Fernanda Silva Rando AS ESPECIFICIDADES DA TRADUÇÃO DE LITERATURA INFANTOJUVENIL: ANÁLISE DE TRÊS TRADUÇÕES DE VOYAGE AU CENTRE DE LA TERRE (VIAGEM AO CENTRO DA TERRA), DE JULES VERNE São José do Rio Preto 2015 Fernanda Silva Rando AS ESPECIFICIDADES DA TRADUÇÃO DE LITERATURA INFANTOJUVENIL: ANÁLISE DE TRÊS TRADUÇÕES DE VOYAGE AU CENTRE DE LA TERRE (VIAGEM AO CENTRO DA TERRA), DE JULES VERNE Dissertação apresentada ao Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista, Câmpus de São José do Rio Preto, para obtenção do título de Mestre em Estudos Linguísticos (Área de Concentração: Linguística Aplicada). Orientadora: Profa. Dra. Cristina Carneiro Rodrigues São José do Rio Preto 2015 Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca do IBILCE UNESP - Câmpus de São José do Rio Preto Rando, Fernanda Silva. As especificidades da tradução de literatura infantojuvenil : análise de três traduções de Voyage au Centre de La Terre (Viagem ao Centro da Terra), de Jules Verne / Fernanda Silva Rando -- São José do Rio Preto, 2015 118 f. : il. Orientadora: Cristina Carneiro Rodrigues Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas 1. Tradução e interpretação. 2. Literatura infantojuvenil. 3. Sociolínguistica. 4. Ética literária. 5. Língua francesa – Estrangeirismos. 6. Viagem ao Centro da Terra - Tradução. I. Rodrigues, Cristina Carneiro. II. Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho". Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas. III. Título. CDU – 81‘255 COMISSÃO JULGADORA Titulares Profa. Dra. Cristina Carneiro Rodrigues - Orientadora Prof. Dr. João Azenha Junior Prof. Dr. Lauro Maia Amorim Suplentes Profa. Dra. Marcia do Amaral Peixoto Martins Profa. Dra. Nilce Maria Pereira DEDICATÓRIA A meus pais, Maria e Luiz, que são meus maiores exemplos. AGRADECIMENTOS A Deus, por guiar meus passos e por me dar preciosas oportunidades. À Profa. Dra. Cristina Carneiro Rodrigues, pela generosidade e dedicação com que orientou meu trabalho. Agradeço-lhe imensamente pelos conselhos, pelas opiniões e críticas que me propiciaram significativas reflexões sobre a prática tradutória. Ao Prof. Dr. Lauro Maia Amorim e à Profa. Dra. Nilce Maria Pereira, pelas valiosas sugestões durante o Exame Geral de Qualificação. Aos meus pais, Maria e Luiz, por me apoiarem incondicionalmente e por nunca terem medido esforços para que eu chegasse até essa etapa de minha vida. À minha irmã, Juliana, pela cumplicidade e pelo apoio, mesmo a alguns quilômetros de distância. À minha avó, Lourdes, e à minha tia, Eliane, pelo constante incentivo e por terem sido de suma importância em minha formação. A Bruno, pela compreensão e pela paciência durante todos esses anos. Aos professores do Programa de Pós-graduação em Estudos Linguísticos da UNESP/IBILCE que fizeram parte dessa caminhada. Aos funcionários da Seção de Pós-graduação da UNESP/IBILCE, pelo suporte e atendimento prestativo. À Capes, pelo apoio financeiro. RESUMO O tradutor de literatura infantojuvenil lida com as mesmas questões que um tradutor de literatura considerada para o público adulto, como o contexto histórico, social e cultural em que tanto o texto de partida quanto o texto traduzido está inserido. Todavia, ele deve atentar ao fato de que a LIJ apresenta um caráter assimétrico, ou seja, são adultos que escrevem, editam, traduzem e compram o livro para ―não adultos‖. Portanto, traduzir LIJ tem uma estreita relação com a imagem que o tradutor tem de seu público-alvo. Tendo como corpus de estudo três traduções do clássico da LIJ Viagem ao Centro da terra, de Jules Verne, o presente trabalho tem o objetivo geral de abordar possíveis problemáticas envolvidas na tradução de LIJ. Por meio da análise comparativa das traduções do livro mencionado, o objetivo específico da pesquisa é verificar, se, por tratar-se de uma obra voltada para crianças e jovens, os textos traduzidos tenderiam à ética da igualdade, acomodando o estrangeiro à cultura de chegada, e/ou à operação de redução, suprimindo de frases ou palavras e uso de termos genéricos em vez de específicos. A análise levou em conta, primeiramente, os elementos paratextuais e epitextuais de cada um dos livros. Em seguida, foi realizado um cotejo de trechos, que apresentavam, segundo a terminologia de Venuti (1995a), ―discrepâncias‖. A comparação dos excertos visou identificar as estratégias usadas pelos tradutores para lidar com questões relacionadas à descrição de personagens e locais, referências culturais (como nomes, comidas, costumes etc.) e históricas, termos técnicos, estrangeirismos. A fundamentação teórica tem como base os conceitos teóricos de domesticação e estrangeirização (VENUTI, 1995a e 2002) e ética da tradução (BERMAN 1995 e 2013; VENUTI, 2002; OLIVEIRA 2005, 2006, 2007 e 2008). Nas comparações dos excertos, notou-se, pela complexidade do ato tradutório, uma variação de posturas éticas em cada uma das traduções. Palavras-chave: Tradução de literatura infantojuvenil; ética tradutória; domesticação; estrangeirização; Jules Verne. ABSTRACT The translator of children’s literature deals with the same issues as the translator of adult literature, i.e., the historical, social and cultural context in which both the source text and the translated text are inserted. However, he has to pay attention to the fact that children’s literature is of an asymmetrical character, i.e., that it is written, translated, edited, and purchased by adults for “non-adults”. Therefore, the translation of children’s literature is strongly influenced by the image the translator has of its target public. Our research took into account three different translations of the classic Journey to the Center of the Earth, by Jules Verne, to address the possible issues involved in the translation of children’s literature. A comparative analysis of the translations was conducted to achieve our specific research goal, which was to find out if the fact that it is a book for children and adolescents influenced the translations regarding the ethics of equality, i.e., if they assimilate the foreign text to the target culture and/or perform reduction operations by eliminating sentences or words and by using generic terms instead of specific ones. We first took into account the paratextual and epitextual elements of each translation and then compared extracts that presented “discrepancies”, according to the terminology by Venuti (1995a). The analysis of the extracts aimed to identify the strategies used by the translators in order to tackle issues regarding the description of characters and places, cultural and historical references (such as names, food, habits, etc.), technical terms, and foreignisms. Our theoretical reference was based on the concepts of domestication and foreignization (VENUTI, 1995a and 2002) and on the ethics of translation (BERMAN, 1995 and 2013; VENUTI, 2002; OLIVEIRA, 2005, 2006, 2007 and 2008). The comparison of the extracts showed different ethical approaches in each translation, which is due to the complexity of the translation practice. Keywords: Translation of children’s literature; translation ethics; domestication; foreignization; Jules Verne. RESUMÉ Le traducteur de littérature d’enfance et de jeunesse s’occupe des mêmes questions qu’un traducteur de littérature considérée pour le public adulte, comme celles du contexte historique, social et culturel où le texte de départ et le texte d’arrivée se trouvent. Pourtant, il lui faut faire attention à l’aspect asymétrique de la littérature d’enfance et de jeunesse, c’est- à-dire que les adultes écrivent, publient, traduisent et achètent les livres pour « non adultes ». Donc, la traduction de la littérature d’enfance et de jeunesse a un rapport strict avec l’image que le traducteur a de son public. À partir d’un corpus d’étude constitué par trois traductions du classique Voyage au centre de la Terre, de Jules Verne, l’objectif général de ce travail est d’aborder les possibles problématiques de la traduction de la littérature d’enfance et de jeunesse. Réalisant une analyse comparative des traductions du livre mentionné, l’objectif spécifique de cette étude est de vérifier si, pour être un ouvrage pour des enfants et des jeunes, les textes traduits ont la tendance à l’éthique de l’égalité, qui approche l’étrange à la culture d’arrivée, et/ou à l’opération de réduction, considérée comme l’élimination des phrases et des mots et l’utilisation de mots génériques au lieu de mots spécifiques. L’analyse a pris en considération, d’abord, les paratextes et les épitextes de chacun des livres. Puis, il a été réalisée une comparaison d’extraits, qui présentaient «discrépances», selon Venuti (1995a). L’analyse des passages des traductions a cherché à identifier les stratégies utilisées par les traducteurs pour traiter des questions concernées à la description de personnages et de lieux, références culturelles et historiques, termes techniques, xénismes. L’approche théorique se base sur les concepts de domestication et d’étrangéité (VENUTI, 1995a e 2002) et d’éthique de la traduction (BERMAN 1995 e 2013; VENUTI, 2002; OLIVEIRA 2005, 2006, 2007 e 2008). Les comparaisons des extraits ont montré, en considérant la complexité de la traduction, une variation de postures éthiques entre les textes traduits. Mots-clés : Traduction de littérature d’enfance et de jeunesse ; éthique de la traduction ; domestication ; étrangéité ; Jules Verne. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Ilustração 1 – Capa de Viagem ao centro da Terra, traduzido por José Fomm Damásio, e publicado pela Matos Peixoto, na ―Coleção Júlio Verne‖, em 1965 ........................................ 72 Ilustração 2 – Capa de Viagem ao centro da Terra, traduzido por Cid Knipel Moreira, e publicado pela Ática, na coleção ―Eu leio‖, em 1994 .............................................................. 74 Ilustração 3 – Contracapa de Viagem ao centro da Terra, traduzido por Cid Knipel Moreira e publicado pela Ática, na coleção ―Eu leio‖, em 1994 .............................................................. 75 Ilustração 4 – Capa de Viagem ao centro da Terra, traduzido e adaptado por Walcyr Carrasco, e publicado pela Moderna, na série ―Clássicos Universais‖, em 2012..................................... 77 Ilustração 5 – Exemplo do tipo de nota presente na tradução e adaptação de Walcyr Carrasco, da Série ―Clássicos Universais‖, para a editora Moderna ........................................................ 78 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................................ 12 CAPÍTULO 1 – LITERATURA INFANTOJUVENIL ................................................................... 19 1.1 Contextualização histórica .......................................................................................... 19 1.2 Literatura infantojuvenil no Brasil ............................................................................ 26 CAPÍTULO 2 – TRADUÇÃO E ÉTICA ....................................................................................... 39 2.1 Tradução na reflexão pós-moderna ........................................................................... 39 2.2 Ética na tradução ..........................................................................................................45 2.3 Tradução de literatura infantojuvenil ........................................................................ 51 CAPÍTULO 3 – CORPUS E METODOLOGIA ............................................................................. 59 3.1 Jules Verne e suas Viagens extraordinárias ................................................................ 59 3.1.1 Viagem ao centro da Terra..................................................................................64 3.2 Metodologia....................................................................................................................67 CAPÍTULO 4 – ANÁLISE ......................................................................................................... 71 4.1 Paratextos e epitextos .................................................................................................. 71 4.2 Análise dos excertos.......................................................................................................80 4.2.1 Descrição de personagens e locais ......................................................................81 4.2.2 Referências históricas e/ou culturais .................................................................. 88 4.2.3 Termos técnicos ...................................................................................................95 4.2.4 Estrangeirismos ...................................................................................................97 4.3 Considerações a respeito das análises ...................................................................... 102 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................................... 104 REFERÊNCIAS ........................................................................................................................ 111 INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como objeto de estudo três traduções, de décadas diferentes, do livro Voyage au centre de la Terre, do francês Jules Verne, consagrado no Brasil com o título Viagem ao centro da Terra. Essa obra foi inicialmente publicada na França, em 1864, pela editora Hetzel, e consolidou-se no mercado mundial como literatura infantojuvenil (LIJ). As três traduções selecionadas para a análise são as seguintes: da editora Matos Peixoto, tradução de José Damásio, de 1965; da editora Ática, tradução de Cid Knipel Moreira, de 1994; e da editora Moderna, tradução e adaptação de Walcyr Carrasco, de 2012. A literatura para o público infantojuvenil por muito tempo foi vista como uma literatura menor em relação àquela que seria destinada, editorialmente, aos adultos. O próprio Charles Perrault, por exemplo, o ―pai da literatura infantil‖, de acordo com Marisa Lajolo e Regina Zilberman (2011), quando publicou Contos da Mamãe Gansa, em um primeiro momento, recusou-se a assumir a autoria da obra e a atribuiu ao seu filho, Pierre Perrault, muito provavelmente por receio de perder o prestígio de grande intelectual que tinha na França, sobretudo, na corte francesa, ao ter seu nome vinculado ao universo infantil. Após mudanças da forma de analisar e escrever textos para crianças e jovens, atualmente, a LIJ passou a ser vista de um modo mais positivo. Contudo, como menciona Peter Hunt (2010), esse tipo de literatura é negligenciado e até, de certa forma, alvo de preconceito por parte dos acadêmicos, pois, para alguns deles, ―ela é simples, efêmera, acessível e destinada a um público definido como inexperiente e imaturo‖ (HUNT, 2010, p. 27). Historicamente, a literatura para o público infantojuvenil teve seu início estabelecido na França, no século XVII, sob a iniciativa de Perrault. No Brasil, a produção de LIJ demorou 13 a consolidar-se. De acordo com Marisa Lajolo e Regina Zilberman (2011), a LIJ brasileira só inicia efetivamente no fim do século XIX e início do XX. Antes disso, o que se via para as crianças e os jovens brasileiros era traduções portuguesas de clássicos da LIJ. Isso motivou também, no fim do século XIX, a iniciativa de traduzir e adaptar, no território brasileiro, obras para o público infantojuvenil, incluindo vários livros da série Viagens extraordinárias, de Jules Verne. Monteiro Lobato, que além de escritor atuou como tradutor nas décadas de 1930 e 1940, segundo Campos e Oliveira (2009), foi um dos grandes colaboradores desse processo. Desde então, a produção e tradução de livros destinados a crianças e jovens só aumentaram. Porém, conceituar o que seria literatura infantojuvenil não é uma tarefa das mais fáceis. Muitos autores discutem a questão e apresentam visões variadas quanto ao assunto.1 Para a escritora Zahyra Petry, literatura para crianças é ―o conjunto de obras de ficção, poesia, teatro, biografias, viagens, aventuras reais, escritas para as crianças e ajustadas à sua psicologia‖ (PETRY s/d apud DINORAH, 1996, p. 29). Já Meireles (1979) afirma que o fato de um livro ser escrito visando especificamente às crianças não significa que ele terá êxito com elas. Muitas vezes uma obra convencionada como literatura adulta pode despertar o interesse dos pequenos, como ocorreu com As viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, inicialmente publicada para o público adulto, como uma série de sátiras políticas, mas que se tornou um clássico da LIJ, sobretudo pelo seu lado de crítica social ter-se perdido ao longo do tempo e pelas suas traduções e adaptações, em geral, tê-las omitido, fazendo com que o livro se tornasse uma história de aventura. Isso se reflete também nas versões dos contos de fada, que não se direcionavam especificamente ao público infantil, segundo Zohar Shavit (1986), e que se consagraram como LIJ, após passarem por vários processos de amenização de elementos considerados violentos ou de cunho sexual, que existiam nos contos. Um exemplo de texto que foi reformulado é 1 Não foi encontrado também, tanto entre os teóricos como entre as editoras, um critério claro, por exemplo, etário ou quanto aos anos escolares, para diferenciar a literatura infantojuvenil da literatura infantil e da literatura juvenil. 14 Chapeuzinho Vermelho, cujo final, na versão de Perrault estava longe de ser aquele feliz que se vê com mais frequência, atualmente, já que a avó e a neta acabavam devoradas pelo lobo e sem o auxílio do caçador para resgatá-las da barriga do animal; e, mais distante ainda da história que circula hoje, eram as versões mais antigas, transmitidas oralmente, conforme afirma Tatar (2004), que continham forte apelo sexual, com uma Chapeuzinho sedutora. Para Meireles (1979), ―seria mais acertado, talvez, assim classificar o que elas [as crianças] leem com utilidade e prazer. Não haveria, pois, uma Literatura Infantil ‗a priori‘, mas ‗a posteriori‘‖ (p.19, itálico nosso). A teórica Riitta Oittinen (2000) apresenta uma opinião semelhante, ao definir, em seu livro Translating for Children, ―[...] literatura infantil como a literatura lida silenciosamente pela criança e em voz alta para a criança‖ (p. 4). 2 No presente trabalho, tendo em vista a falta de uma definição efetiva do que seria uma literatura para crianças e jovens e também o objeto de estudo do trabalho, Viagem ao centro da Terra, de Verne, LIJ será tratada como aquela que foi consagrada como tal, visto que o livro em questão é reconhecidamente um clássico mundial da LIJ. Desde as primeiras publicações, as obras de Verne tiveram êxito com as crianças e os jovens e muitas obras eram acompanhadas de manuais, visto que seu primeiro editor, Pierre-Jules Hetzel, tinha um projeto educativo para esse público. Segundo Viana (2013), para ele [Hetzel], as crianças e os jovens tinham o direito de receber informações para uma educação sólida, em que prevaleceriam os saberes científicos. Essas orientações pedagógicas certamente influenciaram nas sugestões que Hetzel deu a Jules Verne ao logo de sua vasta produção (p. 143) A opção pelo uso do termo ―infantojuvenil‖ decorreu igualmente da forma como cada um dos livros era apresentado pelas editoras e sua classificação no acervo da Biblioteca 2 [...] children’s literature as literature read silently by children and aloud to children. (Todas as traduções dos excertos citados foram realizadas por mim). 15 Nacional.3 Na edição da editora Matos Peixoto (VERNE, 1965), não consta nenhuma menção a que público é destinada a obra, mas, no site da Biblioteca Nacional, é classificada como LIJ. A tradução da editora Moderna (VERNE, 2012) traz na ficha catalográfica a indicação de que se trata de uma obra da literatura infantojuvenil, e essa informação também é mencionada pela Biblioteca Nacional ao definir essa edição. No site e catálogos da Ática, nota-se que a editora apresenta a tradução do livro em questão (VERNE, 1994) apenas como ―literatura juvenil‖, indicada para os alunos a partir da 7ª série (atual 8° ano do Ensino Fundamental); já no acervo da Biblioteca Nacional não há nenhuma classificação do gênero quanto a essa edição. Por esses motivos, optou-se por referir-se às obras como LIJ e não só como infantil e/ou juvenil. Além da definição de LIJ, entre os teóricos da área, é frequentemente discutido o fato de os livros infantojuvenis serem, na grande maioria dos casos, escritos, ilustrados, traduzidos, e comprados por adultos para as crianças, e de apresentarem, muitas vezes, uma censura para tratar de determinados assuntos, como questões sexuais. Eliane Debus (2012) afirma que muitos temas considerados polêmicos são evitados e que os autores tendem a criar textos com fins mais educativos para as crianças e os jovens. Isso seria motivado, segundo a autora, pela questão do produtor e receptor na LIJ, visto que haveria entre eles ―uma relação dupla‖, em que a primeira refere-se à leitura do texto, que embora tenha como alvo a criança é lido em primeira mão pelo adulto (responsável parentalmente e/ou responsável educativamente); e a segunda se refere ao conteúdo da escrita, pois o adulto julga conhecer as necessidades da criança e essas, por certo, estão vinculadas à concepção que se tem de infância. (p. 971) Hunt (2010) menciona que os escritores, muitas vezes, têm uma postura controladora quanto ao texto: ―os escritores [...] exigem que os leitores leiam apenas dentro dos limites implícitos e definidos, e os textos se tornam, nos termos do teórico Mikhail Bakhtin, ‗mais monológicos‘ que dialógicos‘ ou ‗polifônicos‘‖ (p.127); ou seja, muitos autores desejam um 3 Informações retiradas do site: http://www.bn.br/. Acesso em 06 de abril de 2015. 16 texto que restrinja as interpretações do seu público-alvo com a história. Porém, Hunt (2010) afirma que ―esse controle‖ não é possível, já que, assim como os adultos, as crianças também fazem suas leituras, são capazes de jogar com as palavras, e essas leituras não podem ser consideradas inferiores. Essas são só algumas das problemáticas envolvidas ao tratar-se da LIJ. No caso da tradução, especificamente, por serem adultos que escrevem e traduzem para crianças e jovens, traduzir LIJ tem uma estreita relação com a imagem que o tradutor tem do seu público-alvo, ou seja, ―o tradutor trabalha com a (sua) imagem daquilo que acredita ser a criança‖ (AZENHA, 2005, p. 378). No Brasil, ainda há poucos estudos que discutem as questões envolvidas na tradução de LIJ, de acordo com dados da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). Assim, pela análise das três traduções de Viagem ao centro da Terra, tem-se o objetivo de verificar, por meio da comparação de elementos paratextuais e excertos, se esses textos, publicados em décadas diferentes, por terem como público-alvo crianças e jovens, tenderiam à redução textual e/ou a uma ―ética da igualdade‖. Maria Clara Castellões de Oliveira (2005, 2007 e 2008) denomina ―ética da igualdade‖ a que busca assimilar o estrangeiro, o outro, incorporando-o à cultura que promove a tradução. A seleção dos excertos para a análise foi realizada de modo a verificar as estratégias usadas pelos tradutores para lidar com questões relacionadas a descrições de personagens, termos técnicos – já que se trata de uma obra também de ficção-científica repleta de termos, por exemplo, da área de geologia –, referências culturais e históricas, e estrangeirismos. Nesta dissertação, procura-se também discutir alguns aspectos da tradução de LIJ, como os referentes ao mercado editorial. O trabalho está dividido em quatro capítulos. No primeiro capítulo, denominado Literatura infantojuvenil, consta uma explanação a respeito de LIJ. É apresentada inicialmente uma contextualização histórica, a partir do século XVII, que é considerado o 17 marco inicial da produção literária para crianças e jovens, até o início do século XXI. Em seguida, há um item dedicado à história da LIJ no Brasil, evidenciando as questões sociais, culturais e políticas que influenciaram, por exemplo, a tardia – em comparação com a Europa – publicação de livros infantojuvenis brasileiros. O segundo capítulo, Tradução e ética, como o próprio título indica, apresenta uma revisão teórica sobre os Estudos da Tradução e divide-se em três itens. O primeiro item trata do conceito de tradução que norteou a pesquisa, aquele a partir da reflexão pós-moderna sobre tradução, que considera o ato tradutório como transformação. O segundo item problematiza a questão ética na tradução, tendo como base os trabalhos de Berman (1995 e 2013) e Venuti (1995a, 2002), em que é defendida uma ―ética da diferença‖, que, por meio de estratégias tradutórias, não oculta o estrangeiro no texto traduzido. O terceiro item trata das problemáticas envolvidas na tradução de LIJ, como as concernentes ao mercado editorial e à relação assimétrica entre o tradutor e seu público-alvo. O terceiro capítulo refere-se à descrição do corpus de estudo e à metodologia. Constam alguns dados biográficos de Jules Verne, evidenciando o seu início como escritor de romances. É apresentada também uma descrição da obra que é objeto de estudo do trabalho, Viagem ao centro da Terra. Por último, há um item dedicado à metodologia empregada, destacando os procedimentos utilizados para a coleta de dados e a seleção dos trechos das traduções analisadas. O quarto e último capítulo contempla as análises, que levam em conta tanto os elementos paratextuais e epitextuais de cada um dos livros, como a comparação dos excertos. A análise dos paratextos e epitextos de cada tradução tem a meta de verificar posturas editoriais, que poderiam refletir também em determinadas escolhas tradutórias. A análise comparativa dos excertos apresenta o propósito de identificar tendências éticas das traduções 18 e foi dividida em quatro subitens: descrição de personagens e locais, referências culturais e históricas, termos técnicos e estrangeirismos. CAPÍTULO 1 – LITERATURA INFANTOJUVENIL Comumente, o marco da LIJ é situado no século XVII, mais especificamente a partir da iniciativa do francês Charles Perrault de reunir, em forma de livro, alguns contos que circulavam oralmente entre vários grupos sociais. Essa demora no lançamento de livros específicos para o público infantil – considerando que a prensa mecânica surgiu, na Europa, no século XV – deve-se muito ao fato de que, antes dessa época, a criança não era vista como um ser diferente do adulto, ela era tratada como tal, até mesmo no modo de vestir. No Brasil, a constituição de uma literatura voltada para crianças e jovens demorou ainda mais a consolidar-se, em relação à Europa. Apenas a partir do fim do século XIX, nota-se uma iniciativa mais ampla de produção e principalmente tradução de LIJ. Tendo isso em vista, nos próximos itens deste capítulo, será apresentado um panorama histórico da LIJ, desde seu início, convencionado no século XVII, até o seu desabrochar no Brasil, elencando os processos que possibilitaram o surgimento de livros específicos para crianças e jovens. Por fim, será realizada uma explanação sobre as tendências da LIJ contemporânea publicada no país. 1.1 Contextualização histórica A prática de contar histórias, sobretudo, dos denominados contos maravilhosos, data dos primórdios da humanidade e estava fortemente arraigada na cultura oriental, cujos contos espalharam-se de boca em boca até alcançar o Ocidente e influenciaram renomados escritores do gênero, como afirma Coelho (2010): ―com relação à gênese da Literatura Popular / Infantil ocidental, sabe-se que está naquelas longínquas narrativas primordiais, cujas origens remontam a fontes orientais bastantes heterogêneas e cuja difusão, no ocidente europeu, se 20 deu durante a Idade Média, através da transmissão oral‖ (p. 7). Calila e Dimna, ainda segundo Coelho (2010), de origem supostamente indiana, de antes de Cristo, é um exemplo de ―uma coletânea de narrativas‖ que teria influenciado, séculos depois, várias histórias medievais europeias. Os contos orientais ilustravam a sociedade da época. Apresentavam tanto temas relacionados à violência e à opressão dos fortes sobre os fracos, quanto aqueles mais edificantes, com a função moralizante de transmitir alguns ensinamentos, como o respeito ao próximo. Em outra época e em outro contexto, no caso, na Idade Média, no Ocidente, muitos dos temas de tais histórias foram perdidos, sobretudo os referentes à violência dos fortes para com os fracos, muito provavelmente pelo aumento da divulgação dos ideais humanísticos, como afirma Coelho (2010). Apesar do grande número de histórias e contos que circulavam no período medieval, somente séculos mais tarde deram origem aos primeiros livros infantis, no século XVII. Isso tem relação, como já mencionado, com a visão que se tinha da criança, que, por muito tempo, foi tratada como um adulto em miniatura. Na obra intitulada História social da criança e da família, um dos pontos abordados por Ariès (1973) refere-se a como a infância e a adolescência eram vistas ao longo dos séculos na Europa. Segundo o autor, até o século XVII, não existia bem definido um ―sentimento de infância‖, ou seja, não se distinguia a infância como uma fase particular do ser humano. Nesse contexto, anterior ao século XVII, os pequenos compartilhavam até os jogos e as brincadeiras dos adultos, e, na realidade, nem quanto às roupas se diferenciavam, pois ―assim que a criança deixava os cueiros [...], ela era vestida como os outros homens e mulheres de sua condição‖ (ARIÈS, 1973, p. 69). Eram comuns também, nesse período, as brincadeiras de cunho sexual com as crianças, que não eram poupadas de praticamente nada, muito pelo contrário. Elas viviam expostas a situações, como brincar em público com a genitália das crianças, que seriam 21 consideradas aversivas atualmente, pelo menos na sociedade do mundo ocidental, que apresenta, em geral, uma postura de proteção da considerada inocência infantil. No século XVII tal panorama começou a mudar. A criança passou a ser vista com outros olhos, a ser diferenciada dos adultos, e essa mudança foi influenciada por vários fatores, dentre eles a Revolução Industrial e a ascensão da burguesia, com seus ideais cristãos e humanísticos, instaurando na sociedade ocidental uma visão mais moralizante quanto à relação entre adultos e crianças. A partir desse momento, os adultos, principalmente as mulheres, permitiram-se paparicar os pequenos que os cercavam: ―um novo sentimento da infância havia surgido em que a criança, por sua ingenuidade, gentileza e graça, se tornava uma fonte de distração e de relaxamento para o adulto, um sentimento que poderíamos chamar de ‗paparicação‘‖ (ARIÈS, 1973, p. 158). Inicia-se nesse momento uma atenção em não expor mais as crianças a situações que remetessem, por exemplo, à sexualidade ou aos de jogos e às apostas. Por conseguinte, vários elementos, como brinquedos e roupas, anteriormente compartilhados pelos adultos e pelas crianças, nesse momento se tornavam monopólio da criança, ainda que, geralmente, por meio de um processo de redução e simplificação. Logo depois, eles também se transformaram em elementos com uma função distintiva, apontando para a nova fronteira entre adultos e crianças. (SHAVIT, 1986, p. 6) 4 Evidentemente, a mudança foi significativa no século XVII, mas não radical, pois o processo de particularização das necessidades das crianças foi longo e lento. A escola, por exemplo, no século em questão, começa a sofrer uma reformulação em relação à Idade Média, em que, como afirma Aranha (2006), o ensino, para poucos, era controlado basicamente pela igreja e ―a educação surgia como instrumento para um fim maior, a salvação da alma e a vida eterna. Predominava, portanto, a visão teocêntrica, a de Deus como fundamento de toda a 4 Several elements, such as toys and dress, previously shared by both adults and children, now became the child's monopoly, although usually through a process of reduction and simplification. Soon after, they also became elements with a distinguishing function, pointing to the new border between adults and children. 22 ação pedagógica e finalidade de formação do cristão‖ (p. 129). Com a ascensão da burguesia, o desejo de uma escola secular e uma ―pedagogia realista‖, ―universal‖, ainda segundo Aranha (2006), torna-se mais efetivo. Inicia-se nessa época uma discussão a respeito do ensino. Porém, ―de maneira geral as escolas continuavam ministrando um ensino conservador, predominantemente nas mãos de jesuítas e de outras ordens religiosas‖ (ARANHA, 2006, p. 178), e estava longe ainda de ser para todos. Foi nesse cenário europeu, mais especificamente francês, sob o reinado de Luís XIV, repleto de revoluções culturais e políticas, que a literatura infantil deu os primeiros passos, com Charles Perrault, como já mencionado, considerado o ―Pai da Literatura Infantil‖, justamente por ter sido responsável por pesquisar e documentar os famosos contos populares e folclóricos, consolidados como contos de fadas, que corriam de boca em boca e de família em família, de acordo com Carvalho (1989). Originalmente, a meta do escritor não seria elaborar textos para o público infantil; só teria sido, como menciona Coelho (2010), ao lidar com o conto A Pele de Asno que ele teria voltado seu olhar para a infância. Em 1697, Perrault lança a obra Contos da Mamãe Gansa, em forma de prosa, que agradava tanto adultos quanto crianças. Mas, com o tempo, o livro teve mais êxito entre os pequenos, pois os adultos, ou mais especificamente os burgueses e aristocratas – que, juntamente com o clero, detinham o conhecimento – logo consideraram essas histórias, segundo afirmação de Ariès (1973), ―muito simples‖. Perrault, ao apresentar suas versões dos contos, não deixou de retratar a sociedade da sua época, apresentando textos com um tom mais violento que as versões atuais, além de algumas críticas políticas, as quais também se perderam ao longo do tempo. O autor instaurou nas suas versões das histórias uma meta de transmissão de moralidade, que aparecia com maior destaque no fim de cada conto. Essa estratégia pode ser vista em outros escritores contemporâneos a Perrault, como por exemplo, La Fontaine, com as suas fábulas, inspiradas 23 em várias fontes antigas como a grega, cujo principal representante é Esopo – ainda que haja certa dúvida sobre sua existência, é inegável a importância que os contos atribuídos a ele tiveram ao longo do tempo. Powers (2008) afirma que as fábulas de Esopo ―foram registradas em diversos manuscritos gregos e representam um dos primeiros livros impressos na Inglaterra‖ (p. 28). Segundo Coelho (2010), começava assim, na Europa, uma LIJ ―didática, moralizante ou educadora‖. No século XVIII, a individualidade e particularidade da figura da criança efetivam-se no seio da sociedade burguesa, como afirma Carvalho (1989), pois embora a Literatura da Criança tenha nascido com o conto de Fadas, a preocupação da Literatura dirigida à criança vai realizar-se com a sociedade burguesa, porque só então se descobre a criança como um ser especial [...]. Na família burguesa a criança conquista seu espaço, onde se encontram também os livros. (p. 86-87) A instituição escola, diretamente ligada ao aumento da circulação de obras infantojuvenis, também, dá um grande passo, no século das Luzes, principalmente com as propostas de Rousseau, que ―atacando o ideal de pessoa ‗bem-educada‘, de cortesão ou de gentil-homem, [...] propõe o desenvolvimento livre e espontâneo, respeitando a existência concreta da criança‖ (ARANHA, 2006, p. 209). Ao longo do século XVIII, vê-se, igualmente, uma mudança de cenário quanto à propagação da LIJ, e é a Inglaterra que ganha destaque na produção literária para crianças e jovens, inaugurando para tal público, de acordo com Coelho (2010), ―um novo gênero‖: o romance. Porém, a maioria dos livros infantojuvenis que se expande nesse período continua a visar valores didáticos, como no século anterior. Portugal, que havia vivido longos anos sob o domínio da Espanha e sob as regras da Inquisição, reconquistando a Independência apenas em 1667, presenciou por muito tempo, como no resto da Europa, um ensino dominado pela Igreja, mais especificamente pelos 24 jesuítas e pelos princípios religiosos, fato esse muito influenciado pelo contexto sócio-político pelo qual o país passava. No século XVIII, ocorreram várias mudanças políticas em solos portugueses e no sistema educacional, de acordo com Maciel e Neto (2006), pois com as reformas pombalinas, os jesuítas foram afastados do ensino, que ―passa a ser responsabilidade da Coroa Portuguesa‖ (p. 469). Quanto à LIJ, consta, segundo Coelho (2010), que o primeiro livro português para as crianças é O livro dos meninos, obra que privilegia o lado pedagógico. Além do mais, aumenta, nessa época, a circulação, em solo português, de traduções e adaptações de fábulas com suas lições morais. Durante o século XVIII, os contos de fada ficaram um pouco esquecidos, sendo retomados no século XIX, com os irmãos alemães Jacob e Wilhelm Grimm, responsáveis por recolocarem em cena o lado folclórico e popular da LIJ, assim como o dinamarquês Hans Andersen. Além desses autores, o século XIX, denominado o ―século de ouro dos romances‖, viu desfilar muitos outros, como Lewis Caroll, com sua famosa Alice e Jules Verne, que começou a escrever no século XIX e adentrou o século XX com sua série Viagens Extraordinárias. Esses autores e vários outros tornaram o período muito frutífero para a LIJ. Segundo Lajolo e Zilberman (2011), o século XIX inicia-se pela repetição dos caminhos bem-sucedidos: os irmãos Grimm, em 1812, editam a coleção de contos de fada que, dado o êxito obtido, converte-se, de certo modo, em sinônimo de literatura para crianças. A partir de então, esta define com maior segurança os tipos de livros que agradam mais aos pequenos leitores e determina melhor suas principais linhas de ação [...]. (p. 20) Após esse percurso, no século XX, a visão da criança como um ser particular já se havia efetivado, ou seja, é nesse século que se atentou para a ―qualidade específica do ser criança ou ser adolescente (como estados biológicos e psicológicos e valiosos, no desenvolvimento do ser)‖ (COELHO, 2010, p. 148). Com essa consolidação da nova concepção de infância, abre-se também mais espaço para os questionamentos em relação à 25 literatura que seria endereçada a tal público, em geral, de caráter puramente utilitário, educativo. Por conseguinte, os livros para crianças e jovens proliferam e tornam-se mais variados, ao menos em terras europeias e norte-americanas. No período da Segunda Guerra, de acordo com Powers (2008), houve um crescimento da leitura em geral. Contudo, ―para as crianças, a produção foi reduzida e os editores se apoiaram fortemente nas reimpressões de textos antigos‖ (p.64). O autor ainda informa que a qualidade dos livros era muito ruim. Meireles (1979) também afirma que a produção para crianças desse período de guerra foi problemática, visto que elas ―[viam], dia a dia, nestes angustiosos dias, as mais trágicas histórias‖ (p.104). Com o fim da guerra, o panorama, aos poucos, voltou a favorecer a publicação de livros infantojuvenis, e, ao aproximarem as décadas de 1980 e 1990, as condições estão totalmente propícias para a LIJ, visto que as duas últimas décadas do século XX já haviam alcançado uma identidade cultural antes mesmo de ficar claro o que estava por vir. A chegada de Margaret Tatcher ao poder como primeira-ministra da Inglaterra, em 1979, e de Ronald Reagan como presidente dos Estados Unidos, em 1980, servem de marcos que separam esta década da anterior. Em 1990, a revolução digital começara a afetar os meios de comunicação em diversas áreas, e o lembrete da queda do consumismo na Europa acelerou as tendências à globalização e ao crescimento econômico. (POWERS, 2008, p. 122) Nota-se que a mudança da LIJ, sobretudo no cenário europeu, foi grande desde o século XVII. O início basicamente com contos de fadas (ou maravilhosos) e fábulas com um intuito didático e moralizante. A partir do século XVIII, com a expansão da escola, os livros infantojuvenis também passaram a se proliferar. Atualmente, no mercado editorial, os temas estão cada vez mais variados e alguns livros cativam cada vez mais leitores tornando-se sucessos mundiais, best-sellers, como, recentemente, o caso da série Harry Potter, de J. K. Rowling. 26 No próximo item, será abordado como surgiu a LIJ em terras brasileiras, tendo em vista principalmente o contexto sociopolítico do país, uma vez que o Brasil foi por muito tempo colônia de Portugal, e também a lenta evolução do sistema educacional no país, dois fatos que influenciaram uma tardia produção literária brasileira, em geral, e, sobretudo, aquela para crianças e jovens. Enquanto na Europa a LIJ já estava consolidada, no Brasil, ela dava os primeiros passos. 1.2 Literatura infantojuvenil no Brasil No Brasil, justamente pela condição de colônia, tanto o sistema educacional quanto a LIJ demoraram a tornarem-se consistentes. No século XVI, os jesuítas, como José de Anchieta, eram responsáveis por catequizar e educar principalmente os indígenas. O ensino nas mãos dos jesuítas perdurou até meados do século XVIII, mais especificamente até as Reformas Pombalinas, que afastaram os jesuítas do comando das escolas primeiramente em Portugal e depois nas colônias. Logo, o ensino no Brasil sofreu uma brusca ruptura que demorou a ser sanada. Em 1808, com a vinda da família real para o Brasil e, sobretudo, anos mais tarde, com a independência em 1822, o país dá os primeiros passos para uma melhoria econômica. É só com a vinda da família real também, segundo Oliveira (2012), que se instala a primeira prensa na colônia, mas essa imprensa régia tinha uma política muito controladora. Ainda assim, em relação ao ensino, a situação era precária e começa a mudar, de acordo com Coelho (2010), nos ―entre séculos‖, isto é, no fim do século XIX e início do XX. Todo esse contexto sociocultural e, acima de tudo, o fato de a LIJ brasileira sempre ter estado muito ligada à instituição escolar, como poderá ser constatado neste item, tiveram influência na falta, por muito tempo, de livros brasileiros voltados para crianças e jovens. 27 A produção de LIJ brasileira, de acordo com Lajolo e Zilberman (2011), começa, de fato, no fim do século XIX, nos ―arredores da Proclamação da República‖ (p. 24). Com a mudança para o regime republicano, o país começa a modernizar-se, industrializar-se e principalmente urbanizar-se, propiciando o aparecimento de uma LIJ brasileira: decorrentes dessa acelerada urbanização que se deu entre o fim do século XIX e o começo do XX, o momento se torna propício para o aparecimento da literatura infantil. Gestam-se aí as massas urbanas que, além de consumidoras de produtos industrializados, vão constituindo os diferentes públicos, para os quais se destinam os diversos tipos de publicações feitos por aqui: as sofisticadas revistas femininas, os romances ligeiros, o material escolar, os livros para crianças. (LAJOLO; ZILBERMAN, 2011, p. 25) Ainda segundo as mesmas autoras, as traduções e adaptações de livros infantojuvenis também aumentaram consideravelmente no território brasileiro a partir das últimas décadas do século XIX. Antes disso – até pela tardia implantação da imprensa no Brasil, que ocorreu com a vinda da Família Real –, a grande maioria dos livros infantojuvenis que circulava no país vinha de Portugal. Por conseguinte, por muito tempo, como afirma Coelho (1987), ―foi através de traduções portuguesas que as crianças brasileiras conheceram o prazer de suas primeiras leituras literárias e começaram [a] conviver com as grandes personagens‖ (p. 24). E foi também por meio de traduções portuguesas que as obras de Jules Verne, autor do corpus do presente trabalho, foram difundidas primeiramente pelo país. Segundo Arroyo (1968), os primeiros livros traduzidos de Verne que chegaram ao território brasileiro remontam ao fim do século XIX e início do XX e ―foram geralmente introduzidos no Brasil pela Casa Editora Davi Corazzi, que inundou o mercado brasileiro de enorme quantidade de traduções‖ (p. 103). Arroyo (1968) informa igualmente o fato de que ―Olavo Bilac confessa que lia Júlio Verne desde os 13 anos de idade. Era a leitura do tempo de todo menino alfabetizado‖ (p. 103). No fim do século XIX e nas primeiras décadas do XX, a LIJ produzida no Brasil é quase toda resultado da iniciativa de traduzir os clássicos infantojuvenis no próprio país. E foi 28 também nessa época, de acordo com Hallewell (2012), que as traduções brasileiras da série Viagens Extraordinárias, de Verne, foram publicadas pela editora Garnier. Dois grandes colaboradores dessa fase inicial da LIJ foram Carlos Jansen, que traduziu e adaptou clássicos como Contos seletos das mil e uma noites (1882) e As viagens de Gulliver (1888); e Figueiredo Pimentel, que recebeu a incumbência do editor Pedro da Silva Quaresma, proprietário da editora e livraria Quaresma, de criar ―uma biblioteca de livros especialmente endereçados aos meninos brasileiros‖ (ARROYO, 1968, p. 110). Monteiro Lobato, além de escritor, atuou igualmente como tradutor e foi mais um defensor, na sua época, de traduções/adaptações de obras infantojuvenis realizadas no próprio país, visando, sobretudo, à modernização do Brasil: o projeto lobatiano de modernização do país incluía, entre outras coisas, o contato com culturas diferentes da francesa, referência do Brasil até a década de 1920. Para tanto, Lobato editou e traduziu inúmeras obras estrangeiras, sendo responsável pela entrada de grandes nomes da literatura mundial, sobretudo de língua inglesa, no contexto literário brasileiro. (CAMPOS; OLIVEIRA, 2009, p. 69) Justamente por ansiar por um país mais moderno e por preocupar-se com a leitura das crianças, Lobato era um dos que mais criticava a difusão de versões portuguesas de clássicos da LIJ, que ele denominava ―traduções galegais‖, com uma linguagem muito distante daquela das crianças e jovens brasileiros. Por isso, segundo Martins e Ribeiro (2002), ele propunha o abrasileiramento das obras. Em seu livro Reinações de Narizinho, o escritor expõe esse ponto de vista, valendo-se dos famosos personagens do Sítio do Pica-Pau Amarelo: Leia de sua moda, vovó! – pediu Narizinho. A moda de dona Benta ler era boa. Lia ―diferente‖ dos livros. Como quase todos os livros para crianças que há no Brasil são muito sem graça, cheios de termos do tempo do onça ou só usados em Portugal, a boa velha lia traduzindo aquele português de defunto em língua de Brasil de hoje. (LOBATO, 2008, p. 36) 29 Além do mais, é indiscutível e muito referenciada pelos teóricos da área a importância de Monteiro Lobato como escritor de histórias infantis. O seu primeiro livro para crianças foi publicado em 1920, como mencionam Martins e Ribeiro (2002), sob o título A menina do narizinho arrebitado, que, um ano mais tarde, tornou-se simplesmente Narizinho arrebitado, sendo muito adotado pelas escolas. Grande parte do destaque de Lobato na produção de literatura infantil brasileira é justificada por suas obras destoarem do que era publicado para as crianças e jovens por seus antecessores e contemporâneos. De acordo com Carvalho (1989), ele não escreveu apenas livros para crianças, mas criou um universo para elas [...]. Reencontrou a criança, amealhou toda a riqueza e criatividade de seu mundo maravilhoso e constituiu um universo para ela, num cenário natural, enriquecido pelo Folclore de seu povo, aspecto indispensável à obra infantil. (p.133) Antes de Lobato enveredar-se pelo caminho do Sítio do Pica-pau amarelo, via-se no país, nas primeiras décadas do século XX, uma LIJ brasileira escassa, conservadora, com fins didáticos, de acordo com Lajolo e Zilberman (2011). O aumento de números de traduções de livros infantis, iniciado no fim do século XIX, pode ter influenciado essas características dos livros para crianças e jovens, visto que impulsionou o mercado editorial e propiciou a produção brasileira de LIJ e também um sentimento patriótico perante ela. Assim, segundo as palavras de Zilberman e Lajolo (1993), a ―nacionalização [das traduções dos clássicos infantojuvenis] se transforma em nacionalismo‖ (p. 18). Outro fator importante foi o movimento, nesse mesmo período, de valorização da escola, em que se notou a falta de material adequado para o uso em sala de aula. Assim, vários autores, como Olavo Bilac, mobilizaram-se e puseram-se a publicar uma literatura que se deu como literatura escolar, na maioria das vezes, promovendo e exaltando a pátria. 30 A partir da década de 1920, os escritores modernistas também se aventuraram na LIJ com seus ideais nativistas, como mencionado por Zilberman e Lajolo (1993). Nesse processo, Os modernistas também trouxeram uma linguagem mais experimental, inovadora, que destoava da norma culta vigente, apresentando nos textos, por exemplo, marcas de oralidade e regionalismo. Essa característica refletiu-se também em alguns livros para crianças de escritores como Lobato, segundo Lajolo e Zilberman (2011): [...] aproveitando bem a lição modernista, autores como Lobato, Graciliano Ramos, Érico Veríssimo, Menotti del Picchia, sobretudo os primeiros, romperam os laços de dependência à norma escrita e ao padrão culto, procurando incorporar a oralidade sem infantilidade, tanto na fala das personagens, como no discurso do narrador. (p. 83) O ambiente em que se desenrolavam as histórias, nesse período das três primeiras décadas do século XX, era predominantemente o rural, ainda que meio enfraquecido, já que as cidades ganhavam cada vez mais destaque. Por um bom tempo, era no campo que ocorria a grande maioria das aventuras dos personagens infantis. Segundo Coelho (2010), a publicação de Saudade, em 1919, de Tales de Andrade, inaugura a temática rural que se tornou tão frequente na LIJ da época. A época era propícia para tal tema, visto que o mundo havia acabado de presenciar a Segunda Guerra Mundial. Portanto, ―a tendência geral na literatura era para a valorização da Paz e da Justiça Social. Nesse sentido a vida no campo aparece como grande ideal‖ (COELHO, 2010, p. 240). No período logo após a fase inicial, ou seja, do início dos anos 1920 até meados da década de 1940, ainda que permeado pela obra inovadora de alguns poucos autores como Lobato, prevaleceram os livros infantojuvenis com fins pedagógicos, cujas temáticas estavam ―relacionadas à exaltação da natureza brasileira e da grandeza nacional, passando pela exaltação de vultos e episódios da história do Brasil ou pelo culto da língua nacional‖ (SOUZA, 2006, p. 82). A circulação de traduções e adaptações no país, em geral, também 31 continuava intensa, sobretudo nas décadas de 1930 e 1940, que teriam sido o ―período dourado da indústria do livro e da tradução no Brasil‖ (MILTON, 2002, p. 25), fato esse influenciado pela ascensão de Vargas ao poder. Na Era Vargas, como menciona Wyler (2003), pela censura que regulava a produção literária no país, muitos editores optavam pela ―publicação de livros de ciência, historiografia, didáticos, infantis e tradução de ficção estrangeira‖ (p. 111). Nessa época, ―traduzir e publicar livros infantis foram alternativas a que se dedicaram muitos escritores da época, seja para complementar o orçamento, seja para manter os vínculos com o seu público leitor e seus editores, sem se indispor com os órgãos encarregados de zelar pela ordem política e social do país‖ (p. 112). Contribui também para o aumento da circulação de LIJ na Era Vargas o ensino primário ter-se tornado obrigatório e universal. Iniciava-se, na época, uma fase de modernização e investimento em educação e também em saúde, em que é propiciamente criado o Ministério da Educação e da Saúde Pública, visto que para tal governo ―instruir caminhava junto com higienizar‖ (RODRIGUES, 2010, p. 3). Na segunda metade da década de 1940 até a de 1960, a LIJ brasileira apresenta pequenas mudanças em relação à fase anterior, com, por exemplo, um número bem maior de livros tendo como cenário as cidades. O campo torna-se um espaço de passagem, de lazer para os personagens infantis. Nota-se também, nessa época, o domínio quase total da norma culta, em detrimento de marcas de oralidade e regionalismo. Já quanto à temática apenas verificou- se uma repetição do período anterior, com predomínio de livros com mensagens didáticas. A inserção de bandeirantes e índios como protagonistas das histórias, em versão totalmente idealizada, como grandes heróis, torna-se uma prática frequente. A produção de LIJ foi muito intensa nessa fase, o que comprovava que o mercado editorial de livros infantojuvenis havia- se firmado no país. Todavia, isso não significava que os livros publicados tinham uma boa qualidade. Lajolo e Zilberman (2011) mencionam que, em 1942, Lourenço Filho relatou, em 32 uma palestra, que havia encontrado 605 obras infantis em circulação no país, um bom número para a época. Porém, ―o conferencista também denunciava que, ‗dessas 434 representam traduções, adaptações e mesmo grosseiras imitações‘, e que, ‗das 171 obras originais de autores brasileiros, cerca da metade são de medíocre qualidade [...]‘‖ (p.85). A partir de 1950, presencia-se no país uma invasão dos meios de comunicação de massa, o que, segundo Coelho (2010), pode ter contribuído para uma ―crise de leitura‖, tanto entre crianças e jovens quanto entre adultos. Verifica-se igualmente uma expansão das histórias em quadrinhos no país, fato que, na época, foi muito criticado, pois se considerava antipedagógica essa forma de fazer literatura. Nos anos 1960, apesar do início de um longo período ditatorial, o país pode contemplar a inauguração de fundações e instituições relacionadas à LIJ brasileira, dentre elas, em 1968, a criação da FNLIJ (Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil). Essa foi também a década inicial de uma era muito próspera, pós-Lobato, para os livros para crianças e jovens, que teve seu auge nos anos 1970, após um longo processo, muito motivado pela situação propícia aos escritores, que tinham a seu favor a política cultural da leitura, iniciada na década de 1920 com os educadores da educação nova, que se mantém com a Lei 5.692 sancionada em 1971. Esta regulamenta a Lei de Diretrizes e Bases de 1961 e recomenda a leitura de autores nacionais em sala de aula, o que serve de estímulo ao livro infantil e juvenil. (SOUZA, 2006, p. 93) De acordo com Zilberman e Lajolo (2011), a LIJ brasileira dessa época ganhou a contribuição de muitos autores já renomados como Clarice Lispector e Vinícius de Moraes, mas ainda as traduções eram maioria. Segundo Souza (2006), a partir dessa data os livros já abordam com mais frequência questões consideradas realistas, como de injustiças sociais, sexualidade, preconceito racial, sem esquecer uma pitada de humor; ou seja, ―os temas 33 tratados agora são mais atuais, relacionados a problemas enfrentados pela sociedade contemporânea, e são abordados de forma direta e concisa‖ (p. 96). A partir da década de 1970 também, o mercado editorial brasileiro de LIJ passa a não ser mais dominado por traduções, como no início do século XX. Lajolo e Zilberman (2011) mencionam, por exemplo, que, na década de 1940, 70% dos livros vendidos para crianças eram traduções, enquanto, de 1975 a 1978, essa porcentagem cai para 50,4%. Em meados da década 1980, o país presencia um aumento muito significativo de LIJ em circulação. De acordo com Coelho (2010), isso se deve a dois fatores: a consolidação da LIJ brasileira, visto que ―as ‗sementes‘, lançadas durante anos, já haviam frutificado e atraído uma plêiade de novos talentos que se dedicam a explorar esse universo, criando novas formas de linguagem verbal ou imagística, ampliando temas, reinventado os ‗clássicos‘ do passado, etc.‖ (p. 287); e a ―inclusão dessa ‗Nova Literatura‘ nos currículos das Escolas de Ensino Básico e Fundamental‖ (p. 287). Após todo esse processo de mudanças, nos anos 1990, que, na visão de Souza (2006), aparece como uma ―fase de amadurecimento‖, a LIJ brasileira continuou a perpetuar uma variedade muito grande de temas, e, dentre eles, como nos anos anteriores, também se via uma produção mais voltada para fins didáticos, como os livros paradidáticos, propícia ao uso em sala de aula, mas longe de predominar como nas primeiras décadas do século XX. Neste início de século XXI, período em que, cada vez mais, o mundo virtual invade as casas e com o qual cada vez mais cedo as crianças têm contato, parece desafiador criar uma LIJ que atraia a atenção das crianças e jovens. De qualquer forma, a pesquisa Retratos da Leitura do Brasil, realizada em 2011, pelo Instituto Pró-livro, comprovou que as crianças e jovens, sobretudo na fase escolar, leem mais que os adultos. Atualmente, há uma gama temática muito ampla quando o assunto é LIJ. Ainda assim, nota-se uma preferência desse público por fantasias. Segundo Moraes (2012), essa tendência é justificada pelo fato de que 34 a literatura fantástica tem como um dos principais pontos responsáveis pelo seu engrandecimento a falta de preconceito. Sonhar e poder inventar um mundo novo na imaginação é possível em qualquer idade, em qualquer lugar, independente de cor ou classe social. Essa é a explicação fundamental para o sucesso estrondoso que tal estilo literário tem feito com o seu público alvo. (p. 1) De acordo com Ramos e Panozzo (2010), é frequente, também, a revisita às memórias antigas na LIJ brasileira contemporânea, por meio da repaginação de mitos, contos, fábulas e costumes antigos: ―a literatura [...] continua desempenhando seu papel de romper com a hegemonia de um estado de dominação ao criar um discurso de resistência à dominação‖ (p.27). Esse fato pode ser presenciado também nas obras estrangeiras traduzidas nos últimos tempos no país, entre as quais se pode citar a saga Harry Potter, da escritora inglesa J. K. Rowling, cujas traduções brasileiras foram realizadas por Lia Wyler e publicadas pela Editora Rocco; e Percy Jackson e os Olimpianos, de Rick Riordan, traduzida no Brasil por Ricardo Gouveia, para a Editora Intrínseca. Nota-se nesses best-sellers a abordagem de valores considerados conservadores, como, por exemplo, a religião e o sagrado. Sant‘Anna (2012), ao analisar as obras de Harry Potter e Crepúsculo – séries de sucesso, que também, segundo a classificação do mercado editorial, é enquadrada como literatura juvenil e que de fato teve muito sucesso entre os jovens leitores –, constatou vários desses elementos: [...] para além dos recursos estéticos de linguagem, de manifestações do sagrado de temática recorrente, com marcas de crasso e ingênuo conservadorismo que visa construir o comportamento da atual geração de adolescentes, tais como a crença no poder regenerador do amor, a expectativa inexorável da vitória do bem contra o mal, a idealização dos sentimentos de companheirismo e amizade, a presença das relações humanas tradicionais de família, o espírito individualista e altamente competitivo de classes, a valorização de antigos tabus como a virgindade e o sexo primordialmente procriador. (p. 4) 35 Haveria também uma preferência por histórias mais contemporâneas, tanto nacionais como internacionais. Como afirma Curia (2012), isso ocorre, muitas vezes, pelo fato desse público infantojuvenil identificar-se mais com esses textos atuais, evidentemente, até em nível linguístico. Ainda assim, algumas histórias persistem, até hoje, entre as preferidas dos pequenos leitores, segundo Turchi (2008), textos como os contos de fada, reformulados ou não, e romances de aventuras, como os de Jules Verne. Segundo Verdolini (2012), há poucos e inconsistentes estudos, atualmente, sobre o mercado editorial brasileiro de LIJ, pois a maioria dos trabalhos trata do assunto só até a década de 1980. De acordo com Wyler (2003), 80% da publicação literária, em geral, no Brasil, seria de traduções. Em uma busca na Internet pelas livrarias virtuais, como as livrarias Saraiva e Cultura, foi possível notar que, quando se trata de LIJ, o número de livros nacionais e traduzidos é mais equilibrado. Ainda assim, na lista dos vinte livros de ficção mais vendidos da segunda semana de março de 2014, disponibilizada no site da revista Veja, havia seis livros que eram classificados como infantojuvenis ou juvenis e, desses seis, todos são traduções: Convergente, A Esperança, O Pequeno Príncipe, Divergente, Contos da Seleção, O Ladrão de Raios.5 Tais dados fornecem indícios de como a tradução para o público infantojuvenil ainda continua sendo significativa. As obras de Jules Verne também devem ser destacadas neste cenário das traduções de LIJ no Brasil – e não só no Brasil, já que o autor, de acordo com a UNESCO,6 é o segundo mais traduzido no mundo –, pois, desde as primeiras traduções/adaptações que entraram no país no fim do século XIX até atualmente, os livros continuam sendo traduzidos, adaptados e reeditados. Em uma busca no acervo digital da Fundação Biblioteca Nacional, verificou-se que a obra que constitui o corpus do presente trabalho, Viagem ao centro da Terra, foi publicada, em todas as décadas, por várias editoras, a partir dos anos 60 até os dias atuais. Em 5 Pesquisa realizada no dia 18/03/2014: . 6 Informações disponíveis em . Acesso em: 15 jun. 2014. 36 uma pesquisa mais geral sobre a série de Viagens Extraordinárias publicada por editoras brasileiras nos anos 2000, no site da Livraria Cultura,7 notou-se também um volume relevante de traduções. Em 2007, por exemplo, encontraram-se nove livros publicados do autor:  Viagem ao Centro da Terra (publicado pelas editoras: Moderna – tradução de Walcyr Carrasco; Ibep Nacional – em formato de quadrinhos, adaptação de Fiona Macdonald; Melhoramentos – tradução e adaptação de Maria Alice Sampaio Doria);  Volta ao Mundo em oitenta dias (publicado pelas editoras: Escala Educacional – adaptação de Indigo; Melhoramentos – tradução e adaptação de Maria Alice Sampaio Doria; Ática – quinta edição, tradução de Heloisa Jahn);  O raio verde (publicado pela Editora Melhoramentos – tradução e adaptação de Maria Alice Sampaio Doria);  Vinte mil léguas submarinas (publicado pela Editora Melhoramentos – tradução e adaptação de Maria Alice Sampaio Doria);  Cinco Semanas de Balão (publicado pela Editora Melhoramentos – tradução e adaptação de Maria Alice Sampaio Doria). Quanto ao tipo de histórias publicadas por autores brasileiros, de acordo com Coelho (2010), a LIJ brasileira contemporânea além de se voltar para as histórias fantásticas, apresenta mais duas tendências, ou ―linhas de interesse‖: a realista e a híbrida. Essa última é definida pela autora como a literatura que ―parte do Real e nele introduz o Imaginário ou a Fantasia, anulando os limites entre um e outro‖ (p. 291). Dentro da linha realista os temas estariam relacionados a um propósito de ―testemunhar o mundo concreto familiar e atual‖, ―informar sobre costumes, hábitos ou tradições populares das diferentes regiões do Brasil‖, ―apelar para a curiosidade e a argúcia do leitor‖, ―preparar psicologicamente os pequenos 7 Pesquisa realizada em 19/03/2014: 37 leitores para enfrentarem sem traumas, mais cedo ou mais tarde as dores e sofrimentos da vida‖. (p. 289-290). Contudo, segundo Turchi (2008), essa linha realista atual difere da linha realista dos anos 1970 e 1980, cujo foco era, sobretudo, a ―crítica social por meio da miséria infantil‖. Além do mais, em um contexto em que cada vez mais se defende a inclusão, principalmente nas escolas, o combate ao bullying é também uma tendência dos escritores tratarem das questões de diferenças, como constatou Kirchof (2011): nas últimas décadas, a temática das diferenças tem se tornado cada vez mais recorrente em livros destinados ao público infanto-juvenil, o que pode ser observado tanto em âmbito internacional quanto em território nacional. No Brasil, desde aproximadamente a década de 1990, abundam livros de literatura produzidos especificamente para crianças, cujos enredos e ilustrações giram em torno de temas como gênero, etnia, raça, cegos, cadeirantes, gordos, velhos, enfim, grupos considerados minoritários, excluídos e/ou marginalizados. (p.148) Por meio desse panorama, verifica-se que a LIJ brasileira tardou a surgir, em comparação, por exemplo, com aquela da Europa, e teve seu início marcado pelo processo de nacionalização das traduções, o que propiciou a origem das primeiras publicações brasileiras. Por muitas décadas, a LIJ produzida no Brasil tinha fins nacionalistas e didáticos, pontuada por raras exceções, como Monteiro Lobato que fazia principalmente uma literatura visando o lazer e o prazer das crianças. Portanto, pode-se dizer que é apenas a partir da década de 1970 que o país presencia uma guinada efetiva e consistente na LIJ, não mais tão atrelada à escola; e é a partir dessa década que se nota, nas palavras de Coelho (2010), uma ―explosão de criatividade‖ e também de publicações. Atualmente, em um mundo cercado por muitos estímulos virtuais, a LIJ também teve de evoluir. Há uma enorme variedade de temas e formatos – dada a emergência, por exemplo, dos e-books e audiobooks –, ainda assim nota-se uma preferência pelas fantasias. 38 Após essa contextualização da LIJ, apresentado neste e nos itens anteriores, passarão a serem analisadas, no próximo capítulo, questões específicas de tradução e, especialmente da tradução de LIJ, as quais são o foco do trabalho e que são intimamente influenciadas pelas mudanças e multiplicidade de ―olhares‖ para a LIJ ao longo dos séculos. CAPÍTULO 2: TRADUÇÃO E ÉTICA Neste capítulo, primeiramente, será abordado o conceito de tradução que orienta o trabalho. A prática tradutória é vista por alguns teóricos, como John Catford e Eugene Nida, como uma passagem ou um transporte de equivalentes de uma língua para outra, presumindo- se que os significados do texto de partida são estáveis e recuperáveis. Em contrapartida, segundo os teóricos da corrente pós-moderna dos Estudos da Tradução, considerando, entre outros aspectos, a não-estabilidade dos significados, a tradução é definida como transformação ou interpretação. E é na concepção de tradução da pós-modernidade que esta pesquisa se baseará, principalmente a partir das reflexões de Rosemary Arrojo (1986, 1992, 1993 e 1996) e Cristina Carneiro Rodrigues (2000a e 2000b). Será também tratada, neste capítulo, a questão da ética. Entre os vários autores que apresentam estudos sobre a ética tradutória, optou-se por discuti-la de acordo com a perspectiva de Antoine Berman e Lawrence Venuti, tendo em vista suas posturas similares do que seria uma tradução ética. Tanto um como outro defendem uma ―ética da diferença‖ do ato tradutório, ou seja, uma tradução que não apague o estrangeiro. Por fim, o último item deste capítulo contemplará especificamente a tradução de LIJ e algumas questões que a envolve. Serão problematizadas, sobretudo, as possíveis implicações do fato de adultos traduzirem para não-adultos, como analisam, por exemplo, Riitta Oittinen (2000) e João Azenha (2005). 2.1 Tradução na reflexão pós-moderna Na modernidade, sobretudo no período do Iluminismo, na Europa, difundiu-se a noção de objetividade e razão quanto ao conhecimento e ao saber. Presumia-se, por exemplo, como 40 afirma Hall (2001), que o sujeito seria um ser unificado e centrado, com uma identidade imutável e com a possibilidade de ter acesso à origem, à verdade. Segundo Arrojo (1996), ao defender a possibilidade da objetividade e da razão, do conhecimento isento e neutro e, portanto, não-ideológico e de valor e alcance universais, a reflexão fundada no ideal da modernidade, que sempre foi, inevitavelmente, pautada pelos valores de uma determinada classe, de uma determinada raça, e de um determinado gênero, traz consigo também uma outra face, sombria e totalitária, marcada pela negação da diferença e da história. (p. 53) A partir das reflexões pós-modernas, questionam-se os pressupostos difundidos pela modernidade. Há uma crítica aos ideais totalizantes e homogeneizantes. De acordo com Hall (2001), na pós-modernidade, compreende-se a descentralização do sujeito, e a consideração de identidade estável do mundo moderno torna-se algo inconcebível, uma ―fantasia‖. A identidade do sujeito pós-moderno é considerada heterogênea e ligada ao contexto social, cultural, histórico, e, até mesmo econômico, em que ele está inserido, visto que à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente (HALL, 2001, p. 13). Segundo Arrojo (1992), a descentralização do sujeito ou, em suas palavras, ―a desconstrução da autonomia do sujeito consciente‖ refletiu-se na forma de se lidar e se estudar a linguagem: ―se aceitarmos que todo o conhecimento e toda ciência se originam de um impulso inconsciente e não passam de uma construção linguística que podemos ter, será imperativo revermos os pressupostos sobre os quais edificamos nossas teorias e nossas hipóteses‖ (ARROJO, 1992, p. 18). No caso da tradução, os teóricos que baseiam seus estudos na reflexão pós-moderna contrapõem-se àqueles que demonstram um pensamento essencialista em relação ao ato de traduzir, visto que estes o consideram como um transporte ou uma passagem de significados 41 de uma língua de partida para uma língua de chegada. O comumente denominado texto ―original‖ seria, nesse caso, um objeto estável, com uma suposta essência que deveria ser recuperada pelo tradutor, sem considerar qualquer possibilidade de interpretação por parte dele. O tradutor teria a incumbência de mostrar-se fiel às presumidas intenções do autor, como se fosse possível ter acesso a elas. A tradução seria uma atividade secundária, não- autoral. Essa visão da atividade tradutória, por vezes, é compartilhada também pelos próprios tradutores. Arrojo (1993) afirma que essa ―tradição logocêntrica‖ de tratar a tradução promove certos preconceitos em relação ao trabalho do tradutor, pois, em geral, espera-se que ele ―seja não apenas invisível e inconspícuo, mas [...] que possa colocar-se na pele, no lugar e no tempo do autor que traduz, sem deixar de ser ele mesmo e sem violentar a sintaxe e a fluidez de sua língua, de seu tempo e de sua cultura‖ (p. 73). John Catford e Eugene Nida são teóricos que compartilham visões semelhantes sobre a tradução. Tanto Catford quanto Nida têm como parte central dos seus estudos a respeito de tradução a noção de equivalência, ainda que nenhum dos dois defina, efetivamente, esse conceito. Para Rodrigues (2000a), essa falta de delimitação do que seria equivalência indica que ―se aborda abstratamente a questão e, por outro, que se concebe a tradução como uma espécie de reprodução, em uma língua, de um valor expresso em outra‖ (p. 97). Em Catford (1980), o processo de tradução é tratado como unidirecional, de uma língua para a outra, em que se pressupõe ―a substituição de material textual numa língua (LF) [língua fonte] por material textual equivalente noutra língua (LM) [língua meta]‖ (p. 22). De acordo com Venuti (1998, p. 142), o projeto de Catford era ter uma teoria linguística da tradução que buscasse o universalismo, dedicando pouco espaço para problematizar, por exemplo, a tradução de variedades linguísticas. 42 Nida, que se dedicou principalmente ao estudo de traduções da Bíblia, compara o ato tradutório ao transporte de cargas em vagões de trem. Assim, para o teórico, uma outra forma de olhar para as palavras e suas relações com os conceitos é conceber as palavras em uma frase como sendo uma sequência de vagões de carga. Vários vagões levam uma quantia diferente de carga, mas alguns vagões estão ligados entre si para transportar uma grande carga individual. Do mesmo modo, algumas palavras contêm uma série de conceitos e outras se conectam nas frases para especificar conceitos intimamente ligados. O importante no transporte da carga não é qual mercadoria é transportada dentro dos vagões, nem a ordem particular que os vagões estão conectados um ao outro, mas sim que todos os conteúdos cheguem ao seu destino. O mesmo acontece com a tradução. É completamente desnecessário que uma palavra da língua de partida seja traduzida por uma simples palavra na língua de chegada. A carga semântica de tal palavra pode ser facilmente distribuída em uma frase. Da mesma forma, o que pode ser uma frase na língua de partida pode frequentemente ser comunicado na língua de chegada por uma única palavra. O importante quanto a esse procedimento é que todos os componentes relevantes quanto ao significado cheguem a seu destino de tal forma que possam ser utilizados pelos receptores. (NIDA, 1975, p. 190) 8 Nota-se, por meio da metáfora, que o autor presume, assim como Catford, a função de traduzir como aquela de resgatar significados do texto de partida e de transportá-los, de um modo ou outro, dependendo de sua carga semântica, para o texto traduzido. O papel do tradutor, para esses dois teóricos, é passivo e nada subjetivo, já que, segundo a análise de Rodrigues (2000a), eles ―pressupõem a existência de um sujeito racional, autônomo, livre da influência de seu contexto, que, com o auxílio de um instrumental adequado, teria o poder de atingir a suposta essência dos textos‖ (p. 164). Os Estudos da Tradução que se pautam pela reflexão pós-moderna criticam essa visão 8 Another way of looking at words and their relations to concepts is to conceive of the words in a sentence as being like a string of freight cars. Many cars have a number of different loads, but some cars are linked together to carry single long loads. Similarly, some words contain a series of concepts and others link together in phrases to specify closely integrated concepts. What is important in the hauling of freight is not what goods are loaded onto what wagons nor the particular order in which the wagons are connected to one another, but that all the contents get to their destination. The same is true in translation. It is quite unnecessary that what is one word in the source language be translated by a single word in the receptor language. The semantic load of such a word can readily be distributed over a phrase. Similarly, what way be a phrase in the source language can often be communicated in the receptor language by a single word. What is relevant about this procedure is that all the significant components of meaning arrive at their destination in such a form that they can be used by the receptors. 43 considerada essencialista na prática tradutória. Entre os teóricos da tradução vinculados à pós- modernidade, o filósofo francês Jacques Derrida é bastante citado. Derrida (1995, 2001, 2005) desconstrói a visão logocêntrica de estrutura, de texto como um objeto estável, como uma fonte de significação. Segundo as reflexões derridianas, as palavras só adquirem significado a partir de relações que o leitor estabelece entre elas. Logo, o ato tradutório, de acordo com o pensamento de Derrida, não pode ser estabelecido como um transporte de significados de um texto para outro, visto que eles não estão ali depositados. O filósofo considerará a tradução como um processo de transformação. Em Derrida (2001), encontra-se a seguinte afirmação: nos limites em que ela é possível, em que ela, ao menos, parece possível a tradução pratica a diferença entre significado e significante. Mas, se essa diferença não é nunca pura, tampouco o é a tradução, e seria necessário substituir a noção de tradução pela de transformação: uma transformação regulada de uma língua por outra, de um texto por outro. Não se tratou, nem, na verdade, nunca se tratou de alguma espécie de ―transporte‖, de uma língua a outra, ou no interior de uma única e mesma língua, de significados puros que o instrumento – ou o ―veículo‖ – significante deixaria virgem e intocado. (p. 26, grifo do autor) Além do mais, para Derrida (2002), o texto traduzido não é inferior ao texto de partida, já que, na sua visão, nada é mais grave que uma tradução. Eu gostaria preferencialmente de marcar que todo tradutor está em posição de falar da tradução, em um lugar que não é nada menos que segundo ou secundário. Pois se a estrutura do original é marcada pela exigência de ser traduzido, é que fazendo disso a lei, o original começa por endividar-se também em relação ao tradutor. (2002, p. 40, grifo do autor) Lima e Siscar (2000) afirmam que, a partir da desconstrução derridiana do pensamento logocêntrico, ―a hierarquização entre texto original e texto traduzido fica comprometida, uma vez que ambos são produções de um sujeito e provocam leituras e interpretações‖ (p.107). Muitos dos teóricos da tradução que se baseiam no pensamento pós-moderno recorrem às reflexões derridianas para embasar seus estudos. O texto de partida, nessa vertente dos 44 Estudos da Tradução, não é visto mais como um objeto estável. Por conseguinte, estabelece- se que ―o tradutor não lida com uma ‗fonte‘, nem com uma ‗origem‘ fixa, mas constrói uma interpretação que, por sua vez, também vai ser movimento e desdobrar-se em outras interpretações‖ (RODRIGUES, 2000, p. 203). Com os estudos pós-modernos da tradução, os conceitos de fidelidade e equivalência também serão desconstruídos. Arrojo (1986) – considerando o literário e poético como ―uma estratégia de leitura, uma maneira de ler‖ (p. 31), e não como ―um conjunto de propriedades estáveis que objetivamente ‗encontramos‘ em certos textos‖ (p. 31) – trata a tradução como produtora de significados, e propõe uma redefinição de fidelidade no processo tradutório. Para ela, uma tradução [...] será fiel não ao texto ―original‖, mas àquilo que consideramos ser o texto original, àquilo que consideramos constituí-lo, ou seja, à nossa interpretação do texto de partida, que será [...] sempre produto daquilo que somos, sentimos e pensamos. Além de ser fiel à leitura que fazemos do texto de partida, nossa tradução será fiel também à nossa própria concepção de tradução. (ARROJO, 1986, p. 44) Nesse âmbito, ao refletir sobre o conceito de equivalência, Rodrigues (2000b) afirma que a tradução não pode transportar valores iguais aos do texto de partida porque o processo transforma valores. Nesse sentido, a tradução é um texto que se insere em uma outra cadeia diferencial, substituindo e modificando, o texto de partida. Assim, conceber a tradução como uma relação complexa entre dois textos, não como uma relação de equivalência em que haveria simetria entre eles, significa conceber a tradução como o lugar da diferença, como um processo que promove a transformação de valores. (p. 95) O tradutor não é considerado como um mero ―transportador‖ ou ―substituidor‖ de equivalentes de uma língua para a outra, muito menos infiel, caso não estabeleça uma relação que supostamente seria a correta com o texto de partida. Contempla-se a tradução como um 45 processo de leitura, que, em decorrência das várias questões que estão envolvidas no processo tradutório, nunca poderá ser, como afirma Rodrigues (2000a), ―pura, nem neutra‖. Neste trabalho, a tradução será abordada como transformação, como um ato que promove a diferença, de acordo com as reflexões pós-modernas. Tendo isso em vista, no capítulo 4, referente às análises das três traduções selecionadas, a meta não será avaliar as traduções como corretas ou não, e sim comparar diferentes textos, para observar determinadas tendências tradutórias. O próximo item deste capítulo será dedicado à problematização da ética na tradução. O enfoque recairá sobre os estudos de Berman e Venuti a respeito do tema. Os dois autores apresentam posturas semelhantes quanto à ética no ato tradutório, questionando como o ―outro‖, o ―estrangeiro‖ é mostrado (ou não) no texto traduzido. 2.2 Ética na tradução O conceito de ética, segundo Marcondes (2009), em geral, é associado ―à determinação do que é certo ou errado, bom ou mau, permitido ou proibido, de acordo com um conjunto de normas ou valores adotados historicamente por uma sociedade‖ (p. 9). O mesmo autor, porém, menciona que tais ―valores‖ e ―normas‖ estão sempre relacionados a um contexto sociocultural. Por conseguinte, ―os valores éticos de uma comunidade variam de acordo com o ponto de vista histórico e dependem de circunstâncias determinadas‖ (MARCONDES, 2009, p. 10). Outra maneira comum de tratar a questão da ética é relacioná-la a princípios de conduta profissional. A maioria das profissões, como medicina ou direito, têm, efetivamente, ―Códigos de Ética‖ que devem ser seguidos pelos profissionais. No caso da tradução, alguns órgãos como o SINTRA (Sindicato Nacional dos Tradutores) também apresentam ―Códigos 46 de Ética‖ aos tradutores filiados. O ―Código de ética do Tradutor‖ do SINTRA foi aprovado em 1991 como parte integrante do estatuto do sindicato. O documento apresenta seis capítulos que tratam dos seguintes temas: princípios fundamentais, relações com os colegas, relações com o contratante do serviço, segredo profissional, responsabilidade profissional e aplicação do código. A ética tradutória, tendo em vista a conduta profissional, é frequentemente discutida entre os teóricos da área. De acordo com Paulo Oliveira (2009), muito do que se fala e escreve sobre a ética na tradução movimenta‐se no escopo dessa dimensão mais pragmática, técnico‐legal, do termo. A questão dos direitos autorais, por exemplo, das obrigações do tradutor e da editora (ou do cliente) passa certamente por aí. Tais aspectos são de fato relevantes e têm grande impacto na inserção social do tradutor e no estatuto da atividade tradutória no mercado de trabalho. No entanto, num certo sentido, sua importância é mais política (e econômica) do que propriamente ética, na medida em que a ética, numa dimensão mais profunda, envolve também o comprometimento individual, a adesão – quiçá incondicionada – a um conjunto de valores. (p. 1) Chesterman (2001) propõe aos tradutores uma ética baseada no que chama de ―Juramento Hieronímico‖, que trata do engajamento e da postura deles no mercado de trabalho. O juramento é dividido em nove itens que pregam: comprometimento, lealdade à profissão, entendimento, verdade, clareza, honestidade, justiça e empenho. Segundo o autor, a adesão a esse tipo de juramento poderia colaborar para ―promover um comportamento profissional genuinamente ético‖ (CHESTERMAN, 2001, p. 153).9 Para o teórico, esse juramento também ajudaria o credenciamento internacional dos tradutores e a distinção dos tradutores entre profissionais e amadores. Há autores ainda, como Berman e Venuti, que tratam a ética do ato tradutório a partir do modo como o tradutor lida com o texto de partida, com o outro, o estrangeiro. Os dois autores, ainda que de maneiras e em contextos diferentes, defendem um tipo de ética 9 [...] to promote genuinely ethical professional behavior. 47 tradutória muito semelhante, ou seja, aquela que revela o outro, o estrangeiro no texto traduzido. Paulo Oliveira (2014) questiona a abordagem da ética tradutória de Berman e Venuti. Para o teórico, ―o problema reside exatamente [...] em associar uma determinada técnica a um valor (positivo, no caso) atribuindo a essa técnica uma característica que só pode ser obtida no contexto de sua aplicação específica‖ (p. 263). Na visão de Oliveira (2014), os dois teóricos são a favor de um único modo de traduzir em detrimento de outros, defendendo apenas uma estratégia tradutória como ética e promovedora da diferença. No entanto, nesta pesquisa, apesar de considerar a crítica de Oliveira (2014) válida, sobretudo ao desmitificar que só um determinado tipo de postura tradutória poderia ser ético e aceitável, os estudos a respeito de Berman e Venuti serão levados em conta, visto a importante contribuição que os trabalhos dos dois teóricos proporcionaram e proporcionam na área dos Estudos da Tradução. A proposta é discutir as concepções dos dois teóricos sobre ética na tradução, relacionando-as, por exemplo, ao contexto sociocultural em que cada um dos estudiosos está inserido. Por outro lado, ao contrário dos autores em questão, não é o intuito do trabalho defender uma ou outra estratégia de tradução. Berman e Venuti citam, em seus respectivos trabalhos, o alemão Schleiermacher, teórico que, no início do século XIX, já abordava a questão da tradução aproximar ou afastar o texto de partida de seus leitores. Schleiermacher (2007), no texto ―Sobre os diferentes métodos de traduzir‖, originalmente escrito em 1813, estabeleceu dois modos de se traduzir: ―ou bem o tradutor deixa o escritor o mais tranquilo possível e faz com que o leitor vá a seu encontro, ou bem deixa o mais tranquilo possível o leitor e faz com que o escritor vá a seu encontro‖ (p. 242). De acordo com Berman (2002), o teórico alemão considerava que o primeiro modo de tradução seria autêntico e o segundo inautêntico, visto que ―nega a relação profunda que liga esse autor à sua língua própria‖ (p. 265, grifo do autor). 48 No livro A tradução e a letra ou o albergue do longínquo (2013) – publicado pela primeira vez em 1985, na França – Berman, tendo como objeto de estudo a prosa literária, critica as traduções que chama de etnocêntricas. O teórico considera não-éticas as traduções que não respeitam a ―letra‖ do texto estrangeiro – o autor esclarece, de qualquer forma, que a tradução que defende não é aquela palavra por palavra, e sim aquela que não negligencia o outro, a cultura estrangeira e o ―texto enquanto letra‖ (p. 33) e que atente para o ―jogo dos significantes‖ (p. 33). Segundo o autor, nas traduções etnocêntricas, figura-se um sistema de deformação, ―cujo fim é a destruição [...] da letra dos originais, somente em benefício do ‗sentido‘ e da ‗bela forma‘‖ (BERMAN, 2013, p. 67). Um exemplo dessa prática criticada pelo autor foi a tradição francesa, do século XVII, das traduções que ficaram conhecidas como Belles Infidèles, que valorizavam a forma e a estética, produzindo um texto que se adequasse o máximo possível aos gostos da cultura francesa da época. Contudo, em Pour une critique des traductions (1995), última obra de Berman e publicada após sua morte, o autor apresenta uma postura um pouco diferente dessa que acaba de ser mencionada. Apesar de continuar mostrando-se favorável à tradução da ―letra‖, expressa sua visão de forma mais relativizada quanto ao que seria uma tradução ética, ao fazer a seguinte afirmação: ―a eticidade reside no respeito, ou melhor, em um certo respeito pelo original‖ (BERMAN, 1995, p. 92, grifos do autor).10 Do mesmo modo, ao contrário do que fez na outra obra, ele admite que ―o tradutor tem todos os direitos desde que faça um jogo limpo‖ (BERMAN, 1995, p. 93, grifo do autor)11. Para Berman (1995), o tradutor apresentará uma atitude ética se revelar e justificar para o leitor sua escolha por uma tradução etnocêntrica, por exemplo, por meio de elementos paratextuais, como prefácios e/ou notas de rodapé. 10 L’éthicité, elle, reside dans le respect, ou plutôt, dans un certain respect de l‘original. 11 Le traducteur a tous les droits dès lors qu’il joue franc jeu. 49 Venuti (1995a, 1996, 2002), com uma postura comparável à de Berman em certos aspectos, trata do que denomina domesticação nos textos traduzidos, por meio da qual o texto de partida é acomodado, linguística e culturalmente, à língua do público de chegada; e estrangeirização, que, diferentemente do processo de domesticação, busca a manutenção de valores estrangeiros, tanto culturais quanto linguísticos, no texto de chegada. No artigo ―A invisibilidade do tradutor‖, Venuti (1995a) observa que a opção por uma estratégia domesticadora produz um texto considerado transparente e fluente, como se tivesse sido escrito na língua de chegada, ou seja, tornando invisível a figura do tradutor. Segundo o autor, essa prática é muito comum no contexto anglo-americano, visto que uma tradução é considerada aceitável (por redatores, revisores e leitores) quando a sua leitura é fluente, quando a ausência de quaisquer passagens canhestras, construções não idiomáticas ou significados confusos transmite a sensação de que a tradução reflete a personalidade ou a intenção do autor estrangeiro, ou o significado essencial do texto original. (1995a, p.111) Venuti faz críticas à tradução domesticadora, apesar de admitir que toda tradução implica em uma certa domesticação por ser ―a assimilação doméstica de um texto estrangeiro‖ (2002, p. 154), e propõe a estrangeirização na prática tradutória. Os efeitos da estrangeirização, entre outros, seriam aqueles de possibilitar ao leitor a consciência de que está lendo, de fato, um texto traduzido e, assim, dar mais visibilidade ao tradutor. Para Venuti, a tradução deve ser vista como um tertium datum, que ―soa estrangeiro‖ para o leitor, mas tem uma aparência opaca que a impede de parecer uma janela transparente através da qual se visse o autor ou o texto original: é esta opacidade – um uso da língua que resista à leitura fácil segundo os padrões contemporâneos – que deixará visível a intervenção do tradutor, seu confronto com a natureza alienígena do texto estrangeiro. (1995a, p. 118) Venuti (1995b) esclarece que ―o ‗estrangeiro‘ na tradução estrangeirizadora não é uma representação transparente e uma essência que reside no texto estrangeiro e é valiosa em si, mas sim uma construção estratégica cujo valor é contingente à situação da língua de chegada‖ 50 (p. 20).12 O autor ainda afirma que ―um projeto tradutório deve considerar a cultura onde o texto estrangeiro tem sua origem e se dirigir a várias comunidades domésticas‖ (VENUTI, 2002, p. 158). Tratando esses aspectos pela perspectiva da ética do ato tradutório, Maria Clara Castellões de Oliveira (2005, 2007 e 2008) afirma que Venuti, assim como Berman, são a favor de uma tradução pautada pela ética da diferença, ou seja, aquela que ―não apaga as marcas da sua origem e coloca em xeque a estabilidade da crença na existência da superioridade de um texto sobre outro, de uma língua sobre outra, de uma literatura sobre outra, de uma cultura sobre outra‖ (OLIVEIRA, 2005, p.1). Em contraposição à ética da diferença, a teórica nomeia ética da igualdade a postura tradutória que tem como produto um texto cujos elementos linguísticos e culturais do estrangeiro são substituídos por aqueles da língua que recebe a tradução. Berman e Venuti criticam em seus trabalhos, como mencionado, as traduções que não apresentam o outro, o estrangeiro ao público de chegada, e sim o ocultam, por exemplo, em um texto de chegada fluente. É preciso levar em conta, porém, que tanto Berman quanto Venuti, segundo Rodrigues (2007 e 2008), estão inseridos em polos hegemônicos, no caso, respectivamente, a França e os Estados Unidos, em que culturas minoritárias têm pouco espaço de expressão. Portanto, a estrangeirização, a defesa da presença do outro nas traduções como uma postura ética desejável mostra-se relevante no contexto sociocultural dos dois teóricos. No Brasil, assim como em outros países em situações periféricas, a opção por uma ética da diferença pode ter o efeito oposto ao pretendido por Berman e Venuti. De acordo com Rodrigues (2008), ―o Brasil [...] já acolhe o suficiente o Outro hegemônico dando-lhe bastante voz. Por esse ângulo, a prática domesticadora da fluência seria um modo de resistir ao hegemônico e marcar uma posição política de resistência ao estrangeiro‖ (p. 23). 12 The “foreign” in foreignizing translation is not a transparent representation of an essence that resides in the foreign text and is valuable in itself, but a strategic construction whose value is contingent on the current target- language situation. 51 Isso demostra, como menciona Maria Clara Castellões de Oliveira (2008), que não é possível eleger apenas uma ética em tradução. Assim, nada impede o tradutor de valorizar a cultura do texto de partida, isto é, apresentar uma tendência estrangeirizadora, sem negligenciar inteiramente a cultura de chegada, e vice-versa. Os tradutores para darem determinados efeitos em seus textos podem optar por estrangeirizar ou domesticar o texto de chegada. Amorim (2005) cita o exemplo da tradução realizada por Ana Clara Machado de Alice no país das Maravilhas, da coleção ―Eu leio‖ da editora Ática. A tradutora, nesse texto, optou por domesticar os trocadilhos e as canções vitorianas da obra de Lewis Caroll, fazendo referência à cultura brasileira, incluindo poemas e letras de músicas bem conhecidas e, assim, aproximando mais o texto do público-alvo e propiciando a criação de humor. A tradução engloba vários âmbitos e não se baseia necessariamente em um modelo pré-definido. O tradutor, por questões culturais, históricas, individuais e coletivas, pode optar por domesticar ou estrangeirizar determinados elementos e outros, não, mantendo-se de todo modo ―fiel‖ à sua leitura. No próximo item deste capítulo, o foco será a tradução de LIJ. Serão abordados alguns aspectos da tradução para crianças e jovens, como a relação assimétrica que existe entre o tradutor (e todos os que estão envolvidos na publicação do livro) e seu público-alvo, e os possíveis reflexos de tal fato no texto traduzido. 2.3 Tradução de literatura infantojuvenil Como a LIJ, a tradução de obras para jovens e crianças muitas vezes foi e é vista como algo de caráter menor. De acordo com Dias (2001), é recorrente, no setor editorial brasileiro e também europeu, a ideia de que LIJ seria mais fácil de ser traduzida em comparação com a literatura que seria destinada a adultos. No entanto, o tradutor de LIJ lida com as mesmas 52 questões que um tradutor de literatura considerada para o público adulto, como o contexto histórico, social e cultural em que tanto o texto de partida quanto o texto de chegada está inserido. É preciso evidenciar também que há uma assimetria envolvida na LIJ e, por conseguinte, na sua tradução, visto que são adultos que escrevem, editam, traduzem e até, geralmente, compram o livro para não-adultos.13 Logo, entre o tradutor e o seu potencial público há ―diferenças de experiência e de vivência do mundo real e ficcional‖ (AZENHA, 2005, p. 370). Considerando tal caráter assimétrico, ao trabalhar com livros classificados como infantojuvenis, o tradutor lidará, sobretudo, com a sua visão de criança e/ou jovem e esta será influenciada inevitavelmente pelas suas próprias experiências e pelas concepções da sociedade que o cerca. Segundo Oittinen (2000), a imagem da criança é uma questão muito complexa: por um lado, é algo único, baseado na história pessoal de cada indivíduo, por outro lado, é algo compartilhado por toda a sociedade. Quando os editores publicam para crianças, quando os autores escrevem para crianças, quando os tradutores traduzem para as crianças, eles têm uma imagem de criança para a qual seu trabalho é direcionado [...]. (p. 4) 14 No primeiro capítulo, pode-se verificar como a concepção de infância e de LIJ mudou ao longo tempo, sobretudo a partir da ascensão da burguesia, na Europa, em que a criança começa a ser particularizada na sociedade. Essas mudanças, certamente, também se refletiram em como e o que traduzir como LIJ no decorrer dos séculos. Um bom exemplo de como o contexto sócio-histórico influencia na tradução é o caso de Monteiro Lobato, que começou a traduzir para crianças no início do século XX, como também mencionado no capítulo 1. 13 Atualmente, não é muito raro ver livros escritos por crianças e jovens, ainda assim, os autores adultos predominam na produção literária para o público infantojuvenil. 14 Child image is a very complex issue: on the one hand, it is something