UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DOCÊNCIA PARA A EDUCAÇÃO BÁSICA A UTILIZAÇÃO DA PHC NO ENSINO DE GEOGRAFIA: APLICAÇÃO DE UMA SEQUÊNCIA DIDÁTICA NUMA ESCOLA NO MUNICÍPIO DE BOREBI/SP ANA CRISTINA RAMOS BAURU-SP 2018 ANA CRISTINA RAMOS A UTILIZAÇÃO DA PHC NO ENSINO DE GEOGRAFIA: APLICAÇÃO DE UMA SEQUÊNCIA DIDÁTICA NUMA ESCOLA NO MUNICÍPIO DE BOREBI/SP Dissertação apresentada junto ao Programa de Pós-Graduação em Docência para a Educação Básica – nível de Mestrado Profissional – da Faculdade de Ciências da Unesp, Campus de Bauru/SP, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre. Orientador: Prof. Dr. Vitor Machado. BAURU 2018 Ramos, Ana Cristina. A utilização da PHC no ensino de Geografia: aplicação de uma sequência didática numa escola no município de Borebi/SP/ Ana Cristina Ramos, 2018 134 f. Orientador: Vitor Machado Dissertação (Mestrado)–Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências, Bauru, 2018 Crianças Assentadas. 2. Ensino de Geografia. 3. Material Didático I. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências. II. Título. Dedico este trabalho, primeiramente, ao meu Deus, autor da minha história que na sua palavra diz [...] “Confie no Senhor de todo coração e não se apoie em seu próprio entendimento", Provérbios 3:5. Aos meus pais Antenor e Luzia e meus avós maternos José e Lázara ambos “in memoriam”, trabalhadores do campo que sonharam com as promessas de reforma agrária. Ao meu esposo Francisco, aos meus filhos Renan, Amanda, Letícia e ao Vinícius. Por vocês... AGRADECIMENTOS Meus agradecimentos mais que especiais a minha família Ramos, meus irmãos Ivete, José Luiz, Ivonete, Ricardo, Eliana e Jonas, a todos os meus sobrinhos e principalmente ao Vinícius e a Jéssica, aos meus filhos amados Renan, Amanda e Letícia, e meu marido Francisco, companheiro de todas as horas e grande incentivador, cujo apoio incondicional foi fundamental para que eu pudesse me dedicar à realização deste trabalho. De diversas formas, apoiaram-me durante o período de pesquisa e elaboração desta dissertação. Agradeço pela compreensão da minha ausência. A todos os professores que passaram pela minha vida, especialmente ao professor historiador Edson Fernandes e à querida Dilma Santana Damante, professora da minha infância que foi minha fonte de inspiração para seguir na missão de ensinar. Mestres maravilhosos, entre eles, um professor merece um agradecimento muito especial por enxergar em mim um potencial que eu mesma não enxergava, por ter sido o meu referencial mesmo antes de conhecê-lo pessoalmente, pelo apoio e exemplo que é para mim nesta caminhada... Prof. Dr. Vitor Machado, ser sua orientanda é uma honra! Qualquer palavra que eu escreva aqui é insuficiente para expressar sua importância para que nós chegássemos até aqui. Muito obrigada! Aos meus colegas de profissão e do Programa Docência para a Educação Básica. Para a realização da pesquisa e desta dissertação, contei com a valiosa contribuição de muitos amigos. Agradeço à Suzana Portes por ter me encorajado a prestar o processo seletivo, Priscila Duarte, Andreia Duarte, Lilian Martins, Camila Akemi, Robinson Oliveira e Nilva Pereira que, de diferentes formas, deram a sua contribuição e participaram desta caminhada. Em especial, pelas discussões e reflexões, e por terem me ajudado tanto nos momentos mais difíceis de elaboração desta dissertação. Aos alunos e aos pais, trabalhadores rurais Sem Terra do Assentamento Loiva Lurdes, pela inestimável contribuição, pela paciência e carinho com que me receberam. A todos os educadores da EMEF Prof.ª Iracema Leite e Silva pela gentileza com que me receberam na escola e responderam as minhas perguntas, em especial, às crianças do terceiro ano do ensino fundamental, que contribuíram muito no desenvolvimento da sequência didática. A todos os professores do Programa Docência para a Educação Básica qυе foram tão importantes na minha vida acadêmica е no desenvolvimento desta pesquisa. Cada disciplina cursada e cada professor, de maneira especial, também contribuíram para o meu aprendizado. Agradeço à Profa. Dra. Elis Cristina Fiamengue e ao Prof. Dr. José Euzébio de Oliveira Souza Aragão por participarem da banca de mestrado e de forma generosa sinalizaram importantes contribuições para a melhoria da pesquisa. Minha sincera gratidão e admiração. Assim, a partir das minhas inquietações, da experiência com alunos do campo, dos estudos junto ao Grupo de Pesquisa e da parceria com o professor Vitor Machado, sem a qual, a realização dessa pesquisa não seria possível, surgiu a pesquisa que apresento nesta dissertação. “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim, sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado.” (MARX, 2003, p.7) RESUMO Essa pesquisa de caráter qualitativo teve como objetivo elaborar uma sequência didática pautada na Pedagogia Histórico-Crítica e se propôs a desenvolver um conteúdo específico da Geografia, intitulado “O campo e a cidade: aproximações e diferenças”. Os dados foram coletados por meio de entrevistas gravadas com alunos do 3º ano do Ensino Fundamental e professores da Escola Municipal de Ensino Fundamental “Prof.ª Iracema Leite e Silva”, localizada no município de Borebi/SP. Essa escola atende crianças da área urbana e rural e, em especial, alunos provenientes do assentamento “Loiva Lurdes”. Tal sequência resultou em um material didático digital capaz de auxiliar o professor no desenvolvimento de práticas que contribuam para a investigação sobre o uso dos recursos naturais com destaque para os usos da água em atividades cotidianas, de modo a contribuir para a conscientização e manutenção da água potável. Palavras-Chave: Crianças Assentadas. Ensino de Geografia. Material Didático. ABSTRACT This qualitative research aimed to elaborate a didactic sequence based on Historical- Critical Pedagogy and proposed to develop a specific content of Geography, entitled "The field and the city: approximations and differences". The data were collected through interviews recorded with students of the 3rd year of Elementary School and teachers of the Municipal School of Primary Education "Prof.ª Iracema Leite e Silva", located in the municipality of Borebi / SP. This school serves children from urban and rural areas, and especially from the "Loiva Lurdes" settlement. This sequence resulted in a digital didactic material able to assist the teacher in the development of practices that contribute to the investigation on the use of natural resources, highlighting the uses of water in daily activities, in order to contribute to the awareness and maintenance of water drinking water. Keywords: Children Seated. Teaching Geography. Courseware. LISTA DE FIGURAS Figura 1: A inauguração da estação de Borebi................................................ 26 Figura 2: Borebi no passado ........................................................................... 27 Figura 3: Mapa de localização do município de Borebi / SP............................ 28 Figura 4: Vista aérea do município de Borebi / SP.......................................... 30 Figura 5: Sem-terra marchando em ato de protesto na região........................ 31 Figura 6: Famílias improvisam moradias no início da ocupação .................... 32 Figura 7: Barracos construídos no acampamento da ocupação...................... 33 Figura 8: Crianças brincando no acampamento, infância de pés descalços... 34 Figura 9: Família de acampados assentados.................................................. 36 Figura 10: Casarão do Coronel Leite no assentamento de reforma agrária.... 38 Figura 11: Produção orgânica da agricultura familiar...................................... 39 Figura 12: Produção agrícola Assentamento “Loiva Lurdes” Borebi / SP........ 40 Figura 13: Produção agrícola Assentamento “Loiva Lurdes” Borebi / SP........ 40 Figura 14: Lote Recanto Natureza Assentamento “Loiva Lurdes” Borebi / SP 42 Figura 15: Vista da fachada da EMEF “Prof.ª Iracema Leite e Silva”.............. 44 Figura 16: Taxa de escolarização de alunos de 6 a 14 anos de idade............ 44 Figura 17: Matrículas no ensino pré-escolar, fundamental e médio................ 45 Figura 18: Fachada da EMEF “Prof.ª Iracema Leite e Silva” pós-reforma....... 47 Figura 19: Gráfico do número de alunos moradores da área rural.................. 47 Figura 20: Objetivos gerais de Geografia para o Ensino Fundamental........... 74 Figura 21: Atividades sobre os lugares do nosso dia a dia.............................. 85 Figura 22: Atividades sobre os lugares do nosso dia a dia.............................. 86 Figura 23: Atividades sobre as diferentes casas............................................. 90 Figura 24: Atividades sobre as diferentes casas............................................. 91 Figura 25: Atividades sobre as famílias e o trabalho....................................... 92 Figura 26: Atividades sobre as famílias e o trabalho....................................... 93 Figura 27: Atividades sobre os trabalhadores em nosso dia a dia.................. 94 Figura 28: Fluxograma dos cinco passos da PHC........................................... 103 Figura 29: Ilustrações representativas do 1º passo........................................ 104 Figura 30: Ilustrações representativas do 1º passo......................................... 105 Figura 31: Ilustrações representativas do 1º passo......................................... 106 Figura 32: Ilustrações representativas do 1º passo......................................... 107 Figura 33: Ilustrações representativas do 2º passo – problematização........... 108 Figura 34: Ilustrações representativas do 2º passo – problematização........... 109 Figura 35: Ilustrações representativas do 3º passo – instrumentalização....... 111 Figura 36: Ilustrações representativas do 3º passo – instrumentalização....... 112 Figura 37: Ilustrações representativas do 3º passo – instrumentalização....... 114 Figura 38: Ilustrações representativas do 3º passo – instrumentalização....... 114 Figura 39: Retirantes (1944) – instrumentalização.......................................... 115 Figura 40: Ilustrações representativas do 3º passo – instrumentalização....... 116 Figura 41: Introdução à linguagem cartográfica – instrumentalização............. 119 Figura 42: Visita à horta – instrumentalização................................................. 120 Figura 43: Ilustrações representativas do 3º passo – instrumentalização....... 121 Figura 44: Ilustrações representativas do 3º passo – instrumentalização....... 122 Figura 45: Ilustrações representativas do 3º passo – instrumentalização....... 122 Figura 46: Leitura Era uma vez uma gota de chuva – instrumentalização...... 124 Figura 47: Ilustrações sobre o ciclo da água – instrumentalização................. 125 Figura 48: Ilustrações representativas – instrumentalização........................... 126 Figura 49: Ilustrações representativas – instrumentalização........................... 126 Figura 50: Ilustrações representativas do 4º passo – catarse......................... 127 Figura 51: Ilustrações representativas do 4º passo – catarse......................... 128 Figura 52: Ilustrações representativas do 4º passo – catarse......................... 129 Figura 53: Passo a passo da construção do terrário....................................... 130 Figura 54: Imagem do material didático – Capa.............................................. 132 Figura 55: Apresentação do material didático digital – Menu inicial................ 133 Figura 56: Apresentação do material didático digital – Parte I......................... 133 Figura 57: Apresentação do material didático digital – Parte II........................ 134 Figura 58: Apresentação – Parte III................................................................. 135 Figura 59: Imagem da prática social inicial do conteúdo................................. 135 Figura 60: Imagem da leitura compartilhada João da Água............................ 136 Figura 61: Problematização – ilustração da leitura.......................................... 137 Figura 62: Problematização – atividades com obra de arte............................. 138 Figura 63: Atividade com a música Aquarela – Toquinho (1982) ................... 139 Figura 64: Atividade de desenho – área rural.................................................. 140 Figura 65: Atividade de desenho – área urbana.............................................. 140 Figura 66: Instrumentalização: trabalho no campo e na cidade...................... 141 Figura 67: Instrumentalização: atividade com música..................................... 142 Figura 68: Catarse – atividade de discussão................................................... 142 Figura 69: Catarse – mural para exposição de fotos....................................... 143 Figura 70: Atividade com fotos......................................................................... 144 Figura 71: Atividade – roda de conversa e oralidade....................................... 145 Figura 72: Prática social final – construção de um terrário.............................. 146 Figura 73: Prática social final – terrário pronto................................................ 146 Figura 74: Referências..................................................................................... 147 LISTA DE TABELAS Tabela 1: Formação inicial e continuada de professores do EF...................... 46 Tabela 2: Levantamento das Orientações Curriculares Específicas............... 82 Tabela 3: Orientações para a pedagogia proposta (PHC)............................... 101 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 14 2 METODOLOGIA .................................................................................................... 21 2.1 Universo da pesquisa ....................................................................................... 24 2.1.1 A origem do Município de Borebi .................................................................. 24 2.1.2 O Assentamento “Loiva Lurdes” .................................................................... 31 2.1.3 A Escola Pesquisada .................................................................................... 42 2.2 O desenvolvimento do objeto de aprendizagem ............................................ 50 3 A QUESTÃO DA EDUCAÇÃO: A ESCOLA COMO PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO DO SUJEITO .......................................................................... 53 3.1 A educação como emancipação do sujeito .................................................... 53 3.2 A educação escolar como processo de transformação............................. 55 3.3 A contribuição da educação escolar para a emancipação do sujeito: da gestão à sala de aula............................................................................................... 63 4 O ENSINO DE GEOGRAFIA NO CURRÍCULO OFICIAL: UMA ANÁLISE DOS PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS ...................................................... 69 5 UM MÉTODO PRÁTICO PARA O ENSINO DE GEOGRAFIA .......................... 84 5.1 Análise do material didático apostilado .......................................................... 84 5.2 A descrição e a aplicabilidade do método ...................................................... 95 5.3 O objeto digital de aprendizagem .................................................................. 130 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 148 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 151 14 1 INTRODUÇÃO O tema desta pesquisa surgiu pelo fato de a escola urbana pesquisada receber alunos moradores de assentamentos de reforma agrária, de sítios e fazendas. Apesar de não se tratar de uma escola do campo, a escola precisa contextualizar os conhecimentos desses alunos da zona rural. Nossa pesquisa tem como objetivo construir e elaborar um material didático digital que trabalhe o conteúdo de Geografia, intitulado “O campo e a cidade”, valorizando as especificidades dos educandos do campo. Para a compreensão do significado deste trabalho, faço um recorte da minha história, uma trajetória de vida bem particular. Nasci na terra, embaixo de um pé de limão, pois não deu tempo da parteira, minha avó, chegar. Meu pai foi retirante nordestino, viajou do Estado de Pernambuco para São Paulo em um caminhão conhecido como “pau de arara”, buscando uma melhor condição de vida. Casou-se com minha mãe, uma mineira que trabalhava nos cafezais de grandes fazendas do interior paulista. Ambos trabalharam na terra, assim como meus avós vieram da terra. Todos eles viveram e morreram sonhando com a reforma agrária. Eles migraram do campo para a cidade, em 1975, no período do êxodo rural1, buscando obter uma vida melhor e dar continuidade aos estudos dos filhos, pois a escola rural local oferecia somente até a antiga quarta série primária. Em 1979, meus irmãos e eu ficamos órfãos de mãe. Meu pai, viúvo, passou a ter seis filhos para criar sozinho. Passamos por muitas dificuldades e privações, o que não nos impediu de termos uma infância feliz, cheia de brincadeiras e sonhos. Meu pai trabalhou durante anos em uma grande indústria cervejeira, que nos possibilitou estudar no Centro Educacional SESI - 114 de Agudos/SP. Eu admirava as minhas professoras e, então, aos sete anos de idade, já havia determinado qual seria a minha profissão. 1 Êxodo Rural é um tipo de migração, onde a população rural desloca-se para os centros urbanos de forma desordenada, e isso tem como resultado vários problemas sociais. O efeito cruel e dramático da imigração do homem do campo para as cidades parece vir de várias causas, como a seca que castiga algumas regiões do país, os incentivos agrícolas que não chegam ou são até cortados, os baixos preços de produtos agrícolas, a política agrícola do governo que visa incentivar a produção de produtos destinados à exportação. Para saber mais acesse: https://www.portalsaofrancisco.com.br/geografia/exodo-rural) 15 Cursei o antigo “Magistério”, entre os anos de 1990 e 1993, curso em nível técnico profissionalizante que fornecia Habilitação Específica para o Magistério das séries iniciais do Ensino Fundamental. Porém, sonhava em conquistar meu diploma de faculdade, o que, na época, era tido como improvável, pois comecei a trabalhar aos doze anos de idade devido à fragilidade econômica da minha família. Aos olhos de muitas pessoas, o meu acesso a uma universidade pública era um sonho praticamente impossível, visto que desde aquela época (1990) os números de vagas oferecidas pelas universidades públicas eram muito reduzidos. E ainda hoje, esse problema não teve solução2. Casei-me muito jovem, aos 18 anos, e tive meus filhos. Após dez anos, o Programa Universidade para Todos (PROUNI), criado pelo governo federal durante o mandato do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, oportunizou-me, finalmente, cursar Pedagogia, mas em uma faculdade particular. Para concluí-lo, como exigência parcial, havia a obrigatoriedade de escrever um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), como resultado de uma pesquisa de minha livre escolha. O fato é que eu não sabia ao certo o que iria pesquisar e foi nesse momento que recebi em minha sala de aula alunos advindos do acampamento de reforma agrária. Nesse momento passei a trabalhar com a diversidade, algumas delas até por mim desconhecidas. Na minha avaliação arraigada de preconceitos, essas crianças oriundas do acampamento estavam muito atrasadas nos conteúdos escolares e precisavam de aula de reforço urgente, o que não era oferecido pela escola. Foi então que, em uma aula de ciências, uma dessas crianças do acampamento surpreendeu a todos quando praticamente deu uma aula sobre o plantio e a colheita do feijão. Foi um momento maravilhoso, repleto de emoção e encantamento entre professora e alunos! A partir desse instante, o relacionamento com todas as crianças melhorou muito e, consequentemente, o aprendizado também. 2 Um dos principais desafios das políticas de ação afirmativa é garantir que os alunos possam se manter financeiramente durante a graduação. Na UFABC, que adota um sistema de cotas desde 2006, metade dos calouros vem de escolas públicas e um terço é composto por autodeclarados pretos, pardos ou indígenas. Entre o contingente dos egressos do ensino público, há uma sub- reserva de 50% de vagas para candidatos com renda per capita familiar de até 1,5 salário mínimo. Para saber mais acesse: http://revistapesquisa.fapesp.br/2018/01/16/portas-de-entrada-para-a- universidade/ 16 Resolvemos pesquisar a aprendizagem das crianças do acampamento do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Foi então que os questionamentos que surgiram a partir dessas experiências remeteram-me à minha própria origem e raízes, pois fiquei sabendo que muitos familiares meus também faziam parte desse acampamento do MST. Durante o período de convivência com esses alunos fui me envolvendo cada vez mais com eles, passando a conhecer seus ideais e o movimento social do qual faziam parte, o que contribuiu significativamente para que eu fosse descontruindo preconceitos. Naquela época, o acampamento estava em luta pelo direito à justa distribuição de terras e, por vezes, os pais participavam de manifestações, então, eu pedia para que eles deixassem os seus filhos em minha casa para poupar as crianças de possíveis confrontos com policiais, o que nem sempre foi possível evitar, pois me recordo que, certa vez, as crianças foram atingidas por spray de pimenta e quando fui fazer as entrevistas, elas estavam com os olhos vermelhos e com problemas respiratórios. Segundo os pais, era devido aos efeitos do gás. Foram muitas vivências, mas esse episódio me marcou profundamente enquanto pesquisadora em educação. Pouco tempo depois, no ano de 2009, fui morar com meus filhos no assentamento3 Loiva Lurdes, em Borebi/SP, e vivenciamos de perto as dificuldades encontradas por essa comunidade. Sobrevivíamos sem ter o mínimo necessário para viver com dignidade. Lá, no início de formação do assentamento, faltavam serviços básicos como abastecimento de água, energia elétrica, coleta de lixo, esgoto, etc. Mas, o convívio diário com outros moradores nos enchia de esperança, pois acreditávamos que, com a força da luta, as condições de vida iriam melhorar, uma vez que, com a conquista da terra, já era possível se plantar alimentos. Aos poucos as mudanças foram acontecendo, abriram-se as estradas, instalaram 3 O acampamento se torna um pré-assentamento quando começam as negociações com o governo para fazer daquela área um local destinado à reforma agrária, as famílias permanecem vivendo em barracos de lona até que o INCRA faça o cálculo da área e a divisão dos lotes entre elas. Feita a divisão essas áreas se tornam um assentamento, onde as famílias conseguem o direito de uso e fruto da terra e créditos do governo para começar a construção de casas de alvenaria e a produção agrícola. Nesse caso, a terra é legalizada e essas pessoas não serão retiradas. Para saber mais acesse: http://saibamaisnet.blogspot.com/2009/11/saiba-as-diferencas-entre-um.htm. 17 energia elétrica, perfuraram poços semiartesianos, disponibilizaram recursos para a construção de casas de alvenaria. Apesar de todas essas conquistas, atualmente ainda faltam serviços de saneamento básico e coleta de lixo no assentamento. Lá eu vivia na condição de agregada do meu irmão, ou seja, não tinha lote de terra. Então, no ano de 2012, prestei um concurso público para professor de Ensino Fundamental e me efetivei no município vizinho, Lençóis Paulista/SP, e então me mudei com meus filhos para lá, almejando que eles tivessem melhor formação escolar e oportunidades de emprego. Dez anos se passaram e estou vivendo a realidade de um sonho que é poder estudar em uma Universidade pública. No atual contexto político do Brasil, infelizmente, vivemos um retrocesso na educação. Com a justificativa de cobrir o rombo das contas públicas, a equipe do presidente interino Michel Temer promove um severo corte de gastos na educação. Sabemos que em 2014 foi aprovado o Plano Nacional de Educação (PNE) visando corrigir falhas na área da educação, com propostas de criação de um plano de carreira para professores da rede pública, almejando melhorias na universalização do ensino. Historicamente, o maior erro do nosso país foi o descaso com a educação. Portanto, o governo deveria honrar tais compromissos e concretizar as metas; para isso é necessário e urgente colocar a educação como prioridade. Hoje, através do Programa de Docência para a Educação Básica, tenho a oportunidade de pesquisar essa mesma comunidade com a qual muito me identifico, contribuindo, assim, com a educação das crianças da área rural, especialmente aquelas do assentamento, na direção da luta pela conquista da cidadania através de um ensino de qualidade. Esta pesquisa que tem como tema central a educação para os alunos moradores do campo, parte do princípio que, historicamente, a vida rural e sua educação sempre foram vistas como sinal de atraso. Assim, é inquestionável a importância de se ter um olhar cuidadoso sobre os alunos habitantes da área rural, filhos de trabalhadores rurais assentados da reforma agrária, justamente por possuírem uma história marcada pelas lutas dos pais e desenvolverem sociabilidades específicas. Portanto, são sujeitos desse processo 18 principalmente no que tange suas necessidades de aprendizagens e a contextualização da Educação para o Campo na realidade atual em que estão inseridos. Diante disso, a escola necessita reconhecer a diversidade presente na sala de aula, pois recebe crianças de diferentes grupos sociais e torna-se um grande desafio para os professores que atuam diretamente com alunos do campo. É necessário oportunizar e produzir saberes a todo o alunado heterogêneo, sem exclusões. Isso pode ser justificado, principalmente, pela necessidade de se contextualizar o ensino considerando as especificidades dos alunos do campo, bem como pela necessidade de uma mudança na forma como os conteúdos são tratados pelos livros didáticos. Dessa forma, nossa pesquisa tem como objetivo a construção e elaboração de um material didático digital, visto que a escola possui laboratório de informática com acesso à internet. Esse material é um apoio para o professor trabalhar o conteúdo de geografia, intitulado “O campo e a cidade”, com base na Pedagogia Histórico-Crítica. Valorizando as especificidades dos educandos do campo, que frequentam o 3º ano do Ensino Fundamental da única escola de um pequeno município do interior paulista, chamado Borebi. Assim, para iniciar o percurso do nosso trabalho, na seção 1 está a introdução, onde contamos um pouco sobre a nossa trajetória de vida e heranças culturais. Na seção 2 relatamos o processo de pesquisa, evidenciando a metodologia utilizada, e a pesquisa qualitativa realizada, com entrevistas na escola, buscando fazer o levantamento dos dados. Essa técnica fez-se presente na etapa de coleta de dados da pesquisa. Para o desenvolvimento deste trabalho realizamos entrevistas com seis professores da escola, utilizando gravador de voz. Eles foram esclarecidos sobre os objetivos da pesquisa e questionados se gostariam de participar voluntariamente. Elaboramos perguntas direcionadas para uma análise descritiva do perfil profissional, formação inicial e continuada, jornada de trabalho semanal, tempo de serviço, entre outros. 19 Na seção 2.1.1 apresentamos a origem do município pesquisado, também abordamos a trajetória histórica do município, mostrando sua localização e descrição, e contamos um pouco sobre a sua história e emancipação política administrativa. Na seção 2.1.2 apresentamos o assentamento Loiva Lurdes, apresentamos também as características das famílias do contexto local do assentamento de reforma agrária pesquisado. Na seção 2.1.3 contexto local, ou seja, a escola onde se desenvolveu a pesquisada. Realizamos a descrição da escola, sua infraestrutura, bem como a taxa de escolarização apresentada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), realizada no ano de 2015. Na seção 2.2 apresentamos o desenvolvimento do objeto de aprendizagem. Na seção 3 abordamos a questão da educação: a escola como processo de transformação do sujeito. Na seção 3.1 a educação como emancipação do sujeito. Na seção 3.2 Discutimos a educação como processo de humanização e conscientização do indivíduo, abordando o papel da educação escolar e suas contribuições para o processo de transformação. E na seção 3.3 a contribuição da educação escolar para emancipação do sujeito: da gestão a sala de aula. Na seção 4 abordamos o ensino de Geografia no currículo oficial, com uma breve análise dos Parâmetros Curriculares Nacionais. Nesse momento na seção 5 apresentamos um método prático para o ensino de Geografia, discutimos a importância do ensino de Geografia, como é abordado no Currículo Oficial do estado de São Paulo e qual a proposta didática apresentada nos PCNs – Parâmetros Curriculares Nacionais e Diretrizes Curriculares para o ensino do conteúdo de Geografia “O campo e a cidade” voltado para o terceiro ano do ensino fundamental. A seção 5.1 traz uma análise do material didático apostilado utilizado pelos professores da escola. A descrição do método PHC e a aplicabilidade são feitas na seção 5.2, onde destacamos a questão da educação e o papel da escola democrática que na 20 Pedagogia Histórico-Crítica é vista como um espaço político pedagógico que possibilita ao aluno a apropriação dos saberes historicamente sistematizados. Apresentamos a Pedagogia Histórico-Crítica (PHC) e a luta da educação em favor da superação das desigualdades, oportunizando a classe trabalhadora o acesso aos conhecimentos construídos historicamente, como processo de emancipação do sujeito. O passo seguinte nos levou a apresentarmos um método prático para o ensino de Geografia, no qual discutimos e abordamos os fundamentos e as concepções que embasaram nossa sequência didática, cujo método foi inspirado na Pedagogia Histórico-Crítica (PHC) proposta por Saviani (1992), bem como a descrição do método (método dialético – prática - teoria-prática) apresentado em forma de didática na obra “Uma Didática para a Pedagogia Histórico-Critica” de Gasparin (2005). Na seção 5.3 O objeto Digital de Aprendizagem é descrito nas etapas da PHC, que possibilita ao aluno a apropriação dos saberes historicamente sistematizados. E por fim na seção 6 estão as considerações finais. processo de emancipação do sujeito. relevância. 21 2 METODOLOGIA A pesquisa foi realizada na única escola de Borebi, um pequeno município do interior paulista. A escola denominada Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) “Professora Iracema Leite e Silva” recebe, atualmente, alunos da área rural, em especial, alunos que habitam o assentamento de reforma agrária “Loiva Lurdes”. A nossa pesquisa foi desenvolvida especialmente com 25 alunos que frequentam o 3º ano do Ensino Fundamental dessa escola. O primeiro passo para a elaboração deste trabalho foi a realização de uma revisão da bibliografia para a composição do campo teórico a respeito do tema, visando selecionar os autores que contribuíssem com a pesquisa, entre eles Saviani (1992), Gasparin (2005), Libâneo (2003), Caldart (2000), Ferrante (2002), Machado (2011), Munarin (2017), Paro (1997), Whitaker (2002), entre outros. Do ponto de vista metodológico desenvolvemos uma pesquisa qualitativa, segundo a qual: Considera que há uma relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito, isto é, um vínculo indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito que não pode ser traduzido em números. A interpretação dos fenômenos e a atribuição de significados são básicas no processo de pesquisa qualitativa. Não requer o uso de métodos e técnicas estatísticas. O ambiente natural é a fonte direta para coleta de dados e o pesquisador é o instrumento – chave. É descritiva. Os pesquisadores tendem a analisar seus dados indutivamente (GIL, 1999, p.43). Para o desenvolvimento deste trabalho realizamos entrevistas com seis professores da escola, esses professores foram esclarecidos sobre os objetivos da pesquisa, bem como, se gostariam de participar voluntariamente. Elaboramos perguntas direcionadas para uma análise descritiva do perfil profissional, formação inicial e continuada, jornada de trabalho semanal, tempo de serviço, entre outros. Realizamos também uma análise das apostilas utilizadas nas salas de aula do terceiro ano do ensino fundamental I, durante o período da pesquisa. Para a diretora, direcionamos perguntas relativas ao Projeto Político Pedagógico da instituição, dados sobre o número de alunos, sobre o espaço físico da escola e o transporte escolar. 22 Procuramos saber qual é a visão da escola sobre o papel da educação, os anseios a respeito das contribuições que a educação escolar trará para a formação dos alunos. A coleta de dados foi realizada por meio de registro em diário de campo e entrevistas na escola, fornecendo dados e informações a respeito da educação dos alunos. Foram registradas as observações, com vistas a tornar mais fidedigna à análise dos dados. Foi entrevistada a diretora da escola e seis professores de Educação Básica do Ensino Fundamental I. Entre o grupo de professores entrevistados três tem formação em Pedagogia, um em Psicologia, um em Matemática e um em Educação física. Alguns professores atenderam prontamente e responderam, outros optaram por responder em outra ocasião e alguns se recusaram a participar. As perguntas foram direcionadas a vida profissional. Optamos por nomeá-los de Prof. A, B,C,D,E e F. A) Você possui graduação? Se sim, qual? B) Qual a duração do curso? C) Quanto tempo você tem de magistério? D) Em que ano você concluiu? E) Qual foi a instituição formadora? F) Você tem Pós-graduação ou alguma outra especialização? G) Se sim, qual foi a duração do curso e qual foi o ano de conclusão? H) Você trabalha quantas horas semanais? I) Em sua graduação, você cursou alguma disciplina específica para trabalhar com alunos do campo? Após ouvir as respostas, elaboramos uma tabela para registrar os dados dos professores. Através da análise dos dados, pudemos observar que todos os professores possuem qualificação, mas a maioria dos professores não possui em sua graduação uma formação específica que os capacite para trabalhar com os educandos do campo. Somada a essas observações, destacamos que a Resolução CNE/CEB 1, de 3 de abril de 2002 institui Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo. Ela diz o seguinte: 23 Art. 13. Os sistemas de ensino, além dos princípios e diretrizes que orientam a Educação Básica no país, observarão, no processo de normatização complementar da formação de professores para o exercício da docência nas escolas do campo, os seguintes componentes: I - Estudos a respeito da diversidade e o efetivo protagonismo das crianças, dos jovens e dos adultos do campo na construção da qualidade social da vida individual e coletiva, da região, do país e do mundo; II - Propostas pedagógicas que valorizem, na organização do ensino, a diversidade cultural e os processos de interação e transformação do campo, a gestão democrática, o acesso ao avanço científico e tecnológico e respectivas contribuições para a melhoria das condições de vida e a fidelidade aos princípios éticos que norteiam a convivência solidária e colaborativa nas sociedades democráticas. Além disso, a maioria dos professores não tem o conhecimento das Diretrizes Operacionais da Educação do Campo. Professores afirmam ter feito uma leitura superficial das Diretrizes, sem o aprofundamento necessário, desprezando, sem intencionalidade, o conhecimento de mundo dos alunos da área rural. A luta do MST, também no campo da educação, é efetuada visando construir uma educação orgânica, no sentido dado pelo sociólogo italiano Antonio Gramsci (1968), ao tratar dos intelectuais e da organização da cultura. Assim, os intelectuais Sem Terra, ou seja, os que participam dos setores de educação do movimento desenvolvem um importante papel na mudança social que pretende o movimento; eles atuam como criadores e difusores de ideias e práticas educacionais, bem como seus organizadores (FERRANTE, 2002 p. 191). Entendemos que a escola deve ser, de fato, democrática, ou seja, um espaço sociocultural de aprendizagens significativas e de práticas emancipadoras para as comunidades que ali estão inseridas. Esta corrente da pedagogia progressista defende o ponto de vista de que a principal contribuição da escola para a democratização da sociedade está na difusão da escolarização para todos, colocando a formação cultural e científica nas mãos do povo como instrumento de luta para sua emancipação. Valoriza, assim, a instrução enquanto domínio do saber sistematizado e os meios de ensino, enquanto processo de desenvolvimento das capacidades cognitivas dos alunos e viabilização da atividade de transmissão/assimilação ativa de conhecimentos (LIBÂNEO,1992, p. 127). A educação capitalista reproduz a sociedade de divisão de classes, mas a escola comprometida com a transformação social pode contribuir para a emancipação do sujeito, libertando o seu pensamento, formando um cidadão 24 crítico, através de uma metodologia transformadora, condizente com os anseios do sujeito do campo. Portanto, isso justifica essa pesquisa estar fundamentada nos ideais da Pedagogia Histórico-Crítica (PHC), enquanto didática para a prática docente. A prática pedagógica que devemos exercer é uma prática de resistência. Por fim, construímos uma sequência didática voltada para o ensino da Geografia, que resultou em um objeto digital de aprendizagem intitulado “O campo e a cidade”. Por meio dele buscamos respeitar as especificidades dos alunos e envolvê-los, enriquecendo a dinâmica da sala de aula, sendo que contribuíram muito com as suas vivências, o que contribuiu na construção da sequência didática de modo que se tornou uma ferramenta digital de aprendizagem a qual abordou o tema voltado para o terceiro ano do ensino fundamental. A partir disso, este trabalho visa contribuir para a superação de algumas dificuldades pedagógicas presentes nas salas de aula, apoiando a prática de professores de modo a favorecer o desenvolvimento e a autonomia da criança para compreender o mundo que a cerca e para interpretar as situações vivenciadas no cotidiano. A prática pedagógica, para ser transformadora, depende muito da consciência e do fazer pedagógico, mas encontra resistência do próprio sistema educacional imposto. 2.1 Universo da pesquisa 2.1.1 A origem do Município de Borebi Sobre a história oficial de Borebi, as mais antigas referências da região são datadas em 1.721, quando passaram a ser divididas as terras delimitadas pelo Rio Paranapanema e pela Cuesta de Botucatu, que servia de ponto de referência para os viajantes que demandavam o sertão. Essas terras foram inicialmente divididas em sesmarias, doadas pelo Rei D. João VI, nos tempos dos índios. A região de Lençóis originou- se da sesmaria do Porto Felicence Antônio Antunes Cardia, que mais tarde foi desmembrada em fazendas e vendidas para quem dispusessem de condições para desbravá-las. E segue-se o transcurso histórico com o capitão Raymundo de Godoy Moreira, 25 Major José Inocêncio da Rocha, Dr. Gabriel de Oliveira Rocha, Coronel Virgílio de Oliveira Rocha, entre outros que foram dentre as primeiras famílias que se instalaram na região, abrindo as fazendas, dedicando-se ao plantio do café e cultivo de outros produtos de subsistências. No inicio do século XX, o café marcava a sua ocupação nas terras do oeste paulista. Nos municípios de Botucatu, São Manoel, Lençóis Paulista e Agudos, floresceu a cultura de café (BOREBI, 29/06/2017, SP). Na obra História de Nossa Gente (CHITTO, 2008), há poucos relatos de acontecimentos da história oficial a respeito da escravidão na região lençoense, principalmente nas fazendas, conforme abaixo. A escravidão teve origem na própria África, quando os chefes bárbaros faziam dos negros seus escravos, chegando a vendê-los como propriedades. Os compradores passaram a adquiri-los por preços irrisórios, originando o tráfico de escravos. Eles chegavam ao Brasil em navios negreiros, eram vendidos aos senhores de engenho, aos donos de fazendas, passando a trabalhar nas lavouras, sem receber remuneração. Moravam em senzalas ou alojamentos formados por grupos de casas, nas proximidades da casa-grande. Em Lençóis os escravos chegavam trazidos por ricos fazendeiros, “os coronéis”, para trabalhar em vastas propriedades com grandes plantações. Muitas escravas prestavam serviços domésticos junto à Sinhá e sua numerosa família. Alguns proprietários chegaram a ter mais de trinta escravos. Depois da Lei Áurea em 1888, libertos, muitos deles passaram a fazer parte do cotidiano da região (CHITTO, 2008, p. 71). Na história oficial apresentada pelo autor, o tema escravidão é tratado como algo “normal”, comum para a época. Sabemos que os escravizados eram tratados de forma desumana, constantemente eram açoitados, castigados fisicamente, acorrentados. Mesmo nesse cenário de crueldade, os negros reagiram à escravidão, tentavam manter as suas origens culturais, suas crenças e costumes, desenvolveram a capoeira como forma de resistência, se rebelavam e fugiam formando quilombos. Ainda sobre o assunto, há também relatos da existência de um Quilombo no Distrito de Botucatu, fato que causava grande preocupação às autoridades da época, que tentavam efetuar a prisão dos escravizados que fugiam. Em momento algum os escravizados são valorizados ou descritos como pessoas que contribuíram para o desenvolvimento das fazendas de café e dos municípios do interior paulista. Alguns ex-escravos são descritos como pessoas estimadas e ainda assim tiveram seus filhos e maridos comercializados como 26 mercadoria, como o caso da ex-escrava Laureana da Conceição que foi homenageada com o seu nome numa rua em Lençóis Paulista. Historicamente, a escravidão permaneceu cerca de 400 anos no país, assim como ocorreu em várias regiões do Brasil, a exploração da mão de obra escrava africana esteve presente nas fazendas de café de Borebi, os negros escravizados foram sendo explorados pela elite. No passado, Borebi foi distrito de Lençóis e nos compilados dos livros históricos de Alexandre Chitto, sobre a história de Lençóis Paulista: “Borebi passou oficialmente a Distrito de Lençóis pela Lei Nº 1897 de 22 de dezembro de 1922, ficando, assim, incorporado ao nosso município”. Foi o Cel. Amâncio político local, presidente da Câmara, fez parte do Conselho da Intendência, pertenceu à Guarda Nacional, chegando ao posto de Coronel. Como ardente republicano, liderava a política onde também militava o Padre D. José Magnani, tornando-se a princípio amigo do vigário e depois inimigo. Possuía o Cel. Amâncio uma fazenda num lugar denominado Borebi. [...] mandou edificar uma bonita capela dedicada à Nossa Senhora das Graças, que passou a ser a Padroeira. O lugar desenvolveu-se e Manoel Amâncio é considerado o fundador de Borebi, desde 1898 (CHITTO 2008, p.68- 69). Foi construído um ramal para transportar lenha de Borebi até a estação Cel. Leite. Figura 1: A inauguração da estação de Borebi Fonte: Carlos Cornejo (1917). 27 A estação de Borebi foi inaugurada com o ramal, em 1917, com a supressão do ramal, em 1962, a estação foi desativada. O nome Borebi, na língua indígena, significa Pouso das Antas. Figura 2: Borebi no passado Fonte: José Henrique Bellorio; Folha da Manhã, (1948) A figura de número 2 é um registro histórico de Borebi e foi publicada pelo extinto jornal Folha da Manhã (Grupo Folha). Na imagem a faixa branca curva que passa pelo limite da área urbana (à direita da foto) era a linha da Sorocabana. O município de Borebi, criado em 1993. Para a emancipação de onze distritos paulistas foi realizado um plebiscito, no dia 5 de novembro de 1989, surgindo, assim, novos municípios. Quando, em 09 de janeiro de 1990, por lei estadual (nº 6.645/90), o município foi criado. A Lei nº 6.645 de 09 de Janeiro de 1990 Dispõe sobre alterações no Quadro Territorial Administrativo do Estado Artigo 2º - Ficam criados os seguintes municípios: II - Município de Borebi, com sede no distrito de Borebi e com território desse mesmo distrito, do Município de Lençóis Paulista, tendo as seguintes divisas: [...] Borebi é um pequeno município brasileiro do Estado de São Paulo, localizado a uma latitude 22º34''10" sul e a uma longitude 48º58''16" oeste, https://www.jusbrasil.com.br/legislacao/185311/lei-n-6-645-de-09-de-janeiro-de-1990#art-2_inc-II 28 estando a uma altitude de 590 metros. Estando a apenas 10 km da SP 300 (Rodovia Marechal Rondon), o município de Borebi é de fácil acesso e tem grande potência de expansão devido a sua grande área territorial, faz divisa com os municípios de Avaré, Iaras, Lençóis Paulista e Agudos, e está a apenas 44 km de Bauru, sua água é 100% extraída de poços devido ao fácil acesso e que facilitam o tratamento. A figura 3 mostra a localização do município. Figura 3: Mapa de localização do município de Borebi / SP. Fonte: Raphael Lorenzeto de Abreu– Maplink (2006). Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população do município estimada em 2016 era de 2.548 habitantes. Possui uma área de 348,116 km². Em sua obra “Cidades Imaginárias”, o autor José Eli da Veiga aponta que o Brasil é menos urbano do que se calcula. O autor questiona o fato de que em muitos municípios brasileiros, áreas destinadas a lavouras e pastos são decretadas como perímetro urbano, “são inúmeros os casos de população irrisória e ínfima densidade demográfica, mas com altíssimo grau de urbanização” (VEIGA, 2000, p. 66). Todavia, as dinâmicas econômica, social, política e cultural são, em sua opinião, claramente rurais e demonstra “A necessidade de uma renovação do pensamento brasileiro sobre as tendências da urbanização e de suas 29 implicações sobre as políticas de desenvolvimento que o Brasil deve adotar” (VEIGA, 2002, p. 31). Nesse sentido, o autor afirma que o Brasil rural e suas sedes municipais são apenas cidades imaginárias e nos chama a atenção ao fato de que se classificam como urbana toda e qualquer sede de município, até mesmo as sedes distritais. Veiga defende a necessidade de se diagnosticar e adotar um plano estratégico visando, inclusive, a superação da dicotomia rural-urbana e que “contenha diretrizes, objetivos e metas que favoreçam sinergias entre a agricultura e os setores terciários e secundários das economias locais” (p. 47). Observamos que o mesmo ocorre no município pesquisado, visto que Borebi é um município pequeno cercado por fazendas, sítios e canaviais, portanto, com características rurais bem presentes. O autor entende que “o desenvolvimento leva à revitalização do ambiente natural e não à urbanização do campo”. Em Borebi, o café mostrou sua força em termos de expansão, nas regiões próximas aos morros, onde predominava terra roxa. O café foi o elemento organizador e propulsor do desenvolvimento econômico e urbano do antigo Patrimônio de Santa Maria de Borebi. O processo de ocupação fundiária foi direcionado pela empresa agrícola, desprezando a pequena e média propriedade, produzindo uma classe social de grande poder econômico, a Aristocracia do café. Em 08 de agosto de 1.898, nasceu o Patrimônio de Santa Maria de Borebi. A ocupação foi de famílias de imigrantes italianos, espanhóis, portugueses e sírios. As fazendas de café de Borebi produziam um café de primeira qualidade. Os colonos tinham direito de plantar cereais entre as ruas de café e assim produzir milho para criar galinhas e porcos. Além do café havia a pecuária de leite e de corte. A crise de 1.929 - 1.930, a maior crise do Mundo Ocidental, arruinou todos os fazendeiros. A II Guerra Mundial ocasionou o golpe definitivo para todos os cafeicultores. O café deixou de ser exportado. Os fazendeiros abandonaram suas fazendas e foram morar nos grandes centros urbanos para aplicar seu dinheiro na indústria ou em transação imobiliária. Era o fim da aristocracia do café. Os colonos também procuraram os centros industriais para se estabelecerem como operários das fábricas, marcando a mudança econômica da nação (BOREBI, 07/07/2018, SP). 30 A figura 4 traz a vista aérea de Borebi/SP, município pesquisado. Figura 4: Vista aérea do Município de Borebi / SP. Fonte: Borebi/SP (2017). Ainda sobre a história oficial do município, é interessante saber que a aristocracia do café predominou até a 2ª Guerra Mundial. Para Marx (1982), a base da economia capitalista é a exploração da força de trabalho. O capitalismo, desde sua origem, é um sistema de exploração da mão de obra, pois, já nessa época, houve a concentração de riquezas nas mãos dos grandes proprietários. Diante disso, Konder (2009, p.130) confirma o pensamento de Marx, destacando que: A sociedade capitalista é a sociedade em que a alienação assume, claramente, as características da reficação, com o esmagamento das qualidades humanas e individuais do trabalhador por um mecanismo inumano, que transforma tudo em mercadoria. Marx critica a economia política capitalista e afirma que dentre as forças produtivas, a força de trabalho é a mais importante considerada por ele como o bem inalienável. Após apresentarmos o município de Borebi, o passo seguinte será a história do assentamento pesquisado, desde a formação do acampamento até a conquista do assentamento. 31 2.1.2 O Assentamento “Loiva Lurdes” A fazenda conhecida como Noiva da Colina pertenceu, no passado, ao poderoso Coronel Leite, rico fazendeiro de café de Borebi. A ocupação dessa fazenda aconteceu no ano de 2006, quando integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) ocuparam as terras consideradas improdutivas reivindicando a área para assentamento de reforma agrária. Sobre o assunto a Constituição Federal assevera: Art. 184 - Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei. A manifestação pacífica dos trabalhadores Sem Terra foi registrada e publicada no Jornal da Cidade (Bauru/SP), conforme a figura 5 abaixo: Figura 5: Sem terra marchando em ato de protesto a terras improdutivas da região. Fonte: Santana (2008). A carta magna garante que acima do direito a propriedade da terra está o dever do cumprimento da sua função social. Na imagem acima pudemos observar os Sem terra marchando em protesto de reivindicação à 32 desapropriação de terras improdutivas da região de Agudos para fins de reforma agrária. É na busca de objetivos comuns, participando da luta pela reforma agrária, que o acampado também aprende a compreender que seu cotidiano é dotado da ideia de vida que está em constante movimento, pois no cotidiano de um acampamento, nenhum dia é igual ao outro. E isso pode alterar os sentimentos, a organização e as ações que regem a conduta dos acampados (MACHADO, 2008). No início, a chegada dos Sem-Terras ao município foi bastante conturbada, sobre a expressão “ sem terra” Caldart esclarece que A expressão “sem terra” indica a categoria social dos trabalhadores e trabalhadoras do campo que não tem terra e que passam a requerê- la como direito. Trata-se de um vocábulo recente nos dicionários da língua portuguesa, uma das conquistas culturais da luta pela terra no Brasil. Mas em seu nome, o Sem Terra, mantém a grafia original de seu nascimento como sujeitos que criaram o MST (CALDART, 2000 b, p. 142) Esses sujeitos afirmam ter orgulho de pertencer ao MST, sem ‘Sem Terra” para eles é uma identidade de trabalhador do campo que luta por seus direitos. Nesse mesmo ano (2008), as famílias montaram acampamento, construindo barracos de lona preta na beira da estrada que dava acesso à fazenda denominada Noiva da Colina que estava sendo pleiteada pelos trabalhadores. Figura 6: Famílias improvisam moradias no início da ocupação. Fonte: Acervo pessoal (2008). 33 As moradias improvisadas são apresentadas nas figura 6 e 7, as famílias constroem os seus barracos próximos uns dos outros para que, apesar da precariedade dessas moradias, possam se unir e garantir a alimentação de todos, em uma cozinha coletiva. As famílias matricularam as suas crianças na única escola municipal de ensino fundamental. A figura 7 a seguir mostra outros barracos construídos pelas famílias no acampamento no início da ocupação dos Sem-Terra. Figura 7: Barracos construídos no acampamento pelos trabalhadores Sem-Terra. Fonte: Acervo pessoal. No acampamento, os Sem Terra se organizavam para a construção dos barracos, onde improvisavam o fogão para o preparo dos alimentos e providenciavam o armazenamento de água em caixas d’água, tambores e galões para socorrer as necessidades básicas diárias. Sobre o acampamento, Ferrante (2004, p. 180) explica que: O acampamento serve de embrião do entrelaçamento de novas formas culturais e sociais de viver legitimadas pelo MST, abrindo caminho para a construção e reconstrução da nova forma de sociabilidade entre os membros acampados que, quanto mais aprofundada, mais mobiliza valores e ações que preservam a humanidade das pessoas. Foram necessárias manifestações reivindicando transporte escolar para as crianças e melhorias na conservação das estradas que dão acesso à área 34 urbana, pois, quando chovia, o transporte escolar não trafegava, deixando as crianças sem aula. A vida no acampamento oportuniza uma importante convivência social [...] a partir dessa intensa convivência social uma série de aprendizados são produzidos, por meio das relações por eles desenvolvidas na construção do universo do qual fazem parte, criam valores e descobrem conceitos capazes de fortalecer a luta pela cidadania e a conquista da reforma agrária. É no bojo desse processo que o acampado aprende a ser valorizado como indivíduo social, pelo fato de ter sido excluído da sociedade capitalista e perversa, por força da elite dominante, seja ela urbana ou rural (MACHADO, 2011, p. 182). Houve muita luta confrontos e negociações até que todas as crianças pudessem frequentar as aulas. Na figura 8 a seguir mostramos as crianças brincando no acampamento: Figura 8: Crianças brincando no acampamento, infância de pés descalços. Fonte: Acervo pessoal. Na figura acima observamos as crianças brincando próximas às moradias, aquelas que não tinham brinquedos participavam da brincadeira utilizando pequenos pedaços de pau, abrindo “estradas” na areia para os carrinhos dos colegas passarem. Cerca de dois anos após a chegada dos Sem terra, a fazenda, outrora conhecida por “Noiva da Colina”, foi negociada pelo Instituto Nacional de 35 Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e se tornou o assentamento de reforma agrária “Loiva Lurdes”. Segundo os integrantes do MST, o nome do assentamento foi escolhido em homenagem a Loiva Lurdes, uma das militantes que fundou a Via Campesina e lutou pela emancipação da mulher gaúcha, morrendo em 2009, vítima de câncer. Cinquenta famílias integrantes do MST que vieram de várias regiões do estado de SP, na maioria da região de Promissão/SP e Pontal do Paranapanema, moravam embaixo de barracos de lona no acampamento, desprovidas de qualquer tipo de conforto e proteção. Novamente observamos outro importante aprendizado: Tal aprendizado é a construção de novas relações interpessoais iniciadas quando o acampado passa a conviver com indivíduos de diferentes etnias, com posições políticas diferenciadas, com diferentes religiões e costumes. Esse fato obriga-o também a rever a posição perante a mulher e os filhos. Nesse processo, ele se confronta com a tradição cultural da família rural, fortemente arraigada no seu ser, e inicia uma luta radical no sentido de rever as relações que ele tinha com seus pares, fazendo um grande esforço para adotar uma nova postura perante eles. Necessita para isso inverter valores que sempre sustentaram as relações familiares herdadas dos seus antepassados (MACHADO, 2008). No cotidiano desse acampamento foi possível conhecermos algumas dessas famílias que passaram a viver de algum modo articuladas entre si, contemplarmos laços de amizade, solidariedade e companheirismo, diante dos desafios enfrentados. Na figura 9 a seguir mostramos uma família moradora do acampamento: 36 Figura 9: Família de acampados que foram assentados. Fonte: Acervo pessoal. Como pudemos observar na imagem acima, a composição dessa família tem como chefe a mãe, progenitora. O mesmo acontece com várias famílias. A passagem do acampamento para o assentamento é uma grande conquista que passa principalmente pela questão da legalidade. Tendo passado pela situação de acampados, a maioria desses grupos desenvolveu um tipo de luta organizada e pacífica durante a qual aprenderam e ensinaram dados preciosos para resistência e conquista, uma verdadeira “pedagogia da luta” (WHITAKER, 1993, p.49). Em 2008 essas famílias conquistaram o assentamento, a cada família foi entregue 15 hectares de terra. Para ter legalidade, esse acordo está documentado através do Contrato de Concessão de Uso (CCU), devendo ser renovado a cada cinco anos consecutivamente. O principal problema foi a falta de água, pois, inicialmente, as famílias dependiam dos caminhões pipas da prefeitura municipal para o abastecimento das suas caixas d’água. Também havia a dificuldade de aceitação do assentamento por parte dos moradores da cidade, bem como de políticos locais. 37 Os sem-terra, que sempre obedeceram ao patrão, ao padre e ao coronel, porque isso foi-lhes ensinado como um princípio fundamental, pela família ou no ambiente escolar, nos poucos anos que frequentaram a escola, ao ocuparem uma terra, perdem o medo e o conformismo. Quanto ao medo, vão aos poucos aprendendo a dominá-lo. Em relação ao conformismo, abandonaram-no, passando a lutar contra a realidade miserável na qual vivem (MACHADO, 2011, p.178). Acreditamos que o preconceito e a visão que se tinha a respeito dos trabalhadores rurais Sem Terra seja fruto de notícias vinculadas pela grande mídia formadora de opinião que, acaba emitindo opiniões ideologicamente comprometidas com os donos do poder. As dificuldades impostas pelas condições de vida, trabalho e sustento, imprimem nos sujeitos Sem Terra os estigmas da exclusão social. A pesquisadora Caldart (2000) analisa a trajetória histórica do sujeito do campo afirmando que o MST enraíza os sem-terra ao Chamar a atenção sobre a relação entre passado e futuro, e a riqueza que pode ser contida neste movimento de raiz e projeto, quando se trata de compreender a dinâmica de formação de nossos sujeitos Sem Terra (CALDART, 2000, p. 57-58). Visto que as desigualdades sociais presentes na história do Brasil, onde os trabalhadores rurais que sempre foram subordinados aos patrões, na maioria, fazendeiros que exploravam a mão de obra dos camponeses que se sujeitavam a trabalhar debaixo de sol ou chuva, pois tinham que prover o sustento da família, além de explorados, eram privados do acesso à educação, cultura e saúde. A mudança de comportamento em relação ao acesso à educação das crianças e jovens já é uma realidade presente no assentamento. Entretanto, o desejo do MST é que toda a população do campo tenha acesso à educação, inclusive os agricultores que praticamente não tiveram acesso à escola na idade própria ou pouco frequentaram. Compreendemos que é muito difícil frequentar a escola no período noturno, visto que a rotina de trabalho do camponês começa muito cedo, antes do sol nascer já estão trabalhando nas lavouras e hortas, pois ele tem o compromisso de sustentar a sua família. 38 Na figura 10 abaixo apresentamos o casarão sede da fazenda, que hoje é conhecido como packing house, ou seja, o local onde são realizados o processamento e a embalagem da produção orgânica. Figura 10: Casarão que pertenceu ao Coronel Leite, hoje é o packing house (casa de processamento e de embalagem da produção orgânica) do assentamento de reforma agrária. Fonte: Acervo pessoal. No assentamento, os pais trabalham com a agricultura familiar, mostrando que, nesse caso, a terra cumpre sua função social, pois retiram dela o seu sustento. Através da Associação de Agricultores, os assentados puderam acessar verbas de programas destinados ao trabalhador do campo. Iniciaram a produção de alimentos orgânicos e, hoje, se orgulham de terem conquistado o selo de produtores de alimentos orgânicos. No entanto, foi necessário aderir projetos que incluem a formação e a capacitação dos agricultores e seus familiares, buscando aperfeiçoar os conhecimentos desde a escolha de sementes na plantação das mudas até a entrega final para o consumidor da área urbana. Sabemos que o ideal é que haja uma relação de complementaridade entre o trabalho do campo e o trabalho da cidade, visto que o campo produz os alimentos para alimentar a cidade e este depende dos equipamentos, máquinas agrícolas e insumos fabricados na cidade para auxiliar as atividades 39 do trabalhador do campo, contribuindo, assim, para uma melhor produção de alimentos. A Figura 11 retrata as atividades desenvolvidas e os tipos de alimentos que são produzidos no assentamento. Figura 11: Produção orgânica da agricultura familiar. Fonte: Acervo pessoal. Como podemos observar, a Figura 8 mostra a produção agrícola bem diversificada da agricultura familiar; são produzidos uma grande variedade de alimentos: mel, feijão, milho, leite e derivados, morango, diversas hortaliças (verduras, legumes e raízes). Isso foi possível devido ao fato de os trabalhadores terem se organizado e formado uma associação de agricultores. Através dessa organização, conseguiram o acesso a projetos e cursos de técnicas de produção agrícola. As famílias também participaram de cursos de formação de apicultores como uma das alternativas de atividade econômica e, também, considerada ecologicamente correta como mostramos na figura 12: 40 Figura 12: Produção agrícola - Assentamento de reforma agrária “Loiva Lurdes” - Borebi / SP. Fonte: Acervo pessoal. Conforme mostrado na figura de número 9, algumas atividades requerem o uso de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs). No caso da apicultura, os assentados participaram de curso de formação onde aprenderam técnicas para o manejo e a criação de abelhas silvestres de forma produtiva, segura e sustentável. Também aprenderam a conhecer a biologia, as instalações apropriadas para o apiário, os princípios de manejo das abelhas, bem como compreenderam os sistemas de produção apícola, visando a uma exploração racional da apicultura como negócio sustentável. A figura 13 a seguir mostra que a criação de animais é parte importante na diversificação das atividades produtivas dos assentados da reforma agrária. Figura 13: Produção agrícola - Assentamento de reforma agrária “Loiva Lurdes” - Borebi / SP. Fonte: Acervo pessoal. 41 A figura de número 13 mostra a criação de animais: gado de leite, cabras, galinhas caipiras, ovos, queijo e derivados do leite. Essa atividade diversificada garante a produção de alimentos e o sustento das famílias. A comercialização do excedente traz benefícios econômicos às famílias. No desenvolvimento da pecuária, atividade ligada à criação de gado e outros animais como as cabras, aprimoraram os conhecimentos que já tinham através de técnicas de inseminação, ordenhas e na produção de derivados do leite. É relevante dizer que, durante os dois anos em que moramos no assentamento pesquisado, tivemos contato diário com os membros dessa comunidade. Essa realidade vivenciada nos motivou na proposição deste trabalho e o fruto disso construiu-se junto aos alunos, professores, comunidade e sequência didática, como objeto de aprendizagem. No contato frequente com a comunidade assentada foi possível observar que as crianças tinham intensa curiosidade acerca dos conhecimentos naturais e do trabalho agrícola dos pais. O modo de vida adquirido no convívio com sua família e as diferentes aprendizagens presentes no cotidiano podem favorecer a prática pedagógica do professor que trabalha com as crianças da área rural. Outra questão importante que consideramos na elaboração deste trabalho é o fato de que quando conquistam a terra, os Sem-Terra saem do acampamento para irem morar no assentamento, o que passa, basicamente, também pela questão da legalidade. Para os assentados, uma educação voltada para os alunos do campo seria a garantia de ampliação das possibilidades de criação e recriação de condições de existência da agricultura familiar. Na figura 14 a seguir apresentamos um lote no assentamento de reforma agrária. 42 Figura 14: Lote Recanto Natureza - Assentamento de reforma agrária “Loiva Lurdes” - Borebi / SP. Fonte: Acervo pessoal. Na figura 14 apresentamos a foto de um lote. São 15 hectares de terra, onde a família assentada vive da pecuária e da produção agrícola. Para melhor manejo com a terra, integrantes da família fizeram o curso técnico em agroecologia oferecido pelo Instituto Técnico de Ensino e Pesquisa em Agroecologia Laudenor de Souza, localizada no município de Itapeva/SP, uma parceria entre o MST, a Universidade Estadual de Campinas e o Colégio Técnico de Campinas. A família moradora do referido lote tem se destacado pela excelente produção de alimentos e atribuem os bons resultados aos conhecimentos adquiridos nesse curso. Aprenderam a ter cuidados especiais com o solo, fazer a análise, o preparo para o plantio, a prevenção e combate às pragas na lavoura e o trabalho com a produção de alimentos orgânicos, ou seja, livres de agrotóxicos, antibióticos e hormônios. 2.1.3 A Escola Pesquisada A preocupação com a educação sempre esteve presente nas reuniões do assentamento. O Artigo 2º das Diretrizes Operacionais da Educação Básica das Escolas do Campo, em seu Parágrafo Único, esclarece a concepção de educação que almejam os sujeitos do campo. 43 A identidade da escola do campo é definida pela sua vinculação às questões inerentes à sua realidade, ancorando-se na temporalidade e saberes próprios dos estudantes, na memória coletiva que sinaliza futuros, na rede de ciência e tecnologia disponível na sociedade e nos movimentos sociais em defesa de projetos que associem as soluções exigidas por essas questões à qualidade social da vida coletiva no país (BRASIL, 2002, p. 32). De acordo com a família, hoje, o preconceito, arraigado indevidamente na sociedade, tem diminuído. Alguns pais de alunos e produtores rurais relatam que já conseguem comercializar os seus produtos na cidade. Entretanto, ainda está longe de ser o desejado. [...] durante os primeiros períodos de luta, os sem-terra tinham como prioridade a conquista da terra, mas logo compreenderam que isso não era o bastante. Se a terra representava a possibilidade de trabalhar, produzir e viver dignamente, faltava-lhes um instrumento fundamental para a continuidade da luta: a educação (MORISSAWA 2001, p. 239). O ideal seria ter uma escola no/do campo, no próprio assentamento. Como isso não ocorre, as crianças estão regularmente matriculadas na única escola do município de Borebi-SP. O transporte escolar é de inteira responsabilidade da prefeitura municipal e está disponível nos turnos da manhã e da tarde para os alunos do Ensino Fundamental, e da noite, atendendo alunos do Ensino Médio. Esse transporte é realizado por frota própria da prefeitura municipal e por transporte terceirizado. É relevante dizer que algumas crianças moradoras de áreas distantes da escola precisam sair muito cedo de casa para chegar à escola antes do início das aulas, conforme diz a aluna quando perguntada a que horas ela acorda para ir à escola: Aluna A: Eu acordo de madrugada porque eu saio muito cedo de casa. Quando chove é muito ruim, o ônibus encalha... Quando chove muito ele nem vem. Eu chego em casa à noite, às vezes já está escuro. A EMEF “Prof.ª Iracema Leite e Silva”, situada no município de Borebi / SP, atende a alunos do Ensino Fundamental no período da manhã e tarde. Já, no período noturno, compartilha o prédio com uma escola estadual que atende alunos do Ensino Médio. A fachada da escola é mostrada na figura 15. 44 Figura 15: Vista da fachada da EMEF “Prof.ª Iracema Leite e Silva”. Fonte: Acervo da escola. Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 2015, os alunos dos anos iniciais da rede pública da cidade tiveram nota média de 6,5 no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) como mostra a figura 16: Figura 16: Taxa de escolarização de alunos de 6 a 14 anos de idade. Fonte: Brasil (2017). 45 Para os alunos dos anos finais, essa nota foi de 4.3. Na comparação com cidades do mesmo estado, a nota dos alunos dos anos iniciais colocava essa cidade na posição 170 de 645. Considerando a nota dos alunos dos anos finais, a posição passava a 585 de 645. A taxa de escolarização (para pessoas de 6 a 14 anos) foi de 99,5 em 2010, como mostra a figura 17. Figura 17: Matrículas no Ensino pré-escolar, Ensino fundamental e Ensino Médio. Fonte: Brasil (2017). Isso posicionava o município na posição 43 de 645 dentre as cidades do estado e na posição 237 de 5570 dentre as cidades do Brasil. No que tange a questão de infraestrutura da escola, segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), a instituição escolar se enquadra ao cenário nacional entre aquelas cujas dependências da escola não são acessíveis aos portadores de deficiências físicas e que também não possuem sala de atendimento especial. Além disso, não possui biblioteca, nem auditório, nem laboratório de ciências, nem parque infantil. Porém, a escola possui sala de leitura, laboratório de informática com acesso à internet banda larga, pátio coberto e área verde. Quanto à formação da equipe docente, entrevistamos seis professores do Ensino Fundamental com perguntas direcionadas para uma análise descritiva do perfil profissional, formação inicial e continuada, jornada de 46 trabalho semanal e tempo de serviço. Com base nas respostas, apresentamos a tabela 1 a seguir: Prof. Graduação Dados do curso Pós-graduação Dados do curso Duração do curso Ano de conclusão Instituição formadora Duração do curso Ano de conclusão Prof. A Pedagogia 4 anos 2014 UNIDERP Psicopedagogia 2 anos e 6 meses 2017 Prof. B Pedagogia 4 anos 2003 IMES Educação especial e inclusiva 2 anos 2011 Prof. C Matemática 5 anos 2002 UNIP Especialização em matemática 360 horas 2006 Prof. D Psicologia 8 anos 2001 USC Alfabetização e letramento 1 ano 2012 Prof. E Pedagogia 4 anos 2009 FAAG Ética, valores e cidadania na escola 2 anos 2013 Prof. F Ed. Física 3 anos 1989 UNESP Tabela 1: Formação inicial e continuada de professores do Ensino Fundamental. Fonte: Dados da pesquisa (2017). Com base nos dados da pesquisa, podemos afirmar que os professores entrevistados têm qualificação profissional e a maioria possui pós-graduação. Os professores dessa escola são profissionais bastante experientes, a maioria possui mais de 15 anos de exercício do magistério. Quanto à jornada de trabalho, os professores participantes da pesquisa trabalham dois turnos, sendo um em Borebi e o outro, em outros municípios. Atualmente, a escola está passando por uma reforma e ampliação, algumas melhorias já podem ser observadas no prédio escolar: pintura do prédio, reforma de banheiros dos alunos, construção de banheiros masculinos e femininos para deficientes físicos, instalação de caixa d’água com escadas e grades de proteção, troca de telhas, reforma e colocação de grades nas rampas, reforma na rede elétrica, colocação de canaletas para escoamento de águas pluviais entre outras. Tais melhorias podem ser observadas na figura 18 que mostra a fachada da escola. 47 Figura 18: Vista da fachada da EMEF “Prof.ª Iracema Leite e Silva”, depois da reforma. Fonte: Acervo pessoal. Nessa instituição escolar são matriculados 379 alunos, sendo que 85 alunos do ensino fundamental são provenientes da zona rural, sendo: 34 alunos advindos do assentamento, 02 de um acampamento e 49 alunos que moram em sítios e fazendas, conforme demonstrado na figura 19. Figura 19: Gráfico do número de alunos moradores da área rural. Fonte: Dados da pesquisa. Segundo informações fornecidas pela diretora da escola, alunos do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental frequentam o projeto social intitulado 48 “Projeto espaço Amigo”, no contra turno, onde são oferecidas atividades de teatro, dança, informática, banda marcial e inglês. Na escola, liderança e trabalho em equipe devem estar diretamente ligados. Saviani esclarece que: Ao diretor cabe, então, o papel de garantir o cumprimento da função educativa que é a razão de ser da escola. Nesse sentido, é preciso dizer que o diretor de escola é antes de tudo, um educador; antes de ser um administrador ele é um educador. Mais do que isso: em termos típico-ideais, ele deveria ser o educador por excelência dado que, no âmbito da unidade escolar, lhe compete a responsabilidade máxima em relação à preservação do caráter educativo da instituição escolar. Esta é, em verdade, a condição precípua para que ele administre a escola mediante formas (atividades-meios) saturadas de conteúdo (atividades-fim) (SAVIANI 1991, p.208). Entre os principais problemas observados, podemos dizer que o Projeto Político Pedagógico (PPP) não foi disponibilizado. Segundo a diretora da instituição uma equipe foi contratada para auxiliar na elaboração, está sendo revisto e somente quando for aprovado pela diretoria da educação, estará disponível. Segundo Vasconcellos (2006, p. 169), Projeto Político Pedagógico é: [...] a sistematização, nunca definitiva, de um processo de Planejamento Participativo, que se aperfeiçoa e se concretiza na caminhada, que define claramente o tipo de ação educativa que se quer realizar. É um importante caminho para a construção da identidade da instituição. É um instrumento teórico-metodológico para a intervenção e mudança da realidade. É um elemento de organização e integração da atividade prática da instituição neste processo de transformação. Consideramos que o PPP é uma importante ferramenta de apoio porque auxilia no planejamento gestor e pedagógico. Portanto, em toda escola comprometida com a formação de cidadãos conscientes, atuantes e participativos, a construção do PPP é de suma importância. [...] a primeira ação que [...] parece fundamental para nortear a organização do trabalho da escola é a construção do projeto político- pedagógico assentado na concepção de sociedade, educação e escola que vise à emancipação humana. Ao ser claramente delineado, discutido e assumido coletivamente, ele se constitui como processo. E, ao se constituir como processo, o projeto político- pedagógico reforça o trabalho integrado e organizado da equipe escolar, enaltecendo a sua função primordial de coordenar a ação educativa da escola para que ela atinja seu objetivo político pedagógico (VEIGA, 1996, p. 157). O PPP é a identidade da escola e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) (BRASIL,1996), o referencial para quaisquer 49 instituições de ensino. Gestores, professores, funcionários, alunos e membros do Conselho Escolar e da comunidade devem participar da construção ou reelaboração do PPP, definindo qual a missão, visão e valores para determinada comunidade, além de dados sobre a aprendizagem, a importante relação com as famílias, os recursos didáticos, as diretrizes pedagógicas e o plano de ação que nortearão o trabalho pedagógico e as tomadas de decisões que devem ser coletivas. Veiga (2002, p. 13-14) descreve que: O Projeto Político Pedagógico é chamado de político porque reflete as opções e escolhas de caminhos e prioridades na formação do cidadão como membro ativo e transformador da sociedade em que vive e, pedagógico porque expressa as atividades pedagógicas e didáticas que levam a escola a alcançar os seus objetivos educacionais. Portanto, a construção coletiva do PPP, incluindo a clientela do campo, é muito importante para toda e qualquer instituição de ensino, pois nele será definida a missão, visão e valores, ou seja, a identidade da escola. Assim, será possível indicar caminhos e propostas, norteando a ação pedagógica para ensinar com qualidade. Os estabelecimentos de ensino, respeitando as normas comuns e as do seu sistema de ensino, têm a incumbência de elaborar e executar sua proposta pedagógica de acordo com o Artigo 12º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996). Art. 12. Os estabelecimentos de ensino, respeitadas as normas comuns e as do seu sistema de ensino, terão a incumbência de: I - Elaborar e executar sua proposta pedagógica; II - Administrar seu pessoal e seus recursos materiais e financeiros; III - Assegurar o cumprimento dos dias letivos e horas-aula estabelecidas; IV - Velar pelo cumprimento do plano de trabalho de cada docente; V - Prover meios para a recuperação dos alunos de menor rendimento; VI - Articular-se com as famílias e a comunidade, criando processos de integração da sociedade com a escola; VII - Informar pai e mãe, conviventes ou não com seus filhos, e, se for o caso, os responsáveis legais, sobre a frequência e rendimento dos alunos, bem como sobre a execução da proposta pedagógica da escola; (Redação dada pela Lei nº 12.013, de 2009)(BRASIL, 1996). Esperamos que o PPP seja um documento acessível, eficiente e atualizado com as reais necessidades da comunidade escolar, inclusive dos camponeses. É preciso ampliar o leque de ação da educação através de práticas transformadoras, pois a teoria em si: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L12013.htm#art1 50 [...] não transforma o mundo. Pode contribuir para sua transformação, mas para isso tem que sair de si mesma, e, em primeiro lugar, tem que ser assimilada pelos que vão ocasionar, com seus atos reais, efetivos, tal transformação. Entre a teoria e a atividade prática transformadora se insere um trabalho de educação das consciências, de organização dos meios materiais e planos concretos de ação: tudo isso como passagem indispensável para desenvolver ações reais, efetivas. Nesse sentido, uma teoria é prática na medida em que materializa, através de uma série de mediações, o que antes só existia idealmente, como conhecimento da realidade ou antecipação ideal de sua transformação (VAZQUEZ, 1977, p. 207). O PPP não deve ser visto como uma mera formalidade a ser cumprida por exigência legal, pela LDB. Conforme Gadotti (2000, p. 21): [...] não se constrói um projeto sem uma direção política, um norte, um rumo. Por isso, todo projeto pedagógico da escola é também político, O projeto pedagógico da escola é, por isso mesmo, sempre um processo inconcluso, uma etapa em direção a uma finalidade que permanece como horizonte da escola. A escola que tem compromisso com a comunidade escolar e tem o compromisso de oferecer educação de qualidade para seus alunos, planeja o seu PPP de forma participativa e democrática. Parceria indissociável entre a escola e a comunidade escolar. 2.2 O desenvolvimento do objeto de aprendizagem Traduzir Marx, Vygotsky e Saviani para uma ação pedagógica é realmente uma tarefa muito difícil e Gasparin (2005), em sua obra “Uma Didática para a Pedagogia Histórico-Critica”, fez isso interpretando os cinco passos propostos pela Pedagogia Histórico - Crítica (PHC), apresentados por Saviani (2008), traduzindo-os para uma didática em sala de aula. Portanto, o aporte teórico que embasou esta pesquisa, fundamentou-se na PHC e Uma Didática da Pedagogia Histórico-Crítica para a construção do produto/objeto de aprendizagem. Contextualizar o ensino de Geografia sobre o campo e a cidade, refletir sobre a agricultura familiar, ter a prática social como ponto de partida e de chegada, assumir o desafio de incluir os alunos do campo nessa proposta é o ponto fundamental desta pesquisa, visto que, historicamente, no Brasil, o sujeito do campo tem sido deixados às margens da sociedade. 51 Precisamos saber como, o quê e de que forma vamos ensinar. Para o estudo adequado da Geografia, precisamos trabalhar partindo da vivência pessoal aos conceitos específicos dessa disciplina, pois eles não podem ser trabalhados superficialmente como uma mera descrição, como está proposta e abordada na maioria dos livros didáticos e, principalmente, no currículo oficial do Estado de São Paulo. Aliás, esses não devem ser utilizados como manuais. A Geografia também passa por transformações ao longo do tempo. A sociedade se transforma através da História e a Geografia também, portanto, sugerimos relacionar os conteúdos de Geografia com as diversas áreas do conhecimento, contextualizá-los com a História utilizando diversos recursos como a história oral com o uso de fotografias, registros e observações sobre a comunidade onde o aluno está inserido. Destacar o modo de vida local, os hábitos do cotidiano, a rotina de trabalho da família. Outra ação interessante é propor uma pesquisa voltada para a relação de trabalho entre o campo e a cidade. O aluno precisa ter acesso ao conjunto de conhecimentos necessários para a formação da cidadania. Todo ensino tem uma intencionalidade, isso é fato. Nesse sentido, este trabalho pretende comprometer a equipe pedagógica e pontuar as especificidades do educando do campo, buscando relacionar o conteúdo de Geografia, o histórico da educação do campo e as possíveis contribuições das famílias na escolarização dos alunos. Como sabemos que as famílias assentadas tiram da terra o seu sustento e, portanto, dão a ela o devido valor, elaboramos um material didático pedagógico, em forma de um objeto digital de aprendizagem intitulado “O campo, suas principais características e contribuições”. Tal material foi elaborado para alunos do 3º Ano do Ensino Fundamental I. Os resultados alcançados, assim como as críticas construtivas feitas, demonstram o desejo dos pais de ter um país de todos e para todos, com igualdade de oportunidade para todas as crianças. Os pais, moradores do assentamento, demonstram pertencer a uma comunidade participativa, consciente dos seus direitos e deveres, bem como da importância da função social da terra e da escolarização dos seus filhos. Eles reconhecem que o processo escolar é de suma importância para a formação dos seus filhos e, de 52 certa forma, depositam na escola os seus anseios para um futuro mais digno para suas crianças, jovens e adultos. Sabendo da importância do ensino contextualizado e da autonomia que a aquisição dos saberes escolares desenvolve nos sujeitos, buscamos contextualizar as aprendizagens dos alunos do campo e da cidade propondo a construção coletiva desse material em mídia digital, cuja função mais ampla é ajudar o aluno a aprender melhor e apoiar a prática de ensino do professor que trabalha diretamente com alunos do campo. Quando o professor estabelece uma igualdade na prática pedagógica, mascara a desigualdade social existente. Nesse contexto, e como exigência parcial do Programa de Pós- Graduação em Docência para a Educação Básica, em nível de Mestrado Profissional, esta pesquisa desenvolveu um material didático em mídia digital intitulado “O Campo, Suas Principais Características e Contribuições”, com o sentido de subsidiar o trabalho dos docentes que atuam nas escolas que recebem alunos do campo. O material didático em mídia digital aborda o seguinte tema: o campo e a cidade. 53 3 A QUESTÃO DA EDUCAÇÃO: A ESCOLA COMO PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO DO SUJEITO O estudo das raízes históricas da educação contemporânea nos mostra a estreita relação entre a mesma e a consciência que o homem tem de si mesmo, consciência esta que se modifica de época para época, de lugar para lugar, de acordo com um modelo ideal de homem e de sociedade (SAVIANI, 1991, p.55). Nesta seção da dissertação daremos maiores esclarecimentos sobre a questão da educação como emancipação do sujeito. Tendo a Pedagogia Histórico-Crítica como base para a compreensão do desenvolvimento do pensamento de Saviani. 3.1 A educação como emancipação do sujeito Ao refletirmos sobre o tema educação, nos surge a seguinte pergunta: Como surgiu a educação? Sabemos que a Pedagogia Histórico-Crítica considera o homem um ser de natureza social e tudo o que tem de humano é resultado do desenvolvimento das interações sociais ao longo da sua vida em sociedade. Saviani esclarece que a educação coincide com a origem do homem, a partir do momento que o homem surge no universo, também surge a educação, diferentemente dos animais, o homem não tem a sua existência garantida pela natureza, por isso ele precisa produzir constantemente a sua existência modificando a natureza, adaptando-a a si mediante as suas necessidades, esse ato é o que chamamos de trabalho. Portanto, o aprendizado das formas de sua própria produção é, nesse sentido, a educação que coincide o próprio processo da existência com a própria vida. Segundo o autor, “a educação é um fenômeno próprio dos seres humanos”, em sua obra Pedagogia Histórico-Crítica, Saviani defende a qualidade da escola pública a partir da transmissão dos conhecimentos sistematizados. É possível afirmar que a tarefa a que se propõe a pedagogia histórico- crítica implica na identificação das formas mais desenvolvidas em que se 54 expressa o saber objetivo produzido historicamente, reconhecendo as condições de sua produção e compreendendo as suas principais manifestações, bem como as tendências atuais de transformação. A conversão do saber objetivo em saber escolar, de modo que se torne assimilável pelos alunos no espaço e tempo escolares. Provimento dos meios necessários para que os alunos não apenas assimilem o saber objetivo enquanto resultado, mas apreendam o processo de sua produção, bem como, as tendências de sua transformação. Saviani (1992), sobre a natureza e a especificidade da educação: “sabe- se que a educação é um fenômeno próprio do ser humano, assim sendo, a compreensão da educação passa pela compreensão da natureza humana”. Portanto, se a educação é uma especificidade humana, o que nos difere dos demais animais é o conceito de trabalho que é a atividade consciente do ser humano que o capacita a transformar a natureza para suprir as suas necessidades. A cada necessidade suprida surgem novas necessidades que exigem uma complexidade psíquica cada vez maior, portanto, o trabalho provoca modificação, transformações na natureza externa e, ao mesmo tempo, na natureza interna do homem. Saviani propõe, através da Pedagogia Histórico-Crítica, um método de trabalho inovador que visa estimular a iniciativa e a atividade de trabalho do professor, em que este tem um papel dinâmico em sala de aula, considera-se o interesse dos alunos no trabalho que é desenvolvido, favorece o diálogo dos alunos com o professor, bem como, o diálogo com a cultura acumulada historicamente. Considera-se o ritmo de aprendizagem diferenciada e o desenvolvimento psicológico dando ênfase na sistematização lógica dos conhecimentos, sua ordenação e gradação para efeitos. Em sua obra Pedagogia Histórico-Crítica e a Luta de Classes na Educação Escolar, Saviani afirma que a superação da sociedade burguesa se dá por meio da luta permanente e pela socialização dos conteúdos científicos, artísticos e filosóficos. 55 Sabemos que, historicamente, a forma mais desenvolvida de educação é a educação escolar. Lembrando que a educação fora da escola não está imune à internalização da ideologia dominante. Os defensores da Pedagogia Histórico-Crítica estabelecem conexão entre educação e sociedade. Saviani (1999) afirma que “a educação transforma de modo indireto e imediato, isto é, agindo sobre os sujeitos da prática”. É necessário possibilitar ao aluno a compreensão teórica, pois o ensino escolar produz desenvolvimento e superação. Entre a teoria e a atividade prática transformadora se insere um trabalho de educação das consciências, de organização dos meios materiais e planos concretos de ação; tudo isso como passagem indispensável para desenvolver ações reais, efetivas. Nesse sentido, uma teoria é prática na medida em que materializa, através de uma série de mediações, o que antes só existia idealmente, como conhecimento da realidade ou antecipação ideal de sua transformação (SAVIANI, 1999, p.82). Entende-se, desse modo, que a Pedagogia Histórico-Crítica valoriza o conhecimento acumulado pela humanidade, o conhecimento adquirido na escola, a socialização do saber sistematizado e a concepção do trabalho educativo como uma produção material. O conhecimento é concebido como produzido e acumulado historicamente. 3.2 A educação escolar como processo de transformação A obra de Saviani nos ajuda a compreender de uma forma mais aprofundada a relação entre marxismo e educação, mais especificamente entre a pedagogia socialista e a teoria marxista. As várias acepções de socialismo surgiram da mobilização das classes trabalhadoras buscando o controle do processo produtivo. Segundo Saviani, Engels diferenciou socialismo utópico de socialismo científico: O socialismo utópico criticava o modo de produção capitalista existente e suas consequências, mas não conseguia explica-lo nem podia, portanto, destruí-lo ideologicamente; nada mais lhe restava senão repudiá-lo, pura e simplesmente, como mau (ENGELS, 1977, p. 43). A educação vem passando por várias transformações políticas, econômicas e sociais ao longo da história. Esses fatores fazem com que essas 56 transformações influenciem diretamente o cenário educacional brasileiro, pois as necessidades da sociedade são amparadas por políticas educacionais e se transformam em normas a serem cumpridas pelas escolas. É necessário compreender que a educação foi transformada em estratégia de dominação e que são as teorias da educação que direcionam a prática educativa a posicionar-se criticamente em relação às formas de educação adotadas pelos governos que visam à manutenção das classes dominantes no poder como afirma Manacorda (2002): as antigas divisões horizontais classistas entre quem se educa para ‘o dizer e o fazer as coisas da cidade' e que se prepara para o trabalho produtivo subordinado. A sociedade tornou-se mais complexa em função de uma rígida divisão de classes, estabelecendo-se uma hierarquia de riqueza e poder. Segundo Aranha (2006), “destinava-se um tipo de ensino para o povo e outro para os filhos dos nobres e altos funcionários”. A educação formal foi direcionada para a elite do país, já que para o povo camponês a educação não era considerada necessária, pois, para as atividades laborais não eram exigidos conhecimentos além daqueles adquiridos na vida cotidiana. Como explica Saviani: As mudanças das formas de produção da existência humana foram gerando historicamente novas formas de educação, as quais, por sua vez, exerceram influxo sobre o processo de transformação do modo de produção correspondente (SAVIANI, 1991, p. 3). Sabemos que, com o passar do tempo, houve um aumento de procura à instrução e à escolarização, apesar disso, apenas aqueles sujeitos pertencentes à classe dominante chegavam aos níveis de escolaridade superiores. Dentre os principais aspectos da educação brasileira, a evolução do ensino brasileiro, em seu modelo formal, respondeu a determinações de ordem econômica, social e política. Restou aos filhos dos trabalhadores rurais a escolarização voltada para a profissionalização de mão de obra para as indústrias nascentes nos centros urbanos. Saviani (2008), em sua obra “Escola e Democracia”, aborda o significado das teorias da educação. Segundo o autor, na década de 1970, cerca de 50% dos alunos das escolas primárias, na América Latina, estavam nas condições de semianalfabetismo, sem falar que existia um grande contingente de crianças 57 com idade escolar que nem estariam inseridas no contexto escolar, sendo, de alguma forma, marginalizadas, ou seja, excluídas do processo de ensino- aprendizagem formal. Para explicar os fatores dessa marginalização/exclusão, Saviani (2008) destaca a existência de dois grupos de teorias educacionais. O primeiro grupo, composto pelas teorias não críticas, que entende a Educação como sendo uma forma de equalização da sociedade, sobressaltando a marginalização social. Essa teoria entende que a sociedade é essencialmente harmoniosa e que, dessa forma, a marginalização é um fato acidental da sociedade de forma individual que pode ser uma distorção a ser corrigida pela educação. As “teorias não críticas” não reconhecem as determinações sociais do fenômeno educativo. Já o segundo grupo é composto pelas teorias críticas da educação. Elas entendem a Educação como um real fator de marginalização. Essas teorias entendem que a sociedade é identificada por divisão de classes e que as relações entre os indivíduos estão baseadas nas condições de poder aquisitivo. A marginalização é entendida como parte inerente à própria sociedade, justamente porque a classe dominante tem maior acesso aos resultados de produção social, reforçando a condição da outra classe como marginalizada. As “teorias crítico-reprodutivistas” desenvolvem invariavelmente a conclusão de que a função própria da educação consiste na reprodução da sociedade em que ela está inserida. Todas as reformas escolares fracassaram, tornando cada vez mais evidente o papel que a escola desempenha: reproduzir a sociedade de classes e reforçar o modo de produção capitalista (SAVIANI, 2008, p.13). Uma das teorias que tiveram maior repercussão e que alcançaram um maior nível de elaboração foi a Teoria do Sistema de Ensino como Violência Simbólica que está desenvolvida na obra “A Reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino”, de Bourdieu; Passeron (1975). A obra é constituída de dois livros. No livro I, “Fundamentos de uma teoria da violência simbólica”, a teoria é sistematizada num corpo de proposições logicamente articuladas segundo um esquema analítico-dedutivo. O livro II expõe os resultados de uma pesquisa empírica levada a cabo pelos autores no sistema 58 escolar francês em um de seus segmentos, qual seja a Faculdade de Letras (SAVIANI, 2008, p.14). Os autores têm como início que toda a sociedade se organiza com a divisão social através de classes econômicas. A ideia central é que as classes têm sua força simbolizada no poderio econômico e material e essa ideia é fortalecida e ressaltada. De fato, à luz da teoria da violência simbólica, a classe dominante exerce um poder de tal modo absoluto que se torna inviável qualquer reação por parte da classe dominada. A luta de classes resulta, pois, impossível (SAVIANI, 2008, p.17). Analisando a reprodução das condições de produção que estão relacionadas à reprodução das forças produtivas e das relações de produção existentes, “Althusser é levado a distinguir no Estado os Aparelhos Repressivos de Estado (o governo, a administração, o exército, a polícia, os tribunais, as prisõ