RESENHAS/REVIEWS Esta obra está licenciada com uma Licença: Creative Commons Atribuição- NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. http://dx.doi.org/10.5007/2175-7968.2015v35n1p285 LEAL, Alice. Is the Glass Half Empty or Half Full? Reflections on Translation Theory and Practice in Brazil. Berlin: Frank & Timme, 2014. 331 p. Cristina Carneiro Rodrigues Universidade Estadual Paulista O livro é, originalmente, a tese de doutorado de Alice Leal, publicada como o décimo segundo volume da coleçãoTranskulturalität – Trans- lation – Transfer. Atendendo aos anseios da comunidade europeia de conhecer mais sobre os Estudos da Tradução no Brasil, a autora de- cidiu abordar o conflito entre teoria e prática a partir da produção intelectual de dois professores e pesquisadores brasileiros, Rosemary Arrojo e Paulo Henriques Britto. A escolha desses autores leva, ine- vitavelmente, à análise da recepção do pensamento pós-estruturalista no Brasil, o que poderia parecer tópico de interesse restrito, mas, como salienta a própria autora, o exame proposto revela-se de cunho abrangente, na medida em que se estende para o impacto do pós- -estruturalismo na área de Humanas. Para os que, como eu, fizeram mestrado e doutorado em tradução dos anos 1980 e 1990, a conturbação causada pelos escritos de Arrojo na época é bastante conhecida. A reação ante seus escritos e suas apresen- tações em eventos foi grande, a ponto de Frota (2007, p. 155), em seu balanço dos Estudos da Tradução no Brasil afirmar que, “nos tempos de paz e maturidade em que aparentemente vivemos, não se brandem mais as espadas” e que hoje “predomina uma atitude não de confronto mas de complementaridade entre diferentes linhas teóricas”. Alice Leal não teve participação ativa nos debates da época, pois co- meçou a estudar tradução em 2001, quando já se deparou com a fal- 286Cad. Trad., Florianópolis, v. 35, nº 1, p. 285-290, jan- jun/ 2015 Cristina Carneiro Rodrigues ta de interesse dos estudantes pela reflexão teórica, ou seja, com o conflito entre teoria e prática que orienta sua escrita. Sua trajetória enquanto aluna do bacharelado na UFPR, do mestrado na UFSC e do doutorado na Universidade de Viena, serve como preâmbulo a um bem estruturado trabalho. A primeira das quatro partes do trabalho intitula-se “Uma prática teórica e uma prática prática” e divide-se em seis itens e um entrecapítulo; nela, situa as diferenças entre posicio- namentos e concepções dos que consideram problemáticas as relações entre teoria e prática, e os que avaliam que a teoria relaciona-se a reflexão e conscientização [awareness]. Como afirma a autora, o li- vro é permeado pela diferença, que não quer apagar ou reconciliar, mas entender, não pelo modo essencialista, baseado em classificações polares. Como explica, o próprio título do livro poderia ser entendido como dicotômico. Por um lado, os “otimistas” veriam o copo meio cheio e perceberiam uma teoria da tradução científica, neutra e orien- tada para a prática, como uma resposta a seus questionamentos. Por outro lado, os “pessimistas” não aceitariam que uma teoria possa ser neutra, objetiva e abranger todos os casos e veriam o copo meio vazio. Os autores selecionados em seu trabalho representariam as duas ma- neiras de encarar a interação entre teoria e prática. Como não se pauta por dicotomias, Leal convida o leitor a desafiar a alegoria do título e repensá-la por uma perspectiva que permita ver o copo ao mesmo tempo meio cheio e meio vazio. A segunda parte do livro é dedicada a Rosemary Arrojo e é dividida em 2 itens, um destinado a expor o ponto de vista da pesquisadora en- quanto acadêmica, e outro dedicado a seus trabalhos publicados entre 1986 e 2005, com destaque aos publicados em O signo desconstruído (1992). Para os que cresceram intelectualmente lendo esses textos, as análises de Leal podem parecer um pouco detalhadas demais, mas têm a vantagem da perspectiva. Depois de mais de 20 anos de sua pu- blicação, os textos, examinados por quem não participou dos debates da época, assumem outros contornos. Em muitos desses trabalhos, Leal identifica um certo radicalismo, uma “atitude militante” de quem buscaria estabelecer novas tendências de estudo. No entanto, a análise de Oficina de tradução, publicado em 1986, leva-a a concluir que, a despeito de a autora tratar da importância da interpretação e da ética 287Cad. Trad., Florianópolis, v. 35, nº 1, p. 285-290, jan- jun/ 2015 Resenhas/Reviews dela derivada, é sua falta de radicalismo que tornou o livro recurso amplamente utilizado em sala de aula por professores que concordam ou não com as proposições anti-essencialistas de Arrojo. Em Tradução, desconstrução, psicanálise (1993), o radicalismo de O signo desconstruído estaria atenuado. Para Leal, esse livro seria fonte para reflexões estimulantes e deixa pouco espaço para discordância. Na quarta parte do item destinado ao exame das obras de Arrojo. Leal aborda textos escritos depois de 2000. No primeiro deles identifica, em consonância com o pensamento pós-moderno, o ataque ao cientifi- cismo, ao impulso que a modernidade trouxe aos estudos da tradução de buscar um conhecimento universalmente aplicável. Segue-se o tex- to escrito por “Arrojo & Chesterman” – referenciado, na revista que o publicou, como Chesterman e Arrojo – assim como o texto de Ar- rojo que encerra o debate por ele desencadeado. Em sua análise, Leal enfatiza as diferenças irreconciliáveis entre as perspectivas dos dois autores. O penúltimo texto analisado é a resposta de Arrojo a uma en- trevista de Paulo Henriques Britto, em que ele afirma ser um tradutor entre aspas e ela reafirma a visibilidade dos tradutores. Finalizando o item, Leal examina um texto que trata das representações da tradução na ficção, considerando-o instigante, mas apontando também que al- guns podem achá-lo decepcionante, por não defender a desconstrução nem atacar o essencialismo. Na terceira parte do livro, aborda, no primeiro item, a carreira de tradutor literário de Paulo Henriques Britto, ou seja, sua prática, espe- lhando a abordagem da carreira acadêmica de Arrojo feita na segunda parte e trilhando o caminho proposto de circunstanciar o conflito entre teoria e prática. Leal salienta a impressionante produção de Britto como escritor e tradutor e concentra-se, no segundo e terceiro itens, em sua perspectiva enquanto acadêmico, situação em que seus interes- ses se voltam mais para a prática que para a teoria. Em um primeiro momento, analisam-se os trabalhos teóricos em que sua produção é considerada “sólida e emblemática da crítica brasileira ao pós-estru- turalismo em tradução” (p. 213). Leal identifica dois componentes principais na crítica de Britto. Em primeiro lugar, o tradutor, ao falar do ponto de vista de um “prático”, considera as contribuições do pós- 288Cad. Trad., Florianópolis, v. 35, nº 1, p. 285-290, jan- jun/ 2015 Cristina Carneiro Rodrigues -estruturalismo quase sem utilidade; em segundo lugar, espera um radicalismo das perspectivas pós-estruturalistas que não seria perti- nente, ou seja, uma total ruptura com o estruturalismo. Leal aponta que Arrojo salienta que não há essa total ruptura e tenta aproximar o pensamento dos dois autores, no sentido de considerar que relativizar e criticar o estruturalismo não significa aboli-lo. Pelo contrário, em seu entender, o pós-estruturalismo levaria o estruturalismo às últimas consequências. Assim, não haveria radicalismo nas teorias pós-mo- dernas, pois não proporiam novas abordagens, novas metodologias, novas práticas. Em um segundo momento, Leal analisa dois trabalhos de Britto sobre tradução literária. A maior contribuição do primeiro seria o questio- namento da originalidade e a colocação de que criar e traduzir seriam similares, mas haveria nítida distinção entre os processos. O segun- do trata da questão da subjetividade. Ainda que Britto assuma que o pós-estruturalismo o fez rever alguns conceitos, busca uma teoria científica em que as intenções do autor, a estabilidade dos significados e a busca por equivalência seriam centrais; em nome da praticidade, seriam consideradas ficções úteis. O estruturalismo seria necessário, proveitoso e legitimo para seus propósitos, ou seja, para traduzir, en- sinar tradução e propor exercícios. O terceiro momento dessa parte é o que Leal considera a mais contro- vertida do trabalho de Britto, a crítica de tradução. Nos textos anali- sados haveria um retorno a princípios positivistas com a proposta de formalização de um método sistemático e supostamente objetivo para a avaliação de traduções. Na análise de Leal, no entanto, a voz que ressoa por trás dos princípios matemáticos aplicados é a de um poeta e tradutor, não de um acadêmico despido de subjetividade. Leal detalha os argumentos de Britto e aponta pontos cegos e contra- dições, chegando a afirmar que há certo exagero em suas críticas à reflexão pós-estruturalista. Apesar disso e de apontar fraquezas em sua argumentação, as críticas de Britto são consideradas provocati- vas, porque ele investiria tempo em formulá-las, contribuindo para o debate. Nisso seria diferente de outros autores, como Chesterman, que teceriam críticas apressadas e desinformadas. Essas colocações 289Cad. Trad., Florianópolis, v. 35, nº 1, p. 285-290, jan- jun/ 2015 Resenhas/Reviews são feitas na quarta e última parte do livro, ao retomar as questões levantadas para abri-las a um debate mais geral e evidenciar sua hete- rogeneidade, assim como a heterogeneidade dos Estudos da Tradução. São quatro itens, dedicados ao ensino, à institucionalização da tradu- ção, à recepção do pós-estruturalismo e aos objetivos da teorização. Ao tratar do pós-estruturalismo, Leal apresenta as três concepções equivocadas mais comuns a respeito do pensamento pós-estruturalista, o radicalismo, o pessimismo e a tendência ao vale-tudo, para tentar entender o lugar de onde elas teriam partido. Em sua análise, elas não se justificam, pois, em geral, seriam influenciadas pelo essencialismo. Ainda que Leal coloque, em suas observações finais, que seu livro poderia parecer decepcionante por não ter respostas fáceis nem ser útil em termos de aplicação prática, é um trabalho de pesquisa que levanta questões pertinentes e aponta caminhos para futuras pesquisas. Ao enfatizar as diferentes perspectivas de Arrojo e de Britto, as diferentes concepções de “teoria” e de “prática”, assim como a diferença entre os discursos sobre elas, é leitura instigante e profícua para os pesqui- sadores em tradução. Trata-se de uma autora engajada e envolvida com o pensamento pós-estruturalista, mas não é panfletária, o que torna o livro frutífero tanto para os que compartilham de suas ideias, quanto para os que delas discordam. 290Cad. Trad., Florianópolis, v. 35, nº 1, p. 285-290, jan- jun/ 2015 Cristina Carneiro Rodrigues Referências ARROJO, Rosemary. Oficina de tradução. São Paulo: Ática, 1986. ______. (Org.). O signo desconstruído. Campinas: Pontes, 1992. ______. Tradução, desconstrução, psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1993. FROTA, Maria Paula. Um balanço dos Estudos da Tradução no Bra- sil. Cadernos de Tradução, v. 1, n. 17, p. 135-169, 2007. Disponível em: http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/issue/view/442. Acesso em: 12 dez. 2014. Recebido em: 23/01/2015 Aceito em: 31/02/2015