UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” - UNESP Faculdade de Ciências e Letras - Campus de Assis GUILHERME ALVES DE SOUZA AS VOZES DOS REALISMOS NAS NARRATIVAS DE MILTON HATOUM: Romances, conto e audiovisual Assis 2024 GUILHERME ALVES DE SOUZA AS VOZES DOS REALISMOS NAS NARRATIVAS DE MILTON HATOUM: Romances, conto e audiovisual Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, para obtenção do título de Mestre em Letras. Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social Orientadora: Profª Dr.ª Gabriela Kvacek Betella Bolsista: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - Brasil (CNPq) – Código de Financiamento 403888/2022-0 Projeto: “Literatura e formação do leitor: implicações estéticas, históricas e sociais” Assis 2024 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Renata Bianchi Prado - CRB-8/11152 Souza, Guilherme Alves de S729v As vozes dos realismos nas narrativas de Milton Hatoum : romances, conto e audiovisual / Guilherme Alves de Souza. - Assis, 2024 100 p.: il. Dissertação de Mestrado - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis Orientadora: Dra. Gabriela Kvacek Betella 1. Hatoum, Milton 1952. 2. Literatura - Adaptações. 3. Ponto de vista (Literatura). 4. Literatura e sociedade - Brasil. I. Título. CDD 801.9 IMPACTO POTENCIAL DESTA PESQUISA Nossa pesquisa explora o potencial científico e social do texto literário, revelando mais da sociedade e do indivíduo. A análise do narrador e da voz narrativa enriquece a reflexão educacional e cultural, ajudando o Brasil a compreender suas diversas identidades e incentivando a leitura e a valorização da realidade da literatura brasileira. POTENTIAL IMPACT OF THIS RESEARCH Our research explores the scientific and social potential of literary texts, revealing more about society and the individual. The analysis of the narrator and narrative voice enriches educational and cultural reflection, helping Brazil understand its diverse identities and encouraging the reading and appreciation of Brazilian literature. Dedico este texto ao meu avô, Elias… AGRADECIMENTOS O presente trabalho foi realizado com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – Código de Financiamento 403888/2022-0. Ao Conselho, meus sinceros agradecimentos pela concessão da bolsa de pesquisa e oportunidade de colaborar com o desenvolvimento científico brasileiro; À orientadora Prof.ª Dra.ª Gabriela Kvacek Betella, que me acolheu desde o primeiro ano da graduação e novamente para os anos de pós-graduação, não tenho palavras o suficiente para agradecer aos ensinamentos, ao respeito e ao afeto de todos esses anos em que fui seu aluno: Muito obrigado, de coração; À coordenadora do projeto “Literatura e formação do leitor: implicações estéticas, históricas e sociais” ao qual a bolsa de pesquisa foi vinculada, Prof.ª Dra.ª Eliane Aparecida Galvão Ribeiro Ferreira, agradeço imensamente a confiança e o carinho; Ao apoio de meus familiares, Simone, Marlon e João Pedro, que mesmo distantes estiveram presentes o tempo todo em meus pensamentos e em meu coração, também agradeço antes de apresentar este trabalho. Sem vocês, nada disso seria possível; Ao apoio de meus amigos, especialmente à Laysa, que buscou para mim o meu exemplar de Cinzas do Norte, também agradeço. Sua ação foi fundamental, saiba disso; Ao meu companheiro, Filipe, meu leitor favorito, agradeço às nossas aventuras que se iniciaram durante minha inscrição no processo seletivo do Programa de Pós-Graduação e continuam por todos esses anos. Espero poder contar muitas outras histórias ao seu lado; A todos os leitores brasileiros, meus professores, meus alunos e ao Milton Hatoum, agradeço por insistirem na literatura, mesmo em tempos difíceis; A todos aqueles que se foram nestes últimos anos… Agradeço muito ter tido vocês em minha vida. Espero um dia reencontrá-los. “Ou a obediência estúpida, ou a revolta.” (Milton Hatoum, 2010, p. 07). RESUMO Este estudo aborda a complexidade de uma porção de obras de Milton Hatoum e as adaptações audiovisuais de Luiz Fernando Carvalho, Guilherme Cezar Coelho e Sérgio Machado. Examina-se como a configuração narrativa dessas obras revela material crítico sobre a sociedade, o sujeito e seu significado histórico, destacando-se a riqueza das vozes narrativas e a alternância entre diferentes categorias, posturas e métodos do realismo literário. A análise revela que as obras de Hatoum exemplificam a conjunção entre literatura e realidade representada, oferecendo uma análise profunda de sua importância social. Para uma análise realista-crítica e também estilística-sociológica foi necessário compreender desde as convenções categoricamente realistas à exploração da reflexão sobre a tradição do realismo e as suas representações nos dias de hoje. A comparação entre os romances, o conto e as obras do audiovisual demonstra como a voz narrativa evidencia a tensão entre as perspectivas e as complexidades das relações humanas, contribuindo significativamente para o entendimento da literatura brasileira contemporânea e suas leituras. Palavras-chave: Milton Hatoum; Voz Narrativa; Literatura Comparada; Sociedade; Audiovisual. ABSTRACT This study addresses the complexity of a portion of Milton Hatoum's works and the audiovisual adaptations by Luiz Fernando Carvalho, Guilherme Cezar Coelho, and Sérgio Machado. It examines how the narrative configuration of these works reveals critical material about society, the subject, and its historical significance, highlighting the richness of narrative voices and the alternation between different categories, postures, and methods of literary realism. The analysis reveals that Hatoum's works exemplify the conjunction between literature and represented reality, offering an in-depth analysis of their social importance. For a realistic-critical and stylistic-sociological analysis, it was necessary to understand both categorically realistic conventions and the exploration of the reflection on the tradition of realism and its representations today. The comparison between the novels, the short story, and the audiovisual works demonstrates how the narrative voice highlights the tension between perspectives and the complexities of human relationships, significantly contributing to the understanding of contemporary Brazilian literature and its interpretations. Keywords: Milton Hatoum; Narrative Voice; Comparative Literature; Society; Audiovisual. LISTA DE FIGURAS Figura 01 – O plano detalhe nas palavras sendo datilografadas no episódio 01 p. 69 Figura 02 – O plano detalhe nas palavras sendo datilografadas no episódio 01 p. 69 Figura 03 – O plano detalhe na enchente que desabrigava os vizinhos no episódio 10 p. 70 Figura 04 – O plano detalhe na enchente que desabrigava os vizinhos no episódio 10 p. 70 Figura 05 – O close-up no rosto preocupado de Arminto p. 72 Figura 06 – O enquadramento avesso de Florita se balançando na rede p. 72 Figura 07 – O nome “Cordovil” assombra Arminto em vários pontos da cidade p. 73 Figura 08 – O nome “Cordovil” assombra Arminto em vários pontos da cidade p. 73 Figura 09 – O plano-sequência inicia com Dalberto, no piso inferior do Princesa Anaíra, fumando um cigarro quando Anaíra surge da direita caminhando em sua direção p. 75 Figura 10 – O plano-sequência inicia com Dalberto, no piso inferior do Princesa Anaíra, fumando um cigarro quando Anaíra surge da direita caminhando em sua direção p. 75 Figura 11 – Anaíra chama a atenção de Dalberto o puxando pela camisa e o convida para o piso superior da embarcação, guiando-o pelo piso inferior p. 75 Figura 12 – Anaíra chama a atenção de Dalberto o puxando pela camisa e o convida para o piso superior da embarcação, guiando-o pelo piso inferior p. 75 Figura 13 – Na sequência, uma montagem simbólica entre os olhares dos dois enquanto caminham e a subida encantadora de Anaíra pelas escadas p. 76 Figura 14 – Na sequência, uma montagem simbólica entre os olhares dos dois enquanto caminham e a subida encantadora de Anaíra pelas escadas p. 76 Figura 15 – Na subida, percebe-se que há uma festa, Dalberto beija a cintura de Anaíra que dança e que o beija intensamente em seguida p. 76 Figura 16 – Na subida, percebe-se que há uma festa, Dalberto beija a cintura de Anaíra que dança e que o beija intensamente em seguida p. 76 Figura 17 – O quadro com o reflexo de Dalmo no espelho p. 77 Figura 18 – A montagem entre Dalmo fotografando e a revelação de quem ele fotografava p. 78 Figura 19 – A montagem entre Dalmo fotografando e a revelação de quem ele fotografava p. 78 Figura 20 – O olhar de Dalmo direcionado para o ponto de vista da câmera p. 80 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 13 1. AS NARRATIVAS DE MILTON HATOUM 19 1.1 Relato de um certo Oriente, de 1989 21 1.2 Dois irmãos, de 2000 e de 2017 26 1.3 Cinzas do Norte, de 2005 30 1.4 Órfãos do Eldorado, de 2008 e de 2015 31 1.5 O adeus do comandante, de 2009, e Rio do desejo, de 2023 35 2. VOZ NARRATIVA E REALISMOS 37 2.1 Literatura e realismos 37 2.2 As vozes dos realismos 47 2.2.1 Os pormenores do realismo em Relato de um certo Oriente 47 2.2.2 Os pormenores do realismo em Dois irmãos 50 2.2.3 A pluralidade de vozes do realismo desencantado em Cinzas do Norte 53 2.2.4 O realismo às avessas em Órfãos do Eldorado 56 2.2.5 A postura e o método realistas em O adeus do comandante 59 3. AS NARRATIVAS DE MILTON HATOUM SOB O OLHAR CINEMATOGRÁFICO 65 3.1 O plano detalhe em Dois irmãos 67 3.2 A montagem das antíteses em Órfãos do Eldorado 71 3.3 A ruptura em O rio do desejo 74 3.4 Contrapontos reveladores 80 CONSIDERAÇÕES FINAIS 85 REFERÊNCIAS 94 13 INTRODUÇÃO Quando se ocupa de estudar literatura comparada, uma boa crítica é possível quando considerada a vida social inerente às obras analisadas. Além de apontar as narrativas literárias como parte de um elemento que é vivo e orgânico, nessa disposição fica permitida uma contemplação do(s) texto(s) e da realidade humana com perspectivas plurais. Para dissertar sobre literatura segundo esses pontos de vista, esta pesquisa rendeu muitas reflexões a partir de certos elementos narrativos presentes nas obras literárias de Milton Hatoum, que também se encontram em algumas outras narrativas brasileiras contemporâneas, mas no formato do audiovisual. Neste trabalho, ao serem observados os detalhes de voz narrativa, como as relações narração-narrativa e narrativa-história, de uma porção de obras escritas que se vinculam a uma noção de função social literária, notam-se várias representações dos realismos literários. A configuração discursiva se mostra focalizada neste estudo para que, em níveis e em amplitude diversos, revele mais do material crítico e também da sociedade, do sujeito e do seu significado histórico. Dessa forma, fez-se necessária uma metodologia que concedesse ao material verbal iluminação quanto à sua relação estilística-sociológica, mas também outros princípios de métodos realistas-críticos que contemplassem os graus de realismo desta análise. Para tanto, pelas várias observações desse projeto, abrangentes a todos os "estímulos de realidade", e também pela sua natureza, a de comparar literatura e sociedade, se tem, principalmente, a iluminação dos estudos de Antonio Candido (1918-2017). Inicialmente, é preciso discutir a ideia de que o texto literário de Hatoum pode ser considerado um objeto que representa dinamicamente aspectos da realidade social humana. Nesta perspectiva, se justifica o tratamento desse binômio, literatura e sociedade, de maneira conjunta e comparada, com a afirmação de que por se tratar de literatura brasileira, se trata de literatura comparada (Candido, 1996), pois tais inquietações que levaram à reflexão sobre a literatura brasileira dos últimos vinte ou trinta anos, levaram também à articulação de alguma fundamentação teórica em consonância com os estudos literários praticados no Brasil. Nas publicações de Milton Hatoum é possível encontrar evidências de algumas intenções realistas não só no tema, mas na estrutura da narrativa, na 14 postura e no método. Ainda que, de fato, há mais de cem anos o emprego do termo “realista” como adjetivo para certas narrativas brasileiras já existisse e que ele tenha sofrido diversas discriminações com o avanço da crítica literária do século XX, nesta pesquisa procuramos, na medida do possível, evitar anacronias e pontas soltas: as realidades das novas narrativas brasileiras não são mais as mesmas das realidades do século anterior. Mesmo assim, ainda existe uma refração curiosa de seus registros realistas na contemporaneidade. Então, esboçar a presença de “realismo” em Milton Hatoum acaba-se também por esboçar também a ideia de novas teorias (Cristo, 2007; Pellegrini, 2007). Quando se diz que os romances de Hatoum evidenciam intenções realistas em refração, o que se pretende dizer é que os seus romances operam uma linguagem que procura dar conta de representar experiências humanas na sua totalidade (Candido, 1993). Milton Hatoum viveu sua juventude nos anos sombrios da história brasileira na segunda metade do século XX. Como um estudante universitário durante o período da ditadura militar e como um manauara que viu a expansão e o declínio da sua cidade, como as consequências do ciclo da borracha, não era possível escrever literatura sem distanciar-se do tema “realidade” e ter em seu texto um efeito de anamnese (de remontar na literatura suas experiências sensíveis como sujeito). Talvez por isso o autor mantenha a mesma matéria em quase todos os seus projetos. Não só a insistência de se fazer literatura sobre realidades que precisam dela, Hatoum, ao pensar na sua própria existência e de ser íntimo às suas intenções como indivíduo, faz, ao mesmo tempo, uma grandiosa contribuição para a sociedade no Brasil de hoje; Fazendo-se autor das histórias do seu tempo. Em poucas palavras, seus textos seguem como ótimos exemplos das intenções das conjunções entre literatura e o que é realmente representado, possibilitando uma análise da sua importância diante a sociedade. As questões de mimese e quantidade referencial são muito importantes em várias observações deste estudo e mantêm perspectivas abrangentes a todos os "estímulos de realidade" (Candido, 2012, p.83) dos próprios textos, pois em suas materialidades foram encontradas evidências suficientes para o desenvolvimento de tal análise. Porém, as intenções de análise não se esgotam na materialidade do 15 texto. Na verdade, buscam encontrar os pontos de convergência entre o texto e o exercício de reflexão. A ideia de reconhecimento da realidade, em um discurso, a partir de uma narrativa escrita, não é um novo problema para a análise literária e tem extrema relevância em todas as suas partes. Segundo Erich Auerbach (2015, p.06), essa ideia pode vir da "maneira particular de ver e representar a realidade". Afinal, os textos homéricos já representavam os fenômenos da vida humana de modo acabado, completos e bem polidos, não apenas nas relações materiais do texto (o uso de formas puramente simbólicas, por exemplo), mas também em seus processos mais sensíveis e figurativos. Ao permitir o reconhecimento do mundo, a literatura já mostrava, mesmo na antiguidade, um verdadeiro domínio sobre a vida por mediar sua compreensão. Embora esse argumento de Auerbach seja válido para nortear os estudos literários em geral, não sustém com firmeza todas as respostas para os problemas que serão levantados por este estudo e pesquisa, no que diz respeito às obras de Milton Hatoum. Para isso, seria necessário observar a evolução quanto à disposição do texto. O exemplo homérico, dado por Auerbach (2015, p.06), dispõe a forma de alguns textos antigos contidos, por sua vez, em um contexto de criação de cultura a favor da cultura: um conceito familiar, mesmo à contemporaneidade brasileira. No entanto, desde o realismo do século XIX até hoje, as manifestações literárias “realistas” foram, muitas vezes, independentes dessa relação favorável instaurada inicialmente. Na realidade, a forma com que muitos textos realistas se estruturaram vieram a partir de uma dissolução e uma contradição na experiência. Desde mesmo antes de surgir na literatura, até suas projeções no século XXI, o realismo apresentou diferentes formas, níveis e amplitudes à sua disposição. Isso é de grande relevância crítica, pois questiona as relações das formas textuais e da organização da sociedade ao longo dos anos. Apontado por muitos críticos no século XX e XXI, ainda hoje, o termo “realismo” tem problemas de nomenclatura. As possibilidades são, em sua maioria, válidas. O termo precisa de certas renúncias e limites. Essa nomenclatura gera confusão. Não o bastante, muitas vezes, o adjetivo “realista” depende da óptica, do tempo e do espaço para que se vejam e entendam as distorções dispostas nele. Tanto é que este trabalho vê o realismo em sua pluralidade: realismos. O que se diz 16 aqui, ao estudar os textos de Milton Hatoum, prevê “realista” aquele texto literário que apresenta as deformidades da condição social humana, sejam elas expostas por meios homogêneos ou heterogêneos. Um romance realista não precisa ser aquele texto fiel às descrições do mundo como elas são efetivamente, mas nada o impediria. É essa ambiguidade que se mantém na discussão que amplia os caminhos deste estudo que pode contribuir para que se entenda um pouco mais sobre essas “reapresentações” da postura e do método realista e da sua função nos textos. Definitivamente, não é possível tratar a arte da literatura como uma “esfera autônoma” ou “subsistema social” (Bürger, 2008, p.76). Na arte literária em questão, principalmente com a ajuda dos estudos de Antonio Candido (1989b), é possível notar a importância dos vários estímulos de realidade nas vozes. Isto é: é possível ver a refração de muitos realismos nas obras de Milton Hatoum. Reconhecendo que no objeto-texto devem ser enfatizados os fatores sociais inerentes a ele (os caráteres sociais dos sujeitos, da voz narrativa, da passagem do tempo, dos pormenores narrativos), algumas etapas de análise já se esboçam. A primeira delas será a apresentação das obras hatoumianas. A segunda, a de predizer a literatura como representação do mundo e se permitir o reconhecimento e mapeamento dos elementos presentes na materialidade textual. Enquanto a terceira, se preocupa com as inscrições do audiovisual. Buscam-se referências e informações que devem fazer, inclusive, a recuperação da macro e da micro história social brasileira contemporânea para conjugar os elementos internos e externos dos objetos. Além disso, ainda com a colaboração de Antonio Candido (1996), se fundamenta um estudo de cunho comparatista e convém de que há diferença entre algumas perspectivas nos estudos de uma narrativa escrita. O estudo das conjunções de vozes e realismos deve constituir uma preocupação não apenas com o texto de Milton Hatoum, mas com a renovação que ele representa. Se está em hipótese uma conjugação entre lado interno e externo do texto narrativo, é interessante esboçar dialogicamente essa relação. Este estudo se compromete a investigar as formas de representação da organização da sociedade brasileira dos últimos anos, em conjunto com as relações de voz e forma narrativa. Para tanto, em alguns momentos oportunos, serão mencionados outros autores que 17 fizeram o mesmo percurso, seja para provar as conjunções, seja para provar as disjunções que foram encontradas. Com isso, não se pretende esgotar o estudo do objeto, mas sim compreender as várias formas de representação realista na literatura brasileira. Esta dissertação buscou alguns emaranhados nas narrativas de Milton Hatoum, notadamente aquelas cuja trama se desenrola nas entranhas da Amazônia, em períodos como o declínio do ciclo da borracha e da ditadura militar brasileira. No primeiro capítulo, há uma apresentação das obras emblemáticas de Hatoum, como Relato de um certo Oriente, Dois irmãos, Cinzas do Norte, Órfãos do Eldorado e o conto O adeus do comandante. Adicionalmente, são apresentadas as adaptações audiovisuais, incluindo a minissérie Dois irmãos e os filmes Órfãos do Eldorado e a adaptação do conto em O rio do desejo. O segundo capítulo da dissertação busca responder indagações cruciais sobre as relações entre narrativas e realismos na literatura. Ancorado em teorias literárias do século XX, como as de Lukács e Candido, e do século XXI, incluindo as contribuições de Pellegrini, a análise adota uma abordagem realista-crítica na interpretação das obras de Hatoum. A análise minuciosa explora as representações dos realismos presentes nas narrativas do autor manauara. Já no terceiro capítulo, direcionamos a atenção para a forma narrativa da imagem em ação, considerando as adaptações audiovisuais previamente citadas. Além de proporcionar uma visão comparativa entre as obras literárias e suas versões cinematográficas, o capítulo enfatiza o papel singular dos filmes e da minissérie como contrapontos reveladores, ressaltando nuances e perspectivas adicionais à discussão. Com base nas discussões sobre as obras escritas e as obras audiovisuais, foi possível discutir e concluir que as obras de Milton Hatoum oferecem um modelo significativo que explora técnicas de maneira renovada para representar as complexidades das relações humanas. Por meio da linguagem, as obras se mostram transformadoras de significado; Desafiam as convenções tradicionais e enriquecem a experiência da leitura. Ampliando as possibilidades interpretativas por meio da leitura do texto literário ou audiovisual, as obras também oferecem uma leitura mais complexa e contemporânea da sociedade brasileira. Em outras palavras, as interpretações pretendem contribuir para a relevância contínua no contexto cultural e crítico atual no Brasil. 18 Colaborando significativamente para a compreensão do realismo narrativo ao explorar como esses objetos lidam com as convenções do realismo literário, por meio da análise comparada, destacamos o quanto é importante que o realismo seja interpretado e reinterpretado em diferentes épocas e formatos. Isso inclui não apenas a representação de eventos e personagens fidedignos à verossimilhança, mas como cada narrativa utiliza técnicas específicas para construir um senso de realidade dentro de suas limitações e potencialidades. Ao investigar as estratégias do texto, as vozes dos narradores e as nuances das relações humanas na literatura e no audiovisual, identificamos pontos de vista valiosos das dinâmicas entre literatura e sociedade. 19 1. As Narrativas de Milton Hatoum Este capítulo descreve a direção da pesquisa, as principais leituras e apresenta determinadas obras literárias de Milton Hatoum bem como as suas adaptações para o audiovisual. As obras literárias de Hatoum estudadas neste capítulo estão organizadas por ordem crescente de publicação e são: Relato de um certo Oriente (2008), Dois irmãos (2006), Cinzas do Norte (2010), Órfãos do Eldorado (2020) e o conto O adeus do comandante, da obra A cidade ilhada (2023). Do gênero audiovisual, é estudada a minissérie homônima Dois irmãos (2017), de Luiz Fernando Carvalho, o longa-metragem de Guilherme Coelho, Órfãos do Eldorado (2015), e também O rio do desejo (2023) de Sérgio Machado. Para justificar este capítulo, focalizam-se os conceitos: de teorias discursivas, narrativas e literárias de Gérard Genette (1979), György Lukács (1969), Terry Eagleton (1976), Antonio Candido (1993) e Tania Pellegrini (2007); e os conceitos de teoria da narrativa cinematográfica de Ismail Xavier (2005) e Robert Stam (2006). A partir da apresentação dos objetos listados, inicia-se a interpretação e a análise quanto à disposição dos elementos narrativos relacionados à voz e à forma narrativa e suas relações conjuntas com os conceitos de realismo(s) na literatura. A partir deste capítulo será possível considerar verdadeiras representações dos realismos nas narrativas de ficção de Milton Hatoum. Por meio de um processo que se concretiza com a representação e a escrita, o texto literário é submetido a uma série complexa de transformações, como escolhas, amplificações, atualizações, popularização, transculturação, entre outras. O que desperta curiosidade e a necessidade de pesquisa, não se restringe apenas a examinar como nos romances de Milton Hatoum as vozes ou as formas narrativas desempenham seu papel determinante, mas também compreender a sua literatura como práxis social da experiência humana. Esses elementos narrativos dos romances, presentes também nas adaptações mencionadas, se entrelaçam de maneira funcional e coerente, diante de todo o complexo processo relacionado a uma narrativa. Para atingir as metas deste capítulo e investigar os destaques instigantes das leituras dos objetos cada obra do escritor manauara foi interpretada seguindo a 20 ordem de sua publicação em um subcapítulo cada. As obras que possuem adaptações audiovisuais são discutidas no mesmo subcapítulo de sua obra de origem. Contudo, antes do exercício dissertativo argumentativo, o autor manauara deve ser apresentado. Sendo seu pai libanês e sua mãe brasileira, Hatoum nasceu em 1952 na cidade de Manaus, estado do Amazonas. Durante a infância, teve contato com a cultura indígena, banhada pelo rio Amazonas, e viu com os próprios olhos a expansão econômica e territorial da capital manauara durante os primeiros anos da segunda metade do século XX. Viu também a decadência econômica das classes menos privilegiadas e muitos espaços amazônicos se tornarem ruínas ou centros de exploração desenfreada de recursos naturais. Formado em boas escolas e por bons professores, quando jovem se mudou para Brasília onde participava ativamente de movimentos estudantis, tendo sido detido pela polícia, inclusive, aos quinze anos enquanto participava de uma passeata. Também em sua juventude, Hatoum foi estudante da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), trazendo para o estado de São Paulo a sua presença física, bem como a sua presença intelectual. Já formado, e durante os anos 1970, em plena ditadura militar, foi perseguido pelo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) também por participar, agora como professor, do movimento estudantil. Depois de trabalhar muitos anos lecionando algumas disciplinas de Arquitetura e Urbanismo no estado de São Paulo, se mudou para o continente europeu por ter sido contemplado como bolsista e pesquisador. É a partir daqui que a atuação de Hatoum se torna mais relevante para a área de Literatura. Milton Hatoum já disse em muitas de suas conversas que sempre leu e sempre escreveu. Durante seu período na Europa, mais precisamente na França, participou do Programa de Pós-graduação da Universidade de Paris, época em que o jovem autor já tinha alguns projetos de livros em manuscritos. O seu primeiro romance, Relatos de um certo Oriente, publicado pela primeira vez em 1989, nasce depois desse contato mais próximo com as línguas e as literaturas estrangeiras. Milton Hatoum retorna, então, ao Brasil, em 1984, e na Universidade de São Paulo se dedica aos estudos literários. Na década de 1990, inicia sua jornada como doutorando em Teoria Literária e poucos anos depois, logo na virada do século XXI, publica seu segundo romance, Dois irmãos. Já nesse novo século, o autor 21 manauara explora até outros gêneros da literatura, como crônicas e contos, além de suas publicações mais técnicas e acadêmicas em periódicos, revistas, blogs, entre outros. Em 2023, Milton Hatoum conta com um acervo de publicações próprias que conta com seis romances (Relatos de um certo Oriente, Dois irmãos, Cinzas do Norte, Órfãos do Eldorado , A noite da espera - O lugar mais sombrio e Pontos de fuga – O lugar mais sombrio 2, sendo estes dois últimos parte de uma trilogia ainda incompleta), um livro de contos (A cidade ilhada), um livro de crônicas (Um solitário à espreita), algumas poucas publicações para o público infantil e alguns textos traduzidos das línguas inglesa e francesa para o português falado no Brasil1. Esse é, de fato, um repertório bastante prolífico. Das obras de Milton Hatoum, seguem sendo as mais premiadas delas: Dois irmãos e Cinzas do Norte, totalizando 9 prêmios nacionais e internacionais. 1.1 Relato de um certo Oriente, de 1989 O primeiro romance do autor manauara, publicado pela primeira vez em 1989, foi Relato de um certo Oriente (2008). A epígrafe do romance é um trecho de um poema de W.H. Auden (apud Hatoum, 2008, p.4): “Shall memory restore/ The Steps and the shore/ The face and the meeting place”. O poema, intitulado The Question, publicado em 1950, parece explorar a complexidade intrínseca de fazer perguntas desafiadoras e a dificuldade em obter respostas verdadeiras e significativas. O eu-lírico retrata o ato de questionar como uma tarefa simples e corriqueira, porém, simultaneamente, contrasta essa aparente simplicidade com a profundidade e a complexidade inerente de alcançar respostas plenas e satisfatórias. Nessa composição poética, é sugerido que, ao colocar questionamentos, seja em um 1 Alguns exemplos das traduções do francês feitas por Milton Hatoum são: 1. A cruzada das crianças (2020), de Marcel Schwob (Tradução de Milton Hatoum, Ilustrações de Fidel Sclavo, Prólogo de Jorge Luis Borges, Projeto gráfico de Raul Loureiro, Coleção Fábula); 2. Três contos (2019), de Gustave Flaubert (Tradução de Milton Hatoum e Samuel Titan Jr., Projeto gráfico de Raul Loureiro, Coleção Fábula). Ambas as traduções foram publicadas pela Editora 34 (mais informações em https://editora34.com.br/areas.asp?autor=Hatoum,%20Milton). Os exemplos das traduções do inglês feitas pelo autor manauara são: 3. Representações do intelectual (2005), de Edward Said; 4. Esperidião (In: Contos de horror do século XIX, 2005), de George Sand. Ambas estas últimas traduções publicadas pela Companhia das Letras (mais informações em https://www.companhiadasletras.com.br/colaborador/00217/milton-hatoum). 22 encontro casual ou em um ambiente de reunião formal, é fácil expressar a dúvida e a curiosidade sobre as ações e comportamentos alheios. No entanto, mesmo em uma breve interpretação do poema, poderia dizer que o verdadeiro desafio reside no processo de obtenção de respostas verídicas e elucidativas. O projeto editorial de estreia do autor contou com uma boa epígrafe, densa e significativa. Assim, a partir de Relato de um certo Oriente, Milton Hatoum estreou na literatura brasileira. Todo o romance ressalta a relevância primordial da escuta atenta e da observação criteriosa para compreender adequadamente as ações das pessoas. Não obstante, mesmo quando há a audição das palavras proferidas ou a observância dos atos praticados, o conhecimento adquirido pode revelar-se incerto e efêmero, dificultando a retenção e a apreensão cabal do que foi aprendido. A narrativa enfatiza que a falta de atenção e a ausência de uma verdadeira compreensão conduzem ao esquecimento, já com outra conotação, gerando uma sensação de perda e a perpetuação de acontecimentos dolorosos. Tal circunstância efêmera contrasta com a própria expectativa ao sugerir uma recorrência cíclica nos atos sociais e culturais humanos. Os atos humanos são simbolizados pela alusão ao voo dos pássaros e à migração dos peixes, sugerindo uma recorrência cíclica nos acontecimentos narrados, principalmente quando as pessoas não aprendem com suas experiências passadas. Ademais, o romance aborda o papel desempenhado pelo medo e pela mentira como entraves à apreensão verídica. O desejo de evitar encarar a realidade e a propensão a aderir a percepções distorcidas são explorados como barreiras para o crescimento e o aprendizado pessoal. Ao desfecho da narrativa, emerge uma nota de esperança, sugerindo que o amor pode representar a chave para resgatar o que se perdeu ou foi obscurecido. O amor é apresentado como uma força que tem o potencial de iluminar e proporcionar compreensão acerca das experiências pregressas, facultando aos seres humanos evoluir e amadurecer a partir dos ensinamentos extraídos. Em suma, assim como no poema The Question, o romance Relato de um certo Oriente é uma obra reflexiva que versa sobre a intrincada busca por respostas genuínas e destaca a importância de aprender com as experiências do passado, evitando, assim, a repetição de infortúnios. Ele enfatiza a necessidade de escuta perspicaz, compreensão autêntica 23 e coragem para confrontar a realidade, ao mesmo tempo em que aponta o amor como uma força catalisadora capaz de iluminar e promover o crescimento espiritual. Uma leitura atenta de Relato de um certo Oriente (Hatoum, 2008) pode levar a mais interpretações. Essa narrativa inicial do autor manauara põe em funcionamento um projeto que dura por anos: compartilhar memórias da vida no Amazonas durante o século XX por meio de relatos humanos de confidência. A pessoa que lê a obra tem acesso às tramas da diegese ao mesmo tempo que tem acesso a certos dados históricos e políticos do norte brasileiro de uma maneira figurativamente íntima. Por meio desses discursos relatados das personagens, ele pode descobrir não só os segredos da trama enquanto a narração é feita, mas também refletir sobre o impacto negativo incessante das explorações de recursos naturais do ciclo da borracha na Amazônia da era de Vargas. O texto, que se divide em oito capítulos, é previamente examinado a seguir com algumas amostras iniciais. Cada uma das personagens desempenha papéis distintos e essenciais na narrativa: tudo gira em torno dos segredos de Emilie e Emir, que são irmãos. Emilie, que é mãe e avó, é uma figura de destaque na história. Seu primeiro filho, Hakim, tem uma história de vida relevante para o desenrolar da trama. Samara Delia, outra filha de Emilie, é mãe de uma criança com deficiência chamada Soraya Ângela. Dois outros filhos de Emilie também são mencionados: um deles é descrito como um "demônio tatuado" (Hatoum, p.31), enquanto o outro é chamado de “Língua de Fogo” (p.31), atribuindo a eles inicialmente características misteriosas e únicas. Soraya Ângela, filha de Samara Delia, é quem teve uma ligação muito especial com a narradora na sua infância; a narradora, por sua vez, passa a narrativa toda sem ser nomeada. Logo nota-se que muitos outros personagens também permanecem inominados, mas surpreendentemente, ao invés de neutralizar o efeito do suspense, toda essa ausência de nomes e descrições definitivas só aumenta mais a tensão e a busca por respostas. O desenrolar dessa busca é que mais poderia representar aspectos relacionados aos questionamentos postos na epígrafe mencionada. Aliás, Anastácia, uma das empregadas da casa da família, e Hindié, uma companheira de Emilie, são personagens nomeadas e que também têm papéis relevantes para o desenrolar das relações sociais e de poder na trama. Tudo nesse romance é circular. Então, todas as perguntas geradas desde o primeiro capítulo, tendem a ser respondidas ou superadas por questões mais pertinentes até o fim da 24 narrativa. Exclusivamente, a narradora, mesmo com sua importância para o desenrolar da história, fica o tempo todo sem nome e sem detalhes específicos sobre sua pessoa. Essa ausência de identificações e respostas é superada por outras identificações e outras perguntas mais pertinentes. Entre as personagens já listadas, existe ainda mais uma: o fotógrafo alemão Gustav Dorner. O relato de Dorner é importante para o desfecho da narrativa, pois ele foi a última pessoa a ver o irmão caçula de Emilie momentos antes de Emir ser encontrado morto. O fotógrafo está ligado a eventos significativos na vida do irmão de Emilie, que também guardava segredos profundos. A história de Emir ora questionada, nunca poderá ser completamente esclarecida. O que se destaca na narrativa é a alegoria do retrato, da memória e de alguns questionamentos que o poema da epígrafe já instaura. A função das personagens nomeadas, como narradoras de segunda ordem, também é de extrema importância. A personagem-narradora cede para que Anastácia, Hindié e Dorner também narrem seus relatos. Com as alternâncias de vozes da narração, junto com os efeitos da alternância do tempo, a obra permite uma experiência narrativa que estabelece uma conexão entre pontos de vista diferentes, mas totalizadores. Os personagens que compõem essa “tapeçaria complexa e rica de relações familiares, eventos e emoções” (Ferreira, 2013, p.02) dentro do enredo do romance de Milton Hatoum interagem até com as realidades do lado de fora do texto. Ao longo do romance Relato de um certo Oriente, as vozes narrativas revelam-se plurais e como observadoras perspicazes, capazes de fazer descrições detalhadas e envolventes, reforçam a crítica de Heitor Ferraz Mello (2005, s. p.), ao dizer que as descrições em Relato têm uma natureza "voluptuosa". A forma como a voz narrativa retrata não apenas as relações humanas figurativamente, mas a atmosfera da casa, os animais, as frutas e o pátio das árvores, cria uma experiência sensorial intensa para quem está lendo. Essa habilidade de evocar os sentidos é uma característica marcante ao longo do romance. A presença de figuras de linguagem, descrições sensíveis, especialmente na história de Soraya, destaca-se ao longo do romance. A narrativa exibe uma escrita cuidadosa e emotiva, permitindo quase a vivência das emoções dos personagens e uma conexão mais intensa com a trama. 25 Esse domínio que remete a uma experiência sensorial, pode ser evidente no trecho a seguir: “A atmosfera da casa estava impregnada de um aroma forte que logo me fez reconhecer a cor, a consistência, a forma e o sabor das frutas que arrancávamos das árvores que circundavam o pátio da outra casa.” (Hatoum, 2008, p.19). Trata-se de uma figuração sinestésica por meio da narração da personagem que privilegia a realidade, não a representando idêntica. A forma cuidadosa como a narradora descreve os elementos do ambiente verdadeiramente cria uma atmosfera viva e quase palpável, permitindo sentir-se presente nas cenas narradas. A utilização dessa e de outras figurações da realidade reforça a riqueza e a profundidade da narrativa de Hatoum. Permitindo uma leitura emocionante e envolvente, juntamente com atenção às descrições sensoriais aos montes, a interação entre as vozes da narração oferece uma ótima experiência literária. Além da alternância de vozes, o romance também apresenta uma alternância de tempos evidente que já mencionamos. Assim, esses movimentos narrativos proporcionam uma complexidade narrativa que desafia o leitor a reconstruir os eventos e as conexões entre os personagens por meio de datas incompletas fornecidas ou interpretação das conjugações verbais e das relações familiares. Essa alternância adiciona profundidade ao enredo, levando quem lê a questionar a identidade do interlocutor da narração e qual sua posição na tapeçaria de relações, segundo análises anteriores (Ferreira, 2013). Mais detalhes sobre a vida e morte das personagens, a partir das perspectivas de outras personagens, são cheias de emoções intensas e envolvem quem lê em uma jornada de reflexões. Esses elementos narrativos não apenas somam variedade e nuances à história, mas habilmente retratam relações sociais vitais e íntimas. A interação entre diferentes vozes e tempos contribui para uma construção narrativa complexa e fascinante, onde cada capítulo é como um fragmento de memórias, habilmente entrelaçado para formar uma história cheia de retalhos. É como um álbum de fotografias, que traz a cada página histórias que se somam. Por meio das vozes narrativas, o conteúdo é revelado em camadas, oferecendo uma experiência multifacetada, onde a sensibilidade e a observação minuciosa se combinam para criar uma narrativa totalizadora. 26 1.2 Dois irmãos, de 2000 e de 2017 Neste tópico estão presentes reflexões quanto à narrativa e à montagem das imagens das obras homônimas Dois irmãos, o romance de Milton Hatoum (2006) e a minissérie de Luiz Fernando Carvalho (2017). Ainda que haja atenção sobre os experimentos estéticos das obras, o que essas observações iniciais mais destacam são as interpretações sobre o projeto literário e a adaptação feita posteriormente a ele. Certas afirmações servirão posteriormente em outro capítulo para a exposição sobre as conjunções entre os elementos narrativos da voz e da forma. Não são necessários muitos esforços para conseguir ler Dois irmãos (2006) de maneira completa, satisfatória e segura para um comentário crítico. É, sim, uma narrativa conturbada, que se passa durante a ditadura militar, sobre a trajetória de dois irmãos gêmeos em Manaus que se veem diante de uma capital arruinada por conta da exploração das seringueiras no início do século XX (ou seja, uma narrativa ainda alinhada ao projeto de estreia do autor). Porém, Hatoum certamente enfrentou em suas pesquisas, em 1988 (quando ainda recebia uma bolsa de literatura da Fundação Vitae), a ambiguidade e a instabilidade do tema que escolheu para seu livro em contraste com seu romance de estreia. O resultado que obteve em Dois irmãos foi estrelar. O romance, que foi traduzido para mais de cinco línguas2, trata um fabular desconcertante sobre o ódio familiar com uma linguagem acessível até para os leitores menos assíduos. Assim como também fez certas questões 2 De acordo com o levantamento feio por Francisca Andréa Ribeiro da SILVA e Sylvia Maria TRUSEN (2018), a obra Dois Irmãos foi traduzida em alemão: Zwei Brüder: roman. Trad. Karin von Schweder-Schreiner. Frankfurt: Suhrkamp, 2002; Em árabe: Chaqiqan. Trad. Safa Abouchahl Jubran. Beirut: Alfarabi, 2003; Em espanhol: Dos Hermanos. Trad. Juana María Inarejos Ortiz. Madrid: Akal, 2003; Em francês: Deux fréres. Trad. Claude Fages. Paris: Seuil, 2003; Em holandês: Twee Broers. Trad. Jelle Noorman. Amsterdam: Atlas, 2004; Em inglês: The Brothers. Trad. John Gledson. London: Bloomsbury, 2002; Em italiano: Due Fratelli. Trad. Amina di Munno. Milano: Net, 2007; E em grego: Ta Adéphia. Trad. E. Uanteakhe. Atenas: Alexandria, 2005; A obra Relato de um certo Oriente possui duas traduções em alemão: Emilie oder Tod in Manaus: Roman. Tradução: Karin von Schweder-Schreiner. Muncher/Zurich: Piper, 1992; Brief aus Manaus: Roman. Tradução: Karin von Schweder-Schreiner. Frankfurt: Suhrkamp, 2002. Em espanhol: Relato de un Cierto Oriente. Tradução: Juana María Inarejos Ortiz. Madrid: Akal, 2001. Em francês: Récit d’un Certain Oriente. Tradução: Claude Fages. Paris: Seuil, 1993. Em inglês: The tree of the Seventh Heaven. Trad. Ellen Watson. New York: Atheneum; Toronto: Maxwell Macmillan, 1994; Tale of a Certain Oriente. London: Bloomsbury, 2007. Em italiano: Ricordi di un Certo Oriente. Trad. Amina di Munno. Milano: Garzanti, 1992; Cinzas do Norte foi traduzida em italiano: Ceneri del Nord. Trad. Amina di Munno. Milano: Il Saggiatore, 2007. (DOI: http://dx.doi.org/10.18542/moara.v0i49.6435) 27 turbulentas e familiares se tornarem uma chave para compreender todos os pesadelos, ódio e outros elementos insustentáveis sobre a vida e a morte humanas. Publicado pela primeira vez nos anos 2000, o segundo romance do autor manauara encantou o público que gosta de histórias que deixam o leitor cativo do começo ao fim da narrativa. De tão popular no âmbito da literatura contemporânea brasileira, a primeira edição do livro, pela Companhia das Letras, teve onze reimpressões e graças à premiação Jabuti, em 2001, o livro contou também com uma edição de bolso (2006) que de tanto circular e ser procurado, somou mais treze novas reimpressões. Em menos palavras, foi um livro bem lido no início do século XXI no Brasil por permitir boas observações críticas mesmo anos depois de seu auge editorial. A trama se desenrola por meio de analepses e prolepses, inaugurando-se de maneira enigmática com o prólogo in ultimas res, onde Zana, viúva de Halim, em seu leito de morte, questiona se, afinal, os filhos gêmeos Omar e Yakub selaram a paz. O romance adquire contornos circulares, com o desfecho revisitando e esclarecendo a cena inicial. Ao longo de seis décadas, o tempo cronológico expande-se, proporcionando uma visão ampla da narrativa. Destaca-se a presença constante de mistérios e dissimulações que permeiam toda a trama, caracterizada por uma complexa incompletude. O narrador, oculto até o terceiro capítulo, adota a perspectiva em primeira pessoa, mantendo o leitor em suspense. O narrador revela-se como Nael, um jovem mestiço e filho de Domingas, uma indígena órfã que, na infância, tornou-se serviçal na família de Zana. Nael e sua mãe habitam em condições precárias nos fundos da propriedade, delineando assim um contexto multifacetado e intrigante. Nael, ao narrar, resgata as histórias daqueles que foram silenciados, como sua própria mãe, impedindo que sejam relegados ao esquecimento. Esse artifício confere ao romance uma dimensão de crítica social, ao provocar reflexões sobre as dinâmicas de poder na sociedade, especialmente no contexto manauara. O enigma em torno da paternidade de Nael persiste até o desfecho da trama. Em seu relato, o jovem constrói um intrincado quebra-cabeças ao valer-se de suas próprias experiências e das lembranças das histórias resgatadas da memória de sua mãe e dos demais indivíduos presentes em seu convívio. 28 Nesse enredado processo narrativo, cada personagem contribui para a narrativa de Nael com visões, tradições e memórias de lugares que ele sequer havia experimentado, mas que se revelam cruciais para o resgate de sua própria identidade. Pela voz desse narrador, destaca-se sua posição ambivalente na família sírio-libanesa, sendo ora percebido como bastardo por Zana e Omar, ora reconhecido como membro legítimo da família por Halim e Yaqub. Essa ambiguidade em sua condição permite a Nael circular por espaços restritos e desvendar vestígios de tempos distintos, expressos por meio de uma linguagem híbrida que resulta da fusão de idiomas, mimetizando, assim, a própria formação de Manaus. A história de Dois irmãos pode ser relida integralmente diversas vezes e mesmo com seu cenário dissimulado não perde de vista a qualidade de boa literatura em um romance breve e fascinante. Em 2017, o diretor Luiz Fernando Carvalho decidiu ampliar um pouco mais as possíveis leituras dessa história com uma reinterpretação homônima à original em formato de minissérie televisiva. Com um elenco em que estrelam Eliane Giardini (como Zana, esposa de Halim), Antonio Fagundes (como Halim) e Irandhir Santos (como Nael, neto e afilhado do casal anterior) é possível supor que a reinterpretação favorece uma nova perspectiva profundamente emocionante já que se encontram grandes nomes do teatro, da TV e do cinema brasileiro. Com certas características do melodrama (Stam, 2006, p.114; Xavier, 2000), Carvalho mantém a iluminação não apenas no tema, como também, a partir da minissérie, é possível perceber uma certa preocupação quanto à linguagem narrativa audiovisual: quando há alternâncias de voz, tempo e espaço na obra de Hatoum, há um correspondente na imagem e ação da releitura. Apesar desse empenho, o diretor certamente teve de ceder um pouco de suas intenções estéticas às necessidades do formato de transmissão de uma minissérie. Em alguns trechos da obra audiovisual, dispõe-se de cuidados exagerados ao seguir muito à risca o modelo da teledramaturgia da Rede Globo (emissora e produtora responsável pela minissérie). Entretanto, a obra conta com diversos recursos e estratégias válidas para uma investigação mais profunda e acadêmica e isso se comprova pelo número altíssimo de trabalhos desenvolvidos sobre o romance e sobre a minissérie nos últimos anos. 29 Assim como vimos ao apresentar Relato de um certo Oriente, no tópico anterior, a epígrafe do romance novamente pode servir de amostra nesta apresentação. O tema do romance é instaurado quando é iniciado com um trecho de um poema bem conhecido de Carlos Drummond de Andrade, “Liquidação”: A casa foi vendida com todas as lembranças todos os móveis todos os pesadelos todos os pecados cometidos ou em vias de cometer a casa foi vendida com seu bater de portas com seu vento encanado sua vista do mundo seus imponderáveis [...] (Drummond apud Hatoum, 2006, p.7) Observa-se que há, já no primeiro trecho, elementos do universo diegético da narrativa bem dispostos e indício de algumas questões fundamentais sobre os episódios mais fatídicos das suas personagens anunciados apenas por uma voz determinante. Para quem não conhece o texto na íntegra, a epígrafe contém todas as dicas. Acredita-se que na primeira linha dessa epígrafe, existe uma delimitação do espacial da história: uma casa tradicional de família, cheia de memórias. Curioso é que nos versos seguintes, os termos “pesadelos” e “pecados” são quase postos como partes do imóvel mencionado e interrompem a ideia de que essa seria uma história fraternal, carinhosa ou inocente. O verso que lista os elementos da casa auxilia essa interpretação, por permitir que “todos os móveis” e “todos os pesadelos” sejam lidos como a repetição do eco de uma casa vazia. Há uma correspondência interessante desse trecho na obra audiovisual. A minissérie é iniciada com um quadro aproximado nas palavras que estão sendo datilografadas por um personagem desconhecido cuja voz se sobrepõe à imagem. Até então, nada inusitado: o uso da voz over para a narração de textos da tela não é inovadora ou revolucionária (Xavier, 2005), mas a princípio deixa uma certa curiosidade pelas escolhas em sua montagem: de maneira ilustrada, “invoca” a casa mencionada na epígrafe como o primeiro elemento da narrativa a ser explorado. É fácil perceber que tanto para o romance, quanto para a minissérie, a epígrafe é um elemento verbal que norteia a história da narrativa. A escolha é uma aposta em um dos principais significados de uma imagem: representar, logo em primeiro grau, o ponto de vista de algo ou alguém, apenas pelo 30 olhar. Afinal, a voz narrativa se torna excelência na literatura pois é por meio dos verbos e da verbalização que as contações de história existem. Assim, em uma imagem que naturalmente diz por mostrar, a escolha do cineasta só justifica ainda mais as extensões do texto. De qualquer forma, seja qual for a estratégia de construção da narrativa, o autor ou o diretor se volta à preocupação dos meios de se pensar em arte narrada. Ao revisitar os elementos da literatura de Hatoum e sintetizá-los em novas formas, a adaptação não só reproduz a narrativa, mas a ressignifica. Para conseguir apresentar os outros textos de Hatoum, a análise é retomada no capítulo seguinte. 1.3 Cinzas do Norte, de 2005 É comum, no âmbito da crítica literária brasileira (Junqueira, 2020; Klassen, 2008; Lemos, 2018; Montalvão, 2011), saber articular um breve panorama de quem é Milton Hatoum e quais são as suas obras, assim como foi feito até esse ponto neste capítulo. O escritor manauara já foi premiado e encanta a literatura brasileira com suas apresentações de vozes, de formas e de estilos narrativos particulares desde o lançamento de seu primeiro romance em 1989. Também não é estranho ao mundo da crítica literária conhecer um pouco sobre o romance Cinzas do norte, de 2005 (Cezar, 2019; Oliveira, 2019; Penalva, 2020). Ainda inserido na mesma matéria que Relato de um certo Oriente e Dois irmãos, Cinzas do Norte também tem o ciclo da borracha manauara como contexto de sua narrativa. Curioso é o fato de que Cinzas do Norte é um romance de perspectiva mais direta, isto é, a realidade da diegese do terceiro romance de Milton Hatoum não apresenta tantas distorções se comparada à realidade efetiva. Da matéria literária que se inicia “voluptuosa” (Mello, 2005), em Cinzas do Norte se enfatiza uma ausência. Vinte anos após a morte de seu amigo, Olavo, conhecido como Lavo, depara-se com a última carta de Raimundo, ou Mundo, antecipando o teor emotivo e prenunciando o fim da correspondência entre os dois. Assim se inicia o romance Cinzas do Norte. Narrado predominantemente por Olavo, a história é moldada pela memória do passado e pela inerente necessidade de expressão escrita. Olavo, movido por uma profunda vontade de contar a história da vida do amigo, utiliza uma 31 narrativa que, quando apropriado, se entrelaça com vozes alternativas, incorporando cartas de Ranulfo “Tio Ran” e outras correspondências entre os capítulos, proporcionando uma narrativa que transcende as fronteiras da memória individual. Ao colocar em dialogia a história da ascensão e queda da economia familiar de Raimundo, privilegiada pelo ciclo da borracha, com a memória, ora vibrante ora decadente, da cidade de Manaus e de suas regiões periféricas, a articulação dessa narrativa de Hatoum revela um diálogo com as realidades brasileiras em um potencial realismo reapresentado. Existem vários fatores que evidentemente aproximam esse romance das várias realidades de outrem. A frase "Eu sou donde eu nasci. Sou de outros lugares" (epígrafe do romance, trecho de Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa) pode ser interpretada como uma expressão de uma visão totalizadora da experiência humana. Nela, o indivíduo se identifica completamente com sua origem, representada pelo local de nascimento, mas, ao mesmo tempo, afirma uma pertença igualmente intensa a outros lugares. Essa dualidade sugere uma conexão profunda com a experiência humana em sua totalidade, transcende fronteiras geográficas e culturais, abraçando uma identidade que é simultaneamente local e global. A referência a "outros lugares" sugere uma pluralidade e diversidade de experiências, possivelmente desconhecidas, mas integralmente incorporadas à identidade do indivíduo. Essa abordagem reflete uma compreensão rica e inclusiva da complexidade da existência humana. O que parece mais excelente nessa obra é que, de maneira diferente das obras anteriores, essas alternâncias de vozes típicas de Hatoum e que compõem essa trama não geram tanto mistério e ambiguidade como no seu primeiro e no seu segundo romance publicado. Esses detalhes de composição serão retomados na análise do capítulo 2. 1.4 Órfãos do Eldorado, de 2008 e de 2015 Órfãos do Eldorado (2020) é outra narrativa que se desenrola às margens do rio Amazonas. Dessa vez, ao contrário de Cinzas do Norte, a intenção narrativa é revelada apenas no final. Apenas no desfecho é possível compreender a história 32 toda que fora contada pelo velho Arminto Cordovil. Ele diz que um visitante, para aproveitar a sombra de uma árvore, aceita ouvir a sua história enquanto descansava do calor do dia. Em uma cidade fictícia chamada Vila Bela, Arminto Cordovil remonta sua própria história. Esse encontro singular entre visitante e contador, que amarra as pontas da narrativa, está inserido na mesma matéria dos romances anteriores do autor. Em Órfãos do Eldorado, o narrador da história, o próprio Arminto Cordovil, compartilha com esse ouvinte (e com o leitor) sua jornada desde a sua infância. Nascido em família bem afortunada, Arminto tinha tudo, menos o afeto do pai. A governanta da casa, Florita, era quem mais dava carinho para ele quando criança. A trama acompanha eventos que vão desde os que levaram à ruína a fortuna de sua família, até à busca pela enigmática personagem Dinaura, a cantora e amante de Arminto, mulher misteriosa e ambígua. Ao longo da narrativa, Hatoum emprega uma técnica circular que revela informações da diegese gradualmente, permitindo que se desvendem os segredos aos poucos, sem esgotar completamente o mistério. Essa estrutura narrativa circular e habilmente construída adiciona profundidade e complexidade à história, mantendo a curiosidade em alta. Os pontos centrais do texto são certamente esses relacionamentos entre Arminto, seu pai, Florita e Dinaura, que são explorados em todas as suas intensidades e suas trajetórias fatídicas. Além da trama pessoal de Arminto, Órfãos do Eldorado oferece uma reflexão rica sobre a região amazônica e o período em que a história se passa. A escrita de Hatoum parece mais uma vez retornar com detalhes minuciosos e “voluptuosos” quanto à atmosfera única da cidade e da floresta, permitindo que a narrativa contextualize a cultura e as características sociais, históricas e geográficas da Amazônia em consonância. O contexto histórico, marcado pelo declínio do ciclo da borracha, dessa vez em conjunto com as devastadoras consequências das grandes guerras mundiais do século XX, adiciona camadas globais à trama, proporcionando uma visão ainda mais ampla. A prosa de Hatoum é poética e simbólica, repleta de figuras de linguagem que emprestam ao texto um tom lírico e profundo. Muitas antíteses estão presentes na obra e combinadas com as descrições minuciosas e as nuances psicológicas dos personagens conferem uma dimensão única à narrativa, permitindo a quem lê 33 imergir em um universo de paixões, mistérios e emoções intensas. Em resumo, o romance é uma obra literária que cativa pela sua complexidade narrativa e ambientação envolvente. Milton Hatoum constrói uma história que vai além dos limites comuns do romance ou da novela, oferecendo uma experiência literária rica e profunda, que transporta seus leitores para uma Amazônia ambígua, onde os segredos e os laços familiares são delicadamente entrelaçados delirantemente. A obra de Hatoum contou com uma obra audiovisual homônima (Coelho, 2015): O filme Órfãos do Eldorado mantém a apresentação de uma série de antíteses ao longo da narrativa. A narrativa cinematográfica de Órfãos do Eldorado oferece uma perspectiva audiovisual que enriquece a narrativa ao traduzir visualmente as descrições e sentimentos do romance original. O filme proporciona ao público uma compreensão mais profunda da complexidade dos personagens e do ambiente em que vivem, dando vida à cidade fictícia de Vila Bela e aos conflitos que a caracterizam. A habilidosa atuação dos atores, a seleção cuidadosa dos cenários e a trilha sonora contribuem significativamente para criar uma experiência sensorial que dialoga de maneira eficaz com a atmosfera literária de Hatoum. A escolha de Belém, no estado do Pará, especialmente o distrito de Icoaraci, como cenário para a fictícia Vila Bela, confere autenticidade geográfica à adaptação, estabelecendo uma conexão tangível entre a narrativa e a realidade geográfica da região amazônica. A trilha sonora, composta por Lucas Marcier, Fabiano Krieger e Jeff Rona, desempenha um papel importante na atmosfera do filme, enriquecendo a experiência do público e contribuindo para a imersão na história. A convergência harmoniosa de elementos visuais e sonoros cria uma adaptação cinematográfica que ressoa com a riqueza cultural nortista, mesmo que na narrativa escrita isso não seja encontrado. Vários elementos que estão emocionalmente presentes na obra literária de Hatoum, são transcendidos de maneira envolvente e impactante na linguagem da imagem e do som. No contexto cinematográfico de Órfãos do Eldorado, o espaço emerge como um elemento fundamental na construção narrativa, conferindo à história uma dimensão estética e emocional única. O filme vai além de simplesmente capturar o contexto histórico e geográfico, alcançando a interioridade dos personagens. Essa 34 abordagem permite que o público não apenas compreenda a trama, mas também mergulhe nas diversas camadas de significados presentes e revele mais da importância da imagem. Ao explorar o espaço visualmente, a narrativa cinematográfica proporciona uma experiência imersiva que complementa e enriquece o romance original. O ambiente torna-se uma parte ativa da narrativa, oferecendo uma representação visual das complexidades da história. A capacidade de transmitir emoções e nuances por meio da imagem contribui para uma compreensão mais profunda e sensorial da trama. Dessa forma, o filme amplia as formas de representação das emoções humanas, utilizando o espaço cinematográfico como uma ferramenta narrativa poderosa para expressá-las. Essa abordagem acrescenta uma nova camada de profundidade à narrativa, permitindo que o público se envolva de maneira mais intensa com os personagens e o enredo. O romance de Milton Hatoum proporciona uma profunda introspecção por meio da voz narrativa de Arminto Cordovil, cujas palavras meticulosamente delineiam as paisagens físicas e emocionais da Amazônia. Ao entrelaçar suas lembranças e reflexões, Arminto revela a enigmática relação entre espaço e perspectiva. A escolha cuidadosa das lembranças, como enfatizado pelo narrador ao dizer "Conto o que a memória alcança, com paciência" (Hatoum, 2020, p. 9), possibilita a reconstrução do espaço para além da geografia, ampliando a compreensão. A dualidade se manifesta de maneira evidente no título Órfãos do Eldorado: de um lado, a alusão a um lugar utópico, à fortuna dourada e ao encantamento da promessa de uma vida melhor, ligada ao mito da cidade encantada; por outro lado, a referência à orfandade daqueles que ficam sós. Aqui, os "órfãos" são os desafortunados, aqueles que não alcançaram o Eldorado e encontram-se desencantados pela promessa, possivelmente distantes de suas origens. A trama, assim, desdobra-se como uma tela em branco para as projeções internas dos personagens, explorando a narrativa de ambos os lados. A transposição dessa narrativa literária rica para o espaço audiovisual é uma tarefa desafiadora. Analisar a voz literária de Arminto Cordovil e o olhar (inato) no espaço audiovisual em Órfãos do Eldorado (2015) é imergir na complexa interação entre a subjetividade do narrador-personagem e a representação visual do olhar da câmera. Por meio da perspectiva de Arminto e da multiplicidade dos pontos de vista 35 inerentes ao cinema, os cenários ganham vida com uma profundidade enriquecedora e intensifica a complexidade narrativa da obra. 1.5 O adeus do Comandante, de 2009, e Rio do desejo, de 2023 O texto O Adeus do Comandante, de Milton Hatoum, narrativa curta inserida em A cidade ilhada, de tão envolvente, foi adaptado para o audiovisual no filme O Rio do Desejo, dirigido por Sérgio Machado em 2023. O conto é instigante desde o início, ao conduzir a leitura de forma curiosa. Em Parintins, cenário da história e cidade do estado do Amazonas, a primeira televisão a cores reúne um número significativo de pessoas na sala de um vizinho. Enquanto a programação televisiva não se inicia, um senhor propõe contar uma história para passar o tempo e convida a todos a ouvi-la. A história que ele conta segue. Na mesma região de Parintins, uma competição entre indivíduos conhecidos como "mouros" criava uma atmosfera de rivalidade e conflito entre as autoridades e a criminalidade da província amazonense. Desses indivíduos, Dalberto, o ex-cabo de polícia, se destaca. Esse destaque se deve à sua nova profissão: o ex-cabo agora é comandante de um barco. O velho conta como reencontrou o velho amigo Dalberto a bordo de sua nova embarcação. Dalberto era o novo comandante do barco “Princesa Anaíra” e transportava pessoas e cargas entre as províncias banhadas pelo Rio Negro. O velho amigo conta a história de quando Dalberto comandante transportava em meio a tantos passageiros um caixão de sepultamento. A trama, que já era curiosamente estranha, só ganha ainda mais mistério quando descobrem que o caixão na verdade está vazio e que está destinado a carregar o corpo do irmão mais novo do comandante. O irmão caçula ainda não estava morto, Dalberto pretendia matá-lo, e como o irmão se encontrava em uma das paradas do Princesa Anaíra naquele dia, todos a bordo, inclusive o velho narrador, eram cúmplices de um crime ainda a ser cometido. É surpreendente que o que mais colabora para essa tensão e apreensão da narrativa não seja o fato homicida narrado em si, mas a forma como a voz narrativa 36 do velho conduz a expectativa de todos os seus ouvintes que estavam na beira da janela da casa do vizinho com televisão a cores. Esses diferentes níveis de diegese e verticalização de vozes narrativas colaboram para que esse conto se destaque entre os demais contos de A cidade ilhada. Tanto o conto O adeus do comandante quanto o filme O rio do desejo compartilham de uma trama narrativa complexa, em que a história ou é contada em segunda ordem ou de forma composta. No conto, ao que parece, a narrativa não se desenrola apenas por meio da voz de um velho que conta uma história, que por sua vez é ouvida e lida por alguém. Assim como no filme, essa estranheza é expandida e desenvolvida por meio dos planos que, ao incorporarem mais informações (da imagem, do som e da própria montagem), despertam ainda mais o interesse. O filme O rio do desejo aproveita-se de alguns planos muito bem elaborados para proporcionar mais informações referentes aos personagens, bem como as verdades por trás de suas ações e suas intenções. Essa forma cinematográfica acrescenta camadas à narrativa, permitindo ao público uma imersão mais profunda no espaço, na história e até nos sentimentos dos personagens. Além disso, também sobre os exemplos de experiências dos realismos na narrativa, enquanto o conto traz referências contextuais, o filme utiliza outro recurso para estabelecer um grau de verossimilhança entre a realidade efetiva e a realidade na diegese: a ruptura com a convenção. Elas criam uma atmosfera complementar justificável entre os eventos apresentados na trama fictícia e os eventos observáveis no mundo externo à ficção. 37 2. Voz Narrativa e Realismos Para que sejam interpretados e analisados os aspectos de voz narrativa previamente mencionados, nossa seleção de obras de Milton Hatoum constitui nosso objeto daqui em diante. No entanto, a consciência dos limites deste capítulo faz prevalecer o bom senso de não responder a todas as questões levantadas pela análise e, portanto, parte da investigação será levada para o capítulo seguinte, sobretudo no que diz respeito ao exame das relações da obra de Hatoum com o audiovisual. Essa argumentação pode não ficar só retida, exclusivamente, nas interpretações que esses objetos já tiveram anteriormente, mas pode acrescentar mais observações e amostras dos textos para análise. Com isso, é fundamental ter estabelecida uma seleção bibliográfica que bem permita a compreensão das possibilidades de realismo manifestadas nas obras e a exploração crítica da voz narrativa realista e suas potenciais inscrições. Inicialmente, é preciso discriminar certos conceitos para então discutir a ideia de que um texto literário pode ser um objeto que representa dinamicamente aspectos da realidade social humana. Logo em seguida, mais amostras e trechos dos romances e do conto para a análise final. 2.1 Literatura e realismos Primeiramente, para esse estudo, segue-se a distinção do uso da palavra "narrativa" proposta por Gérard Genette (1979, p.23), pois entende-se três sentidos atribuíveis ao mesmo termo. O primeiro, que se oferece diretamente à superfície textual, tem o mesmo nome e é o que evidencia os problemas de análise para esse projeto. Ele é o responsável por intermediar os outros dois sentidos ao criar um elo entre o enunciado (materialidade do texto) e um discurso reconhecível (vínculo ao centro vital). Os outros dois sentidos, o de história e narração, não se destacam na materialidade dos textos escritos, mas servem para complementar esse trabalho crítico. Além disso, Genette (1979) contribui para toda a nomenclatura científica dos estudos narrativos discursivos como: ordem, frequência, duração, focalização e alternância. A partir da efetividade desses termos, os estudos podem prosseguir. 38 Seja qual for a sociedade, a sua cultura se preserva com a literatura. Por mais palimpséstica que seja a prática literária (Auerbach, 2005, p.06), esses objetos listados podem enfatizar identidades e ordens sociais por meio de um processo narrativo que reescreve as fronteiras do real e do realista. Convém investigar, portanto, das primazias até os efeitos desse processo. É essencial se lembrar de que a literatura neste trabalho dissertativo é vista como uma práxis social (Lukács, 1969): é derivada da vida e mantém diálogo com esse centro vital. A teoria lukacsiana do realismo (Lukács, 1969 apud Otsuka, 2009) revela-se um campo fecundo para este estudo literário, especialmente no que tange às consequências estéticas do "atraso" econômico-social nas áreas periféricas (Otsuka, 2009, p. 36). Nesse contexto, a partir de fichamentos de textos teóricos lukacsianos e da leitura do próprio volume Realismo crítico hoje (Lukács, 1969), é possível destacar alguns elementos dos ensaios de Lukács a partir dos anos 1930, que se concentram nessa questão, a fim de alinhar as análises dos textos literários que compõem o objeto desta dissertação. Segundo Lukács (Otsuka, 2009, p.37), em um texto o realismo em um texto não se origina apenas dos procedimentos técnicos, mas sim de uma articulação particular entre o modo de escrever e a matéria histórico-social. Dessa forma, o realismo lukacsiano não pode ser confundido com uma mera representação "fotográfica" ou “documental” da realidade, que reproduziria fielmente a superfície do mundo visível, mas considerado quase como uma captura da dinamicidade da história e das "forças motrizes" da sociedade (Otsuka, 2009, p. 38). O que essa definição faz é estabelecer uma relação entre a superfície ou materialidade de um texto com a profundidade da História e da sociedade. Lukács considerava a concepção do realismo como fundamentalmente dinâmica, onde a superfície da vida cotidiana é apenas uma manifestação exterior de processos históricos mais profundos (apud Otsuka, 2009, p. 38). Esses processos, impulsionados pela contradição fundamental da sociedade, por exemplo, a luta de classes, se refletem na experiência cotidiana dos indivíduos. Assim, não se trata de desprezar a superfície dos fenômenos em benefício da representação direta das relações de classe, mas de apreender a interligação entre a vida cotidiana e a estrutura profunda e decadente da sociedade capitalista (Otsuka, 2009, p. 38). 39 Não o bastante, o teórico, que mantinha constantes análises entre as características da vanguarda e as mudanças do realismo, também prevê uma crítica às atitudes estéticas. Ele critica tanto o subjetivismo esteticista quanto o objetivismo naturalista, apontando que a verdadeira questão está relacionada à atitude em relação à realidade e ao nível artístico alcançado (Otsuka, 2009, p. 40). Dentro da teoria lukacsiana, não existe uma correlação automática entre o atraso econômico-social e a impossibilidade de narrativa realista, mas Lukács demonstra em seu livro-chave (1969, p.153) que a estética realista pode se manifestar mesmo em contextos periféricos, desafiando as noções pré-concebidas sobre a relação entre atraso e representação artística. Em suma, a teoria do realismo de Lukács se destaca não apenas pela sua análise profunda da relação entre a arte e a sociedade, mas pela sua rejeição às visões superficiais e estereotipadas da forma literária. Sua abordagem dinâmica permite que a narrativa realista surja em contextos inesperados, demonstrando a riqueza e complexidade das manifestações artísticas em muitas sociedades. Então, é a partir de Lukács (1969) que Otsuka (2009) e outros críticos literários exploraram de maneira excelente essas condições literárias. A partir da leitura do texto "Lukács e a forma literária", de Terry Eagleton (1976), apresentam-se mais bases teóricas pertinentes. Nesse texto mencionado, Eagleton (1976) explora a concepção de Lukács sobre o romance como a "epopeia burguesa" que revela o desenraizamento e alienação do homem na sociedade moderna, rompendo com a integração harmoniosa do homem no seu mundo (Eagleton, 1976, p. 42-43). A abordagem lukacsiana, impulsionada por sua perspectiva marxista, estuda a relação entre a literatura e a sociedade capitalista, reconhecendo a arte como uma forma de combater a alienação e a fragmentação resultantes do capitalismo. Eagleton (1976) determina que a grande arte realista une o geral e o particular, o conceptual e o sensual, o social e o individual numa totalidade complexa, combatendo as "alienações" típicas do capitalismo (1976, p. 43). Embora seja necessário ressaltar que o conceito de "típico" para Lukács (assim como para Hegel, para Marx e para Engels) refere-se às forças latentes em qualquer sociedade, consideradas as mais relevantes e progressistas historicamente. O escritor realista, segundo Lukács (Eagleton, 2023, p. 45), tem a tarefa de penetrar além dos fenômenos acidentais da vida social para revelar as essências ou 40 características essenciais de uma situação, selecionando-as e combinando-as numa forma total e concreta. Essa abordagem não depende apenas da habilidade pessoal do autor, mas também de sua posição na história. Por exemplo, o fracasso das revoluções europeias de 1848 é apontado por Lukács (1969, p. 131) como um ponto de transição, marcando o fim do período “heroico” e progressista do poder burguês, que deu lugar à consolidação do capitalismo e ao surgimento de uma ideologia burguesa que depura a realidade da história e a aceita como um fato natural. Dessa forma, é possível destacar Hatoum como um “escritor realista”, porque, em suas obras, o autor se aprofunda nas realidades sociais e históricas brasileiras, revelando aqueles aspectos fundamentais mencionados. Por meio da representação das relações familiares, políticas e culturais, assim como Lukács (1969) propõe, o realismo de Hatoum busca capturar as estruturas mais profundas que moldam as vidas de seus personagens. Em Dois irmãos, por exemplo, Hatoum utiliza o drama familiar como um microcosmo das tensões sociais, culturais e históricas da Amazônia e do Brasil. A rivalidade entre os irmãos Omar e Yaqub, bem como o impacto disso na família e no entorno social, reflete questões de identidade, migração e das marcas deixadas por desigualdades históricas e conflitos sociais de uma época. Nessa perspectiva, é possível penetrar nas essências da situação, selecionando e combinando elementos que formam uma visão totalizante e realista das dinâmicas listadas. Essa perspectiva lukacsiana apresentada por Terry Eagleton (1976) evidencia a constante relevância da arte realista na compreensão das dinâmicas sociais e históricas, revelando a luta de classes e o impacto do capitalismo na experiência humana. A compreensão do "típico" e da totalidade já mencionados proporciona uma visão complexa da sociedade e da literatura, permitindo ao escritor realista retratar a essência das situações e sua relevância histórica. Essa abordagem crítica ressalta a importância da arte como instrumento de reflexão e resistência contra a alienação e a fragmentação da sociedade capitalista. Um outro ponto de vista teórico precisa ser adotado para sustentar melhor as análises desses objetos que estão inseridos nas categorias de contemporaneidade e de cultura brasileira. No ensaio "Realidade e Realismo (via Marcel Proust)” do livro Recortes, Antonio Candido (1993, p. 135) apresenta uma análise perspicaz sobre o conceito de Realismo na literatura, especialmente quando se trata da representação 41 da realidade na narrativa. Candido destaca que o “Realismo moderno”, que surgiu no século XIX e perdura até os dias atuais, tende a buscar aquela fidelidade documentária ao retratar o momento presente na narrativa. Entretanto, ele afirma que, mesmo dentro do Realismo, alguns textos mais abrangentes buscam algo além da mera representação objetiva, “buscando revelar a razão oculta por trás dos fatos narrados e das coisas descritas, bem como a lei que rege esses eventos ao longo do tempo” (p.135). Um dos aspectos fundamentais discutidos por Candido é a importância do uso do pormenor no Realismo literário (Candido, 1993, p. 136). Ele afirma que o pormenor possui uma dupla função na narrativa. Primeiramente, ele é utilizado para reforçar a aparência de realidade, conferindo verossimilhança à existência do objeto ficcional. Em segundo lugar, o pormenor é fundamental para a formação do sentido específico do texto e para garantir a coerência entre suas partes. Candido exemplifica essa ideia utilizando um trecho de Marcel Proust, em que a repetição do detalhe específico cria uma visão realista completa, permitindo ao leitor enxergar a história e as mudanças ao longo do tempo. Sobretudo, vale assimilar que esses pormenores, mencionados por Candido, são ditados pela voz narrativa e que essa voz narrativa apresenta domínio sobre eles. Candido (1993, p. 137) diz que o realismo vai além do simples registro dos detalhes. Ele enfatiza que a visão realista só se completa quando se leva em consideração as alterações trazidas ao pormenor pelo tempo, porque a duração é um elemento fundamental na representação da realidade, e Candido destaca que muitas vezes a especificação realista consiste em mostrar o efeito do tempo sobre os detalhes. Dessa forma, a história é introduzida no cerne da representação da realidade, tornando o realismo “mais profundo e complexo” (Candido, 1993, p.137). Citando Auerbach (apud Candido, 1993, p. 137), Candido ressalta que a imitação da realidade é, na verdade, a imitação da experiência sensorial da vida na terra. Uma das características essenciais dessa experiência é a presença da história, a mudança e o desenvolvimento. Portanto, o artista não deve privar a realidade dessas características em sua obra, pois são essenciais para a sua verdadeira representação. Antonio Candido colabora com esta argumentação dissertativa, pois argumenta que o realismo na literatura está intrinsecamente ligado à presença e ao 42 tratamento privilegiado do pormenor. Ele diz que “o detalhe descritivo funciona como uma tecla que permite modular a linha expressiva da narrativa” (Candido, 1993, p.138), tornando-a mais rica, significativa e próxima da realidade percebida pelos leitores. Através do uso cuidadoso e da especificação dos detalhes, o escritor pode construir uma representação ficcional que, embora possa não ser realista no sentido estrito das correntes literárias, “é real no sentido mais profundo” (Candido, 1993, p. 138). Essas perspectivas também retomam uma afirmação de Barthes (2007) sobre a literatura: A literatura assume muitos saberes. [...] É nesse sentido que se pode dizer que a literatura, quaisquer que sejam as escolas em nome das quais ela se declara, é absolutamente, categoricamente realista: ela é a realidade, isto é, o próprio fulgor do real. Entretanto, e nisso verdadeiramente enciclopédica, a literatura faz girar os saberes, não fixa, não fetichiza nenhum deles; ela lhes dá um lugar indireto, e esse indireto é precioso. Por um lado, ele permite designar saberes possíveis [...]. Por outro lado, o saber que ela mobiliza nunca é inteiro nem derradeiro; a literatura não diz que sabe alguma coisa, mas que sabe de alguma coisa; ou melhor, que ela sabe algo das coisas — que sabe muito sobre os homens. (Barthes, 2007, p. 17-18) A sua afirmação acima aborda a variada natureza da literatura, destacando sua capacidade de incorporar diversos saberes, transcender a mera representação da realidade e capturar a “essência” do real. Essas ideias se relacionam diretamente à análise da complexidade das obras de Hatoum, pois suas narrativas nos revelam múltiplas camadas de significado sobre a sociedade, o sujeito e seu contexto histórico. O conceito também é relevante para a análise das adaptações audiovisuais, já que oferece novas perspectivas e interpretações que complementam as leituras e análises. A diversidade das vozes narrativas e a alternância entre níveis narrativos e de realidade estudados a seguir nas obras de Hatoum refletem essa mesma diversidade e tensão que Barthes (2007) revela, contribuindo para um entendimento mais rico, alinhando-se com a ideia de que a literatura engrena o saber no rolamento da reflexividade, refletindo incessantemente sobre o saber de maneira propriamente literária. 43 Para um destaque sobre a complexidade e evolução do conceito de realismo na literatura, abordando várias perspectivas e nuances associadas à essa corrente literária, organiza-se as principais ideias e considerações sobre a literatura realista utilizando o texto Realismo: postura e método de Tânia Pellegrini (2007) para dar mais suporte aos argumentos ulteriores. O conceito de realismo na literatura, embora aparentemente óbvio, é um termo desafiador e impreciso (Pellegrini, 2007, p.137), especialmente ao considerar seu uso tanto no campo artístico quanto no literário. Inicialmente, o realismo estava vinculado à existência objetiva dos universais, as ideias independentes dos objetos percebidos, tornando-se sinônimo de idealismo. No entanto, ao longo do século XIX, a palavra evoluiu para descrever “um método e uma postura” (p.139) em arte e literatura. O realismo, como postura e método, nega a visão de que a arte está voltada apenas para si mesma, adotando uma abordagem que explora as questões concretas da vida cotidiana. A ideia de mostrar as coisas como realmente são é central, mas é reconhecida como uma “ilusão referencial” (Pellegrini, p.139), uma convenção presente em todas as linguagens e estilos artísticos. A visão de Roland Barthes destaca que a obra mais realista não é aquela que simplesmente pinta a realidade, mas aquela que explora profundamente a “realidade irreal da linguagem” (Barthes apud Pellegrini, 2007, p.140). Isso ressalta a importância da linguagem na representação da realidade na literatura. Especialmente no romance, o realismo esteve historicamente vinculado à representação fiel do real. Ao citar Tzvetan Todorov, Pellegrini (2007, p.142) destaca que, durante o século XVII, o realismo era considerado como um ideal, representando a perfeição a qual todos os discursos literários deveriam buscar alcançar. Nessa perspectiva, a literatura era vista como um meio de reproduzir a realidade de maneira precisa. Contudo, Pellegrini argumenta que mudanças sociais, como o desencanto com o projeto iluminista do século XVIII, modificações na percepção do tempo e o desenvolvimento de novas tecnologias, transformaram o terreno propício para uma redefinição da literatura realista. Em meio a essa “crise da representação” (Pellegrini, 2007, p.146), o escritor perde a segurança objetiva para interpretar a realidade. Com isso, vale lembrar que Antonio Candido (1993, p.123) já havia sugerido que a realidade pode ser mais bem compreendida em elementos que 44 transcendem a aparência dos fatos, questionando a eficácia do realismo estritamente concebido como a representação da naturalidade do mundo. Ao falar em representação, destaca-se a mimesis. A questão da mimesis, termo associado à representação, é trazida à tona, sendo essencial para Aristóteles na forma de verossimilhança, destacando a importância dos princípios organizadores e regras de composição na arte. O realismo, ao tornar-se dominante na literatura a partir do século XVIII, acentua a problemática da representação do mundo na ficção, carregando implicações culturais e conceituais milenares. A obra Mimesis de Erich Auerbach é mencionada como uma análise estilística e sócio-histórica, destacando a evolução do realismo ao longo da história. Auerbach (2005, p.341) propõe que o realismo moderno é caracterizado pelo tratamento sério da realidade cotidiana e pela vinculação de personagens e acontecimentos ao curso geral da história contemporânea. Conforme sinalizado pela crítica, já no século XX, em 1970, o campo filosófico empreende uma indagação profunda à concepção de realidade. A realidade não é mais percebida como algo estável e concreto, acessível por meio da observação e comparação. Em vez disso, ela é entendida como um processo contínuo, em constante transformação, escapando à estabilização conceitual. Longe de ser uma substância sólida e exterior ao sujeito, está agora fragmentada como uma soma de ilusões, como descrição mais plausível. Essa perspectiva desafia a noção tradicional de uma realidade objetiva e concreta e mergulha na complexidade da subjetividade humana. As diversas abordagens em torno do termo “realismo” refletem a complexidade e pluralidade de seus significados, uma complexidade que persiste até os dias atuais, demonstrando sua resiliência frente à chamada “crise da representação” (Pellegrini, 2007, p.146). Essas questões apontam para diferentes maneiras de interpretar os sentidos associados ao termo, indicando sua natureza abundante. Definido por Pellegrini (p.148) como uma relação essencial entre indivíduo e sociedade, o realismo não se esgota em nenhum desses termos, mas opera como uma mediação entre ambos. Essa perspectiva torna o realismo uma categoria fundamental na interpretação das narrativas contemporâneas, especialmente as de Milton Hatoum que compõem o objeto desta dissertação. Contrariando a ideia de que a sociedade é apenas um pano de fundo ou que os 45 indivíduos são simples ilustrações de aspectos dos modos de vida, Pellegrini ressalta o realismo como uma perspectiva holística que coloca a pessoa humana no centro das considerações, reconhecendo sua interconexão com a sociedade que a cerca (2007, p.154). A discussão avança para o realismo contemporâneo, especialmente na literatura brasileira pós-ditadura militar. O conceito de ficção contemporânea (Pellegrini, 2007, p.151) é introduzido, destacando transformações importantes nos modos de produção e recepção da literatura nesse período. Surge uma nova forma de realismo, fruto de um olhar feroz e específico da contemporaneidade, contrastando com as abordagens solidárias ou curiosas dos primeiros realistas. A evolução dessas mudanças, inicialmente alimentou o realismo com intenções políticas, documentais e pedagógicas. No entanto, na década de noventa, às vésperas do novo século, surgiu uma certa rejeição e reação contrária ao realismo. Pellegrini (2007, p.146-7) argumenta que a mudança de interesse nas representações da miséria é resultado de intervenções governamentais que, de certa forma, resolveram alguns dos pontos críticos que antes serviam de matéria-prima para a ficção. Diante das mudanças na percepção da realidade, a contemporaneidade questiona a viabilidade de alcançar objetividade genuína por meio da ficção. A maioria da crítica contemporânea rejeita a ideia de totalidade presente na compreensão do realismo, abraçando a fragmentação como o método mais adequado de representar a realidade. Essa rejeição tem raízes na noção de que a experimentação modernista representou um avanço qualitativo. A linguagem já não é percebida como um meio transparente, os personagens não podem mais ser concebidos de maneira “fotográfica”, e a confiança no enredo para revelar a significação dos fatos é abalada. O realismo, nesse contexto, torna-se inadequado para lidar com uma realidade transformada pelo estilhaçamento da experiência. Surge, assim, a indagação essencial sobre o papel do realismo, que, conforme Lukács (1969, p.131), seria considerado “forma mais alta de consciência literária”. A partir desse fator, Pellegrini questiona: “A desconfiança em relação à ficção implica um abandono total do realismo, ou se, ao contrário, sinaliza sua adaptação às demandas de um novo tempo?” (2007, p.147) 46 A resposta parece ser mais simples hoje do que em outrora: o conceito de realismo, mesmo em sua evolução contemporânea, permanece como uma ferramenta narrativa rica e renovável, necessária para expressar singularidades sociais e culturais específicas de cada período histórico. Nas palavras de Pellegrini (2007), se usa o conceito de realismo: [...] para significar uma tomada de posição diante de novas realidades (postura), expressas justamente na característica especial de observação crítica muito próxima e detalhada do real ou do que é tomado como real (método), que em literatura não só a técnica descritiva representou e muitas vezes ainda representa, ao lado de outras, podendo, deste modo ser encontrada em várias épocas, como refração da primeira. (Pellegrini, 2007, p.149) A representação realista, longe de constituir um retrocesso, continua sendo um recurso narrativo valioso para explorar muitas urgências e necessidades históricas nacionais. Ainda de acordo com o texto de Tania Pellegrini (2007), a autora parece caracterizar a obra de Milton Hatoum a especialmente o que ela chama de "regionalismo revisitado" (p.153) como um contraponto à crueldade muitas vezes associada a uma abordagem documental ou de urgência social na literatura contemporânea. Pellegrini utiliza a expressão "bálsamo para a crueldade corrosiva" (2007, p.153) e sugere que Hatoum, ao narrar sobre a experiência manauara, oferece uma alternativa ou uma espécie de alívio para a natureza áspera ou incisiva da realidade nortista que é frequentemente encontrada em abordagens documentais da literatura contemporânea. Ela destaca um toque de "lírica delicadeza" (p.153) presente no "realismo quase onírico da memória de seus personagens" (p.153) sugerindo que Hatoum incorpora elementos de realismo, mas em uma chave mais suave e poética, especialmente ao explorar a memória de seus personagens. Assim, a crítica parece reconhecer em Hatoum uma abordagem que utiliza elementos realistas, especialmente no contexto regional, mas que se destaca por sua sensibilidade poética e abordagem mais suave, talvez caracterizada como "realismo quase onírico da memória." Essa perspectiva pode ser interpretada como uma valorização da representação literária que, mesmo ao explorar as urgências históricas, busca uma expressão artística mais complexa e estilisticamente rica. 47 2.2 As vozes dos realismos A seguir estão as primeiras experiências analíticas dos objetos ficcionais listados, com base nas teorias apresentadas. Na intenção de continuar a discussão iniciada no capítulo anterior, as análises aparecem segundo a ordem dos objetos desde o início deste trabalho. Conforme já adiantamos, as obras audiovisuais cujo suporte teórico de análise é específico e por isso carece de exposição, serão examinadas com mais rigor no terceiro capítulo. 2.2.1 Os pormenores do realismo em Relato de um certo Oriente A riqueza referencial na obra de Milton Hatoum, especificamente Relato de um certo Oriente, será explorada nesta primeira análise. São destacados os fatores de como a disposição narrativa detalhada criada por Hatoum contribui não apenas para a construção dos personagens, mas também para a experiência do realismo, conectando essa abordagem à perspectiva comparativa de Antonio Candido (1993) em relação a esse realismo literário. Assim como Hatoum enriquece suas narrativas por meio de uma disposição referencial cuidadosamente construída, Antonio Candido (1993), em seus estudos comparativos, explora estratégias semelhantes, como evidenciado em sua análise das definições de realismo em trechos de Proust. Para provar uma primeira experiência, são apresentadas duas amostras: a primeira é aquela mesma oração extraída do primeiro romance de Milton Hatoum, Relato de um certo Oriente: “A atmosfera da casa estava impregnada de um aroma forte que logo me fez reconhecer a cor, a consistência, a forma e o sabor das frutas que arrancávamos das árvores que circundavam o pátio da outra casa.” (Hatoum, 2008, p.19); enquanto a segunda é um caminho analítico baseado nos estudos comparados de Antonio Candido (1993, p.136), que procurava provar as diferentes definições para o termo “realismo” e usava trechos do romance Em busca do Tempo Perdido, de Proust (1956, p.112 apud Candido, 1993, p.136). Com os exemplos 48 retomados, a experiência vem a seguir seguindo os mesmos modelos. Que se imagine a seguinte disposição da primeira amostra: A atmosfera... A atmosfera/ da casa... A atmosfera/ da casa/ estava impregnada... A atmosfera/ da casa/ estava impregnada/ de um aroma... A atmosfera/ da casa/ estava impregnada/ de um aroma/ forte... A atmosfera/ da casa/ estava impregnada/ de um aroma/ forte/ que logo me fez reconhecer... A atmosfera/ da casa/ estava impregnada/ de um aroma/ forte/ que logo me fez reconhecer/ a cor, ... ...que logo me fez reconhecer/ a cor,/ a consistência,... ... que logo me fez reconhecer/ a cor,/ a consistência,/ a forma... ...que logo me fez reconhecer/ a cor,/ a consistência,/ a forma/ e o sabor das frutas... ...que logo me fez reconhecer/ a cor,/ a consistência,/ a forma/ e o sabor das frutas/ que arrancávamos das árvores... ... que arrancávamos das árvores/ que circundavam... ...que arrancávamos das árvores/ que circundavam/ o pátio... ...que arrancávamos das árvores/ que circundavam/ o pátio/ da outra casa. (Hatoum, 2008, p.19) É fácil notar o repertório de referências na narrativa a partir do trecho acima. Por meio da disposição da primeira amostra do romance, é possível notar uma profícua quantidade de referências narrativas que são gradualmente adicionadas. As referências vão enriquecendo a experiência não apenas dos personagens, que lucram com a quantidade referencial de detalhes nos relatos sobre a morte de Emir, por exemplo, mas também de quem lê e participa das reflexões acerca dos fatos narrados. A estrutura narrativa da amostra é recorrente no romance, e quando apresentada de forma progressiva, quando começa com a simples menção a uma "atmosfera" e, em seguida, vai se desenvolvendo ao acrescentar detalhes como "da casa", "que estava impregnada", "de um aroma forte" e assim por diante, cria novos pontos de vistas, portanto, modula as linhas expressivas da narração minuciosamente. Isto é, essa construção gradual de elementos sensoriais cria uma atmosfera rica e vívida, permitindo uma leitura que de tantos detalhes parece uma descrição de uma memória real. 49 A riqueza referencial não apenas aprimora a experiência dos personagens como visto nas nuances dos relatos sobre a morte de Emir, mas também caracteriza uma jornada mais profunda e envolvente de reflexão sobre os eventos narrados. A atmosfera cuidadosamente impregnada de detalhes não apenas cria um senso tangível de realidade, mas também instiga a imaginação a partir da representação, ao passo que a atmosfera detalhada de Hatoum pode transcender e revela não apenas a singularidade da narrativa, mas também os pontos de contato entre obra literária e mundo. O exercício analítico de Antonio Candido (1993, p. 136), baseado nos estudos comparados, procura provar as diferentes definições para o termo "realismo", utilizando o trecho do romance Em busca do tempo perdido, de Proust (1956, p.112 apud Candido, 1993, p.136). Esse trecho específico é cuidadosamente dissecado para mostrar como o uso sucessivo de detalhes específicos, a partir de uma simples menção ao "sol", vai se expandindo até incluir detalhes como "iluminava", "até meia altura", "um renque de árvores" e assim por diante. Nesse contexto, Candido destaca a eficiência da combinação entre a multiplicação do pormenor, sua especificação progressiva e o registro de suas alterações no tempo, que são fundamentais para a representação realista em muitas literaturas. Ambos os exemplos retomados, tanto o de Hatoum aqui, quanto o de Proust, citado por Candido, demonstram como a utilização cuidadosa do pormenor é essencial para a construção de uma representação realista na narrativa. No primeiro exemplo, a progressão narrativa da atmosfera impregnada de um aroma forte até o reconhecimento das cores, consistência, forma e sabor das frutas proporciona uma experiência sensorial, de fato, profunda e complexa. Da mesma forma, o exemplo de Proust mostra como o uso sucessivo de detalhes cria uma visão realista completa da cena descrita, permitindo que o leitor visualize o sol iluminando até meia altura um renque de árvores que margeia uma estrada de ferro. Esses exemplos ilustram o argumento de Candido (1993, p. 137) sobre a importância do pormenor na construção de uma representação ficcional realista. Através da multiplicação do pormenor, sua especificação e a inclusão das alterações trazidas pelo tempo, a narrativa ganha profundidade, autenticidade e coerência. De fato, “o detalhe funciona como uma tecla” (p.137) que, juntamente com outros elementos, permite modular a linha expressiva da representação ficcional, 50 tornando-a mais rica, significativa e próxima da realidade percebida pelos possíveis leitores. A análise dos exemplos apresentados por Hatoum reforça o papel fundamental do pormenor na representação realista na literatura. Através da cuidadosa disposição narrativa e da especificação progressiva de elementos, os escritores podem criar narrativas envolventes e imersivas, permitindo uma experimentação da realidade de forma ficcional verossímil, mas autêntica e emocionalmente significativa. A análise de Antonio Candido proporciona uma visão profunda sobre o processo de construção da representação realista na literatura, demonstrando como a eficiência do uso do pormenor está intrinsecamente relacionada à eficiência da representação como um todo (Candido, 1993, p. 136). Sendo assim, os outros textos de Milton Hatoum e objetos desta dissertação estão todos alinhados à mesma investigação do pormenor. No entanto, além de simplesmente conferir pormenores narrativos, as próximas análises servirão para discutir noções mais específicas sobre o domínio da voz narrativa quanto a essa questão da categoria realista. 2.2.2 Os pormenores do realismo em Dois irmãos Sabe-se que Dois irmãos, o segundo romance de Milton Hatoum (2006), contrasta o tema do afeto fraternal e familiar. A trajetória do discurso narrativo simula ambiguidades constantes ao menos desde o título. Agora, será possível questionar também como o contraste de Dois irmãos com a obra de estreia de Hatoum, não só no tema, mas nas categorias de voz narrativa, colabora com a argumentação desta dissertação. A partir da análise dos exemplos a seguir, todos de Dois irmãos, será possível observar que a busca por criar realidades diegéticas verossímeis, repletas de pormenores e com uma voz narrativa coerente, contribui para instigar a reflexão sobre as realidades amazônicas retratadas por Hatoum. Para fornecer mais contexto sobre a mudança de tema entre os dois primeiros romances de Hatoum, a análise focaliza, neste tópico, Dois irmãos. Quando comparados, o segundo romance de Hatoum, Dois irmãos (2006), com sua obra de 51 estreia, Relato de um certo Oriente, é possível observar subitamente algumas mudanças significativas no domínio da voz narrativa. Em primeiro lugar, enquanto no primeiro romance a narrativa é apresentada sempre em terceira pessoa, em Dois irmãos ela assume a primeira pessoa. A transição de uma narrativa em terceira pessoa para a primeira pessoa é marcante. Conforme proposto por Genette (1979), essa mudança na voz narrativa impacta diretamente a focalização da história, permitindo ao narrador apresentar perspectivas mais subjetivas e íntimas. Por exemplo, trechos como