; podem ter desempenhos diferentes nas línguas em função do contexto de uso e do propósito comunicativo, entre outros motivos. Ademais, como salientamos a princípio que iríamos considerar como base diferentes estudos que dialogassem com nossa pesquisa, também concordarmos com Houwer (2000) no que diz respeito a não garantia de falar duas ou mais línguas apenas pela exposição e contato com as mesmas. Isso porque a aquisição e produção de uma língua parte da motivação e da necessidade de uso dessa. No caso deste trabalho – e no de outros sobre esse tema, desenvolvidos pelo grupo GEALin-UNESP – que olha para os dados a partir de uma perspectiva dialógico-discursiva, há de se considerar no bilinguismo e no multilinguismo o outro com quem o sujeito interage, os diferentes gêneros em que a(s) língua(s) se manifestam, como o sujeito, de maneira singular, vai interagir com essa(s) língua(s), nos diferentes contextos. Em vista disso, a criança A., sujeito desta pesquisa, considerado multilíngue, uma vez que utiliza, em situações do seu cotidiano, três línguas (português, francês e inglês) alterna o uso delas dependendo do contexto, da situação comunicativa, dos interlocutores e também da necessidade de produção em determinada língua ou em outra. Mas há uma particularidade a se considerar no que diz respeito aos diferentes contextos em que essas línguas são utilizadas: o francês, é utilizado em meio familiar, o português em meio familiar e na comunidade onde a criança 38 se insere, e o inglês apenas no contexto escolar. E é desse contexto que trataremos a seguir. 2.2 Educação Bilíngue De acordo com Hamers e Blanc (2000, p. 189), a educação bilíngue consiste em “qualquer sistema de educação escolar no qual, em dado momento e período, simultânea ou consecutivamente, a instrução é planejada e ministrada em pelo menos duas línguas”. No mesmo sentido, Bullio (2014, p. 3) afirma que “[...] a educação bilíngue envolve ensinar conteúdos regulares em duas línguas, na língua nativa do país e em uma outra”. Ademais, segundo Maher (2007, p. 12) “a educação bilíngue deve ter também como um de seus objetivos centrais viabilizar diálogos entre conhecimentos e comportamentos construídos sob bases culturais distintas e, por vezes, conflitantes.” Ainda segundo Harmers e Blanc (2000), a educação bilíngue é determinada por fatores históricos, sociais, ideológicos, psicológicos e variadas relações de poder. Ela se subdivide em dois grandes domínios: educação bilíngue para grupos dominantes e educação bilíngue para grupos minoritários. Como apresentado na introdução, o Brasil é um país plurilíngue, entretanto ainda paira no senso comum a ideia do mito do monolinguismo no país, como afirmado por Cavalcanti (1999). Essa falsa ideia de uma única língua falada no país decorre, segundo a autora, de alguns fatores, entre eles a tentativa de apagamento de línguas minoritária, a invisibilidade de contextos bilíngues de minoria social, como indígenas surdos e moradores de fronteiras e ainda o reconhecimento do bilinguismo vinculado às línguas majoritárias – línguas de poder. 2.2.1. Bilinguismo de língua minoritária em escolas No Brasil encaixam-se como educação bilíngue de grupos minoritários: educação de surdos, indígena e em escolas de fronteiras. Faremos um breve panorama sobre cada uma delas, abaixo, a título de contextualização. - Educação de surdos: 39 No Brasil, ainda que a Língua de Sinais brasileira (LIBRAS) tenha se tornado língua oficial do país a partir da Lei 10.436 e do Decreto 5.626, ela ainda é tida, pela maioria da sociedade, como língua minoritária. Nessa esteira, ao se tratar do ensino bilíngue, devido a questões sociais e ideológicas, este é, muitas vezes, erroneamente, considerado estigmatizado. Considera-se como proposta educacional bilíngue aquela em que, na maioria dos casos, a língua de sinais é tida como sendo a primeira língua, a qual propicia, através dela, o aprendizado da segunda língua, a Língua Portuguesa. Este tipo de ensino ainda não conta com políticas educacionais adequadas e precisas, no Brasil, para que a comunidade surda se torne independente da comunidade linguística majoritária, uma vez que, como proposto pelo MEC, a língua de sinais tem papel de facilitador ao acesso à cultura ouvinte e principalmente funciona como recurso de transição para o ensino a ser processado em Língua Portuguesa. Segundo Adriana da Silva Thoma (2016, p.759) “A educação bilíngue que tem sido proposta pelas políticas atuais no Brasil constitui-se também de ambiguidades. Por um lado, é resultado da luta pelo direito dos sujeitos surdos a uma educação em língua de sinais e em língua portuguesa; por outro, pode ser entendida como uma prática biopolítica de governamento que atua sobre a população escolar surda mediante sua inclusão na escola e no mercado de trabalho, subjetivando, normalizando e conduzindo as pessoas com surdez para serem economicamente produtivas e potencialmente consumidoras.” - Educação indígena: A Constituição Federal de 1988, no § 2º do artigo 210 garantem direito linguístico à população indígena, através do direito de “utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”. Assim, em determinação pelo CNE (Conselho Nacional de Educação), as unidades escolares localizadas em terras indígenas devem ministrar aulas em suas línguas maternas. Embora o direito seja garantido por lei, a educação bilíngue indígena não ocorre de fato em todos os locais marcados por diferentes etnias. Daí a necessidade de desenvolvimento efetivo desse tipo de bilinguismo a fim de garantir a permanências as línguas e culturas indígenas. De acordo com o parecer CNE/CEB nº: 2/2020 (p. 4) sobre “Diretrizes Curriculares Nacionais para a oferta de Educação Plurilíngue.” Se no passado trilhamos percursos sombreados pelo silenciamento de línguas e culturas, buscando a exclusividade da língua portuguesa, já 40 é tempo de rumarmos na direção de políticas educacionais de valorização, respeito e congraçamento da diversidade cultural e linguística do Brasil – que contempla centenas de línguas indígenas, pelo menos 30 de comunidades descendentes de imigrantes e as práticas linguísticas tradicionais das comunidades afro-brasileiras, em especial as quilombolas. - Educação em Escolas de Fronteira: De acordo com Lemos (2020, p. 50) “[...] as fronteiras geográficas, sejam elas secas ou fluviais, principalmente constituídas por cidades-gêmeas, favorecem e consolidam o contato linguístico”. Assim, nas escolas de fronteira, são realizados projetos de bilinguismo entre as línguas e interculturalidade. Nesse sentido, segundo o documento de Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Plurilíngue, a “proposta sugere uma abordagem cujos princípios são o interculturalismo, o respeito pelo outro e práticas linguísticas igualitárias que valorizem o repertório linguístico do aprendiz.” (BRASIL, 2020, p. 8) Embora esse tipo de educação bilíngue também tenha um respaldo legal garantido pelo MEC (Ministério da Educação), há lacunas entre a lei e a realidade. Assim, segundo Lorenzetti (2016), problemas como cortes nos fundos, ausência de intercâmbio de docentes e de planejamentos conjuntos têm afetado a atuação das escolas de fronteira. Passemos agora para o contexto de línguas majoritárias, contexto em que se insere o nosso corpus. 2.2.2 Bilinguismo de língua majoritária (Inglês) em escolas Em relação à educação bilíngue de línguas majoritárias, como dito anteriormente, há evidências do exponencial crescimento desse contexto de bilinguismo no país. Diante do mundo globalizado, de fato, o inglês se coloca como língua de comunicação global e essa é apenas mais uma característica proporcionada por esse tipo de ensino. Sendo assim, as escolas de prestígio, em sua grande maioria, visam à atuação de alunos ideais que interajam facilmente com o mundo globalizado, uma vez que se acredita no poder da supercomunicação da língua inglesa (FORTES, 2014), principalmente valorizando a produção oral, que é mais usada 41 na comunicação direta, a chamada “conversação em inglês”. Deposita-se, assim, na criança, uma existência no futuro, como parte de um mercado de trabalho competitivo, que, para se destacar, precisa refinar suas habilidades desde cedo (GARCIA, 2009). Nesse sentido, além de abrir portas para que o indivíduo se insira em um mundo integrado, a língua inglesa, que aparece nas propostas de ensino destas escolas bilíngues, é socioculturamente valorizada. Isso se dá, pois, acredita-se que ao ter contato com duas línguas e com duas culturas diferentes, o aluno já se encontra em um patamar pessoal, social e profissional, mais elevado em relação aos demais. Nesse cenário educativo encaixam-se, segundo Megale (2019), três tipos de escolas: - escolas bilíngues com currículo único que decidem quais conteúdos serão ministrados em uma língua e quais serão ministrados em outra. - escolas com currículo adicional, as quais visam a implementação de programas bilíngues em escolas regulares. - escolas com currículo optativo que oferecem atividade extra/complementar para ensino da segunda língua que pode ocorrer na abordagem CLIL [ Contentand Language Integrated Learning] – ensino de língua estrangeira de forma integrada. Esse tipo de educação, por estar relacionado às línguas de prestígio em âmbito nacional e internacional, foi denominado por Cavalcanti (1999) de escola bilíngue de elite e por Megale (2017) por EBB – “escolas bilíngues brasileiras”, termo usado pela pesquisadora para se referir às escolas de elite que, segundo a autora, usam a LE como forma de prestígio social. Em decorrência do significativo aumento dessas escolas no território nacional e a ausência de regulamentação direcionada a elas, houve, em 2019, a elaboração do documento intitulado “As Diretrizes Curriculares Nacionais para a oferta de Educação Plurilíngue” 10. O documento aprovado em 09 de julho de 2020 e organizado pelo CNE, O Conselho Nacional de Educação e aprovado 10 Parecer CNE/CEB nº 2/2020 disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=90801 42 pela Câmara de Educação Básica (CEB) prevê a normatização da educação bilíngue no país. Para elaboração do mesmo, uniu-se uma comissão formada por estudiosos e especialistas da área, representantes de populações indígenas e surdas, além de pessoas de instituições superiores públicas e privadas. Sabe-se, através do documento, que o uso da língua portuguesa na educação básica visa à comunicação efetiva entre todos os brasileiros, à manutenção do patrimônio histórico e também à continuidade da unidade nacional. Entretanto, “somam-se à Constituição Federal os postulados com os quais o Brasil se comprometeu, em decorrência da assinatura de tratados de cooperação internacional com implicações para o bilinguismo.” (BRASIL, 2020, p. 11) O parecer afirma que as demandas por normatização de educação bilíngue/multilíngue que chegam ao CNE se reportam essencialmente às chamadas línguas de prestígio, com destaque para o inglês, haja vista o seu caráter de língua franca na contemporaneidade. (BRASIL, 2020, p. 14) A resolução do Parecer CNE/CEB nº 2, de 9 de julho de 2020, homologado por Despacho do Senhor Ministro de Estado da Educação resolve que “As Escolas Bilíngues se caracterizam por promover currículo único, integrado e ministrado em duas línguas de instrução, visando ao desenvolvimento de competências e habilidades linguísticas e acadêmicas dos estudantes nessas línguas.” (BRASIL, 2020, p. 24). Além disso, declara que as escolas que contemplarem todas as etapas de educação básica (Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio) só podem ser denominadas bilíngues se ofertarem, para todas essas etapas, um projeto pedagógico bilíngue. Afirma, ainda, que todas as escolas devem seguir a legislação da BNCC (Base Nacional Comum Curricular). Vale ressaltar que As Escolas com Carga Horária Estendida em Língua Adicional não se enquadram na denominação de escola bilíngue, mas se caracterizam por promover o currículo escolar em língua portuguesa em articulação com o aprendizado de competências e habilidades linguísticas em línguas adicionais, sem que o desenvolvimento linguístico ocorra integrada e simultaneamente ao desenvolvimento dos conteúdos curriculares. (BRASIL, 2020, p. 24) Em relação à carga horária, o documento determina que na Educação Infantil e no Ensino Fundamental, o uso da segunda língua deve abranger entre 43 30% (trinta por cento) a 50% (cinquenta por cento) das atividades curriculares. Já para o Ensino Médio prevê que o uso da língua estrangeira abarque, no mínimo, 20% (vinte por cento) do currículo oficial. Em relação à formação de professores, fica esclarecido que poderão compor o corpo docente de escolas bilíngues os profissionais que, além de formados em Pedagogia ou Letras, tenha proficiência de nível mínimo B2 no Common European Framework for Languages (CEFR) e formação complementar em Educação Bilíngue, incluindo curso de extensão, pós- graduação, mestrado ou doutorado. Em relação à organização curricular, inclui I - disciplinas da Base Comum, exclusivamente ministradas na segunda língua de instrução, sendo responsabilidade da escola cumprir o disposto na BNCC para o componente curricular de língua portuguesa em todas as etapas da Educação Básica; e II - disciplinas da Base Diversificada do Currículo a serem ministradas na segunda língua de instrução, podendo essas disciplinas ser desdobramentos da Base Comum ou projetos transdisciplinares que busquem o desenvolvimento das competências e habilidades linguísticas da língua adicional e competências acadêmicas. (BRASIL, 2020, p. 26) Por fim, em relação às avaliações, declara que as mesmas – sobre a língua adicional, devem seguir o currículo da escola. Salienta-se, ainda, que as escolas, para se encaixarem nos padrões estabelecidos acima, devem se adequar até dezembro de 2021 (Educação Infantil) e até dezembro de 2022 (Ensino Fundamental e Médio). Acreditamos ser pertinente trazer essas informações considerando que este é o contexto de educação bilíngue em que esta pesquisa se insere. Esse contexto nos ajuda a compreender o sujeito cujos dados vamos aqui analisar, pois trata-se olhar para uma língua (o inglês) com a qual a criança interage, apenas nesse contexto, ou prioritariamente nesse contexto, já que, no ambiente familiar, por desejo dos próprios pais, esta língua não deve ser utilizada, ela deve restringir-se ao ambiente escolar. 44 Assim, depois de apresentados os diferentes contextos de educação bilíngues existentes no contexto nacional, e, em especial, o do ambiente em que os nossos dados nascem, trataremos, na sequência, de uma questão que pode ser encontrada nesses diferentes contextos e que depende, sem dúvida, além desses contextos, os interlocutores que participarão das interações, o code- switching. 2.3. O code-switching O code-switching (doravante CS) define-se como sendo o “[...] trânsito entre dois ou mais códigos distintos, que co-ocorrem durante a interação dos sujeitos.” (SOARES, 2012, p. 6). Assim, embora haja divergência de opiniões quanto a conceitualização do termo, assim como ocorre com o fenômeno do bilinguismo, consideraremos, de forma genérica, para esse trabalho, a noção de troca de registro. Aqui, em específico, entenderemos o CS como troca e mistura entre o português e o inglês, assim como o faz Bullio (2014)11. Há muitas discussões que permeiam esse assunto, como, por exemplo, motivações que levam ao uso do CS, porém não é nosso objetivo discuti-las aqui, já que, para esse trabalho, apenas nos interessa mostrar que o sujeito da pesquisa, sendo bilíngue/multilíngue, produz, em alguns casos, enunciados utilizando a mistura do inglês e do português, em geral, no nível lexical. Por fim, vale ressaltar que embora alguns estudiosos se refiram ao fenômeno da mistura/ troca de línguas como algo estigmatizado, relacionado a um “bilíngue imperfeito”, em nossa concepção, essa mistura/ troca das duas línguas é natural e esperada no desenvolvimento linguístico da criança, já que a separação dos sistemas das línguas se dá como um processo gradual. 2.4. Pesquisas sobre crianças bilíngues Neste último item da fundamentação teórica, acreditamos ser importante fazer uma breve revisão de literatura dos trabalhos realizados com crianças bilíngues, retomando, primeiramente as pesquisas do grupo GEALIn-UNESP, 11 Destaca-se, entretanto, que em seu trabalho, a pesquisadora Paula Bullio (2014) trata do CS como sendo a troca entre o português e o francês. 45 que serviram de base para este trabalho, dentro de uma perspectiva dialógico- discursiva, e, em seguida, trazemos alguns trabalhos, fora do grupo, que se dedicaram ao contexto escolar e que igualmente serviram como ponto de partida para esta pesquisa. Começando pelos trabalhos do grupo, Bullio (2008) em sua dissertação de mestrado “Mediação cultural no processo de aprendizagem de inglês como língua estrangeira” tinha como objetivo “observar se o aluno era capaz de aproximar a cultura da LE à sua, o que resultaria em uma nova identidade construída por meio da diferença, ou se o mesmo entende a outra cultura glorificando-a ou não.” (ibid., p. 21). Os resultados mostraram que embora seja necessário que os alunos sejam conscientes do que é cultura e da sua importância para a aprendizagem, esse não foi um aspecto muito explorado nas aulas gravadas. Diante das reflexões, a pesquisadora ressalta a importância dos aspectos sociais, culturais, ideológicos e do contexto para aprender uma língua estrangeira. Já em sua tese de doutorado intitulada “Referência e code- switching: traços de singularidade na linguagem de uma criança bilíngue”, Bullio (2014) explorou o fenômeno do bilinguismo aliado às discussões de referência, ou seja, considerando a “[...] constituição da singularidade desta criança, por meio do uso que ela faz de expressões referenciais de autodesignação e de designação do outro [...].” (ibid., p. 2) e às discussões de code-switching – troca entre o português e o francês. Seus resultados mostram que a subjetividade da criança pode ser recuperada por marcar linguísticas e que essas marcas são semelhantes às usadas pelos pais da criança. Gonçalves (2017) em seu trabalho intitulado “Aquisição/aprendizagem de inglês em uma escola bilíngue do Estado de São Paulo analisa o caso de três crianças brasileiras em uma sala da educação infantil”. Seu objetivo era compreender o processo de aquisição/aprendizagem de três crianças brasileiras (A; F; L;), entre 0 e 3 anos, filhas de pais não falantes de inglês como língua materna. O sujeito A. é o mesmo da pesquisa em questão e o contexto de obtenção dos dados é o mesmo, uma escola de educação infantil bilíngue do interior de São Paulo. Ao fim do trabalho, a pesquisadora considerou que as crianças “[...] produzem, majoritariamente, no PB, mas trazem algumas palavras e expressões em inglês para o seu discurso e em relação à compreensão, elas 46 demonstram compreender o inglês falado pelas professoras em sala de aula.” (ibid., p. 32). De Santis (2020) em sua pesquisa de mestrado intitulada “A linguagem dirigida à criança em uma sala da educação infantil bilíngue inglês/português: efeitos sobre o desenvolvimento da linguagem da criança” teve como objetivo o estudo das características da LDC e os efeitos dessas para a atenção dos alunos e correspondência de diretivos. Vale ressaltar que a pesquisa de De Santis foi desenvolvida a partir dos mesmos dados da presente pesquisa, com foco na linguagem das três crianças (A., L. e F.), assim como o fez Gonçalves (2017). Entre outros resultados, interessam-nos os resultados que mostram os enunciados diretivos das professoras, os quais “se fazem necessários no ambiente escolar e contribuem para a aquisição de linguagem, de conhecimento e de determinados comportamentos sociais.” (ibid., p. 113). Além disso, considerando uma perspectiva multimodal da linguagem, a pesquisadora observou que a utilização de gestos, modulações vocais, interações rotinizadas, entre outros fatores, contribuem para a aquisição da linguagem, uma vez que auxiliam no entendimento dos enunciados e, consequentemente – considerando a responsividade ativa proposta pela perspectiva bakhtiniana – na produção de novos enunciados. Em trabalhos desenvolvidos fora do grupo GEALin, destacamos o de Soares (2004) e Leite (2013). Vale dizer que ainda são escassos os trabalhos que trazem o contexto escolar bilíngue “de prestígio” ou “brasileiro”, na área de aquisição da linguagem. A fim de analisar a interação entre professora e alunos em um contexto de ensino fundamental bilíngue (inglês/PB) situado em uma comunidade monolíngue, Soares (2004) estudou em seu mestrado intitulado “Interação em sala de aula bilíngue (inglês/português): fatores linguísticos e extralinguísticos” quatro sujeitos entre 6 e 7 anos, coletando dados por meio da captura do áudio e de anotações que incluíam detalhes gestuais e comportamentais. Os sujeitos, segundo ela, encontram-se em contexto de aquisição/aprendizagem de língua como (AAB), ou seja, são falantes de inglês em semi-imersão e usam essa língua para se comunicarem com a professora em situações formais e em casa com 47 um dos pais, se esse for bilíngue. Entretanto, objetivando averiguar se existe uma diferença de comportamento linguístico entre filhos de pais monolíngues ou pais bilíngues, metade dos participantes eram filhos de pais bilíngues. Vale ressaltar que, para o recolhimento dos dados, a pesquisadora solicitou que algumas atividades fossem aplicadas aos alunos pela professora, isso significa que nem todo o corpus se compõe de situações naturalísticas. Além disso, a pesquisadora analisou desenhos dos alunos com o objetivo de observar diferenças culturais em seus discursos. Ao final da pesquisa, Soares constatou que o discurso das crianças revela tanto características do discurso da sala de aula (correção, ênfase na forma) quanto da comunicação natural (foco na mensagem). Assim, quanto ao uso da língua-alvo, observou que, independentemente da família, todos apresentam características semelhantes quanto ao uso, principalmente no que se refere à interferência interlingual (code- switching). Essa interferência se dá, principalmente, pela troca do léxico pelo português. Ademais, ainda em relação aos trabalhos que envolvem a educação bilíngue (inglês/ português), Leite (2013), em sua dissertação intitulada “O desenvolvimento da interlíngua na aprendizagem da escrita em inglês em uma escola bilíngue: um estudo exploratório”, ao analisar dados de 38 alunos do 2º Ano do Ensino Fundamental I em uma escola bilíngue da cidade de Natal-RN, teve como objetivo analisar o desenvolvimento da língua inglesa na modalidade escrita – nível ortográfico a partir de diferentes inputs que lhes era fornecido, incluindo a multimodalidade (diferentes modos semióticos). Ressalta-se que todos os participantes têm o português como língua materna. Ao que nos interessa retratar aqui, os resultados mostraram que a qualidade da informação fornecida aos alunos contribui para aprendizagem, assim, a variação do que é fornecido em sala de aula enriquece o processo de ensino-aprendizagem. Considerando os trabalhos do grupo, bem como os outros relatados, podemos dizer que todas as pesquisas contribuem de maneira significativa para o decorrer do atual trabalho, fornecendo pistas sobre a aquisição do inglês e deixando reflexões relevantes a serem aproveitadas no andamento da pesquisa. Entre elas, destacamos a importância dos aspectos socioculturais e ideológicos no processo de aquisição, discussões sobre bilinguismo, educação bilíngue e 48 code-switching, linguagem dirigida à criança e a importância de enunciados diretivos e ainda reflexões sobre a importância do contexto e de um input variado para o processo de aquisição/aprendizagem da língua inglesa. O presente trabalho, entretanto, se diferencia dos demais e, portanto, pretende deixar contribuições para a área, uma vez que, utilizando os óculos bakhtinianos, em um contexto específico de ensino infantil bilíngue, brasileiro, e a partir dos dados um sujeito multilíngue, analisa as respostas da criança a fim de observar como a mesma se coloca no discurso, observando a relação dessas respostas com os formatos e com a pergunta do professor/outro. Capítulo 2: Metodologia As questões teóricas acima mobilizadas se unem para dar base ao presente trabalho em que, sob um novo prisma, trazemos o gênero discursivo e os formatos a fim de compreender a forma como se dá a construção do discurso de A., no ambiente escolar bilíngue (Português/Inglês) frequentado pela criança, localizado no interior do estado de São Paulo. Nesse contexto, salientamos as particularidades do sujeito que vem de um ambiente familiar bilíngue, em que os pais não são falantes do Inglês, mas do Português do Brasil (mãe) e do francês (pai). Segundo Bueno (2017), o gênero escolar carac