Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho Campus de Araraquara Faculdade de Ciências e Letras Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Lourenço Cardoso O branco ante a rebeldia do desejo: um estudo sobre a branquitude no Brasil Araraquara 2014 Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho Campus de Araraquara Faculdade de Ciências e Letras Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Lourenço Cardoso O branco ante a rebeldia do desejo: um estudo sobre a branquitude no Brasil Araraquara 2014 Tese apresentada como requisito para obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais pela Faculdade de Cências e Letras da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho Campus de Araraquara sob a orientação do Professor Doutor Dagoberto José Fonseca Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho Campus de Araraquara Faculdade de Ciências e Letras Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Lourenço Cardoso O branco ante a rebeldia do desejo: um estudo sobre a branquitude no Brasil Banca Examinadora ________________________________________________ Presidente e Orientador: Prof. Dr. Dagoberto José Fonseca – Unesp/Araraquara, SP. ________________________________________________ Membro Titular: Prof. Dr. Bas’ilele Malomalo - Unilab/Redenção, CE. ________________________________________________ Membro Titular: Prof. Dra. Sônia Maria da Silva Araújo - UFPA/Belém, PA. ________________________________________________ Membro Titular: Prof. Dr. Antonio Rago Filho – PUC/São Paulo, SP. ________________________________________________ Membro Titular: Prof. Dra. Renata Medeiros Paoliello – Unesp/Araraquara, SP. Tese defendida e aprovada em ------------/------------/------------------------------ Araraquara 2014 Dedico esta tese à Margarida da Conceição Cardoso e Lourenço Bispo Cardoso, mãe e pai com todo o meu reconhecimento Meus agradecimentos À minha família. À Capes – Coordenação de Aperfeiçoamento ao pessoal de nível superior Ao meu orientador, o Prof. Dr. Dagoberto José Fonseca, de modo mais especial pelo caminho que trilhamos juntos e muito, muito mais. Às pessoas com quem dialoguei na entrevista. Para Tatiana Moisés e Cleide Barbosa pela revisão gramatical. Aos meus colegas do CLADIN – Centro de Estudos das Culturas e Línguas Africanas e das Diásporas Negras da UNESP. Aos professores e aos colegas do programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais. A Ana Maria Isidoro, Luciano Miranda, Marcelo Oliveira, Regiane de Oliveira, Boaventura de Sousa Santos, Rosemeire Barbosa da Silva, Fran, Milton Lahuerta, Amailton Azevedo, Acácio Almeida, Sandro Oxay, Victor Martins, Allene Lage, Rita de Cássia Camargo. São inúmeras as pessoas. Peço desculpas para quem não nomeei. Camila Massaro, Mauricio Fogonholo, Maria Paula Meneses, Renata Medeiros Paoliello, Alessandra Santos Nascimento, Aline Neves, Regina, “Trovão”, Petra, Elísio Estanque, Lassalete Paiva, Élida Lauris, Lia Vainner Schucman, Ana Helena Passos, Nilma Lino Gomes, Edmar Silva, Ricardo, Edson, Elísio Macamo, Ana B, Alice Cruz, Cristiana Gaspar, Lennita Ruggi, Miguel Arroyo, Marcos Lúcio, Felipe Moraes, Lindomar Oliveira, Hélio Santos, Cuti ( Luíz Silva), Márcio Barbosa, Mara Hissa, Esmeralda Ribeiro, Daniel Bento, Hélen, Antônio Rago Filho, Vera Lúcia Vieira, Dyi, Márcia Lopes, Mauricio Oliveira, Odir Züge Jr., Claudio Ganda, Jadilson Vigas, José Vicente, Mauricio Machado, Mário Machado, “Neném”, “Pelé, “Zé-Zóio”, “D. Rufina”, “Zóio”, Wilson Lírio “Gigio”, Rubens, Edmar Rocha, Francisca Rodrigues, Lina Moreira, Cris Linhares, Margarida da Conceição Cardoso, Lourenço Bispo Cardoso, Luzinete da Conceição Cardoso, Leonardo da Conceição Cardoso, Eliete da Conceição Cardoso, Leandro da Conceição Cardoso, Fernanda da Conceição Cardoso, João da Cruz Cardoso, Ademir Xavier, Cristina Xavier, Clayton Xavier, Marcelo Xavier, Cosme Xavier, Márcio Xavier. Para todas as pessoas que de alguma forma colaboraram com esta tese A Lindelso da Conceição Cardoso (em memória) A José Nilson Cardoso (em memória) A Élcio o “Careca” (em memória) A Paulo Sérgio da Cruz (em memória) Resumo Esta tese O branco ante a rebeldia do desejo objetiva analisar o branco pesquisador que estuda o negro, a cultura, o “universo” negro, etc. A questão central é a seguinte: Por que o branco pensa o Outro e não em si? Ante a esse propósito, optei pela técnica da entrevista, visto que, foi a forma mais direta que encontrei para colher a informação que pretendia. A pesquisa que realizei foi qualitativa e fiz o uso das análises de discurso e de conteúdo para colaborar com a interpretação dos dados. “Vossa Excelência, o branco”, é a figura fundamental deste trabalho. Na primeira parte, procurei conhecê-lo por meio de uma análise histórica e também no contraste com o negro. Além disso, realizei uma autorreflexão com base no pressuposto de que o conhecimento científico possui uma característica subjetiva. Na segunda parte, abordei algumas características culturais e psicológicas da branquitude contemporânea e dialoguei com os acadêmicos que entrevistei. Em nossa interação, tratamos de temas e problemas das relações raciais, sem deixar de perder o foco da problemática principal. Durante a pesquisa, optei também por entrevistar o pesquisador branco que estuda o próprio grupo. A minha intenção foi conhecer sua perspectiva a respeito do seu colega “que pensa o Outro”, levando-se em conta que “ele pensa em si”. Por causa do perfil diferente de pesquisadores surgiu um pequeno contraponto a respeito do problema racial. Para o primeiro (grupo de pesquisadores) seria um “problema do negro”, enquanto, o segundo, considera como um “problema do branco”. Quanto ao arcabouço teórico, dialoguei com a teoria nacional e internacional referente à raça, com maior ênfase aos estudos referentes à branquitude. A mais, fiz uso dos estudos “descoloniais” e da epistemologia clássica. Palavras-chaves: branquitude, branquitude acrítica, brancura, branco-centrismo. Abstract This thesis “White people facing the rebellion of desire” analyzes the white researcher who studies black people, black culture, the “black universe” etc. The central question is: Why does the “white” think about the Other instead of himself? For this purpose, I've chosen the interview technique, the most direct way for me to collect the information I wanted. I’ve conducted a qualitative research using the method of discourse analysis and also content analysis to help me with the data interpretation. “Your Excellency, the white" is the key figure of this work. In the first part, I’ve tried to make acquaintance to this persona through historical analysis, opposing it to the black persona. In addition, I’ve performed a self-reflection based on the assumption that scientific knowledge has a subjective characteristic. In the second part, I’ve discussed some cultural and psychological characteristics of contemporary whiteness dialoguing with the academics I’ve interviewed. In our interaction, we’ve dealt with racial relations issues and problems, focusing on the main idea. During the investigation I’ve also chose to interview the white researcher who studies his own group. My intention was to know his perspective about the colleagues who “think about the Other” – taking into account that “he thinks about himself”. A small counterpoint about the racial problem aroused because of all the different researchers' profiles I used. For the first group of researchers it would be a “problem of blacks”, while the second group considers it a “problem of whites”. Regarding the theoretical framework, I’ve dialogued with national and international race theory, with greater emphasis on studies related to whiteness. Furthermore, I’ve used decolonials studies and classical epistemology. Keywords: whiteness, uncritical whiteness, white-centrism, whiteness. (Depoimento de Alice durante a entrevista para esta tese) Eu vejo muita arrogância acadêmica por parte do pesquisador branco. O cientista utiliza o Outro como objeto de pesquisa. No entanto, não permite que a “ameba” saia do frasco para interrogá-lo. Isto é, perguntar sobre os motivos que o leva a analisá-lo. O pesquisador tem medo de se expor, além disso, tem o fato de ser uma entrevista falada, de repente, ele pode dizer alguma coisa que se arrependa depois. Índice Prefácio ......................................................................................................................................17 PARTE I - O BRANCO-CENTRISMO E A REBELIÃO DOS "OBJETOS" Capítulo 1: A construção histórica do branco não-branco 1. Prólogo .....................................................................................................................................25 2. O branco português ...................................................................................................................27 2. 1. O degredado, o branco mais degenerado entre os degenerados ...........................................28 2. 2. Ser branco transcende a cor ...............................................................................................31 2. 3. Europeu, português ou branco? .........................................................................................33 3. A “cegueira” do branco fruto da colonização .............................................................................34 3. 1. A escravidão e a estereotipação do branco português ....................................................36 4. O branco brasileiro, a branquitude “mais preta” .........................................................................39 4.1. O branco não-branco [“americano”] e o negro exceção.......................................................42 4.2. A parte negra do branco e os limites para a “manipulação” do corpo .................................45 5. O branco não-branco [americano] e “o mundo que o português criou” .......................................47 5.1. A raça regeneradora e o branqueamento do branco não-branco .......................................... 48 6. O branco na cultura negra e o essencialismo ..............................................................................52 6.1. O moreno, a brancura e a mulata ........................................................................................55 6.2. A branquitude, o mestiço, a tecnologia e a maquiagem ......................................................57 7. O branco-branco, o branco imigrante.........................................................................................59 7.1. O branco brasileiro ser não “hifenizado” e a oposição binária .............................................60 8. Epílogo .....................................................................................................................................62 Capítulo 2: A negritude e a humanização do branco TOMO I 1. Prólogo um ...............................................................................................................................67 2. O modo de pensar da razão dual racial ......................................................................................67 3. O modo de pensar da razão dual racial e a episteme do negro ....................................................69 4. O modo de pensar da razão dual racial e a branquitude ..............................................................70 5. O modo de pensar da razão dual racial e a invisibilização dos Outros. .......................................72 6. O modo de pensar da razão dual racial e o mestiço ....................................................................73 7. O mestiço para além do modo de pensar da razão dual racial .....................................................76 TOMO II 1. Prólogo dois ..............................................................................................................................77 2. A construção social da idéia de negro e o branco e a espera de confirmação ..............................78 3. O desejo e a repulsa: o complexo de superioridade e o de inferioridade .....................................80 4. A persistente reinvenção da imagem do negro como “escravo” e a do branco como “senhor” ....83 5. O negro amaldiçoado e o “fardo do homem branco”. .................................................................85 6. A negritude indesejável, o branco moderno e o tempo ...............................................................88 7. A negritude moderna desejável .................................................................................................90 8. A negritude desejada e a negritude indesejável ..........................................................................93 9. A negritude, o teórico da branquitude e o branco “consciente”...................................................95 10. A personalidade “negro-cêntrica” e o incômodo branco ..........................................................97 10.1. O espaço “negro-cêntrico” e o desejo branco de ser “preto” ..............................................99 10.2. O espaço “negro-cêntrico”, a branquitude inibida e a sensação de fracasso .................... 100 11. O branco-centrismo e a cultura negra. ................................................................................... 102 11.1. O branco-centrismo em Salvador.................................................................................... 103 12. A negritude a visibilização e a humanização do branco ......................................................... 105 13. Epílogo geral: A negritude a positivação e a humanização do branco ..................................... 108 Capítulo 3: Autorreflexão: A rebeldia do desejo 1. Prólogo: A autorreflexão como opção teórico-metodológica .................................................... 111 2. Um negro, “Preto Sem Sobrenome” ........................................................................................ 112 3. O lugar de onde falo? A positivação e a restrição..................................................................... 113 3.1. O negro e a liberdade de não-ser ..................................................................................... 114 4. Estudar o branco não é uma questão ........................................................................................ 116 5. O branco sob suspeita ............................................................................................................. 118 6. O sujeito oculto o teórico branco ............................................................................................. 118 7. O pesquisador negro e o objeto branco .................................................................................... 119 8. O racismo é uma brutalização ................................................................................................. 122 9. Um breve retrato do branco ..................................................................................................... 123 10. A pesquisa de mestrado ......................................................................................................... 127 11. Procedimentos teórico-metodológicos ................................................................................... 128 11.1. As entrevistas e as recusas .............................................................................................. 132 12. O campo ............................................................................................................................... 135 13. O branco genérico e o branco particular................................................................................. 136 13.1. O espaço ........................................................................................................................ 137 PARTE II - VOSSA EXCELÊNCIA O BRANCO Capítulo 4: O branco dissimulado 1. Prólogo ................................................................................................................................... 142 2. O branco Drácula .................................................................................................................... 142 3. O branco Narciso .................................................................................................................... 148 4. O branco Drácula-Narciso dissimulado de universal ................................................................ 152 4.1. O branco um ser em evidência, oculto .............................................................................. 157 5. O branco Drácula-Narciso e a História .................................................................................... 159 6. O branco-Narciso e a beleza como concessão .......................................................................... 164 7. A branquitude Acrítica revisitada e as “Críticas” ..................................................................... 169 7.1 Crítica e Acrítica e o Conteúdo ......................................................................................... 175 7.2 A Teoria Crítica e a crítica da Crítica crítica ...................................................................... 177 7.3 O branco acrítico pelas entrevistas.. .................................................................................. 179 8. A branquitude e a branquidade: o concreto e abstração ............................................................ 181 9. Epílogo ................................................................................................................................... 184 Capítulo 5: O branco e “o não pensar em si" 1. Prólogo ................................................................................................................................... 188 2. A análise da pesquisa .............................................................................................................. 188 3. O pensar em si: A perspectiva dos pesquisadores brancos do branco-tema ............................... 247 4.O branco-centrismo e os outros temas por eles mesmos ............................................................ 252 4.1 O branco-centrismo.. ......................................................................................................... 252 4.2 O espaço negro-cêntrico e a branquitude inibida.. .............................................................. 254 4.3 The White trash: o branco “lixo” estadunidense................................................................. 255 4.4 A branquitude, o Direito e a Propriedade.. ......................................................................... 256 4.5 A branquitude e a reinvenção dos estereótipos racistas.. .................................................... 257 4.6 O problema do branco.. ..................................................................................................... 258 5. Epílogo: Considerações breves ................................................................................................ 258 Conclusão Autorreflexões finais: Eu partilho o mundo, não sou dono........................................................... 263 Algumas conclusões .................................................................................................................... 265 O branco pesquisador, o cientista ............................................................................................... 269 O pensar em si num diálogo com as metáforas ............................................................................ 269 Bibliografia geral .......................................................................................................... 274 Apêndice ....................................................................................................................... 286 17 Prefácio Esta tese O branco ante a rebeldia do desejo: um estudo sobre a branquitude no Brasil analisa o branco pesquisador que estuda o negro-tema1. A questão central é a seguinte: o que leva o acadêmico branco a pesquisar o negro e esquecer-se de si? No que concerne à branquitude significa pertença étnico-racial atribuída ao branco. Podemos entendê-la como o lugar mais elevado da hierarquia racial, um poder de classificar os outros como não-brancos, dessa forma, significa ser menos do que ele. Ser branco se expressa na corporeidade, isto é, a brancura, a expressão do ser2, e vai além do fenótipo. Ser branco consiste em ser proprietário de privilégios raciais simbólicos e materiais. Ser branco significa mais do que ocupar os espaços de poder. Significa a própria geografia existencial do poder. O branco é aquele que se coloca como o mais inteligente, o único humano ou mais humano. Para mais, significa obter vantagens econômicas, jurídicas, e se apropriar de territórios dos Outros. A identidade branca é a estética, a corporeidade mais bela. Aquele que possui a História e a sua perspectiva. No ambiente acadêmico ser branco significa ser o cientista, o cérebro, aquele que produz o conhecimento3. Enquanto ser negro significa ser o objeto analisado por ele. Justamente com base nesse antagonismo branco pesquisador e negro objeto que propus o título principal desta tese: “A rebeldia do desejo”. A metáfora diz que o objeto se rebelou e resolveu estudar o pesquisador. Lembrando que, na epígrafe, Alice nos revela que o cientista branco não permite “que a ‘ameba’ saia do frasco para interrogá-lo”. Digamos que, nesta tese, a “ameba” saiu do frasco e revoltou-se. O “objeto negro”, aquele que é um “objeto” de “repulsa” e de “desejo”4, rebelou-se. Em outras palavras, ocorreu a “revolta dos objetos”; “a rebelião do desejo”; “a rebelião da ameba”; “a revolta do micróbio”5. Diante disso, nos resta a seguinte pergunta, no que consiste a rebelião? Ela resume-se no deslocamento do branco acadêmico do lugar de pesquisador para o de 1 Termo cunhado por Guerreiro Ramos, (1995 [1957])a. 2 Cf. Fonseca, 2000. 3 Cf. O Capítulo 1, 4 e 5 e as seguintes referências: (Carone, Bento, 2002a; Ware, 2004a; Cardoso, 2008; Sovik, 2009; Shcucman, 2012). 4 Principalmente nos primórdios da Antropologia. 5 Um sociólogo branco de prestígio, um dos pilares da epistemologia do negro, realizou um trabalho de campo no Teatro Experimental do Negro (TEN). Ao final do seu trabalho foi questionado a respeito de suas conclusões pelos membros do TEN. O intelectual respondeu aos ativistas, entre eles, Abdias do Nascimento, como um “micróbio pode questionar o cientista a respeito de sua pesquisa?” Em suma, seria um absurdo o objeto negro questionar o cientista branco. Cf. (E, Nascimento, 2003). O branco ante a rebeldia do desejo 18 “objeto”6. Depois, no segundo momento, é perguntar para esses pesquisadores, por que não pensar em si? Em termos de organização estrutural, O branco ante a rebeldia do desejo está dividido neste Prefácio, cinco Capítulos e a Conclusão. No Capítulo 1, analisei o branco através de uma análise histórica desde o contato entre o português e o nativo pré-colombiano até chegar ao início da industrialização no Brasil. O propósito foi voltar os olhos para a História com o foco no branco. O método empregado objetivava visibilizar a branquitude diluída nas narrativas históricas no emprego de conceitos como “brasileiro” e “japonês”7. Além do mais, o conceito branquitude foi utilizado para rever a ideia de mestiço e branqueamento e outros temas. Um dos argumentos centrais deste Capítulo foi a ideia de que a branquitude brasileira possui a característica de não-branquitude marcante desde sua herança ibérica. Em outras palavras, ser branco brasileiro signfica possuir um aspecto de não-branquitude. Ser branco brasileiro significa ser branco não-branco. No Capítulo 2, procurei visibilizar o branco através do contraste com o negro. Nessa busca, trilhei as narrativas metafíscias como a Bíblia, passei novamente pelo Brasil colonial. A concepção teórico-metodológica na qual me baseei foi à dialética hegeliana8 e a “sociologia das ausências e das emergências”, de Boaventura de Sousa Santos9. O negro apareceu de forma mais aguda neste Capítulo, principalmente, quando distingui a negritude positivada e a não positivada. Isso foi necessário para pensar a hipótese de uma branquitude positivada. Nesta parte, também realizei uma crítica ao modo de pensar racial. Ou melhor, fiz uma breve análise crítica do conhecimento racial. Assim, foi possível apontar a virtude e a limitação desse modo de pensar o qual nomeei como razão dual racial. No Capítulo 3, detalhei minha metodologia, as concepões teórico-metodológicas. Além do mais, realizei uma autorreflexão com a intenção de pensar sobre as minhas escolhas, motivações e a negritude implicada na análise. Enfim, o negro aparece nesta tese sob dois prismas principais: (a) a perspectiva do autor; (b) pelo método de contraste com objetivo de problematizar o branco. Quanto à questão de ser negro, neste ponto, vou desde a afirmação da negritude positivada até a possibilidade da total recusa dessa identidade racial, numa concepção a qual defino como progressista. 6 Neste deslocamento, o branco não se tornou um “objeto” tradicional, isto é, um não sujeito histórico, uma pessoa sem voz, de “cérebro irrelevante”. Ele é um protagonista desta tese. Contudo, ela é realmente conduzida por um pesquisador negro. 7 Os conceitos podem ser entendidos como identidade nacional ou étnica conforme o contexto. 8 Hegel, 2005. 9 Santos, 2006a. Prefácio 19 No Capítulo 4, analisei as fontes primárias. O branco contemporâneo é aquele que foi pensado nesta ocasião. No desenvolvimento das ideias fiz uso de algumas metáforas para descrevê-lo. Como é caso do branco Drácula e do branco Narciso. Ainda, nesta parte, retomei e aprofundei o conceito branquitude acrítica10. O meu objetivo foi dialogar com as recentes produções referentes à branquitude que fizeram uso do conceito. A mais, abordei os conceitos branquitude e branquidade, novamente, através do debate com a produção científica atual. Eles que propõem o aprofundamento da distinção entre os dois termos. Em síntese, a branquitude seria a identidade branca positivada e a branquidade a identidade racial branca não positivada. No Capítulo 5, analisei a pesquisa, utilizei a análise de conteúdo e de discurso para contribuir com a interpretação. Além disso, procurei conhecer o ponto de vista dos pesquisadores brancos que investigam o branco-tema a respeito “de se pensar o Outro”. Para mais, retomei alguns termos e destaquei alguns temas que apareceram durante a entrevista. Os termos são: “branco-centrismo”, “o espaço negro-cêntrico” e “branquitude inibida”. E os temas: “o branco ‘1ixo’ estadunidense”; “a branquitude o Direito e a Propriedade”; “a branquitude e a reinvenção dos estereótipos racistas” e “problema de branco”. A parte seguinte refere-se à “Conclusão” foi o momento onde retomei alguns pontos e finalizei a tese. 10 Propus este conceito no trabalho anterior, Cf. Cardoso, 2008. PARTE I O BRANCO-CENTRISMO E A REBELIÃO DOS “OBJETOS” Capítulo 1: A construção histórica do branco não-branco A construção histórica do branco não-branco 25 1. Prólogo O tema principal deste Capítulo 1 é o branco brasileiro, as vicissitudes de ser branco. A começar pela matriz ibérica: portuguesa, o branco português é o colonizador do território que se tornou continental. Quem foram os primeiros portugueses a “semear” o que se tornaria o povo brasileiro? A não-branquitude é uma das suas características marcantes, originária de sua mistura biológica e cultural com mouros, judeus, ciganos e africanos. Mestiçagem que potencializa seus vícios e diminui suas virtudes. Além disso, os primeiros a desembarcarem no Novo Mundo serão os degredados, diga-se de passagem, a pior espécie de lusitanos, por isso, foram condenados a abandonarem sua nação. Será o degredado, o menor em hierarquia entre os próprios brancos portugueses, o primeiro colonizador de suas novas terras. Para o inglês, o português era um selvagem, um branco não-branco, entendem-se (branco menos branco), um branco degenerado em decorrência de sua mistura com outros povos ao longo dos séculos. O capítulo sempre analisa, em ocasiões oportunas, a questão do anacronismo, ou seja, a atribuição de conceitos e valores contemporâneos a fenômenos do passado (Campos, 1999, p. 29-32), para ilustrar, seria correta a definição branco português? Seria uma questão de cor? A denominação mais adequada, não seria por raça ou cor, e sim, por espaço, nacionalidade, isto é, europeu? Português? De repente, também branco? O branco português, assim como optei defini-lo, será o colonizador de um território continental. A tarefa causa-lhe impacto, entre eles, a “cegueira” (Santos, 2002, p. 226-228), significa isto, a falta de enxergar o Outro como igual em humanidade. Tal característica não se restringe ao colonialismo de matriz ibérica, diz respeito a todos os colonialismos. A escravidão também afetou o português, tornando-o estereótipo, memória de um passado indesejado. A sociedade brasileira enfraqueceu ou invisibilizou sua imagem, ao caminhar para industrialização. O branco português cristalizou-se como estereótipo, etnia, a partir do momento em que novos atores entravam em cena, ou mais propriamente, o branco- branco: branco italiano e outros europeus. Para o Brasil que se queria moderno, que ansiava embranquecer, o branco português tornou-se desimportante, o branco menos branco passou a significar a corporificação de uma história que não interessava mais. O branco brasileiro? Por acaso, alguém já viu um? (Sovik, 2004, p. 363-386). Estou plenamente convicto que existe, digo mais, “ele está entre nós”. Os “brancos brasis” possuem uma branquitude “mais preta”, porém, não deixa de existir. O branco brasileiro fruto do branco português, com a indígena e o africano em sua matriz. Logo, é um branco não-branco O branco-centrismo e a rebelião dos “objetos” 26 piorado, “uma raça triste”, como diria Paulo Prado (Brookshaw, 1983, p. 99)1. Resgatando que o branco português é também um branco não-branco, isso significa menos branco se comparado ao branco inglês, isso diz respeito à hierarquia entre os próprios brancos. O branco brasileiro revigorou a não-branquitude do branco português, de origem judaica, moura, africana, simplesmente, por descender do branco não-branco português e outros não-brancos: indígenas e africanos. Ser branco brasileiro também pode ser considerado uma pessoa de valor. O branco, nos dias de hoje, nem sempre rejeita a sua parte negra. A herança cultural e biológica não- branca, não-européia pode ser considerada positiva. Entretanto, o branco que deseja tornar-se mais branco, entenda-se virtuoso, moderno, mais belo, ambiciona embranquecer, no sentido de modernizar. Neste particular, embranquecer significa “estadunizar-se”, porque é a “branquitude referência” contemporânea. O branqueamento alcança-o em sua intenção de ser mais branco, de se colocar numa hierarquia racial superior entre os próprios brancos. Ainda neste capítulo, ao abordar o branco que não recusa sua parte negra, falarei de sua interação com a cultura negra, da relação entre a branquitude e a morenidade, da branquitude e da busca de um leve escurecimento, isto é, bronzeamento. Tratarei ainda de temas que rompem os paradigmas modernos sobre o significado de ser branco e outras identidades raciais. Veja-se, por exemplo, a possibilidade do branco e do negro inverter brancura por negrura e vice-versa, com a técnica de maquiagem, além do que a ciência e a tecnologia podem proporcionar no presente e no futuro próximo. Diante disso, tornará mais complexo a classificação social: branco, negro, japonês, etc. Numa ideia, diria que a imigração foi uma opção brasileira para se distanciar da história da colonização, nesse ponto de vista, ser moderno significava tornar-se branco. Daqui se entende, o incentivo a imigração do branco da Europa central: brancos “alemães” e “italianos”2. Em outro período histórico, a composição brasileira torna-se mais complexa, refiro-me à chegada de imigrantes não-brancos, não-europeus, nomeadamente, o libanês, o sírio, o japonês e o chinês. Diante da questão dos seus descendentes tornarem-se brancos no Brasil, eles terão a opção desde que a corporeidade permita, mesmo que seja numa brancura bronzeada. O novo ciclo de imigrantes não-europeus, não necessariamente se tornou identidades hifenizadas. De forma semelhante ao português, italiano, alemão3 podem optar 1 A raça triste diz respeito a todos brasileiros, não somente os brancos. 2 No caso de brancos “alemães”, refiro-me também às pessoas que vieram para o Brasil mesmo antes e durante o processo de formação do seu Estado nacional. Pois, é dessa forma que eles se afirmam quando se refere a sua origem: descendente de Alemães. Estou ciente, dos equívocos que nos colocam os termos anacrônicos. 3 et al. A construção histórica do branco não-branco 27 por fazer uso do hífen ou torná-lo oculto, por exemplo, luso-brasileiro, ítalo-brasileiro, teuto- brasileiro. Os sírio-libaneses podem se tornar apenas brancos, brasileiros, desde que possuam brancura e nenhum outro marcador de diferença que revele sua matriz familiar, caso de uma roupa que remeta à etnia ou à nova etnia (Hall, 2005, p. 82-89). O nissei (Nikkei), descendente do japonês, não desfruta desta opção4. Geralmente é classificado como japonês, ou seja, estrangeiro. Ele para reivindicar a identidade nacional pode utilizar o hífen (Lesser, 2001, 17-34), autodefinir-se: nipo-brasileiro. Os descendentes de chineses da mesma forma, podem se intitular sino-brasileiro. Diferente daquele imigrante não-europeu com traços da brancura, pois, pode escolher por manter o hífen oculto, ou não, o hífen não será necessário para ser considerado: brasileiro, “branco-brasileiro”. 2. O branco português O branco português é um branco miscigenado, assim como nos lembra Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro. O povo ibérico (português e espanhol) foi colonizado por, aproximadamente, seis séculos pelos mouros (Marques, 1997, vol, 1 p. 58-69). Logo, eram povos misturados, biologicamente e culturalmente, por povos não-ocidentais, povos não-cristãos, como no caso dos mouros (Freyre, 2001, p. 80-86). Além do mais, o clima quente do território português levava-os a serem considerados mais próximos da população de certas regiões africanas e asiáticas, enquanto a Europa-central apresentava clima mais ameno ou realmente frio. Isso tudo significa que os portugueses eram considerados pelos ingleses como “os negros” ou os “não-brancos da Europa” (Santos, 2006b, p. 211-255). Portanto, poderíamos dizer que o português é o negro da Europa, o não-branco da Europa, justamente, esse branco não-branco que colonizou o território continental, conhecido hoje como Brasil. O branco português torna-se branco, belo, inteligente, “civilizador”, desenvolvido5 no contato com outros “mais-não-brancos” do que ele. No encontro entre os “dois mundos” salienta-se a comparação fenotípica e cultural. Primeiro entre o português e o “índio”; segundo entre o português e o africano, classificados, respectivamente, como “negro da terra” e “negro de guiné” (escravo da terra e escravo de guiné) (Alencastro, 2000, p. 44). Para abreviar, diria que é justamente no contraste com o “Outro”, (leia-se, “negro da terra”, “negro 4 De repente com uma intervenção cirúrgica, isto também será abordado neste capítulo. 5 Idem. O branco-centrismo e a rebelião dos “objetos” 28 de guiné” ou “peça de guiné”) que o “negro da Europa” torna-se branco. Ressalto “branco- Aqui” na “terra brasilis”; “não-branco-Lá” na Europa Central. De forma geral, o branco não-branco, ou “branco-Aqui”, que colonizou, “civilizou,” terra e gente, no futuro, seus descendentes tornar-se-ão brancos brasileiros, quando o fenótipo permitir, principalmente. Os brancos não se tornarão identidades “hifenizadas”, como é o caso dos afro-brasileiros, quando se refere somente aos negros6, tornar-se-ão apenas brancos, “brancos-Aqui”. Porém, em outros espaços territoriais podem ser considerados não-brancos, como é caso da Inglaterra, em que o branco-Aqui (Brasil), pode ser considerado um não- branco-Lá (Inglaterra). 2.1 O degredado, o branco mais degenerado entre os degenerados7 A sentença de banimento foi transformada em algo que os Estados modernos emergentes consideravam mais útil. O degredo, uma forma de colonização coercitiva, obrigava o criminoso a residir em uma colônia. A diferença entre o degredo e o banimento é que o degredado era obrigado a residir em lugares distantes, estratégicos e indesejáveis (Coates, 1998, p. 28). Portanto, o branco degredado seria o português criminoso condenado com o desterro. Sua punição era o exílio na “Ilha de Vera de Cruz”, depois “Terra da Santa Cruz”, finalmente, “Brasil” (Gândavo, 2004, p. 43), assim como, de forma semelhante, poderia ser enviado para outras colônias lusitanas. Abreviando, o Novo Mundo também significou uma prisão, o desterro. O degredado ao chegar nesse vasto território foi praticamente obrigado a “civilizar” (domesticar) terra e gente “selvagens”, assim como mostra a Carta de Pêro Vaz de Caminha (Carta de Caminha). [...] Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma, segundo as aparências. E portanto se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa tenção de Vossa Alteza, se farão cristãos e hão de crer na nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque certamente esta gente é boa e de bela simplicidade [...] (Caminha, 1500 [1963], p. 7). 6 Tratarei mais detalhadamente do assunto “branco com hífen”, posteriormente, neste capítulo. 7 Neste item estou trato a respeito de um personagem português que pertencem a ralé da sociedade, porém, a colonização do Brasil foi realizada por esses personagens e também por aqueles de grande prestígio social como é o caso a fidalguia portuguesa, o próprio rei português. Portanto, na colonização lusitana no Brasil encontramos personagens do alto escalão e do mais baixo. O meu propósito ao tratar dos brancos degredados, de forma alguma, foi de reforçar a ideia de lusofobia, isto é, a aversão a contribuição da colonização portuguesa na cultura plural brasileira, Cf. Munanga, 2004. A construção histórica do branco não-branco 29 Justamente o degredado, uma pessoa que não poderia ser considerada “muito civilizada”, sua prática de incivilidade levou-o ser retirado do convívio social com seus concidadãos, além de ser também um subversivo a ordem política. O degredado é um dos personagens que mais aparecem na Carta de Pêro Vaz de Caminha (Carta de Caminha), podemos considerá-lo como uma pessoa de valores morais questionáveis, um criminoso, praticante de atos como estupro e assassinato8. É possível que se degredassem de propósito para o Brasil, visando ao interesse genético ou de povoamento, indivíduos que sabemos terem sido para cá expatriados por irregularidades ou excessos em sua vida sexual (...) convinham superexcitados sexuais que aqui exercessem uma atividade genética acima do comum, proveitosa talvez nos seus resultados aos interesses políticos e econômicos de Portugal e do Brasil. Atraídos pelas possibilidades de uma vida livre, inteiramente solta, no meio de muita mulher nua (...) (Freyre, 2001, p. 94-95). De acordo com Gilberto Freyre, entre os degredados, haviam criminosos sexuais que encontraram terreno fértil na colônia para praticar livremente o que era proibido em seu território. No entanto, a violência sexual praticada contra indígena, poderia ser considerada, no contexto colonial, um ato civilizatório. Diante disso, criminoso sexual torna-se uma pessoa adequada para executar tal tarefa que interessa política e economicamente o Estado português. Porém, no mínimo, poderíamos dizer que o degredado é um transgressor das leis que regulam a coletividade em seu território de origem. E na visão do colonizado, ele é um agressor; um conquistador sem escrúpulos. Logo, alguns dos brancos pioneiros que desembarcaram das Caravelas na Ilha de Vera Cruz foram a “ralé da sociedade portuguesa” (Wray, 2004, p. 339-361), brancos não virtuosos. Se uma das características da branquitude é a virtuosidade, podemos considerar que os brancos degredados são sem virtudes, como a falta de virtude não é uma característica da branquitude, e sim, da negritude, os brancos degredados podem ser considerados degenerados. Aliás, sua degenerescência levou-os ao encarceramento e ao desterro. A expressão “branco degenerado” cabe para pontuar a hierarquia entre os próprios brancos. O branco rico consideraria o branco pobre um ser degenerado, pois o branco, em razão de sua própria branquitude, “pela graça divina de ter nascido branco”, estaria destinado ao sucesso. Ser [senhor] escravizador, ser rico, ser empregador. O branco que não cumpre o “destino manifesto de sua raça” constrange seu grupo, trata-se de um branco degenerado. O branco degenera-se socialmente, levando-se em conta que, na história social e cultural ocidental, o branco não se considera, nem é considerado, como um indivíduo ou grupo, com características biológicas inferiores. O branco degenera-se socialmente ao 8 et. al. O branco-centrismo e a rebelião dos “objetos” 30 aproximar-se de não-brancos. Contudo, por mais que se distancie dos brancos ricos (virtuosos), jamais será igual ao não-branco, mesmo quando perde em alguns aspectos numa comparação com o não-branco. Para ilustrar a ideia digamos que certo não-branco seja considerado uma pessoa de superioridade moral a determinado branco. O acontecimento será considerado exceção, não regra. O não-branco com valor moral superior ao branco representaria um mérito individual, uma exceção. Valor moral é atribuído ao grupo branco, mesmo quando indivíduos brancos negligenciam esses valores intrínsecos. Na hierarquia entre os brancos, inclusive, entre os brancos degenerados, brancos desvirtuosos, os degredados encontravam-se numa graduação hierárquica inferior a todos. A título ilustrativo, o degenerado é inferior ao branco pobre honesto, pois o pobre não desrespeita as normas sociais, fruto dos valores morais, do costume e das leis positivadas. Portanto, o branco pobre, mesmo que degenerado por não ser virtuoso, vive em conformidade na sociedade, por isso não é necessário excluí-lo do convívio livre ou bani-lo para o desterro. Em resumo, o branco degenerado é aquele que se encontra na base da hierarquia entre os brancos no período das Caravelas. Poderíamos dizer que a Terra da Santa Cruz, futuro Brasil, foi o espaço de punição dos degredados, quando brancos, foram os brancos mais degenerados entre os degenerados. A colonização produto de uma estratégia eficiente da coroa portuguesa (Bethencourt; Chuaudhuri, 1998, p. 233-37), do monarca português, o branco mais branco entre os brancos portugueses. Porém, menos branco do que o branco inglês e o francês. Por ironia, se o branco degredado foi enviado para o desterro pelo branco rei; depois de alguns anos o outro branco rei foi enviado pelo branco inglês e também francês para o antigo desterro. O rei, ao chegar ao Brasil, alçou-o à condição de Reino Unido a Portugal. Dessa forma, tornou-se o maior de todos os “brancos-Aqui” [Brasil]. Na época, 1808, o rei já pôde ser recebido por descendentes de brancos degredados que se tornaram burgueses, fidalgos, senhores9 de trabalhadores negros e indígenas escravizados. Logo, o antigo degredado subiu na escala hierárquica entre os próprios brancos. Dessa forma, deixou para o esquecimento seu passado familiar como degredado. Neste instante, tornou-se cidadão e branco, apenas inferior ao branco rei. O monarca, assim como seu povo, classificado como imbecilizado, selvagem, degenerado, portanto, não-branco para os ingleses, como mostra o trecho que se segue: 9 et. al. A construção histórica do branco não-branco 31 (...) Os homens portugueses são, sem dúvida, a raça mais feia da Europa. Bem podem ele considerar a denominação “ombre blanco” - homem branco - como uma distinção. Os Portugueses descendem de uma mistura de Judeus, Mouros, Negros e Franceses, pela sua aparência e qualidade parecem ter reservado para si as piores partes de cada um destes povos. Tal como os Judeus são mesquinhos, enganadores e avarentos. Tal como os mouros, são ciumentos, cruéis e vingativos. Tal como os povos de cor, são servis, pouco dóceis e falsos (...) (Pires apud Santos, 2006b, p. 234) O documento, de 1780, evidencia o olhar do inglês para o português. Chama a atenção quando diz que sua mistura com o judeu, mouro, negro e francês acentuou os defeitos do branco português. Nota-se que o branco inglês considera-se superior também ao branco francês, provavelmente, superior a todos os outros brancos10. Quanto à branquitude portuguesa, sua inferioridade fez com que os não-brancos: africanos, indígenas (negros da terra e negros de guiné), em determinadas ocasiões, tivessem dúvidas sobre quem era o seu verdadeiro senhor (colonizador), Portugal ou Inglaterra? (Santos, 2006b, p. 211-246). Ao comparar os dois países, poderíamos considerar o próprio rei um branco degenerado na hierarquia entre a branquitude das nações, pois, neste período histórico, o verdadeiro branco virtuoso entre todos seria o inglês, para os britânicos o próprio rei português é um degenerado. No entanto, se comparado ao degredado, o primeiro colonizador, catequizador e tradutor entre os dois mundos “português” e “brasileiro”, o degredado difere-se do rei por ser o branco mais degenerado entre todos os degenerados, levando-se em conta seu próprio rei branco português. 2.2 Ser branco transcende a cor11 Diante de tudo que foi mencionado, nota-se que, o branco português não se encontrava no mesmo patamar hierárquico que os ingleses. Poderíamos, inclusive, considerá-lo não- branco em comparação ao inglês e ao francês no período colonial. A ideia de pureza que acarreta a separação entre “o puro” e o “impuro” é um dos traços da colonização britânica (Souza, 1998, p. 1-16). Nesse aspecto, uma colonização distinta da portuguesa, segundo Gilberto Freyre e Sérgio Buarque, de certa forma (Decca, 2006, p. 435-436, Holanda, 1995, p. 145-146). Para perspectiva colonial britânica, o português não seria um branco de verdade por 10 Os ingleses e alemães são brancos que se querem “puros”, no caso dos ingleses foram dominados pelos romanos e inexistem “povos puros” (Pena; Bortolini, 2004). 11 A respeito dos conceitos raça, branco, negro, etnia, étnico-racial já tratei deles em trabalho anterior (Cardoso, 2008), eles somente serão retomados em termos históricos quando houver necessidade para inteligibilidade do texto. Os termos também são referidos em minha pesquisa no Capítulo 5. Mais a respeito desses conceitos Cf. Malomalo, 2010. O branco-centrismo e a rebelião dos “objetos” 32 causa de sua “impureza” genética e cultural, característica impura originária do seu contato com povos não-brancos, por exemplo, os mouros. Os portugueses também partilhavam do conceito de impureza para classificar o não-português. Ao contrário, do que propugnou Gilberto Freyre, eles possuíam preconceitos raciais, de forma semelhante aos ingleses: Não faltam eminentes autoridades contemporâneas que afirmem que os Portugueses nunca tiveram quaisquer preconceitos raciais dignos de menção. O que essas autoridades não explicam é a razão pela qual, nesse caso, os Portugueses, durante séculos, puseram uma tal tónica no conceito “limpeza” ou “pureza de sangue” não apenas de um ponto de vista classista mas também de um ponto de vista racial, nem a razão por que as expressões como “raças infectas” se encontram com tanta frequência em documentos oficiais e na correspondência privada do último quartel do século XVIII (Boxer, 2001, p. 245). Quanto à inferiorização do português por parte do inglês, esta não se resumia à “cor de pele queimada” (Browkshaw, 1983, p. 106; Chaves, 1983, p. 24). Obviamente, nem todos os portugueses são “bronzeados” (queimados) pelo Sol, podemos encontrá-los com a mesma tez que o inglês. Significa isso que a classificação do português como menos branco do que o inglês, ou como não-branco, não dizia respeito estritamente à cor da sua pele. Nessa discussão a respeito de tonalidade de cor da pele, o mais importante é a comparação entre a Inglaterra e Portugal. O primeiro sempre representará em todos os aspectos, inclusive climático, o ideal de uma nação da Europa, o segundo se encontra num patamar inferior, por ser uma mistura entre a África e a Europa (Ribeiro, 1995, p. 278), portanto, o português é um ser “impuro”. A cor é parte do fenótipo, aquilo que se vê, no entanto, também é uma atribuição social, porque se relaciona com a vida cotidiana, na sua ligação com a ideia de raça e de etnia. Em virtude disso, as pessoas classificam-se, e são classificadas, como branca, negra, mestiça. Reitero, a cor é referente a traços genéticos, a tez. A cor é um aspecto de classificação social fundamental no Brasil. Geralmente, será o primeiro dado utilizado para hierarquizar com base na mentalidade racista, ou seja, com base na construção social da ideia de raça e de etnia. A raça e a etnia cuja própria existência em si evidencia a dificuldade de classificar os grupos humanos de forma equitativa, isso ocorre por causa da história colonial e racista dos próprios conceitos “raça”, “etnia”, “cor”. Diga-se de passagem, cor “termo”, “conceito”, “classificação”, “palavra” que tem sido utilizada nos censos com a intenção de conhecer a “raça” a “etnia” da pessoa a partir de sua autodefinição. Os termos raça, etnia, cor, étnico- racial, nova etnia, identidade cultural são mais familiares aos pesquisadores do que as pessoas classificadas pelos teóricos. O que não impedem que as pessoas entrem em conflitos como os raciais motivados pela cor da pele. Um aspecto superficial que não determina a pessoa. Dagoberto José Fonseca acrescenta a respeito: A construção histórica do branco não-branco 33 O corpo tem sua base na biologia e na cultura. Assim ele é biossociocultural. É no corpo do negro que se imprime a marca do racismo. Discrimina-se o negro pela sua cor, pelo seu jeito de andar de se vestir, de cantar, de dançar, de viver sua sexualidade e sensualidade, de praticar sua religiosidade e espiritualidade, de desenvolver o seu trabalho, etc (Fonseca, 2012, p. 123). Dagoberto Fonseca coloca que o corpo tem base também na cultura, diria que a própria biologia é produto cultural. No que diz respeito à raça, consideramos as ciências biológicas de forma desmedida. Coube a ela dizer, em épocas diferentes, que a raça existe e inexiste. Porém, nem sempre se leva em conta o contexto social, histórico, cultural, as relações de poder existentes na produção científica, ou simplesmente que, a ciência é produto da cultura ocidental que inferioriza as outras culturas (Germano, 2008, p. 10). Quanto aos brancos portugueses quinhentistas, a cor da pele será um dos fatores que o tornará branco em contraste com o africano e o nativo (ameríndio), porém, por mais que a cor de sua pele seja branca ou que seu fenótipo seja claro semelhante ou igual ao fenótipo do inglês, o português será menos branco, até não-branco, devido à força do colonialismo anglo- saxão, o colonialismo central (Calafate, 2004). Portanto, com o branco lusitano, podemos entender que ser branco, mais do que possuir pele clara, significa a comparação com o outro mais branco ou menos branco do que ele. O branco português no contraste com o angolano é igual a branco, mas, ao se comparar com o inglês, torna-se menos branco. 2.3 Europeu, português ou branco? Na época das Caravelas, qual seria a definição mais adequada (menos anacrônica) para classificar a pessoa que estou denominando como branco português. A primeira vista, a resposta menos adequada parece ser branco. O termo mais correto seria apenas português ou europeu? Uma possível resposta talvez se encontre no plano relacional. Isto é, considera-se europeu, português ou branco em relação a quem? O português em relação com os outros europeus é classificado como português. No entanto, o português em seu contato com os nativos, pessoas de peles “vermelhas”, “marrom” foram considerados “caras pálidas”, “fantasmas”, “brancos”. Logo, não foram classificados pelos indígenas como europeu ou português. Na medida em que o português define os nativos como “índios” (ou ameríndios), “educa” os indígenas (em sua missão colonial “civilizatória”) a chamá-los de “senhores”, “portugueses”, “europeus”. Esse português classificou o indígena como negro da terra e depois classificará o africano como negro de guiné (Campos, 1999, p. 23-32; Alencastro, 2000, p. 117-121). Logo, classifica-os como “não-brancos da terra”; “não-brancos de guiné”. Ao agir assim, classifica a O branco-centrismo e a rebelião dos “objetos” 34 si próprio como “senhor”, “branco”, “português” e “europeu” no contraste com o Outro. O branco português não se coloca como deus, coloca-se como homem superior, de uma cultura superior, uma das características de sua superioridade seria o cristianismo católico que deveria ser ensinado aos negros da terra, processo que resultou na extinção de múltiplas expressões culturais pré-colombianas; para ser mais preciso no Brasil. Em resumo diria que o europeu torna-se branco no seu contato com os ameríndios e africanos. Mesmo que o português possa ser considerado um branco numa hierarquia inferior, ou ser classificado como não-branco conforme a situação, trata-se de uma hierarquia entre os brancos (Schucman, 2012, p. 100). Se por um lado, podemos considerar o branco português como branco-branco, “super branco”, na África, por outro lado, na Europa-central será sempre “menos branco”, branco não-branco. Uma das razões dessa classificação hierárquica inferior, será em virtude do conhecimento histórico de sua herança genética e cultural não- branca12. 3. A “cegueira” do branco fruto da colonização A partir da negritude, Aimé Césaire fala a respeito do branco colonizador, ele desconstrói a ideia de colonização como processo civilizatório e de evangelização necessária aplicada aos povos primitivos não-brancos (Césaire, 1971, p. 5-79). Para Césaire, a colonização foi um processo violento cujos efeitos se estenderam em outras formas de subjugação, um neocolonialismo depois do seu fim, refiro-me em termo de “tempo” (datação histórico-política) (Hall, 2003, p. 101-128). Restringindo-me ao colonialismo inglês e português, ou melhor, ao branco inglês e ao branco português, quem seriam esses colonizadores? Albert Memmi, ao “retratar o colonizado e o colonizador”, aborda a questão de uma maneira genérica, no entanto, muitas de suas análises cabem, aos colonialismos: ibérico e anglo-saxão, apesar de distintos. Especialmente, quando se refere a sutil persuasão, além, da imposição direta praticada pelo colonizador com o intuito de introjetar no colonizado a idéia de que ele é inferior. Por outras palavras, sua inferioridade seria um dado natural, portanto, inquestionável, nesse caso, seria prudente para o colonizado se conformar (Memmi, 1989, p. 83). Dessa forma, seria natural o antagonismo colonizador-colonizado. Seria um dado da 12 Adiante, voltarei ao tema, neste capítulo, no item, A parte negra do branco e os limites para “manipulação” do corpo. A construção histórica do branco não-branco 35 natureza o lugar de superioridade que o colonizador ocupa. Nessa perspectiva, esvazia-se a construção histórico-cultural-econômica desse antagonismo. O colonizador torna-se bem-sucedido quando introjeta no colonizado “o complexo de dependência”, “complexo de inferioridade” (Fanon,s/d[1952],p.37-39). No caso, o colonizado seria uma criança dependente, enquanto o colonizador seria um ser “superior”, adulto, independente e sem parâmentros, sua medida seria a si próprio. Um ser narcísico enamorado pela sua própria imagem (Bento, 2002b), enamorado pelo seu próprio ser social. O retrato do colonizador, aparentemente, reflete a si mesmo. Digo “aparentemente”, porque, na realidade, o branco, diante do espelho, não enxerga nada, pois sua imagem não é refletida no espelho, o branco é um Drácula13. Um personagem sedutor que possui o corpo desejado por todos “não- Dráculas”. Corpo que o próprio não consegue observar diante do espelho, corpo que o próprio não consegue perceber da mesma maneira que os “não-Dráculas”, os não-brancos. Quanto ao colonizado, ao se colocar diante do espelho, enxerga o colonizador. Enxerga-se como colonizador. Assim como todos os não-brancos, “não-Dráculas”, como africanos, negros que, quando estão vivendo o processo de branqueamento, enxergam-se como brancos, isto é, vivenciam um forte processo de rejeição de si (Fanon s/d[1952]). Porém, no caso do não-branco, é diferente. O negro, mesmo quando nega a si mesmo, consegue enxergar o Outro, o humano, o branco. O negro enxerga o branco como humano ao rejeitar a própria humanidade. Por outro lado, o branco, ao focar os olhos somente para si, ao não enxergar o negro como humano, humanidade reflexo de si, ao não enxergar o negro como o outro lado do espelho, acaba por não enxergar a si mesmo. A imagem do branco refletida no espelho não é sua própria imagem, no máximo é uma foto14, uma figura congelada, petrificada, imóvel. Imagem que não envelhecerá ou morrerá. Enquanto o negro possui como parâmetro o branco, o branco não possui parâmetro por ser sua própria medida, ou branco é o próprio parâmetro de si, uma medida de si mesmo15, cega (Martins, 2006, p. 28). O branco em virtude de não se enxergar16 impossibilita-o de ser, inclusive, parâmetro de si. Ele somente enxerga o não-ser, o Outro não-branco. Significa isso que o branco se enxerga pelo contraste daquilo que “Não-É”. O que equivale dizer, colonizado, africano, negro, “desumano”. O branco ao atribuir somente a si a humanidade, ao não enxergar o Outro 13 Voltarei neste tema no Capítulo 4. 14 Neste caso a metáfora seria o branco como fotografia e não o branco como Drácula. 15 Cf. O branco Narciso no Capítulo 4. 16 Falo de cegueira no sentido metafórico que atribui José Saramago no Ensaio sobre a cegueira. Ao utilizar o termo, não pretendo menosprezar ou diminuir pessoas portadoras de necessidades especiais, maiores informações sobre o tema cegueira Cf. Martins, 2006. O branco-centrismo e a rebelião dos “objetos” 36 como humano, evidencia que possui uma imagem distorcida do Outro, e de si mesmo. Portanto, possui uma “espécie de cegueira”, descrita no belo romance de José Saramago Ensaio sobre a cegueira. “Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem; cegos, que, vendo, não veem” (Saramago, 1995, p. 310). O branco que não se enxerga (Santos, 2002, p.226-235), o branco como uma imagem distorcida de si e do Outro é o branco colonizador, é o retrato do colonizador (Memmi,1989, p. 21-50). Padrão cultural, físico e moral que levou o colonizado, e ainda, leva muitos negros a desejarem ser como ele, ou melhor, ser ele. Abreviando, o que significa ser branco fruto da colonização, afinal? Poderia esboçar como resposta ser “cego” sobre si e, ao mesmo tempo, possuir uma imagem distorcida a respeito do Outro. A cegueira a respeito de si e a distorção a respeito do Outro é aquilo que o negro ambiciona quando deseja ser branco. Isso é um dos significados realista do que é ser branco fruto da herança colonial. Para finalizar, diria que um grande passo será dado quando o branco enxergar-se e enxergar os Outros. Enxergar no Outro, por exemplo, o negro, a si mesmo, o humano. 3.1 A escravidão e a estereotipação do branco português O modo de produção escravista e o negro explicam porque somos uma nação que simboliza o atraso (Schwarcz, 2007, p. 36), de forma oposta, os Estados Unidos representavam o modelo de desenvolvimento. Para Florestan Fernandes, a escravidão teria “deformado” o negro: (...) A escravidão deformou seu agente de trabalho, impedindo que o negro e o mulato tivessem plenas possibilidades de colher os frutos da universalização do trabalho livre e em condições de forte competição imediata com outros agentes humanos. Como escreve Caio Prado Jr., “realmente a escravidão, nas duas funções que exercerá na sociedade colonial, fator de trabalho e fator sexual, não determinará senão relações elementares e muito simples. O trabalho escravo nunca irá além do seu ponto de partida: o esforço físico constrangido; não educará o indivíduo, não o preparará para um plano de vida humana mais elevado. Não lhe acrescentará elementos morais; pelo contrário, degradá-lo-à, eliminando mesmo nele o conteúdo cultural que porventura tivesse trazido do seu estado primitivo”. Em síntese, a escola da escravidão não formou, apenas, o agente do trabalho escravo: deformou-o. (...) (Fernandes, 1978, Vol.1, p. 52). Maria Aparecida Bento inquire Florestan Fernandes: A escravidão não teria também “deformado” o branco? (Bento, 2002a, p. 49). O patrimonialismo, o clientelismo, a aversão ao trabalho manual, o preconceito social, o preconceito racial, a mentalidade arcaica da A construção histórica do branco não-branco 37 burguesia17 seriam heranças da escravidão (Campos, 1999, p. 32). Nesse sentido, o nosso subdesenvolvimento seria fruto de nosso traço iberista, tropical, católico. De sua parte, Maria Aparecida Bento leva-nos a observar o impacto da colonização para além do negro, já que nos estimula a analisar o efeito do modo de produção escravista para sociedade brasileira de forma geral (Nogueira, 2010, p. 40). Porém, quando se refere à escravidão, fala-se de “escravo”; quando se fala de escravo associa-se diretamente ao negro. Ou se preferirem, a palavra escravo é entendida como sinônimo de negro. Dessa maneira, a escravidão seria um fenômeno que diz respeito somente ao negro, automaticamente, resulta no esquecimento do colonizador, do escravizador, ou mais concretamente, do branco. Além disso, naturaliza o negro como escravo, ou descendente de escravo, diferente de considerá-lo um humano que em determinado momento histórico foi escravizado. Dagoberto José Fonseca discorre a respeito: (...) Essa redução ao paradigma da natureza do escravo tem o sentido de manter a escravidão no imaginário social das populações. Portanto, quando se afirma que na África já existia a instituição da escravidão, busca-se informar ideologicamente que o Europeu não fez nada de errado, a não ser manter o africano em sua natureza. (...) (Fonseca, 2008, p. 30-31). A lógica de raciocínio que naturaliza o negro como escravo, ao mesmo tempo, leva de forma sutil no decorrer do tempo o esquecimento do opressor. O esquecimento é o primeiro passo, o segundo passo é a invisibilização do branco no papel de escravizador. Por isso, a imediata associação de escravidão à deformidade do negro, esquecendo-se dos outros “prováveis” deformados como o branco e o indígena18. O processo de invisibilização do branco e o “escanteamento” do indígena leva à super- visibilização do escravizado, tornando-o o principal responsável pelos males da nação brasileira. Em contrapartida, a invisibilização do escravizador torna-o personagem secundário, portanto, com menor responsabilidade. Por outro lado, se procurarmos visibilizar o branco, enxergaremos o branco português. Ele é o escravizador. O português que representa um colonialismo “fraco”, mentalidade arcaica e império periférico (Ribeiro, 2003). Ser atrasado é a característica comum entre o branco português e o negro africano. São atrasados, porém, em categorias distintas: o branco é o escravizador e o negro o escravizado. A modernização brasileira trará outros personagens, faço menção ao fenômeno da imigração europeia no século XIX. Diante do novo contexto, o branco português escravizador deve se modernizar, se integrar a sociedade industrial emergente, superar sua antiga condição 17 et al. 18 A respeito do indígena tratarei mais adiante, neste Capítulo, no item 7.1 O branco brasileiro ser não-hifenizado e a oposição binária. O branco-centrismo e a rebelião dos “objetos” 38 social (Cândido, 2001, p. 269-283), ou correrá o risco de se tornar estereótipo, caricatura, etnia. Um personagem folclórico, um “tuga”19 resquício do passado (Hasenbalg, 2005, p. 82). O português, da mesma forma que o africano, representa um período histórico pré-capitalista que o projeto desenvolvimentista rejeita quando possui a lógica de rompimento com o passado (Brandão, 2005, p. 10). A consequência da imigração europeia será a invisibilização e estereotipação do branco português (Fonseca, 2012), do branco colonizador pioneiro. Passa-se a visibilizar “o branco imigrante”, o branco italiano, por exemplo. Na medida em que se focaliza o branco da imigração e se invisibiliza o branco da colonização (pioneiro), esquece- se do branco que simboliza o atraso. Ele torna-se resquício do passado. A visibilização do branco imigrante fortalece a ideia de que o Brasil, finalmente, estava sendo povoado por “branco-mesmo”, caso dos italianos20. Nossa nação estava a caminho do desenvolvimento, pois, finalmente recebia em sua terra o branco, o símbolo do progresso (Schwarcz, 2007, p. 28-37), símbolo da “sociedade desejada” por algumas de suas elites brancas. O ideal do branqueamento contribui para esquecimento do branco português ou sua transformação em estereótipo. Em resumo, diria que o ideal do branqueamento é um projeto de nação que se deseja branca (Munanga, 2004, p. 61; Sodré, 2010, p. 327). Se fosse possível mudar a história, escolher o colonizador, alguns fantasiavam que o Brasil seria melhor desenvolvido, se tivesse sua colonização britânica, dessa forma, seríamos os “Estados Unidos da América do Sul”. No entanto, o projeto de colonialismo inglês e o português eram diferentes (Holanda, 1995; Souza, 1998), o que resulta em nações pós-coloniais distintas, além de outras razões. Quanto aos negros, eram pessoas e grupos indesejados, já que não combinavam com a sociedade capitalista industrial emergente. Seu próprio corpo simbolizava o resquício do passado. Diferente do branco, pois, na Europa central, encontram-se aqueles grupos étnico- raciais desejáveis para povoar o Brasil. No que diz respeito ao negro, inexistem grupos e pessoas desejáveis, são todos malvistos. Se, por um lado, o branco português representava o atraso, por outro, o branco italiano simbolizava o progresso21. No caso dos africanos, de qualquer parte, significavam atraso, todos eram mal conceituados, sem exceção. Isso poderia fazer com que algumas das novas gerações de negros optassem por se tornar branco, caso o fenótipo permitisse. No vigor do ideal do branqueamento, muitos queriam ser brancos 19 Maneira pejorativa que o colonizado refere-se ao colonizador português. 20 O tema será abordado com maiores pormenores, neste capítulo, no item 7. O branco-branco, o branco imigrante. 21Em verdade, o “branco italiano” não era o branco mais desejado pela intelligentisia para povoar o Brasil. Eles preferiam os alemães. No entanto, por falta de brancos de maior hierarquia (numa comparação entre os próprios brancos), o italiano serviu ao propósito simbólico de representar o progresso no contraste com o negro. A construção histórica do branco não-branco 39 (Ramos, 1995[1957]b, p. 234-235), quando branco, queria ser ainda mais branco, ser branco- branco, isto é, branco-mesmo. 4. O branco brasileiro, a branquitude “mais preta” Ao fechar a discussão sobre branquitude e anacronismo e outros termos, cabe questionar o branco brasileiro. Ora, como é possível pensá-lo se ele não existe? Ninguém é branco, nem negro, e sim, mestiço, somos uma “ninguendade” (Ribeiro, 1995, p. 131; Guimarães, 2005a). A identidade mestiça é valorizada em detrimento a identidade branca e negra. Se ninguém é branco não faz sentido pensar em branquitude [identidade branca] em nosso contexto, estaríamos, inclusive, aplicando um estrangeirismo [Whiteness] a nossa realidade. De minha parte, não posso aceitar tal argumento, pois, em princípio, podemos reconhecer o branco pelos privilégios que obtém por ser branco (Ramos, 1995[1957]b, p. 202). Quanto ao mestiço, cabe sublinhar, muitos negros procuram tornar-se branco, quando sua corporeidade permite, me refiro aqueles que possuem uma concepção depreciativa de sua negritude. Sugerindo-nos a indagação: Por que a persistência do desejo de se tornar branco? Diante da ótica freyreana22 de que não somos nem branco, nem negro (Degler, 1971). Em outras palavras, não deveríamos desejar nem ser branco, nem ser negro, todavia, desejamos ser branco. É possível notar que o argumento “nem negro” é evocado quando se reivindica justiça social, a partir da identidade negra. O “nem branco”, portanto, aparece para desautorizar a ideia “de se querer negro” em igualdade ao branco. O “nem branco” não parece ser um desejo da perspectiva freyreana de forma franca, levando-se em conta o desejo de alguns mestiços e negros tornarem-se brancos. Ressalta-se que o branco é a imagem difundida de forma hegemônica, ou exclusiva, na mídia brasileira (Sodré, 1999, p.17), além de outros setores de poder e prestígio. Se o mestiço e o negro se passam ou se tornam brancos quando possível, por causa da rejeição a identidade negra, o branco brasileiro não tem rejeitado, por completo, a contribuição cultural e biológica negra. É possível considerá-la um valor, assim como observa Liv Sovik (2005, p. 159-180). Isso ocorre, especialmente, nos espaços considerados de expressão de cultura negra (Hall, 2003, p. 335-349). Nesses locais, não seria incomum ouvir 22 Alusão ao sociólogo Giberto Freyre, no que tange à ideia de harmonia racial no Brasil. Cf. Guimarães, 2005a. O branco-centrismo e a rebelião dos “objetos” 40 falas nesta linha: “Apesar de ser branco, eu sei sambar!” Nessa ilustração, a herança negra é reivindicada para atribuir singularidade ao branco brasileiro, uma categoria especial de essência. Proponho outra frase, a título exemplificativo: “Eu sou branca, porém minha bunda é de negra!” No exemplo, a herança negra biológica é reivindicada para atribuir superioridade estética a branca brasileira. Portanto, a branca brasileira se compara a todas as outras brancas do cenário internacional e se coloca acima. Coloca-se como padrão estético superior por causa dos seus genes negros. Os genes negros atribuíram à branca brasileira beleza superior à branca eurocêntrica; a branca original. Daqui se extrai a ideia que o branco brasileiro, em algumas ocasiões, pode afirmar-se enquanto “branco-negro”, ou “o branco mais negro do Brasil”, assim gostava de se autorreferir Vinicius de Moraes. Diga-se de passagem, uma autodefinição não muito comum. No entanto, quando acontece é no campo da cultura de maneira geral (Sovik, 2005, p. 159-180). O branco que convive e partilha com o negro os espaços considerados, por eles, de cultura negra, ou de origem negra, ou de tradição negra, objetiva aproximar-se da coletividade negra. Especialmente, quando executa, com maestria, a arte considerada negra. O branco quando chega a ponto de se autodefinir como negro, iguala-se ao negro, em discurso, nos espaços “negro-centricos23” (de centralidade de cultura “tradicional negra”). Ao se igualar ao negro, inclui o bônus e ônus, ou seja, insere-se numa cultura considerada inferior à cultura ocidental (Dussel, 2005, p. 55-70). Entretanto, mesmo que se diga negro, aos gritos, o branco não enfrentará o racismo destinado ao negro, nem tampouco deixará de receber os privilégios raciais por ser branco. Além disso, fora dos “espaços negro-cêntricos”, pode vir a silenciar-se a respeito de sua “orgulhosa” autodefinição como negro, por causa dos ônus que isto lhe acarreta, tais como conflito no foro íntimo: mãe, pai, filho, esposa, esposo, patroa, patrão, amigo, por causa do racismo persistente nas sociedades racializadas (Hasenbalg, 2005, p. 230-231). Mesmo nos espaços negro-cêntricos, o branco que se autodefine como negro não deixa de ser visto, considerado branco pelo negro, pelo branco, por outros não-brancos que convive nesses espaços. Apesar dos laços profundos de afetividade, pois, a identidade social é definida pelo indivíduo e pela sociedade (Brandão, 1986, p. 7), inclusive se as definições não forem coincidentes. Diria mais concretamente, eu posso me definir branco e a sociedade definir-me negro. Abreviando, o branco que se diz negro, no espaço de cultura negra, pode, 23 Os Espaços de centralidade de cultura “tradicional negra”, tratarei em pormenores do termo o negro-centrismo no Capítulo 2. A construção histórica do branco não-branco 41 provavelmente, não ser considerado negro pelos “os Outros” que partilham o mesmo espaço e cultura e por “Os de fora” desses espaços. Para não incorrer em equívoco de parecer essencialista, reitero que partilho do ponto de vista de Paul Gilroy e de Stuart Hall, já que não considero negro ou branco uma característica de essência, ou particularidade especial (Hall, 2003, p. 347). De minha perspectiva, simplesmente, sublinho que o branco que se autodefine como negro não necessariamente deixa de ser considerado branco pela coletividade, em primeiro lugar, por causa do seu fenótipo. Da mesma forma, não cessarão os privilégios raciais em razão da branquitude, anunciada primeiramente pela sua brancura, isto é, características físicas. Ana B. Pereira comenta a respeito da importância do papel do corpo para construção do “Outro” e, obviamente, de si: (...) a construção do Outro através do corpo obviamente não se esgota neste. O corpo é um primeiro momento de análise, se quisermos uma espécie de instrumento, que permite posteriormente tirar conclusões sobre a inferioridade moral e intelectual daqueles que são construídos como Outros e este é um passo fundamental. Se para Aristóteles a diferença da mulher como ― homem mutilado lhe permite concluir da geral inferioridade daquela em relação a este, para a mente colonial a diferença de pele dos povos de outros continentes serve como instrumento para a construção TOTAL do Outro como inferior, para a sua completa desumanização e para a justificação das atrocidades cometidas. Mas serve igualmente o propósito fundamental da construção artificial de uma certa normalidade que sem termo de comparação não seria possível: (...) (Pereira, 2008, p. 112). Acentuo que estou me referindo à realidade brasileira, além do mais, partilho da preocupação que o corpo não deve ser a última palavra, nem a principal, na discussão racial (Gilroy, 2001, p. 24), levando-se em conta que a questão transcende o corpo. Diante de tudo, cabe mencionar que o negro, ao se autodefinir como branco, por quaisquer razões, provavelmente, esbarra em sua corporeidade. A pessoa não deixará de enfrentar as hostilidades raciais atribuídas ao grupo, quando seu fenótipo não o permite tornar-se branco. Vinicius de Moraes optou, poeticamente, autodefinir-se como “branco-negro”: “o branco mais preto do Brasil24”. Numa hipótese, considero que tal denominação surgiu diante de uma impossibilidade. Digo da improbabilidade de deixar de ser classificado como branco. Ser branco, diga-se de passagem, num país de racismo de lógica binária: branco-negro25, por isso, o poeta se coloca como branco-negro. Assim encontra uma solução sagaz, todavia, sua opção dilui o conflito 24 Refiro-me à música Samba da Bênção de Vinicius de Moraes e Baden Powell. Cf. http://letras.mus.br/vinicius- de-moraes/86496/. 25 Tratarei desta oposição binária do modo de pensar da razão dual racial, no Capítulo 2, no Tomo I. O branco-centrismo e a rebelião dos “objetos” 42 branco-negro e invisibiliza o racismo, por reduzir a contradição racial a si, por outras palavras, por ser branco-negro, “o branco mais preto do Brasil26”. 4.1 O branco não-branco [“americano”] e o negro exceção O branco não-branco diz respeito ao branco num nível hierárquico inferior ao branco- branco. O branco-branco, isto é, branco mesmo, diz respeito ao branco da Grécia antiga (berço da cultura Ocidental), o branco eurocêntrico e o branco norte-americano27. O branco- branco representa o passado, o presente e o futuro da civilização humana, leia-se, cultura Ocidental (Dussel, 2005, p. 55-70; Quijano, 2005, p. 26). O branco-branco é o branco virtuoso, virtude representada pela nação, população e cultura estadunidense na atualidade. Os Estados Unidos são uma potência econômica, bélica, tecnológica, educacional, cultural28. Sublinho, país de hegemonia branca. Podemos considerar o presidente negro dos Estados Unidos como uma exceção histórica. O presidente Barack Obama, em virtude de sua pertença étnico-racial, inaugura novas complexidades em relação à branquitude nos Estados Unidos e nos países que os espelham, como o Brasil. A eleição e a reeleição de Barack Obama29 colocam em xeque uma das principais características da branquitude de ser poder e estar no poder (Cardoso, 2010). Não tratarei deste tema nesta tese, porém, tecerei algumas apreciações, sou da perspectiva que, ao final da sua administração, após oito anos, poderemos melhor analisar o impacto do sr. Obama à branquitude estadunidense, mas também a questão da negritude nos Estados Unidos. Somente a sua existência já nos sugere indagações: O negro como presidente nos EUA se apresentará como exceção ou regra? Por outras palavras, o presidente negro no devir histórico será uma regra ou exceção? Se no futuro apresentar-se como exceção, pouco afetará no significado da branquitude ser poder. Pois, a negritude teria significado “um poder circunstancial”, “um período acidental”, uma exceção histórica. Entretanto, se houver alternância de poder étnico-racial nos Estados Unidos, poderíamos considerar como indicativo de que a diversidade da sociedade estadunidense passa a ser representada em seu espaço de poder de maior prestígio de forma natural, isto é, não se trataria de um acontecimento fortuito. Nessa ilustração, poderemos considerar a presidência de Barack Obama como a representação da negritude com o significado de “ser 26 Voltarei a tratar do assunto em novas perspectivas no Capítulo 2. 27 Principalmente os Estados Unidos. 28 et al. 29 Esta questão será retomada no Capítulo. 2. A construção histórica do branco não-branco 43 poder”; “ser virtude” no contexto norte-americano, que simboliza os mais virtuosos entre os virtuosos da contemporaneidade. Levando-se em conta que, a negritude persistiria como poder além de um breve período circunstancial, tornando-se história trivial, a negritude se afirmaria como poder [o mais prestigiado de todos]. Dessa forma, haveria uma verdadeira sinalização em direção à igualdade, isto é, tanto o branco quanto o não-branco poderiam possuir o significado: “poder”, “ser virtuoso”. Contudo, admito que a história do tempo presente ainda não indica um futuro de igualdade racial nos Estados Unidos e no Brasil para os próximos anos, em virtude das disputas políticas e conflitos históricos, econômicos, culturais complexos e imbricados. Soma-se a isso, a hegemonia da branquitude nesses espaços que procuram conservar a ordem sem maiores mudanças que venham abalá-la. A branquitude estadunidense posiciona-se como a “branquitude central” no mundo de forma sutil e aguda. Faz uso de sua indústria cultural e da máquina de guerra para difundir um ideal de estética e de “força” “bruta-tecnológica-branca”, superior a todas as outras (Said, 2004, p. 336). Superior e desejada pelos “supostos” inferiores. A indústria cultural estadunidense é eficaz em tornar sua branquitude a mais virtuosa e desejável ao propagar a imagem de pessoas como: Kristen Stewart, Brad Pitt, Jessica Alba, Johnny Deep, Megam Fox, Bill Gates, Bill Clinton, Mark Zuckerberg, Kathryn Bigelow, Steve Jobs, Tom Cruise, Hillary Clinton, Angelina Jolie, Scarlett Johansson, Ben Bernanke, Alan Greenspan. As personalidades citadas são todas brancas, poderosas, algumas, igualmente, consideradas belas, milionárias e poderosas. Significam a “branquitude referência”, algumas branquitudes descartáveis, outras mais duradouras, mas, todas são desejadas e admiradas. O negro que se encaixa no perfil é uma exceção, poderia citar entre eles, Will Smith e Denzel Washington. Em síntese, ser branco não-branco significa não ser branco estadunidense nos dias atuais. O branco brasileiro é inferior àquele que é superior a todos os Outros. O branco estadunidense representa o que existe de mais moderno. Diferente da ideia de “nem branco, nem negro” brasileiro (Guimarães, 2005a), o branco norte-americano não se mostra ambíguo quanto à branquitude. Ele afirma-se branco de maneira imperativa em oposição binária a negritude com barreiras raciais rígidas. Uma pessoa é considerada negra por causa da sua origem (Nogueira, 1998, p. 243; Skidmore, 1973, p. 25-45), basta “uma gota de sangue negro” e a pessoa é considerada negra. Logo, o branco-lá [EUA] é o branco-branco, branco mesmo. Trata-se do branco que rejeita quaisquer resquícios de herança biológica e cultural do negro e do africano. Por causa de sua O branco-centrismo e a rebelião dos “objetos” 44 busca pela purificação racial, livrando-se de impurezas que seria o negro, a cultura negra e africana. O branco-aqui (Brasil) possui barreiras raciais flexíveis se comparado ao branco-lá (EUA) quanto à “mobilidade racial”, isto é, o negro passa-se ou torna-se branco de forma distinta na cultura brasileira e cultura estadunidense. No Brasil, uma simples pele clara, às vezes, é capaz de possibilitar a alguém passar-se por branco em determinadas ocasiões. Diferente da “regra de uma gota de sangue”, o branco-Aqui (Brasil) comparado ao branco-Lá (EUA) é um não-branco, mesmo quando possui fenótipo considerado de branco. Isto é, na sociedade brasileira, seria considerado um branco-branco (branco mesmo), porém, na sociedade estadunidense, seria branco não-branco, ou etnia, ou mais concretamente, “latino”, “brasileiro”, um não-branco. Jamais branco-branco, ou seja, branco estadunidense, no máximo, “brasileiro branco”, uma etnia superior ao “brasileiro negro”. A matriz patrilinear portuguesa é outro aspecto que acentua a “não-branquitude” do branco brasileiro (Pena; Bortolini, 2004, p. 31-50). O branco brasileiro fruto do “pai branco” português e da mãe “indígena”; ou pai branco português e de mãe africana. Em menor escala, pai branco português e mãe branca portuguesa nos primórdios da colonização. É importante salientar que, na colonização, era impraticável, punido com o rigor implacável a relação sexual entre o africano e a portuguesa. Era inconcebível a ideia do “negro” [africano] deflorar a branca [portuguesa] (Moura, 2004, p. 68). O branco não-branco é nossa principal matriz semeadora, o branco português. O branco não-branco da Europa, branco considerado selvagem pelos brancos anglo-saxões. Salientando que um dos primeiros brancos portugueses “semeadores” foram os degredados (Decca, 2006, p. 424-439; Holanda, 1995, p. 93-127). Em outras palavras, no primeiro momento da formação de povo brasileiro os degredados exerceram um papel fundamental, eles enquanto “brancos ralé” (sic) (Wray, 2004), “brancos degenerados” são “os mais degenerados entre os degenerados”, portanto, possuíam poucas virtudes. Gilberto Freyre destaca-se ao discordar dessa perspectiva, o autor sustenta a tese da virtuosidade do colonialismo ibérico, enfatiza as qualidades do branco português (Freyre, 2010; Brookshaw, 1983, p. 107). Antes de Freyre, que seguiu a trilha aberta por Francisco Adolfo de Varnhagen, colonização elogiável, somente a anglo-saxônica, que resultou nos Estados Unidos da América. O território em que a branquitude se expressa em todos os campos do conhecimento, onde se expressa à identidade branca de branco-branco, ou melhor, branco “de fato”. O presidente Barack Obama ainda representa uma exceção ou concessão do branco estadunidense. O branco “mais virtuoso entre os virtuosos” da sociedade. A construção histórica do branco não-branco 45 4.2 A parte negra do branco e os limites para “manipulação” do corpo A parte negra do branco é uma metáfora de que faço uso, o meu objetivo é realçar que o branco brasileiro possui uma parte negra, ou não-branca, desde a origem (Ribeiro, 1995, p. 71). A característica negra procede da matriz ibérica portuguesa, primeiramente, da mistura com os muçulmanos que dominaram a península ibérica. Depois se adicionou os outros não- brancos: judeus, ciganos e africanos durante o séculos XV e XVI (Marques, 1997, vol.1, p. 272-273). Cabe rememorar que, por causa da herança cultural e biológica, é atribuída ao povo ibérico, especialmente ao português, a característica de impureza30. Naquele momento, de perspectiva cristã-católica, ser impuro era uma das características que construía o não-branco, refiro-me a construto histórico, social, cultural, evidentemente. Utilizo os termos puro, impuro e não-branco como construto social, pois, para a Ciência Biológica e as Ciências Sociais não faz sentido utilizar os termos: “puro”, “impuro” (Cruz, 2008, p. 55; Boxer, 2002, p. 245-266), “branco puro”, “negro impuro”. Contudo, nas relações sociais ainda operam, de forma semelhante à ideia de branco e a ideia de negro. Feito a ressalva, não podemos deixar de mencionar que Gilberto Freyre31 destaca-se ao evidenciar a parte negra do branco brasileiro (Freyre, 2001, p. 80-86). Uma característica que, segundo minha perspectiva, torna o branco brasileiro um branco não-branco (branco “menos branco”) é o iberismo. O português, cabe recapitular, foi um “pai” de segunda categoria, além disso, entre os percussores, encontra-se o degredado, o branco de menor hierarquia entre os próprios brancos portugueses. Na matriz, o branco brasileiro é fruto do português com a nativa [indígena] e com a africana (Pena, Bortolini, 2004, p. 31-50), enegrecendo-se ainda mais, isto é, potencializando a sua parte negra. Em 30 Não somente o ibérico que é mestiço, mas todos os latinos em decorrência da expansão do império romano do ocidente. Daí o papel da Igreja cristã (católica) e da língua latina destes povos mestiços e que foram mais “impuros” em decorrência da conquista afro-arábica islamizada nesta região por maior tempo do que no Sul da França e da Itália. 31 A respeito de Gilberto Freyre, Guerreiro Ramos realiza uma crítica ao seu pensamento ao destacar que se trata de perspectiva de um branco que também é produto do que ele chama de um “protesto do branco brasileiro contra si”. Numa hipótese, sugiro que Freyre lidou com tal protesto ao elevar o branco português a categoria de um “ser de valor”, assim também poderia valorizar a si. Guerreiro Ramos no mesmo artigo comentará a respeito de como o branco brasileiro era visto no exterior, digamos, os Estados Unidos, era considerado um ser “bizarro”. Gilberto Freyre que viveu muitos anos nos Estados Unidos deve ter passado por essa sensação, ser inferiorizado, considerado “menos” por ser brasileiro, apesar de branco. (Cf. Ramos, 1995[1957]a). Gilberto Freyre e sua vivência como um branco não-branco nos EUA coloca-se como um tema de pesquisa interessante para quem se dedica em estudar a vida e a obra desse autor. Mais, a respeito do branco estadunidense e outros brancos confira os Capítulos 4 e 5. O branco-centrismo e a rebelião dos “objetos” 46 síntese, o branco brasileiro é o mestiço, filho do homem branco não-branco e de mulheres não-brancas (indígena e africana). Porém, o mestiço fruto do português e da indígena e/ou da africana se, principalmente, o fenótipo permitir, pode tornar-se branco. Da mesma forma que a corporeidade fará com que seja classificado como negro, no primeiro momento (Pereira, 2008, p. 112). O exemplo pode explicar a razão em que numa mesma família os filhos possam ser considerados como brancos e outros negros. Pois, a negrura e a brancura, ou seja, o fenótipo, mostra-se marcante na mentalidade brasileira, apesar da questão racial não se restringir aos aspectos físicos. O corpo, especialmente, a cor da pele persiste como indicador da diferença racial importante por causa da sua difícil manipulação, levando-se em conta que o clareamento da pele é um procedimento complexo. A cirurgia plástica para afinar o nariz, o alisamento dos cabelos, sua pintura loura são procedimentos mais simples para aqueles negros e mestiços que objetivam aproximar-se do padrão estético do branco, por considerá-lo como o único realmente belo32 (Schucman, 2012, p. 68). Quanto à questão do branco que se “bronzeia”, escurece a pele, cabe uma nota, o bronzeamento não ocorre, de maneira geral, em busca do negro como padrão estético, mesmo porque o negro não é padrão estético de beleza da cultura ocidental (Ruggi, 2005, p. 18). Se existe negro bonito, seria uma exceção à regra, além disso, não seria tão belo quanto o branco, para Hollywood, Halley Barry é linda! Mas, Scarlett Jhoansson é mais! No futuro próximo, talvez, em instantes, para o mestiço e o negro manipularem o corpo, por exemplo, clarear a pele consideravelmente, não seja um obstáculo digno de nota,33 por causa do desenvolvimento científico e tecnológico. Poderá interferir em sua pele por quaisquer motivos. A hipótese remete a novas questões para a identidade racial: branca, negra e mestiça (Baudrillard, 1990) Por ora, na nossa realidade social, a ideia de negro e de branco e mestiço, nos atuais termos, mostra-se complicada, ressaltando que não mudamos nossa pele como nossas vestes (Platão, 2008). Ser nem branco, nem negro, não parece uma resposta satisfatória. Ao retomarmos a ilustração de que numa família, de mesmo pai e mãe, um filho possa ser considerado negro e o outro branco. Logo, o filho negro obtém desvantagens raciais e o filho branco vantagens raciais (Huijg, 2007). Pois, consideramos tanto a ideia de negro quanto a idéia de branco. Isso significa que não é prudente invisibilizar o racismo (Fernandes, 1978), por causa, do desejo 32 Cf. o Capítulo 4. 33 Voltarei neste tema, neste Capítulo no item, A branquitude, o mestiço, a tecnologia e a maquiagem. A construção histórica do branco não-branco 47 de que não haja racismo. Da mesma, forma não convém desconsiderar a ideia de negro e de branco, enquanto eles atuarem na sociedade. No que diz respeito à parte negra, cabe pontuar que o branco brasileiro moderno, geralmente, não rejeita sua parte negra. Até mesmo reivindica-a, o bronzeamento do branco também se encaixa no perfil de valorização da característica negra do branco. Por outras palavras, o branco moderno, cosmopolita elogia sua herança biológica e cultural de matriz africana (Sovik, 2005, 159-180). Além do mais, podemos sustentar que todos os grupos de distintas pertenças étnico-raciais possuem uma herança negra (etíope-africana). A partir da teoria de que os Homo sapiens sapiens, o homem moderno, surgiu na África há cerca de 150 mil anos (Pena; Bortolini, 2004, p. 33; Inikori, 2010). Diante disso, o africano não deveria ser considerado unicamente sinônimo de negro ou afro-brasileiro, já que houve a dispersão do Homo sapiens sapiens pelos continentes. O clareamento da pele e outras mudanças na corporeidade de determinados grupos deve-se a fatores geográficos e climáticos (idem, ibidem, 2004, p. 35). Isso significa que, o termo afrodescendente atribuído ao negro, de forma geral, cabe ao branco e a todos os grupos humanos espalhados pelos cinco continentes. Caso não se confirme como falsa a tese de que o Homo sapiens sapiens originaram da África, todos somos afrodescendentes, todos temos uma parte negra. 5. O branco não-branco americano e “o mundo que o português criou” Se alguns negros desejam ser brancos, da mesma forma, o branco brasileiro deseja ser branco americano. Neste caso, a identidade americana é atribuída aos cidadãos dos Estados Unidos da América, de forma restrita. Os estadunidenses se vangloriam de serem americanos, como se fossem os únicos e são reconhecidos como tais. Como se o continente americano, salvo o Canadá, pertencesse somente a eles. Assim como sugeriu Guerreiro Ramos, o branco brasileiro deseja ser mais branco (Ramos, 1995[1957]b, p. 215-240). Ele deseja ser branco estadunidense, branco americano, porque o considera virtuoso, um branco mesmo. Ser branco brasileiro é ser não-branco mesmo, por outras palavras, não branco-estadunidense. Ser branco estadunidense [ou branco americano] significa ser capitalista, moderno, “ser o dono do mundo”. O “americano” é referência estética, cultural, educacional, econômica. Faz mais de meio século que os Estados Unidos colocam-se como nação modelo do capitalismo desenvolvido, sinônimo da própria cultural ocidental. Portanto, o americanismo ou “estadunisismo”, se preferirem, é o novo ocidentalismo difundido ao mundo O branco-centrismo e a rebelião dos “objetos” 48 não-ocidental. Edward W. Said discorre a respeito do papel central geopolítico e cultural ocupado pelos norte-americanos no mundo contemporâneo. (...) A França e a Inglaterra já não ocupam o centro do teatro político mundial; o império americano desalojou-os. Uma vasta rede de interesses une hoje todas as partes do antigo mundo colonial aos Estados Unidos, da mesma forma que a proliferação de especialidades acadêmicas divide (e, no entanto, relaciona) todas as antigas disciplinas filológicas criadas na Europa, como o orientalismo. (...) (Said, 2004, p. 336). Em síntese, “americanizar-se”, “estadunizar-se” é ocidentalizar-se, tornar-se civilizado, moderno, desenvolvido, branco, branco-branco (branco-mesmo). O branco brasileiro, por ser um não-branco estadunidense, ao objetivar embranquecer, subir no patamar da hierarquia da branquitude, opta por esquecer/invisibiliza sua ancestralidade portuguesa, indígena e africana. Pois, seu plano consiste em se reconstruir como moderno, ocidental. O passar dos anos, o distanciamento da memória da colonização pode favorecer a ocidentalização do branco brasileiro isso seria o branqueamento no sentido cultural. Possível ao branco que opte por recusar sua parte negra: herança cultural e biológica africana, indígena e ibérica. Rejeição mesmo que seja num discurso frágil ou sofisma. Porém, como nos lembra Liv Sovik, nem todos os brancos brasileiros rejeitam sua parte negra, nos dias de hoje, pode considerá-la, inclusive, um valor em determinadas ocasiões, como é caso do campo cultural (Sovik, 2005, p. 159-180). O que importa reter é que, se por um lado, o branco brasileiro opta por se “estadunizar”: ser moderno, ao rejeitar sua parte negra, por outro lado, aquele que está confortável com sua herança africana pode, igualmente, se considerar moderno, por causa de sua matriz ibérica, característica não-negra, diga-se de passagem. Neste caso, seria uma antropofagia34 entre o mundo ocidental e o oriental. Numa perspectiva freyreana, o branco moderno seria aquele “do mundo que o português criou” (Freyre, 2010). 5.1 A raça regeneradora e o branqueamento do branco não-branco De modo breve diria que o ideal do branqueamento é a ambição de uma nação querer ser branca, por parte de vertentes de sua intelligentsia (Munanga, 2004). Eles elaboram tais “teses desenvolvimentistas” com base num quadro teórico centro-europeu, aquilo que tem vindo a ser designado como evolucionismo e darwinismo social. Ao realizarem uma leitura particular, apesar de possíveis divergências, existe o consenso quanto à relevância da ideia de 34 Referência a Oswald de Andrade, Cf. (Andrade, 1990). A construção histórica do branco não-branco 49 raça. Para “sciência”, a raça é um elemento fundamental para se pensar o Brasil do início do XX (Schwarcz, 2007, p. 92-93). A raça, ou mais concretamente, a população negra é responsabilizada pelo nosso atraso, pela nossa “pré-modernidade”. O ideal do branqueamento enquanto (idem, op. cit) “tese desenvolvimentista” procurou solucionar o problema nacional, o negro. Não estava em discussão a ideia de inferioridade e superioridade para a intelligentsia, ou mais concretamente, para Silvio Romero, o negro era desigual, inferior, a ideia de igualdade entre os homens é falsa