GERMANO MIGUEL FAVARO ESTEVES ENTRE SANTOS E DEMÔNIOS: a percepção do Mal na teologia e hagiografias do Reino Visigodo de Toledo (séculos VI-VII) ASSIS 2015 GERMANO MIGUEL FAVARO ESTEVES ENTRE SANTOS E DEMÔNIOS: a percepção do Mal na teologia e hagiografias do Reino Visigodo de Toledo (séculos VI-VII) Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Doutor em História (Área de Conhecimento: História e Sociedade) Orientador: Dr. Ruy de Oliveira Andrade Filho ASSIS 2015 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP Esteves, Germano Miguel Favaro E79e Entre santos e demônios: a percepção do mal na teologia e hagiografias do Reino Visigodo de Toledo (séculos VI-VII) / Germano Miguel Favaro Esteves. - Assis, 2015 266 f. Tese de Doutorado - Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista. Orientador: Dr. Ruy de Oliveira Andrade Filho 1. Bem e Mal. 2. Hagiografia. 3. Teologia. 4. Espanha - História - Período gótico, 414-711. 5. Imaginário - Idade Média. 6. Religiosidade. I.Título. CDD 940.1 À Victória Esteves (Dinda e Mãe). Um anjo enviado por Deus para guiar meus passos, que ensinou o amor da mais bela e humilde forma, sempre acreditando que com bondade, vontade e determinação tudo é possível. Agradecimentos Neste caminho de onze anos dentro da F.C.L. UNESP/Assis, tive o grande prazer de conhecer pessoas que ficarão guardadas em um lugar muito especial dentro do meu coração. Foi durante esse tempo que me descobri como pesquisador, como um amante incondicional da História e de outras histórias que perpassaram a minha vida. Fui e sou feliz por tudo o que aconteceu, pelos amigos que fiz, pelos caminhos que percorri e por todo ensinamento que me foi passado. Seria um tanto extenso citar todos os nomes que me vêm à mente, mas alguns deles têm uma importância ímpar na minha vida. Agradeço primeiramente ao grande ser humano que me deu a oportunidade de estar neste momento redigindo estes agradecimentos, Ruy de Oliveira Andrade Filho, orientador, amigo, irmão mais velho (por opção – my brother from another mother), que me acolheu, me ensinou, me suportou (rs), e que continua sendo uma das pessoas que mais estimo neste mundo. RUYCAREDO, MUITO OBRIGADO! À Profª Ana Paula Tavares Magalhães, que sempre de uma maneira doce e gentil acompanhou e orientou meu trabalho, desde o mestrado até este momento, e ao Prof. Ronaldo Amaral, cuja amizade de longa data muito me alegra, que sempre esteve disposto a ajudar e escutar, compartilhando seu conhecimento e suas obras, que foram de extrema importância para a realização desta tese. Também sou extremamente grato pela leitura dos capítulos para o exame de qualificação, cujas observações foram importantes para a finalização deste trabalho. Ao Prof. Milton Carlos Costa e ao Prof. Sérgio Alberto Feldman pela leitura atenta deste trabalho e pelas importantes observações e considerações elencadas na defesa, bem como pela amizade que muito me alegra. Agradeço também os amigos que compartilharam durante esse tempo as minhas angústias e alegrias dentro da academia. Meus sinceros agradecimentos a Guilherme Queiroz de Souza (minêro boa gente demais, sô!), Bruno Muneratto, Patrícia Antunes, Ana Paula Giavara, Thais Svicero, Amanda Giacon Parra, Glauco Costa, Letícia Ferreira,Danilo Alves Bezerra e a todos os amigos do NEAM. Em especial, a Frederico Santiago da Silva, meu grande irmão (Frater Fredericus) em terras assisenses e por toda a vida, pela paciência na correção de meus textos e por todo o companheirismo em habitar desde sempre sob o mesmo teto, agradecimento que se estende também a toda sua querida família. Aos amigos assisenses Rodrigo Augusto da Silva, Eduardo Henrique Silva ( Dona Maria ), Duda Siqueira, Guilherme Carvalho Sobreira, Luis Felipe Reis Nhochi ( Lucia Nhochi e Seu Luis (in memorian), Elielton Zanetti, Vanderlei Alves de Souza, Juliana Uesono, Edivaldo Ferrreira, Claudinei Germano, Vicente de Paulo Tavares, Reinaldo Péricles de Almeida, Gustavo Hauer e Henrique Clauzo Horta, muito obrigado por todo apoio. Aos queridos amigos pirajuenses, Bruno Arbex Bracero ( Rosangela Arbex e Sílvio Bracero), Bruno Bonametti Miranda, Thiago Luíz Marin e Fabio Henrique Iaralha Faria, que sempre acompanharam o meu trabalho e acreditaram nele, dando força e alento nos momentos mais difíceis. Bem como aos amigos, professores e alunos da UNIESP FAFIP-Piraju, em especial a Doroceli Magdalena, Renato Dardes Barberio e José Alfredo Viana. Não poderia deixar de agradecer também os professores da F.C.L. UNESP/Assis que sempre estiveram abertos ao diálogo e a amizade, Áureo Busseto, Andrea Lúcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi e Ivan Esperança Rocha e as Professoras Terezinha Oliveira (UEM) e Leila Rodrigues da Silva (UFRJ) que apesar de estarem a alguns quilômetros distantes de Assis sempre se fizeram presentes com muita atenção e com uma grande amizade. Agradeço enormemente minha família, Thereza Afonso Esteves (in memoriam), as Tias Carmem, Tereza, Irene, Santa e minhas duas mães, Regina Célia Esteves e Victória Esteves, que sempre deram palavras de carinho e amor tão importantes. Vocês forneceram a base familiar sem a qual eu não seria ninguém. Agradecimento este que se estende a todos os queridos primos, em especial a Maria Angélica Esteves Pansanato, Rogério Pozza, Luciano Tadeu Esteves Pansanato e Rodrigo Montoro. À grande amiga e companheira de viagens Profª Maria Lúcia da Cunha de Oliveira Andrade (USP), que me brindou com sua companhia em Barcelona, bem como pelas valiosas observações e a leitura atenta do texto sobre a Análise Crítica do Discurso. Agradeço a paciência e a amizade dos queridos funcionários da F.C.L. UNESP/Assis Clarice Gonçalves, Regina Truchlaeff, Sueli Aparecida Franco, Lucilene Franco, Zélia Maria de Souza Barros, Marcos Francisco D’Andrea e Auro Mitsuyoshi Sakuraba. À Profª Isabel Velázquez (UCM) e Montserrat Valls Mora (ERAAUB) e aos Professores José Carlos Martín Iglesias (USAL), Pablo C. Díaz Martínez (USAL), Francesc Tusec (UB), Ennio Sanzi ( UNIME-DICAM) por terem sido solícitos ao meu trabalho. À Profª Eleonora Del’Ellicine (UBA – UGS) por toda amizade e atenção. Em especial à Profª Gisela Ripoll (UB), que me recebeu com toda atenção e carinho em Barcelona, supervisionando meu estágio entre setembro e novembro de 2014, abrindo as portas de um novo mundo cheio de novas perspectivas e proporcionando momentos únicos e reflexões que permanecerão para sempre em minha vida. À Ilze Cristina Spitzer Simões, Waldemar Simões Jr. e Fabio Beneli e a minha amada noiva Carla Beneli, por todo o carinho e amor, por me incentivar nos momentos angustiantes, amiga e companheira que faz o meu percurso existencial ser mais sereno e feliz (Omnia vincit amor). Por fim à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela concessão da bolsa de Doutorado por quatro anos. Igualmente, ao Programa Institucional de Bolsas de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE) da CAPES, pelo auxílio para o estágio em Barcelona. “Se deus é forte, mas não é bom, isto nega uma de suas características. Se ele é bom, mas não é forte, isto nega outra. Se não é nem bom nem forte, isto contradiz a natureza divina. Se ele é bom e forte, a única condição que se aceita para Deus, qual então (é) a origem do mal sobre a terra?" Epicuro (341- 270 a.C.) “[…] Mark my words, believe my soul lives on; Don't worry, now that I have gone; I've gone beyond to see the truth. So when you know that your time is close at hand; Maybe then you'll begin to understand; Life down there is just a strange illusion”. Hallowed Be Thy Name (Steve Harris – Iron Maiden. The Number of the Beast, 1982) ESTEVES, Germano Miguel Favaro. Entre santos e demônios: a percepção do mal na teologia e hagiografias do Reino Visigodo de Toledo (séculos VI-VII) . 2015. 266 f. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2015. RESUMO A tese que aqui se apresenta a respeito do reino visigodo utiliza-se de um gênero de fontes, a hagiografia, como ponto de partida para abordagem proposta. Vemos nessas fontes um testemunho do imaginário em sua imbricação com o sagrado, ou seja, com o Cristianismo, e os limites da cristianização católica; o sincretismo religioso entre a fé cristã e as crenças ditas “pagãs” pela própria Igreja; e, dentro desse escopo, as representações do Mal, bem como a ética decorrente de tal percepção como elementos da religiosidade medieval – presentes na cultura visigoda –, os quais, não obstante extensos estudos realizados até o presente momento, exigem novas abordagens. Em linhas gerais, propomos analisar a percepção do Mal e suas representações na longa duração, o papel e intenções dos teólogos e hagiógrafos, dando atenção especial à religiosidade e suas implicações no imaginário. Como fontes principais de nossa pesquisa, que fazem parte do corpus hagiográfico visigodo, estão: A Vida de Santo Emiliano (Vita Sancti Aemiliani), de Bráulio de Saragoça; As Vidas dos Santos Padres de Mérida (Vitas Sanctorum Patrum Emeretensium) e A Vida de São Frutuoso (Vita Fructuosi), de autores desconhecidos; A Vida de São Desidério (Vita Desiderii), escrita por Sisebuto, e a autobiografia de Valério do Bierzo. Palavras-chave: Bem e Mal. Hagiografia. Teologia. Espanha – História – Período gótico, 414-711. Imaginário – Idade Média. Religiosidade. ESTEVES, Germano Miguel Favaro. Between saints and demons: the perception of evil in theology and hagiographies of the Visigoth Kingdom of Toledo (VI-VII centuries) . 2015. 266 f. Thesis (Doctorate in History) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2015. ABSTRACT This thesis about the Visigoth kingdom makes use of a genre of sources, the hagiography, as a starting point for the proposed approach. These sources show us an testimony of the imaginary in their imbrications with the sacred, that is, with Christianity, and the limits of the Catholic Christianization; religious syncretism between Christian faith and called beliefs “pagan” by the Church itself; and, within that scope, the representations of evil and ethics related to such perceptions as elements of medieval religiosity – present in the visigothic culture – which, despite extensive studies conducted until the present moment, require new approaches. Generally speaking, we propose to analyze the perception of evil and its representations in the long duration, the role and intentions of theologians and hagiographers, paying special attention to religiosity and its implications in the imaginary. As the main sources of our research, which are part of the Visigoth hagiographic corpus, are: Saint Emilian Life (Vita Sancti Aemiliani) of Braulio of Zaragoza; The Lives of the Saint Fathers of Merida (Vitas Sanctorum Patrum Emeretensium) and The Life of Saint Frutuoso (Vita Fructuosi) of unknown authors; The Life of St. Desiderius (Vita Desiderii), written by Sisebuto, and the autobiography of Valerius of Bierzo. Keywords: Good and Evil. Hagiography. Theology. Spain – History – Gothic Period, 414-711. Imaginary – Middle Ages. Religiosity. SIGLAS E ABREVIATURAS 3Toledo, Tomus, 3 (589) – terceiro concílio de Toledo, Tomo Régio e cânone 3, ano de 589. ACD – Análise Crítica do Discurso. Brag.Dcr, – MARTINHO DE BRAGA. De Correctione Rusticorum. C.Th. Codex Theodosianus. Chron Chronicon. Etym. – ISIDORO DE SEVILLA, Etymologiarum. HG – ISIDORO DE SEVILLA, Historia Gothorum. LV – Lex Visigothorum. FJ – Fuero Juzgo MGH.LL. – Monumenta Germaniae Historica, Leges. Ordo – Ordo querimonie prefati discriminis – Autobiografia de Valério do Bierzo PL – Patrologia Latina. Prognosticum – Julião de Toledo, Prognosticum Futuri Saeculi Replicatio – Replicatio sermonum a prima Conversione – Autobiografia de Valério do Bierzo Sent. – ISIDORO DE SEVILLA, Sententiarum. VD – Vita Sancti Passio Desiderii. VF – Vita Sancti Fructuosi VE – BRÁULIO DE SARAGOÇA, Vita Sancti Aemilianus. O nome se apresenta de diferentes formas: Aemilianus, Emilianus, Emilius, Milan e Millán; é geralmente conhecido pelo nome de aemilianus Cucullatus ou Millán da Cogolla; cf. LYNCH, P.C.H. e P. GALINDO San Bráulio, obispo de Zaragoza (631-651). Su vida y sus obras. Madrid: Instituto “Enrique Flores” – CSIC, 1950, p.256 e no.5. Em nosso texto, utilizaremos a forma São Emiliano. VSPE – Vitas Sanctorum Patrum Emeretensium. O texto reproduzido na edição de Joseph N. Garvin utiliza Vitas no lugar de Vitae. SUMÁRIO 1. Introdução ....................................................................................................... 13 1.1. Articulações Necessárias: o imaginário na longa duração e Análise Critica do Discurso .......................................................................................................... 21 Parte I – Das fontes para as fontes: reflexões sobre o gênero hagiográfico e a evolução do Mal nas fontes cristãs da Igreja Primitiva à Patrística 1. A natureza das fontes .................................................................................... 29 1.1. A Vita Sancti Passio Desiderii ....................................................................... 43 1.2. A Vitas Sanctorum Patrum Emeretensium .................................................... 46 1.3. A Vita Sancti Aemiliani .................................................................................. 49 1.4. A Vita Sancti Frutuosi .................................................................................... 52 1.5. A autobiografia de Valério do Bierzo.............................................................. 54 2. A concepção do Mal na Igreja Primitiva e na Patrística ............................. 59 2.1. A Igreja Primitiva: considerações preliminares ............................................. 59 2.2. O desenvolvimento da literatura cristã na Antiguidade ................................. 67 2.3. A ação diabólica na Igreja Primitiva e na Patrística ..................................... 72 3. A Igreja de Alexandria ................................................................................... 91 4. O poder do pensamento dualista ................................................................. 98 5. O Diabo nos padres do deserto .................................................................... 104 6. O Diabo nas obras de Santo Agostinho ...................................................... 111 Parte II – O Mal no reino visigodo: reflexões sobre as representações maléficas na literatura e nas leis do período visigodo 1. Considerações Preliminares ......................................................................... 121 2. A percepção do Mal nas Atas Conciliares e na legislação hispano- visigoda .............................................................................................................. 136 3. Os escritos eclesiásticos sobre o Diabo ..................................................... 145 3.1. Martinho de Braga ......................................................................................... 145 3.2. Isidoro de Sevilha........................................................................................... 150 3.3. Julião de Toledo............................................................................................ 167 4. O Mal nos relatos hagiográficos hispano-visigodos .................................. 173 4.1. Considerações acerca da Análise Crítica do Discurso (ACD) ...................... 173 4.2. A Vida de São Desidério ............................................................................... 177 4.3. A Vida dos Santos Padres de Mérida ........................................................... 185 4.3.1. Começa a morte de um tal abade Nanctus................................................. 186 4.3.2. A Morte do Abade Fidel ............................................................................. 189 4.3.3. A Vida de Masona ...................................................................................... 191 4.4. A Vida de São Emiliano ................................................................................ 196 4.5. A Vida de São Frutuoso de Braga ................................................................ 200 4.6. A autobiografia de Valério do Bierzo ............................................................. 204 5. Entre Santos e Demônios: reflexões sobre o discurso e o imaginário sobre o Mal nas Vitae hispano-visigodas ....................................................... 215 Considerações Finais .................................................................................... 234 Referencias Bibliográficas ............................................................................ 239 13 1. Introdução O estudo que aqui se apresenta acerca da percepção do Mal na teologia e nas hagiografias hispano-visigodas dos séculos VI–VII pretende ser uma produção de história (texto histórico; historiográfica) a partir de uma abordagem multidisciplinar, uma vez que busca englobar o pensamento coletivo e as representações discursivas dos teólogos e hagiógrafos do período, realidades interiores, permeadas por uma visão de mundo compartilhada pela sociedade. Preliminarmente, para tornar mais clara nossa abordagem, é preciso delimitar os conceitos de religião, bem como suas funções sociais, e religiosidade. Assim, vemos que a religião, enquanto prática cultural, sofre ela própria um constante processo de mudança, e, portanto, a concepção do que é religião muda de acordo com o tempo em que a análise é feita. Segundo o antropólogo Raúl Iturra, “Existem mil e uma formas de definir este conceito (religião), e outras tantas formas haverá também de entendê-lo e pronunciar-se acerca dele”1. Etimologicamente, um dos significados de religião está associado a re-ligare, religar, unir pessoas em torno de uma fé, o que une Deus, deuses ou qualquer outra entidade sobrenatural aos homens. Como afirma Jean Delumeau, religião “É o laço que liga o homem ao sagrado e que o impede de se sentir perdido no meio de um mundo que nunca dominará totalmente”2. Mas, conforme alerta Mircea Eliade3, nem todas as religiões apresentam as seguintes características: a existência de um deus (ou deuses), preceitos morais/comportamentais, mito de origem e relação com o sobrenatural. Na verdade, a definição de religião implica sempre o contexto sociocultural e histórico em que é elaborada, sua função dentro da sociedade e a perspectiva teórica que lhe dá sustentação. Assim, faz-se mister delimitar as funções sociais da religião. Emile Durkheim, embora se tenha baseado fundamentalmente em estudos antropológicos de sociedades primitivas, considerava o religioso como um fenômeno universal; daí o fato de ter estudado o sistema religioso em diferentes contextos históricos, sociais e culturais, tentando entender qual a essência comum, quais as funções universais 1 ITURRA, Raúl. A religião como teoria da reprodução social. Lisboa: Fim de século, 2001, p. 96. 2 DELUMEAU, Jean. As Grandes Religiões do Mundo. Lisboa: Editorial Presença, 1997, p. 735. 3 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. Lisboa: Edição livros do Brasil, 1999, p.171. 14 que a religião desempenha dentro das diferentes sociedades e que explicam a sua origem4. Dessa forma, segundo o sociólogo francês, a realidade simbólica da religião é o núcleo da consciência coletiva. Como ato social transcendente ao indivíduo, é a condição primordial para a integração e a manutenção da ordem social5. Portanto, como salienta Rodrigues6, por trás de toda manifestação religiosa (rito, culto, credo, adoração etc.) está a sociedade, pois é ela que cria a (sua) concepção de religioso. É nesse sentido que o antropólogo Radcliffe-Brown7 defende que o direito (sanções legais), a moral (sanções da opinião pública e da consciência) e a religião (sanções religiosas) são três maneiras de controlar o comportamento humano. Dentro dessa discussão sobre a função social da religião, existe outra questão extremamente pertinente, que deve ser elencada neste momento: a religiosidade. Uma das formas de definir a religiosidade é compará-la com a religião formalizada, com sua doutrina, em nosso caso, a organização eclesial e o clero profissional. A religiosidade, ao contrário de toda formalização e institucionalização presentes na religião, caracteriza-se como uma crença ou doutrina pouco definida em termos teológicos e, principalmente, ausente de organização eclesial, com maior protagonismo e ação do povo. Segundo Durkheim, tratando pontualmente sobre a religião e religiosidade cristã, “O cristianismo viveu sempre, de forma indissociável, ligado a manifestações mágicas e supersticiosas, que jamais conseguiu erradicar da mentalidade e das práticas locais”8. Em muitos contextos sociais, as práticas e as superstições populares estão misturadas com os dogmas oficiais das igrejas/religiões instituídas. De acordo com os meios e as circunstâncias, tanto as crenças como os ritos, preconizados pelas instituições religiosas oficiais, são praticados e sentidos de maneira diferente. Portanto, é pertinente realçar ainda que o patrimônio simbólico-religioso oficial (que o sociólogo italiano Enzo Pace9 considera como sistema), com seus dogmas, 4 DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 212. 5 LUCKMANN, Thomas. La religión invisible: El problema de La religión en la sociedad moderna. Salamanca: Ediciones Siguene, 1973, p. 26. 6 RODRIGUES, Donizete. Sociologia da Religião: uma introdução. Porto: Edições Afrontamento, 2007, p. 76. 7 RADCLIFFE-BROWN, A. R. Estrutura e função nas sociedades primitivas. Lisboa: Edições 70, 1989, pp. 254-255. 8 DURKHEIM, Émile. op. cit.,p. 54. 9 PACE, Enzo. New paradigms of popular religion. In: Archives de Sciences Sociales des Religions, 64/1, pp. 7-14. 15 ortodoxia, organização formal, não é facilmente compreensível pelo povo; dessa forma, a religiosidade, como subsistema, é uma interpretação própria que o grupo social faz dos ensinamentos da religião ou igreja dominante; é a forma como a população vive e expressa sua “religião” no dia-a-dia10. Sendo assim, ao olhar para a sociedade atual e todos os problemas ligados à vivência e aos sentimentos humanos que enfrentamos – toda violência, guerras, caos, das menores e infames brincadeiras que tem um fundo de maldade até o genocídio orquestrado por ditadores no século passado e neste início de século –, fazemos uma simples pergunta, que não apresenta uma resposta tão direta: de onde vêm o mal e suas representações? Como afirma Ronaldo Amaral, Em épocas de instabilidades, de dificuldades materiais e pressões negativas à sua vida interior, ou dependendo das vicissitudes do espírito, a realidade que engendrará ou será aquela que agrave e prolongue essa situação, ou será aquela que inverta para seu benefício e bem estar, seja no âmbito do sagrado seja no profano11. As ansiedades, as angústias, os medos, as esperanças, os sonhos, as utopias, temas relegados por muito tempo a segundo plano por pesquisadores, pois o que interessavam eram os acontecimentos, as estruturas humanas e sociais mais externas, personagens, fatos, e mesmo pensamentos, que fossem precisamente datáveis e documentados em sua forma mais positiva, passam a ser, em grande medida, uma inquietação para o historiador contemporâneo. Conforme nos mostra Hilário Franco Júnior, isso deslocou o enfoque da história religiosa tradicional, centrada nas instituições e personalidades eclesiásticas, passando-se a considerar mais o sentimento religioso que a religião. Os sentimentos religiosos fortemente enraizados não podem ser alcançados a não ser através de suas expressões culturais, não somente aquelas de uma cultura elitizada, mas também, sobretudo, de uma cultura dos campos, das praças, das tavernas, da cultura oral, anônima, na qual todos são os elaboradores, escritores, receptores e transmissores12. 10 RODRIGUES, Donizete. op.cit., pp.80-81. 11 AMARAL, Ronaldo. Da renúncia ao mundo à abolição da história: o paraíso no imaginário dos Pais do Deserto. Campo Grande: Editora UFMS, 2011, p.15. 12 FRANCO JR. Hilário. Meu, teu nosso: Reflexões sobre o Conceito de Cultura Intermediária: In: A Eva Barbada: Ensaio de mitologia medieval. São Paulo: Edusp, 2010, p. 29. 16 As origens do Mal remontam às antigas religiões e textos babilônicos13 que, tratando diretamente do paralelo com a religião foco deste trabalho, diferentemente do Gênesis, não colocam o homem como o primeiro transgressor, aquele que condenou a humanidade ao pecado original. Do ponto de vista babilônico, a criação do Mal é atribuída aos deuses, que moldaram o mundo à sua imagem e semelhança, sendo que um dos textos mais conhecidos do período, a Epopeia de Gilgamesh, reconhece a existência primordial do Mal14. Partindo para uma comparação mais direta, as personificações do Mal nas culturas ocidentais e orientais nos dão uma perspectiva de como este, enquanto conceito e como algo vivido e sentido, chegaram aos ocidentais. Como salienta Burton Russel, “as formulações paralelas do Diabo em culturas diversas e muito distantes no espaço podem nascer de estruturas universais do pensamento humano, ou podem ser produto de um processo, ainda desconhecido, de difusão cultural”15. Tratando diretamente do mundo grego e indo-europeu, vemos que se sugere a existência de um pecado original. De acordo com George Minois, Anaximandro, no século VI a.C, alude a um crime primitivo, após o qual a humanidade teria sido castigada pela destruição da unidade, e o crime original é transmitido a todos os seres humanos, de tal forma que existe uma cadeia inquebrável entre os homens, uma responsabilidade coletiva e solidária a respeito do pecado original. Ideia encontrada no mito de Zagreu, cuja culpa, segundo Minois, ascende a um período anterior à humanidade, a qual será retomada por certos pensadores cristãos, como Orígenes. Desse ponto de vista, o deus tem duas faces, uma coincidência de opostos, podendo expressar-se teologicamente, em termos racionais, ou mitologicamente, em termos literários16. No monoteísmo veterotestamentário, por exemplo, Deus pode ser visto como a reunião de duas tendências opostas congregadas em uma mesma pessoa. No politeísmo, as divindades individuais podem, igualmente, ser boas e más ao mesmo tempo, ao exemplo de Zeus ou alguns deuses serem considerados inteiramente bons, e outros, maus por sua natureza mitológica. Um exemplo claro de divindade que congrega os dois valores em um mesmo ser vem do hinduísmo. Brama, o deus 13 MINOIS, Geroges. As origens do mal. Uma história do pecado original. Lisboa: Editorial Teorema, 2004, p. 12. 14 Idem, Ibidem, p. 12. 15 RUSSEL, Jeffrey Burton. O diabo. As percepções do mal na antiguidade e no cristianismo primitivo. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1991, p. 45. 16 MINOIS, op. cit., pp. 14-15. 17 supremo, é chamado de “a criação e a destruição de todos”. Dessa forma, ele cria “o mau ou o bom, o gentil ou cruel, o cheio de darma ou adarma, o verdadeiro ou o falso”17. Como afirma Russel, A coincidência dos opostos, do bem e do mal, no Deus é frequentemente considerada como necessária. O postulado básico é que todas as coisas, boas ou más, vêm do Deus. Mas na medida em que as pessoas acham que o Deus é bom e não querem atribuir-lhe o mal, postulam uma oposição de forças dentro da divindade. A oposição externaliza-se gradualmente, e ocorre a divisão em dois18. Em uma lenta e gradual evolução, tratando da demonização de algumas deidades, tomemos como exemplo algumas representações religiosas ainda na Antiguidade. Os cristãos transformaram em demônios as deidades da Grécia e de Roma, os gregos por sua vez, adorando os deuses olimpianos, transformaram os Titãs em espíritos maus19. Mais exemplos, expressos pela ideia de guerra entre os deuses, a deposição dos mais velhos pelos mais novos, aparecem em relatos iranianos e indianos, em que os primeiros, aqueles que perdem a batalha pelo poder do céu ou do cosmos, são relegados à condição de espíritos geralmente maus20. Um olhar mais apurado mostra-nos que, nas religiões ocidentais, Deus e o Diabo figuram em oposição quase absoluta, não obstante os mitos de muitas sociedades os coloquem em íntima conjunção, sendo que, a existência do Bem pressupõe diretamente a existência do Mal. Segundo Russel, “o Deus e o Diabo existem e trabalham juntos desde toda a eternidade; ou são irmãos; ou o Deus cria o Diabo; ou, numa relação ainda mais próxima, o Deus o gera ou o produz de sua própria essência”21. Diante dessas breves reflexões acerca da ambivalência entre o Bem e o Mal e sua criação, surgem representações distintas entre os dois mundos, mas nem sempre estes são totalmente benéficos ou totalmente maléficos. Nas religiões da Antiguidade e em outras religiões ocidentais, o mundo subterrâneo está frequentemente, mas não totalmente, associado ao princípio do Mal. De um lado, esse mundo simboliza a fertilidade, em parte devido a sua 17 O’FLAHERTY, Wendy D. Hindu myths. Harmondsworth: 1975, pp. 42-46. 18 RUSSEL, J. B. op. cit., pp. 47-48. 19 HESÍODO. Teogonia. A origem dos Deuses. Estudo e tradução: Jaa Torran. São Paulo: Iluminuras, 2007, pp. 149-153. 20 RUSSEL, J. B. op.cit., p. 48. 21 Idem, Ibidem, p. 48. 18 associação com o ventre materno e com as plantas e colheitas que do solo nascem, além de ser também fonte de minerais preciosos como o ouro, a prata e gemas de valor. Mas, de outro lado, está associado à morte, ao túmulo ou sepultura. Tratando diretamente de Hades ou Plutão, conhecidos como os senhores do inferno na mitologia greco-romana, percebemos que ambos são vistos tanto como deuses da fertilidade quanto da morte, o que ajuda a explicar a tradição ocidental de que Satã não seja somente o senhor do Mal e da morte, mas também associado à fertilidade e à sexualidade, traço evidente, segundo Russel, nas orgias das bruxas e nos chifres que o Diabo usa frequentemente22. Embora exista um veio de interpretação benévola acerca dos senhores do submundo na Antiguidade greco- romana, estes, devido a sua associação com os tormentos e figuras infernais, criadas por meio da literatura ou das representações pictóricas23, tendem, com frequência, a ser caracterizados como maus, os senhores do castigo eterno, daí sua associação com o Diabo e o inferno cristão24. Dessa forma, haveria para os gregos uma percepção dualista de suas deidades, expressa também na teodiceia grega e em suas consequências, dentre as quais o surgimento do mundo e da humanidade25. Esses mesmos gregos contribuiriam para a visão cristã do mundo formada por matéria e espírito, sendo este último sempre preferível e mais benigno26. Como dissemos acima, além do princípio do Mal, do Diabo como sua representação mais poderosa (no que tange ao Cristianismo), podemos encontrar na maioria das sociedades uma legião de espíritos menores que personificam males específicos, e não o Mal em si. Estes são espíritos que carregam características de um tipo de mal específico, do calor e do frio extremos, da infertilidade, da doença, das tempestades ou da praga. Poucas vezes são distinguidos uns dos outros e têm a estranha e imprecisa qualidade de provocar o terror. Como demonstra Russel, eles entram no corpo, causando as doenças; ou na mente, causando a loucura. Assemelham-se a íncubos machos ou a súcubos fêmeas, seduzindo os que dormem, são geralmente feios e muitas vezes 22 Ibidem, p. 52. 23 Como exemplo, vemos nas pinturas etruscas, o demônio barbado, que aos poucos é helenizado e assimilado a Hades-Plutão e passa a designar o reino dos mortos. SERRANO, Pilar González. Catabasis e Resurrección. In: Espacio Tempo y Forma, serie II, Historia Antigua. n.12, 1999, pp. 129- 179. 24 BRANDON, S. G. F. The judgement of the dead. Londres: 1967, pp. 175-181. 25 AMARAL, Ronaldo. op. cit.,p. 39. 26 HIRSCHBERGER, Johannes. História da Filosofia na Antiguidade. São Paulo: Herder, 1957, p. 26. 19 deformados, deformação esta que constitui um sinal externo e visível da deformidade de suas ações. Quase sempre atacam a pessoa de forma direta e cruel27. Assim, a crença na existência do demoníaco remonta ao mundo antigo, entre persas, judeus, gregos, romanos e cristãos, da mesma forma que as crenças modernas sobre o Diabo. As ideias cristãs sobre o demônio remontam, em grande medida, às crenças do Cristianismo primitivo, que, por sua vez, são baseadas na demonologia dos apócrifos e dos apocalipses judeus. Segundo José Maria Blazquez, as ideias da literatura apocalíptica e apócrifa judaica sobre os demônios foram aceitas por Jesus e passaram ao Cristianismo primitivo28. Procurando trabalhar com um curto período, em relação às fontes primárias, e com um longo período, relacionado à formação do pensamento cristão, nossa atenção será dirigida em especial à religiosidade e às implicações no imaginário sobre o Mal, na teologia e nos relatos hagiográficos visigodos. Como fontes principais de nossa pesquisa, que fazem parte do corpus hagiográfico visigodo, estão: A Vida de Santo Emiliano (Vita Sancti Aemiliani), de Bráulio de Saragoça29; A autobiografia de Valério do Bierzo30, As Vidas dos Santos Padres de Mérida (Vitas Sanctorum Patrum Emeretensium)31 e A Vida de São Frutuoso (Vita Fructuosi)32, de autores desconhecidos, e A Vida de São Desidério (Vita Desiderii), escrita por Sisebuto33. É preciso lembrar, contudo, que o recorte que estamos propondo somente se torna inteligível quando enquadrado em outro muito maior. Falamos, nesse caso, dos elementos históricos que se encontram compreendidos pela Hispânia da chamada Primeira Idade Média (séculos IV a VIII) e os dados narrados nos relatos hagiográficos, pois, sem essa análise, seria impossível tratar do tema, que, como veremos, tem uma estreita ligação com as esferas sociais do período, não somente dentro do contexto da Hispânia Visigoda. 27 RUSSEL. op.cit., p. 60. 28 BLAZQUEZ, Jose Maria. Intelectuales, ascetas y demônios al final de La Antiguedad. Madrid: Cátedra, 1998, p. 528. 29 BRÁULIO DE SARAGOÇA. Vita Sancti Aemiliani. Ed. bilíngue (latim-espanhol) de J. Oroz. Revista Gerion – Textos y Estudios, Vol. IX, n. 119-120, nov-dec, 1978. 30 DÍAZ Y DÍAZ, Manuel C. Valerio del Bierzo. Su persona. Su obra. León: Centro de Estudios e Investigación San Isidoro, 2006. 31 VITAS SANCTORUM PATRUM EMERETENSIUM. Ed. bilíngue (Latim-Inglês) de J. N. Garvin. Washington D.C., The Catholic University of America Press, 1946. 32 VITA FRUCTUOSI. Ed. bilíngue (Latim-Espanhol) de M. C. Díaz y Díaz. Braga, s/e, 1974. 33 SISEBUTO. Vita Desiderii. In: GIL, I. (Ed.). Miscellanea Wisigothica. Sevilla, Anales de la Universidad Hispalense. Serie Filosofia y Letras, n.15. Publicación de la Universidad de Sevilla, 1972, pp.70-112. 20 Assim, o presente trabalho visa a discutir e se ocupar da problemática acerca da percepção do Mal na teologia e nas hagiografias, suas representações na longa duração, o papel e intenções dos teólogos e hagiógrafos, dando atenção especial à religiosidade e suas implicações no imaginário da Hispânia do período, suas influências literárias, bem como a figura do Diabo34, o inimigo da humanidade, o fomentador dos vícios e serpente do Mal, são percebidos e externados dentro das Vitae. Dessa forma, a pesquisa que aqui se apresenta a respeito do reino visigodo, buscará utilizar-se de um gênero de fontes – hagiografia, que, como constatamos, são pouco estudadas em razão da escassez de trabalhos sobre o tema – como ponto de partida para abordagem proposta. Vemos nessas fontes um testemunho do imaginário em sua imbricação com o sagrado, ou seja, com o Cristianismo, os limites da cristianização católica, o sincretismo religioso entre a fé cristã e as crenças ditas “pagãs” pela própria Igreja. A concepção de Mal (personificado no demônio) e Bem (personificado no santo) e a ética decorrente disso são alguns dos elementos dessa religiosidade medieval – presentes na cultura visigoda – os quais, não obstante extensos estudos realizados até aqui, exigem abordagens sobre novas perspectivas. Enfim, em linhas gerais, buscamos destacar quais são as particularidades dessas hagiografias, o papel e intenções dos hagiógrafos e sua relação com os problemas decorrentes da ação do Mal e a religiosidade no reino visigodo. Tratando diretamente das Vitae visigodas, uma das hipóteses que formulamos para esta pesquisa entra em concordância com os escritos de Hilário Franco Júnior, quando trabalha com a Legenda Aurea. O autor elenca dois traços básicos da mentalidade medieval inseridos nesse conjunto de textos: o belicismo e o contratualismo. Estes mostram, primeiramente, o mundo como um palco da luta entre as forças do Bem e do Mal, que somente encontrariam seu fim no Juízo Final, e os santos como personagens que se configuram como armas importantes para guiar o homem para a vitória final do Bem. Isso, em segundo lugar, expressa a participação de todos os elementos da natureza, sobretudo a do homem, que necessariamente se posiciona de um lado ou de outro, já que a neutralidade ética era inviável para aquela visão de mundo. Assim, o papel dos santos era, pelo exemplo do martírio e das virtudes, conquistar novos adeptos para a causa de Deus. 34 Utilizaremos o termo “Diabo” com letra maiúscula quando se tratar do equivalente à personificação do Mal supremo, o inimigo do Deus cristão, e “diabos” ou “demônios” como sinônimo de seres malignos com poderes sobre-humanos. ROBBINS, Rossel H. Enciclopédia de la Brujeria y Demonologia. Madrid: Editorial Debate, 1988, p. 251. 21 Porém, existem alguns traços contraditórios nas intervenções punitivas dos santos, sob a justificativa de punir “alguns para recolocar outros no caminho correto”, da mesma maneira que, pela visão totalizadora que se tinha da divindade, os demônios eram “feitores de Deus”, que praticavam o Bem para punir o Mal. O Deus punitivo presente nas páginas da literatura apócrifa veterotestamentária e também na canônica estaria também na literatura hagiográfica visigoda, prolongando uma antiquíssima vertente hebraica na qual Yahweh, que, em um primeiro momento, é uma divindade que congrega o Bem e o Mal em uma única figura, transforma-se em um Deus bom, relegando aos seus “anjos caídos” o papel de perpetrar o Mal. Tal fórmula torna-se, de nosso ponto de vista, contraditória diante da análise da literatura hagiográfica visigoda. 1.1. Articulações Necessárias: o imaginário na longa duração e a Análise Crítica do Discurso Ao longo dos primeiros séculos do Cristianismo, desenvolveu-se um pensamento que, externado por meio da via literária, formou as bases das representações que foram usadas, discutidas e reformuladas dentro do reino visigodo dos séculos VI e VII. Assim, o pensamento a respeito do sagrado e sua percepção, dogmas e o modus vivendi dos cristãos dos primeiros séculos foram passados de geração em geração até desembocar na formulação literária visigoda a respeito do Mal e suas representações. Dessa forma, nossa abordagem encontra-se na “longa duração” proposta por Fernand Braudel35. Substituindo um tempo único, linear, pela “dialética da duração”, o enfoque no tempo longo propiciou, além de uma aproximação da antropologia, a possibilidade de construir uma cronologia científica, datando os fenômenos históricos segundo sua duração, longe de encerrar-se nos acontecimentos.36 Nesse sentido, diz Amaral: [...] a religiosidade só pode falar do sagrado enquanto cuide do humano e o entenda inserido em uma cultura específica, embora extrapole seus próprios 35 BRAUDEL, Fernand. Historia y ciencias sociales. Madrid: Alianza Editorial, 1970, pp. 60-97. 36 CRACCO, Rodrigo Bianchini .A longa duração e as estruturas temporais em Fernand Braudel: de sua tese O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na Época de Felipe II até o artigo História e Ciências Sociais: a longa duração (1949-1958). Dissertação de Mestrado. FLC UNESP-Assis, 2009, p. 11. 22 limites em razão desse duplo denominador comum: aquele que abole ou relativiza a dualidade erudito/popular e aquele que une as diversas tradições socioculturais, quando se busca a universalidade e a essencialidade do ser e existir humanos, presente sobretudo nas abordagens de longa duração, das emoções que, não obstante, inferindo mesmo na razão, prezam mais pelas permanências que pelas transformações.37 Como expoentes de autores que tratam do tema, observemos as afirmações de Michel Vovelle,38 que vê na longa duração o veículo pelo qual a história cultural teve mais avanços. Jacques Le Goff chega a tratar a longa duração como “a mais fecunda das perspectivas definidas pelos pioneiros da história nova”39. Inseridas nesse âmbito estão as realidades metafísicas e transcendentes, que, no âmbito das formulações e percepções humanas que escreveram a história e nela se inscreveram por meio de imaginários e suas projeções no social, suscitaram comportamentos, palavras e obras, entre essas últimas, as literárias e artísticas40. Le Goff destacava que [...] o imaginário pertence ao campo da representação, mas ocupa nele a parte da tradução não reprodutora, não simplesmente transposta em imagem do espírito, mas criadora, poética no sentido etimológico da palavra.41 O imaginário pode, assim, ser considerado um sistema ou universo complexo e interativo que abrange a produção e circulação de imagens visuais, mentais e verbais, congregando sistemas simbólicos das mais variadas formas, operando na construção de representações diversas. De acordo com essa definição, existe uma interface possível do imaginário não apenas com o campo das “representações”, mas também com o âmbito dos “símbolos”42. Nesse sentido, deveremos lembrar que é possível falar em “simbólico” apenas quando um objeto, uma imagem ou uma representação são remetidos a uma dada realidade, ideia ou sistema de valores que 37 AMARAL, Ronaldo. Apresentação. In: Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.1, nº2 jan-jun, 2012. pp.1-3 38 VOVELLE, Michel. A história e a longa duração. In: LE GOFF, Jacques; CHARTIER, Roger; REVEL, Jacques (Dir.). A História nova. Trad. Eduardo Brandão. – 5ª ed. - São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 99. 39 LE GOFF, Jacques. A História Nova. In: LE GOFF, Jacques; CHARTIER, Roger; REVEL, Jacques (Dir.). A História nova. op. cit., p. 62. 40 AMARAL, Ronaldo. op. cit., p. 18. 41 LE GOFF, Jacques. O Imaginário Medieval. Lisboa: Edições 70, 1980, p.12. 42 BARROS, José D’Assunção. Imaginário, Mentalidades e Psico-História – uma discussão historiográfica. In: Labirinto: Revista Eletrônica do Centro de Estudos do Imaginário. Rondônia: Universidade Federal de Rondônia, Disponível em: . Acesso em: 12/04/2015. 23 se quer tornar. Uma imagem, portanto, pode-se ver revestida de significado simbólico, conforme veremos adiante com o exame de algumas imagens apropriadas politicamente43. Hilário Franco Junior afirma que todo imaginário é um sistema, não uma mera acumulação de imagens, sendo um grupo coerente delas, articuladas segundo a essência de suas mensagens e das formas assumidas para veiculá-las44. Assim, para ter uma apreensão verdadeira, a imagem deve estar em conexão com outras imagens, cumprindo seu papel como instituidora de discurso, ganhando sentido e, conscientemente ou não, expressando determinadas cosmovisões45. Toda imagem nasce de um imaginário e o realimenta, fazendo com que nesse processo, deveras espontâneo, os sentimentos veiculados escapem ao seu autor, ultrapassando o nível do indivíduo. Se amor, desejo, esperança, angústia, medo, qualquer estado afetivo, configuram-se como transtemporais e transpessoais, suas modalidades de exteriorização são datadas, contextuais e coletivas46. Ou seja, nenhuma imagem é, portanto, pensada e formulada ao bel-prazer do homem; ele o faz direcionado e compelido por seu contexto sociocultural e religioso próprio47. Os recursos simbólicos, contudo, só fazem sentido no seio de determinado imaginário social adequadamente estruturado em relação a referenciais inteligíveis para a maioria da sociedade. Como nos mostra Baczko, [...] exercer um poder simbólico não consiste meramente em acrescentar ao ilusório uma potência real, mas sim em duplicar e reforçar a dominação efetiva pela apropriação dos símbolos e garantir a obediência pela conjugação das relações de sentido e poderio. Os bens simbólicos, que qualquer sociedade fabrica, nada têm de irrisório e não existem, efetivamente, em quantidade ilimitada. Alguns deles são particularmente raros e preciosos. A prova disso é que constituem o objeto de lutas e conflitos encarniçados e que qualquer poder impõe uma hierarquia entre eles, procurando monopolizar certas categorias de símbolos e controlar as outras. Os dispositivos de repressão que os poderes constituídos põem de pé, a fim de preservarem o lugar privilegiado que a si próprios se atribuem no campo simbólico, provam, se necessário fosse, o caráter decerto imaginário, mas de modo algum ilusório, dos bens assim protegidos, tais como os emblemas do poder, os monumentos erigidos em sua glória, o carisma do chefe, etc.48 43 Idem, Ibidem. 44 FRANCO JÚNIOR, Hilário. O fogo de Prometeu e o escudo de Perseu. In: Os três dedos de Adão. Ensaios de Mitologia Medieval. São Paulo: Edusp, 2010, p. 75. 45 Idem, Ibidem, p. 75. 46 Ibidem, p. 75. 47 AMARAL, Ronaldo. op. cit., p. 19. 48 BACZKO, Bronislau. Imaginação Social. In: Enciclopédia Einaudi Volume 5. Antropos-Homem. Imprensa Nacional: Casa da Moeda,1985, p. 298- 299. 24 Desse modo, como muito bem explica Hilário Franco Júnior,49 em quase toda sociedade imaginária – e aqui poderíamos nos reportar à realidade hagiográfica, porque é quase sempre também imbuída do maravilhoso – ter-se-á a forte presença de uma sociedade concreta, por meio do exagero ou da inversão de suas características, da negação de seus medos ou da projeção de seus desejos. Sobre o pensamento analógico medieval, completa o autor: “[...] é por isso que o pensamento analógico privilegia a busca de semelhanças sem negar contudo as diferenças entre os elementos comparados, sejam eles sociais, naturais ou supranaturais”.50 Sobre as relações entre história e literatura, Franco Júnior destaca que a primeira é uma reconstrução imaginária do passado feita no presente, uma reconstituição realizada a partir de material fragmentário e necessariamente comprometido pelos dados sociais das épocas passadas que o produziram, e pelos dados culturais do historiador, que, na manipulação dessas fontes, não está isento de seu próprio momento histórico, sendo que, portanto, toda nova reformulação resulta da associação original de elementos até então dissociados, com cada nova associação respondendo a demandas, individuais ou sociais, do presente que a realiza51. Por sua vez, a literatura também é uma elaboração imaginária, que também congrega referências ao seu presente. A literatura é menos ficcional e arbitrária do que pensam alguns, pois, em certo sentido, mesmo os sentimentos veiculados pela literatura escapam ao escritor, ultrapassando o indivíduo, ou melhor, trata-se em grande medida do coletivo falando através do indivíduo52. Tanto o historiador quanto o literato filtram e reconstroem o real nas suas obras, criações imaginárias que, devolvidas ao real, modificam-no, pois ambos os discursos são ideológicos e compensatórios na medida em que, tanto o historiador quanto o literato, dentro das especificidades de seus métodos de trabalho e de suas 49 FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Cocanha. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 15. 50 FRANCO JÚNIOR, Hilário. Modelo de imagem: O pensamento analógico medieval. In: Os três dedos de Adão. Ensaios de mitologia medieval. São Paulo: Edusp, 2010, p. 97. 51 FRANCO JÚNIOR, Hilário. História, literatura e imaginário: um jogo especular. O exemplo medieval da Cocanha. In: IANNONE, Carlos Alberto; GOBI, Márcia V. Z.; JUNQUEIRA, Renata Soares. Sobre as naus da Iniciação. Estudos portugueses de Literatura e História. São Paulo: Editora UNESP, 1998, pp. 271-272. 52 Idem, Ibidem, pp. 272-273. 25 linguagens, concretizam o resultado de suas reflexões em mensagens dirigidas a determinados públicos53. Surge, assim, como via para analisarmos a religiosidade e suas relações, o conceito de ideologia. Dada a gama de significados que possa apreender o termo, seguiremos a perspectiva de Georges Duby, que a conceitua: [...] não como um reflexo vivido, e sim como um projeto de agir sobre ele. Para que a ação tenha qualquer possibilidade de eficácia, é preciso que não seja demasiado grande a disparidade entre a representação imaginária e as "realidades" da vida. Mas a partir daí, se o que se diz e o que se escreve é entendido, novas atitudes cristalizam e vêm modificar a forma pela qual os homens compreendem a sociedade de que fazem parte54. O próprio autor define detalhadamente o que entende por ideologia: [...] utopias justificadoras, tranqüilizadoras [...] imagens, ou antes, conjunto de imagens imbricadas, que não são um reflexo do corpo social, mas que, sobre ele projetadas, pretenderiam corrigir suas imperfeições, orientar sua caminhada num determinado sentido, e que estão ao mesmo tempo próximas e distantes da realidade sensível55. É dessa maneira que a análise sobre o Mal e suas representações toma corpo dentro de nosso trabalho. Através de discussões acerca da Análise Crítica do Discurso, podemos vislumbrar sua forte relação com as fontes desta pesquisa. Sendo assim, tomaremos primeiramente a proposição de Maria Helena Brandão sobre a produção de um discurso: “O percurso que o indivíduo faz da elaboração mental do conteúdo a ser expresso à objetivação externa – a enunciação – desse conteúdo é orientado socialmente, buscando adaptar-se ao contexto imediato do ato da fala e, sobretudo, a interlocutores concretos”56. Para tanto, utilizaremos de forma direta os referenciais de análise discursiva nas Vitae57 propostos por Viviane Melo 53 Ibidem, p. 274. 54 DUBY, G. As três ordens ou o imaginário do feudalismo. Lisboa: Estampa. 1982 p. 21. O autor ainda conclui na mesma obra que: “Os sistemas ideológicos não se inventam. Existem, difusos, aflorando apenas a consciência dos homens. Nunca imóveis. Elaborados na memória dos homens, intrinsecamente, através de uma lenta evolução, imperceptível, mas cujos efeitos se descobrem de longe em longe, efeitos que no conjunto se deslocam e que podemos reconstruir”, p. 81. 55 DUBY, G. A história continua. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1993. p.113 56 BRANDÃO, Maria Helena Nagamine. Introdução a análise do discurso. ed. 2ª. Campinas: Editora da Unicamp, 1993, p. 10. 57 Como propusemos em nossa pesquisa, somente utilizaremos os critérios da Análise Crítica do Discurso nas Vitae do período. 26 Rezende e Viviane Ramalho,58 encontrados na obra Análise do Discurso Crítica, complementados pela proposta de análise de Luisa Martin Rojo, encontrada na obra Manual de Análise do Discurso em Ciências Sociais.59 Os objetivos que a ACD estabelece se originam de uma concepção tridimensional do discurso60. Trata-se, como afirma Rojo, de saber como é realizada essa construção discursiva dos acontecimentos, das relações sociais e do próprio sujeito, a partir da análise dos aspectos linguísticos e do processo comunicativo em um tempo e lugar determinados61. A partir desses objetivos esboçam-se duas áreas de investigação: 1ª) Por um lado, o estudo de como os discursos ordenam, organizam e instituem nossa interpretação dos acontecimentos e da sociedade e incorporam, além disso, opiniões, valores e ideologias. Esse estudo se concentra na construção discursiva de representações sociais; 2ª) Por outro, o estudo de como esse poder gerador dos discursos é administrado socialmente, de como os discursos são distribuídos socialmente, de como lhes atribuímos um valor deferente na sociedade dependendo de quem os produza e onde sejam difundidos. Isso é a ordem social do discurso62. Assim, faz-se mister, em um primeiro momento, expor as principais características da literatura hagiográfica, concernentes ao seu gênero específico, apresentando as fontes primárias de nosso estudo e os principais referenciais usados pelos hagiógrafos do período. Em um segundo momento, deve-se abordar a literatura dos primeiros cristãos, da Igreja Primitiva, e como ela tratou o problema do Mal e suas representações, visto que o Cristianismo dos primeiros séculos recebeu influências de diversas vertentes religiosas, não só da religião hebraica, mas de outras religiões orientais. Em um terceiro momento, propomos uma análise da religião e da religiosidade no contexto hispano-visigodo, tendo como arcabouço de análise o corpus literário do período e a maneira como os escritores, em sua maioria ligados às mais altas esferas da Igreja, traçaram considerações a respeito do Mal e de suas representações, deixando, assim, para o final a análise inicialmente proposta das hagiografias supracitadas. 58 REZENDE, Viviane Melo; RAMALHO, Viviane. Análise do Discurso Crítica. São Paulo: Contexto, 2009, p.34. 59 MARTIN ROJO, Luisa. A fronteira interior análise crítica do discurso: um exemplo sobre o racismo In: Manual de Análise do Discurso em Ciências Sociais. Lupicinio Iñiguez (Coord), Vera Lucia Joscelyne (Trad). Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2004. 60 Esse tema será mais bem abordado em nossa análise dedicada às hagiografias. 61 Idem, Ibidem, p. 216. 62 Ibidem, p. 218. 27 Desse modo, a produção hagiográfica visigoda referente às passagens que salientam a figura do Mal pode ser entendida dentro de uma ampla rede de processos, que envolvem o credo cristão, a reafirmação e legitimação do poder eclesiástico, o renascimento isidoriano, inseridos dentro de contextos, de dimensões e níveis variáveis, do mais local ao mais global (compreendendo o horizonte entre religião e religiosidade no contexto trabalhado). Parte I DAS FONTES PARA AS FONTES: reflexões sobre o gênero hagiográfico e a evolução do Mal nas fontes cristãs da Igreja Primitiva à Patrística 29 1. Autoria e natureza das fontes Os documentos que servem de análise para este trabalho, nossas fontes históricas primárias, as Vitae do período hispano-visigodo, hagiografias produzidas no século VII, bem como o estudo das hagiografias tardo-antigas e medievais, têm ganhado grande destaque nas últimas décadas. Legada a uma fonte secundária, a literatura hagiográfica como ciência histórica tem seu início com os jesuítas Heribert Rosweyde e Jean Bolland no século XVII, fundando a escola bollandista, que inaugura uma tradição de estudos hagiográficos1. O termo “hagiografia” não é contemporâneo à produção das obras. Essa terminologia é utilizada desde o século XVII, quando se iniciou o estudo sistemático sobre os santos, sua história e culto, para designar tanto esse novo ramo do conhecimento, como o conjunto de textos que tratam de santos com objetivos religiosos2. A literatura hagiográfica cristã teve início ainda na Igreja Primitiva quando, a partir de documentos oficiais romanos ou de relatos de testemunhas oculares, eram registrados os suplícios dos mártires. Sua produção começa a partir do século II, em textos que tratam em certos casos de testemunhos diretos, às vezes autobiográficos, sobre o martírio de santos e sobre a veneração que um santo suscitou em uma ou outra comunidade de língua latina ou grega. Tais obras possuíam caráter privado e foram redigidas principalmente por membros ligados à comunidade cristã. A partir da compilação hagiográfica Acta Sanctorum, de 1646, e da Bibliotheca Hagiographica Antiquae et Mediae Latinitates, no século XIX, os estudiosos bollandistas tinham como foco realizar edições críticas sobre essas obras, no intuito de estabelecer os marcos cronológicos de seus autores para buscar nelas dados concretos sobre a existência de seus protagonistas, seu nascimento, morte e atuação, cotejando-as com outros documentos para então afirmar a veracidade desses santos. No esforço de aprofundar e realizar um trabalho histórico em relação à hagiografia, esses primeiros estudos visavam a sublinhar, dentro do conteúdo do texto, personagens e dados que se acreditassem apócrifos, desde que estes não se configurassem como um obstáculo à fé, rendendo, assim, um grande serviço à 1 GAJANO, Sofia Boesch. Agiografia altomedieval. Bolonha: II Mulino, 1976. 2 DELEHAYE, H. Lês Légendes Hagiographiques 4ª ed. Sociedad de Bolandistas, Bruselas,1973,p. 24. 30 Igreja3. Assim, permeados por uma visão positivista da história, insistindo em métodos que fizessem emergir das Vitae “fatos verdadeiramente históricos” para além de outro aporte do documento, com sua clara parcialidade eclesiástica, buscavam afastar de sua ótica os santos não inclusos na tradição oficial da Igreja4. Esse caminho também seguiu outro importante estudioso das vidas de santo, Hippolyte Delehaye, que inaugurou um segundo momento na tradição bollandista, por seu interesse em impor problemas de caráter histórico às Vitae5, constituindo-se em um divisor de águas nesse campo, chamando a atenção para o fato de que a tipologia de documentos poderia ser objeto e, ao mesmo tempo, fonte de estudo para a história, extrapolando seu uso habitual como fonte puramente literária e devocional6. Dessa forma, o autor buscou em sua análise, do ponto de vista de uma leitura positivista, apreender o “real”, “o verdadeiro”, ou seja, a “verdade objetiva”, separando o concreto do maravilhoso, o provável do improvável, o histórico do imaginário7. Dessa maneira, a visão positivista acerca das hagiografias, representada por Delehaye, reitera que o histórico deve residir nos testemunhos que apontem dados factíveis, estes somente comprovados pela análise de outros documentos ditos oficiais, como datas precisas e lugares, uma premência do documento oficial sobre o literário, do santo como homem histórico, sem distinção entre os dois, desprovendo, assim, o relato hagiográfico, a nosso ver, de sua função histórica maior, como bem sintetiza Ronaldo Amaral: [...] denotar não o indivíduo, o sujeito particular – o diríamos mesmo impraticável, principalmente neste período histórico –, mas o coletivo que se encarna na pessoa do hagiógrafo, o qual, em razão disso, vê-se impelido a expressar em sua escrita os sentimentos e emoções que são seus, e, por extensão, de todo o seu grupo. Esses sentimentos e emoções, em último caso, poderão se cristalizar nas feituras da vida social mais externa, criando hábitos, costumes e tradições de longa duração, entre as quais a mais importante parece ser a mesma escrita hagiográfica ou sua posterior implicação nas mentes e nos corações do devir [...]8. 3 Idem, Ibidem, p. 9. 4 AMARAL, Ronaldo. Santos Imaginários, Santos Reais. A literatura hagiográfica como fonte histórica. São Paulo: Intermeios, 2013, p. 43. 5 DELEHAYE, Hyppolyte. Les légendes hagiographiques. Bruxelles : Sociéte des Bollandistes, 1927. 6 AMARAL, op.cit., pp. 42-43. 7 Idem, Ibidem, p. 43. 8 Ibidem, p. 46. 31 O problema primeiro a ser estabelecido não é a historicidade do santo (proposição que vai na contramão dos estudos de Delehaye, pois este acredita na existência real do santo e mesmo a procura), mas sim, independentemente deste ter vivido ou não, a tentativa de apreender o santo, suas vicissitudes, seus combates, e as realidades transcendentais, vivos na pena dos hagiógrafos, cujo produto é perpassado pelo imaginário coletivo, suas representações sacras, suas imagens e seu simbolismo. Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva nos apresenta uma clara explanação que tomaremos por base. Segundo a autora, são as hagiografias [...] obras voltadas, fundamentalmente, para a propaganda de centros de peregrinação e a edificação de fiéis, por visarem o grande público e serem, na grande maioria dos casos, redigidos por homens cultos e ligados à Igreja, tornam-se textos fronteiriços. Ao mesmo tempo em que transmitem os pontos de vista e ensinamentos elaborados por intelectuais, tais obras incorporam elementos do cotidiano das pessoas para que suas mensagens se tornem mais adequadas e compreensíveis”9. A autora ainda completa em outra passagem que era também o objetivo da obra [...] propagar os feitos de um determinado santo, atraindo, assim ofertas e doações para os Templos e Mosteiros que os tinham como patronos; produzir textos para o uso litúrgico, tanto nas missas como nos ofícios monásticos; para a leitura privada ou nos textos de escola; instruir e edificar os cristãos na fé; divulgar os ensinamentos oficiais da Igreja, etc.10 Verificamos, assim, que essas obras, atendendo uma intenção e função social, eram voltadas fundamentalmente para propagação de concepções teológicas, modelos de comportamento, padrões morais e valores. Essas características eram postas por meio da narração dos feitos de um homem que é tido como santo e dos elementos que estão vivamente inseridos na sua vida ou à sua margem. Para completar, essas vidas de santos oferecem para o historiador dados de enorme interesse. Refletem quadros do ambiente social a sua volta com grande vivacidade e brilho, permitindo dessa forma uma entrada mais segura e 9 FRAZÃO DA SILVA, Andréia C.L. Hagiografia e poder nas sociedades Ibéricas Medievais. In: Humanas.Curitiba, Editora UFPR, 2001,n. 10, p.135-172, p167. 10Idem, Ibidem, p.167. 32 direta nas condições reais de existência da sociedade que outros tipos de fontes, tais como as legais11. Santiago Castellanos, trabalhando com o conceito de motivação, com relação à escrita da vida dos santos, mostra que o texto hagiográfico não aparece espontaneamente ou de forma isolada, sendo parte constituinte de estruturas históricas gerais e concretas, próprias do período pós-romano e das circunstâncias específicas do ambiente em que ele aparece, existindo uma variedade de interesses ligados ao conceito em diferentes casuísticas pessoais, sociais ou territoriais, estando, assim, diante de um fenômeno cultural e, no mais amplo sentido da palavra, um fenômeno humano e, portanto, histórico12. Porém, o autor se prendeu a circunstâncias de caráter puramente sociopolítico, concernentes às relações de poder entre as elites, utilizando a hagiografia para justificar o contexto histórico, sobretudo aquele ligado às relações de poder político e econômico, buscando uma verdade histórica dentro dessas fontes. Assertivamente, o contexto histórico é produto de sua época, mesmo aqueles que encerram uma história, do nosso ponto de vista, na longa duração, nas mais variadas formas de apropriações. Porém, a análise parte do texto principal, cotejando-a com seu contexto imediato, mas também com aquele da longa duração, e deságua no texto principal novamente, podendo mensurar agora sua conjuntura híbrida, formada pelas estruturas de longa (imaginário, topoi literários, arquétipos) e curta duração histórica (o contexto mais imediato), como afirma Amaral13. Castellanos, assim, utiliza as hagiografias como documentos marginais, pois sua preocupação encontra-se centrada na realidade econômica e nas tensões sociais que nelas podem ser encontradas, as quais devem ser comprovadas por documentos mais fiéis à historicidade. Tal estudo configura-se como um dos possíveis olhares que podem recair sobre o texto hagiográfico, um testemunho da vida socioeconômica da Hispânia do período, porém não contempla o social e o histórico inerentes e ligados intimamente ao cultural e ao imaginário, realidades históricas privilegiadas da vivência humana, que podemos encontrar nos discursos hagiográficos. 11 GARCIA MORENO,L. A. Historia de España Visigoda. Madrid, Cátedra, 1989, p. 12. 12 CASTELLANOS, Santiago. La hagiografia visigoda. Domínio Social y proyeccíon cultural. Logroño: Fundacion San Millan de La Cogolla, 2004, p. 16. 13 AMARAL, op. cit., p. 63. 33 Adentrando, superficialmente, os relatos hagiográficos do período, vemos que estes narram a vida do homem santo, que, segundo André Vauchez, configura-se como um modelo ideal que estabelecia o contato entre o céu e a terra e que representava a maior realização do homem na Idade Média, encarnando, na maioria das vezes, em sua pessoa os sofrimentos de Cristo ou milagres análogos aos por ele realizados (Imago Christi), com isso obtendo entre a população um grande sucesso graças a sua eficácia. É, não obstante, um morto excêntrico, ao qual se dedicava um culto realizado em torno do seu corpo, do seu túmulo e de suas relíquias. O santo colocava o seu poder sobrenatural mediador a serviço dos homens, em primeiro lugar, dos menos brindados pela sorte, como doentes e presos, apresentando-se como o homem das mediações bem sucedidas14. É oriundo, na maior parte das vezes, de grupos aristocráticos e proprietários de terras, um tópico muito comum nas hagiografias do período, e goza de um patrimônio de conhecimentos e relações que pode colocar utilmente a serviço dos humildes15. Os pedidos que são dirigidos ao homem santo, em geral, pelas comunidades vão desde a libertação dos males pelos quais são afligidos (a doença, a miséria, a guerra), até o apaziguamento das tensões existentes no seio dos grupos e entre os clãs. E é nesse domínio que o santo é induzido a empenhar-se nos mais duros combates, que o colocam em conflito direto com os demônios, ou seja, com aqueles que destruíam a relação harmoniosa existente precedentemente entre o homem e seu ambiente16. A eficácia da sua ação basta para manifestar a vitória de Deus sobre o Mal porque representa uma possibilidade de salvação. O pecador oprimido pelo remorso está seguro de encontrar no homem de Deus o perdão de seus pecados. Os grandes santos atraem para si um grande número de aleijados, penitentes ávidos de perdão, consolo espiritual. No mais, Vauchez afirma: “[...] os fiéis não esperam do homem santo nem um discurso nem a transmissão de um saber: querem milagres”17. Tendo em vista esses aspectos, é dito que a figura do santo contou com uma grande popularidade sócio-religiosa ao longo da Antiguidade Tardia, tanto nos reinos romano-germânicos ocidentais como no Oriente bizantino. Sua busca incessante 14 LE GOFF, J. O Homem Medieval. Lisboa: Presença, 1989, p.24 . 15 VAUCHEZ, André. Santidade. In: Enciclopédia Einaudi. Volume 12. Portugal: Imprensa Nacional- Casa da Moeda, 1987, p .291. 16 Idem,Ibidem. p .291. 17 Ibidem p. 292. 34 pela santidade e pela perfeição evangélica fazia do homem santo um modelo ideal para populações localizadas a sua volta, que o viam como autêntico sucessor dos antigos deuses e heróis locais pagãos18. Essa imagem do homem santo aparece muito bem representada em boa parte das fontes hagiográficas do Ocidente tardo- antigo19. Sobre o personagem que atua no polo oposto à luz, o Diabo, percebe-se que as ideias cristãs remontam, em grande medida, às crenças do Cristianismo primitivo, que, por sua vez, são herança da demonologia dos apócrifos e apocalipses judaicos, sendo utilizadas dentro do Novo Testamento20. O relato hagiográfico ainda pode-nos apresentar uma importante fonte para contemplar diferentes esferas sociais da vida quotidiana em seu contexto, exprimindo de muitas maneiras o vivido, o pensado, o maravilhoso, o sobrenatural, o improvável, no plano factível e puramente real. A obra literária medieval, na qual se enquadra o relato hagiográfico é, conforme pontua Fernando Baños Vallejo, um conjunto de significações que remetem a códigos de uma natureza muito diversa (linguísticos, relacionados com a literatura latina, ideológicos, filosóficos, teológicos e sociais)21. De acordo com Ronaldo Amaral, os padres da Igreja e, principalmente, os padres do deserto, sensíveis a uma espiritualidade mais aflorada, às apreensões das coisas do espírito, já há muito haviam discorrido sobre a posse dos demônios sobre o humano e, principalmente nesse caso, seu grau de direito e força de possuí- los e manipulá-los22. Teóricos da espiritualidade monástica – e cristã de uma forma mais ampla – haviam sublinhado que os demônios, em grande medida, regiam o mundo e poderiam se apossar do homem, se não de sua alma mesma, de seu corpo e de sua mente, principalmente quando estivesse preso às emoções e pensamentos mundanos e viciosos23. O Diabo e seus satélites, embora agissem muitas vezes pelo consentimento de Deus (e assim o Mal deveria ter por última finalidade um bem 18 BROWN, Peter. The cult of saints. Its rise and function in Latin Christianity. The University of Chicago Press. 1981, p. 5. 19 FRIGUETTO, Renan. Cultura e Poder na Antiguidade Tardia Ocidental. Curibiba: Editora Juruá, 2000, p . 35. 20 BLÁZQUEZ, José Maria. Intelectuales, Ascetas y demônios al final de la antiguedad. Madrid: Ediciones Cátedra, 1998, p.528. 21BAÑOS VALLEJO, Fernando. La hagiografía como género literario en la Edad Media. Tipología de doce Vidas individuales castellanas. Oviedo: Departamento de Filología Española, 1989, p. 15. 22 AMARAL, Ronaldo. Os padres do Deserto na Galiza: Apropriações e usos da literatura monástica Oriental na autobiografia de Valério do Bierzo. Implicações no Imagiário sobre o mal. In: Revista Medievalista on line, ano 3, número 3. Instituto de Estudos Medievais FCSH-UNL, 2007. Acesso em 10/01/2012. 23 Idem, Ibidem. 35 maior) exerceriam grande influxo no humano e mesmo na natureza, e seu combate só seria possível e absolutamente eficaz, se o homem se prendesse às coisas de Deus. Se as armas dos demônios seriam os pensamentos, os desejos, as excitações do homem ligado à realidade mundana, o escudo do cristão e sua arma poderosa seriam sua dedicação às coisas do espírito, à ascese, à contemplação das coisas divinas24. Tendo essa breve explanação em vista, uma análise sobre o corpo das fontes hagiográficas pode-nos revelar, em grande medida aliada a estudos dos autores aqui citados e outros que elencamos em nosso trabalho, uma abordagem direcionada à compreensão de diversos aspectos que circundavam questões de ordem social e mental dentro do contexto hispano-visigodo. Para tanto, começaremos nossa reflexão tomando como ponto norteador o conceito de “lugar social”, elaborado por Michel de Certeau25, pelo qual entendemos que Toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção sócio- econômico, político e cultural. [...]. Ela está, pois, submetida a imposições, ligada a privilégios, enraizada em uma particularidade. É em função deste lugar que se instauram os métodos, que se delineia uma topografia de interesses, que os documentos e as questões, que lhes serão postas, se organizam26. Dessa forma, o “lugar” determina e legitima os métodos, os documentos, as questões e as propostas válidas a serem discutidas e pesquisadas. A vinculação da história a um “lugar” se torna a condição da análise da sociedade, pois, antes de saber o que a história produz, devemos saber e entender como funcionam as leis que a regem ou, parafraseando Certeau, devemos conhecer os processos da “operação historiográfica”. Com esse conceito, somos “retirados” da posição ingênua de pensarmos que nós, historiadores, somos criadores livres ou que se possa produzir uma história “fora” desse sistema. Tomamos, também, consciência de que quando um indivíduo entra em uma instituição, seja como discente ou docente, ele é treinado para agir e trabalhar com essa maquinaria, que é baseada nas regras da instituição. Pois, como constatou esse autor, uma obra de valor em história [...] é aquela que é reconhecida como tal pelo seus pares. Aquela que pode ser situada num conjunto operatório. Aquela que representa um progresso 24 Ibidem. 25DE CERTEAU, Michel. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 1982 .p. 66-77 26 Idem, Ibidem, p. 66 36 com relação ao estatuto atual dos “objetos” e dos métodos históricos e, que, ligada ao meio no qual se elabora, torna possíveis, por sua vez, novas pesquisas.27 Outro ponto de nossa reflexão, tratando a hagiografia como uma fonte privilegiada para o estudo do discurso e do imaginário, remete-nos a uma discussão acerca da diferença entre biografia e hagiografia. Para deixar mais clara a proposição de que os textos hagiográficos diferem dos biográficos, faremos algumas considerações sobre o tema. O primeiro problema apontado é a relação entre biografia histórica e a biografia como problema, em que o foco principal, na discussão feita por Jacques Revel, são as reflexões acerca daqueles que constroem uma biografia histórica28. Vemos, dessa forma, que, segundo o autor, a biografia propõe uma continuidade e uma contiguidade temporais entre o presente e o passado, a superioridade da relação histórica com os fatos históricos29. Dessa forma, a biografia histórica não se torna um exercício livre, estando submissa a um duplo conjunto de pressões, a primeira, com relação às fontes, e a segunda, com relação às formas30. Remontado à época ciceroniana, e a sua concepção, a biografia poderia cessar de ser um gênero impuro, ilustrando a atemporalidade das virtudes e valores. Essa posição, no século XVIII e início do XIX, muda seu paradigma, fazendo com que a biografia deixe de ser exemplar em todos os tempos e tornando a história não mais um meio de se fazer compreender as virtudes atemporais, mas de servir de um emblema a um movimento histórico que está fora do personagem exemplar. Dessa forma, opera-se uma inversão do espaço social, que outrora se encontrava no centro do debate, para transferi-lo de lugar, fazendo com que, a partir do centro, encontre- se o espaço social31. Segundo Giovanni Levi, vivemos hoje uma fase intermediária com relação à produção biográfica, pois mais do que nunca a biografia está no centro das preocupações dos historiadores, o que denuncia claramente suas ambiguidades32. Salientando a importância da biografia no cenário atual, o autor demonstra que a 27Ibidem, p. 72-73. 28 REVEL, Jacques. História e historiografia: Exercícios críticos. Curitiba: Editora UFPR, p. 237. 29 Idem, Ibidem., p. 239. 30 Ibidem, p. 240. 31Ibidem, p. 242. 32 LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: Usos e abusos da história oral. FERREIRA, Marieta; AMADO, Janaina. Editora Getulio Vargas. p.167. 37 maioria das questões metodológicas da historiografia contemporânea diz respeito à biografia, sobretudo as relações com as ciências sociais, os problemas das escalas de análise e das relações entre regras e práticas, bem como aqueles mais complexos, referentes aos limites da liberdade e da racionalidade humanas33. Dentro da problemática acerca do relato biográfico, Levi argumenta que, fascinados com a riqueza das trajetórias individuais e ao mesmo tempo incapazes de dominar a singularidade irredutível da vida de um indivíduo, os historiadores passaram recentemente a tratar o problema biográfico de maneiras diversas, para o qual o autor propõe novas abordagens, lançando luz sobre a complexidade irresoluta da perspectiva biográfica. A primeira delas é a prosopografia e biografia modal: Adotando as abordagens da história social quantitativa, quisemos introduzir, no próprio campo da história das mentalidades, a história das massas, dos anônimos, em suma, dos que jamais puderam dar-se ao luxo de uma confissão, por menos que seja literária: os excluídos, por definição, de toda biografia34. Assim, como salienta Levi, cada sistema de disposições individuais é uma variante estrutural dos demais, o estilo pessoal não é senão um desvio em relação ao estilo próprio de uma época ou de uma classe. A infinidade de combinações possíveis a partir de experiências estatisticamente comuns às pessoas de um mesmo grupo determina, assim, a “infinidade de diferenças singulares” e também “a conformidade e estilo” de um grupo35. Tal abordagem comporta certos elementos funcionais na identificação das normas e dos estilos comuns aos membros do grupo e na rejeição dos afastamentos e dos desvios tidos como não significativos. Nesse caminho, Bourdieu levanta tanto a questão do determinismo quanto a da escolha consciente, mas a escolha consciente é antes constatada do que definida, e a ênfase parece recair mais nos aspectos deterministas e inconscientes, nas “estratégias” que não são fruto “de uma verdadeira intenção estratégica”36. 33 Idem, Ibidem, p. 168. 34 VOVELLE, Michel. De la biographie à l’`etude de cas .In : Problèmes et méthodes de la biographie. Paris, 1985, p.191. 35 BOURDIEU, Pierre. Esquisse dúne théorie de la pratique. Genève-Paris, 1972, p.186-9. 36 LEVI, op.cit., p.175. 38 A próxima tipologia proposta por Levi é a de biografia e contexto. Nela, o contexto é valorizado no que concerne à explicação da trajetória do indivíduo, servindo para preencher as lacunas documentais que possam vir a figurar, tratando o contexto como um pano de fundo imóvel que tem como objetivo tornar mais inteligível o relato biográfico. Portanto, não se trata de reduzir as condutas a comportamentos-tipo, mas de interpretar as vicissitudes biográficas à luz de um contexto que as torne possíveis e, logo, normais37. No polo contrário, tratando as tipologias, temos a biografia e os casos extremos, em que os relatos biográficos são usados especificamente para esclarecer o contexto. Como nos mostra Levi, nesse caso, o contexto não é percebido em sua integridade e exaustividade estáticas, mas por meio de suas margens. E, em um último ponto, temos a biografia e hermenêutica. Nessa perspectiva, o material biográfico torna-se intrinsecamente discursivo, mas não consegue traduzir-lhe a natureza real, a totalidade de significados que pode assumir: somente pode ser interpretado, de um modo ou de outro, não conseguindo dessa forma traduzir toda a multiplicidade de significados38. Tais orientações dizem respeito, em primeiro lugar, ao papel das incoerências entre as próprias normas (e não apenas às contradições entre a norma e seu efetivo funcionamento) no seio de cada sistema social; em segundo lugar, ao tipo de racionalidade atribuído aos atores quando se escreve uma biografia; e, por fim, à relação entre um grupo e os indivíduos que o compõem39. Do ponto de vista de Bourdieu, há uma grande diferença entre seu conceito de biografia e a maneira como é comumente empregado. Aqui, é fundamental nos lembrarmos das advertências do autor a respeito do conceito de história de vida e desse tipo de teoria construída. A rigor, não existe, ainda que a ideia seja extremamente atrativa e sedutora ao senso comum, uma sequência cronológica e lógica dos acontecimentos e ocorrências da vida de uma pessoa. Nossas vidas não são um projeto sartriano e não possuem um sentido teleológico. Os eventos biográficos não seguem uma linearidade progressiva e de causalidade, linearidade de sobrevoo que ligue e dá sentido a todos os acontecimentos narrados por uma pessoa. Eles não se concatenam em um todo coerente, coeso e atado por uma 37 Idem, Ibidem, p. 176. 38 Ibidem, p.178. 39 Ibidem, p.179 39 cadeia de inter-relações: essa construção é realizada a posteriori pelo indivíduo ou pelo pesquisador no momento em que produz um relato oral, uma narrativa. Com relação ao texto hagiográfico, vemos que possui características peculiares ao seu gênero. São considerados textos de natureza hagiográfica os que possuem como temática central a biografia, os feitos ou qualquer elemento relacionado ao culto de um personagem considerado santo, seja um mártir, uma virgem, um abade, um monge, um pregador, um rei, um bispo ou até um pecador arrependido40. Tratando diretamente do gênero, muitos autores consideram a hagiografia como um tipo específico de literatura. Como mostra Carbonell, o próprio fato de tal literatura ser designada pelo termo, tornado muitas vezes pejorativo pelos historiadores, de hagiografia, pode fazer crer que já não se trata de história41. Do ponto de vista de Leclerq, para os homens da Idade Média, quando estes escreviam sobre santos, acreditavam estar fazendo história42. Como contraponto, em um trabalho que discute como os estudiosos, de Gibbon a Gadamer, compreenderam a hagiografia, Thomas J. Heffernan defende que os hagiógrafos medievais consideravam seus textos como históricos e, para compô-los, desenvolveram categorias específicas43. Nesse caminho, temos que ter cautela para não cometer o equívoco de não considerá-la em função de sua autenticidade ou de seu valor histórico. Como alerta Michel de Certeau, “[...] isto seria submeter um gênero literário à lei de um outro, a historiografia, e desmantelar um tipo próprio de discurso para não reter dele senão aquilo que ele não é”44. É certo que uma análise somente historiográfica sobre a fonte, como dito acima, resultaria em um equívoco sobre a intenção do relato e sobre a figura na qual este se centra. Porém, ao analisar o discurso, vemos que em alguns casos ocorre 40 O instituto interdisciplinar de Estudos Medievais da Universidade de Louvaine vem organizando uma coleção sob o título de Typologie des Sources du Moyen Âge Occidental, publicada pela editora Brepols, na qual cada fasciculo trata de um tipo exclusivo de texto produzido entre os anos 500 e 1500. Neste sentido, no campo da hagiografia já foram publicados volumes sobre os legendários latinos e outros manuscritos hagiográficos, os martiriológios, os relatos de translação e outros cultos a relíquias, as gestas sobre bispos e abades, os textos de viagens e peregrinações, os exempla e as revelações. Também são previstos volumes sobre as vitae e as paixões. 41 CARBONELL, C. O. Historiografia. Lisboa: Teorema, 1987, pp.58-59. 42 LECLERQ, J. L´amour des lettres et le désir de Dieu. Paris : CERF, 1957, p. 154. 43 HAFFERNAN, Thomas J. Sacred Biography as a historical narrative: testing the tradition, Gibbon to Gadamer. In: Sacred Biography: Saints and their biographers in the Middle Ages. Oxford: Oxford University Press, 1992, p.66. 44 DE CERTEAU, Michel. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997, p. 267. 40 certo desvio de finalidade ou, por assim dizer, um foco maior em questões que não privilegiam a vida do santo, mas dos outros personagens que se encontram inseridos no relato. Michel de Certeau propõe o seguinte acerca da análise do conteúdo hagiográfico: Do ponto de vista histórico e sociológico é preciso retraçar as etapas, analisar o funcionamento e particularizar a situação cultural desta literatura. Mas o documento hagiográfico se caracteriza também por uma organização textual na qual se desdobram as possibilidades implicadas pelo título outrora dado a este tipo de relato. Deste segundo ponto de vista, a combinação dos atos, dos lugares e dos temas indica uma estrutura própria que não se refere essencialmente ‘àquilo que passou’, como faz a história, mas ‘àquilo que é exemplar’. Cada vida de santo deve ser antes considerada como um sistema que organiza uma manifestação graças à combinação topológica de “virtudes” e de milagres.45 Ampliando a análise, podemos vislumbrar que existem algumas características um pouco mais intrínsecas que podemos somar ao nosso estudo: A vida de santo indica a relação que o grupo mantém com outros grupos. Assim o ‘martírio’ predomina lá onde a comunidade é marginal, confrontada com uma ameaça de morte, enquanto a ‘virtude’ representa uma Igreja estabelecida, epifania da ordem social na qual se insere. Reveladores são também, deste ponto de vista, o relato dos combates do herói (santo) com as imagens sociais do Diabo; ou o caráter, seja polêmico, seja parenético, do discurso hagiográfico, ou o obscurecimento do cenário sobre o qual o santo se destaca através de milagres mais fortemente marcados; ou a estrutura, seja binária (conflitual, antinômica), seja ternária (mediatizada e “em equilíbrio”) do espaço onde estão dispostos os atores46. Com relação aos textos hagiográficos do período visigodo há uma clara distinção, tanto no meio citadino como no rural, com relação à presença ou ausência do santo ou dos elementos. Parece-nos clara a oposição entre o território onde, em um primeiro momento, reinava o caos e que, em um segundo, volta a fazer parte do Cosmos com a atuação do homem santo. Assim, sob o ponto de vista de Mircea Eliade, vemos que o que caracteriza as sociedades tradicionais é a oposição que elas subentendem entre o seu território habitado e o espaço desconhecido e indeterminado que o cerca: o primeiro é o “mundo”, mais precisamente, “o nosso mundo”, o Cosmos; o restante já não é um Cosmos, mas uma espécie de “outro mundo”, um espaço estrangeiro, caótico, povoado de espectros, demônios, 45 Idem, Ibidem, p. 267. 46Ibidem., p. 270. 41 “estranhos” (equiparados, aliás, aos demônios e às almas dos mortos). É fácil compreender por que o momento religioso implica o “momento cosmogônico”: o sagrado revela a realidade absoluta e, ao mesmo tempo, torna possível a orientação – portanto, funda o mundo, no sentido de que fixa os limites e, assim, estabelece a “ordem cósmica”47. Voltando à nossa discussão acerca da biografia, acreditamos que a hagiografia, documento literário, portanto, “[...] em si próprio uma realidade histórica”, segundo a expressão de Jacques Le Goff, pode-nos informar sobre os dados históricos mais factíveis da vida material e mental das sociedades que a produziram. Nesse ponto, percebemos que as obras literárias, em relação a esses documentos tradicionais, devem ser inquiridas e tratadas com métodos e instrumentos específicos para fazer verter delas aqueles dados de uma realidade mais concreta, mas de qualquer forma, pelo exposto, possível e factível. Como queremos aqui demonstrar, e nos parece o essencial, a obra literária e suas circunstâncias se fazem especialmente servíveis e pertinentes ao historiador quando, de algum modo, informam sobre as sociedades para além do texto em si, ainda que dele partindo e por ele perpassando48. Mas, conforme nos diz Amaral, toda informação factível nas hagiografias, pela natureza do gênero em que se enquadra, encontra-se permeada e mergulhada no imaginário, em circunstâncias fundamentadas e objetivadas no fabuloso49. Esse fabuloso é expresso por meio de milagres dos mais diferentes gêneros (possessões, aparições de santos e demônios, profecias e curas), congregando gestos, números, pessoas, animais, que, em grande medida, são representados por uma função simbólica, cujo significado remete mais a uma realidade transcendente, edificante, do que factível e laica50. Vemos, então, que o hagiógrafo, através de uma série de apropriações das mais diversas naturezas51, narra a vida de um santo, o qual ele ou a coletividade escolheu para ser lembrado, para sua edificação, afastado muitas vezes de seu 47 ELIADE, Mircea. O sagrado e o Profano. São Paulo: Matins Fontes, 1992, p 23. 48 LE GOFF, Jacques. O Imaginário Medieval.Lisboa: Estampa, 1994, p. 13-14. 49 AMARAL, R. Santos Imaginários, op.cit, p.73. 50 PASTOREAU, Michel. Una historia simbólica de la Edad Media occidental. Buenos Aires: Katz Ediciones, 2006, p. 18. 51 Ronaldo Amaral enumera uma serie de apropriações que serviriam de fontes para os hagiógrafos do período, a saber: literárias, do seu ideário, do seu imaginário imperativo, acrescido dos usos de fontes literárias, iconográficas e de outras procedências, como da tradição oral. AMARAL, R. Santos Imaginários, op.cit., p. 79. 42 protagonista no tempo e no espaço, ou por ambos, tendo, assim, certa liberdade em seu trabalho. Mas o que dizer quando a vida do santo é narrada por ele mesmo ou quando o homem atribui a si próprio a santidade? Temos esse exemplo em uma das obras de nossa análise: a autobiografia de Valério do Bierzo. Sobre o tema, Aaron Gourevitch, tratando sobretudo de autobiografias e confissões, conclui que a consciência de si para o autor medieval é aquela que o identifica com os modelos anteriores. Nas palavras do autor: A pessoa busca meios para se exprimir, mas aqueles que a cultura põe a sua disposição são frequentemente, ou quase sempre, obstáculos para o conhecimento de si mesmo. O texto da “autobiografia”, da “confissão” ou da saga jamais é transparente; a poética, as regras de gênero, são tais que todo elemento pessoal e único é dissimulado pelos topoi, os lugares comuns tradicionais e as citações dos escritos autorizados, de maneira que uma tela opaca e dificilmente identificável separa o pesquisador do objeto de pesquisa [...]52. Michel Foucault, referindo-se à individualização propriamente dita da memória, remete-nos à Antiguidade para analisar o que seria uma das primeiras formas de escrita de si, a qual buscava principalmente a individualidade, o movimento interior, um exame de si mesmo53. Uma escrita que possuía como material os pensamentos, as ações diárias para se evitar o mau comportamento. Uma forma de exteriorizar sentimentos, escrever todos os pensamentos e ações, para que estes fossem conhecidos. Vemos, assim, que as hagiografias, sendo produzidas por terceiros ou em primeira pessoa, carregam em seu íntimo uma intenção, a do hagiógrafo, que se encontra, como dissemos, no coletivo, e é a partir de tais características que teremos a orientação do seu gênero, de sua forma e de seu discurso. Mas, antes de visar um público alvo, por ser um escrito que pretende edificar seus leitores pelo modelo de seus protagonistas, como bem mostra Amaral, visa também, ou antes de tudo, o próprio escritor54. 52 GOURIVITCH, Aaron. Individuo. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean Claude. Dicionario temático do Ocidente Medieval. Bauru : Edusc, 2002, p.622. 53 FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: O que é um autor. Lisboa: Nova Vega, 2009, p. 132. 54 AMARAL, R. Santos Imaginarios, op.cit., p. 82. 43 1.1. A Vita Sancti Passio Desiderii A primeira fonte hagiográfica produzida no período visigodo, a Vita Sancti Passio Desiderii a Sisebuto Rege Composita, já nos mostra uma grande particularidade da produção desse estilo literário no período, bem como uma surpresa sobre a figura do hagiógrafo. Mais precisamente, temos pelo menos quatro razões pelas quais essa Vita torna-se uma fonte privilegiada para o estudo do reino visigodo e de suas relações com outros reinos da época. Em um primeiro momento, devemos salientar a figura do hagiógrafo da Vita, o rei Sisebuto. Ele foi o primeiro a produzir uma obra hagiográfica no período visigodo, e o único, no que tange ao seu posto como monarca, pois os outros relatos hagiográficos de que trataremos neste trabalho foram produzidos por membros do clero. Sisebuto, que reinou de 612 a 621, foi o único rei visigodo a compreender tanto o conhecimento científico quanto o teológico. Em um segundo ponto, o protagonista da Vita, o santo Desidério, que não pertencia ao reino visigodo, participou, na Gália, de uma significante elevação dos monges agostinianos, tornando-se bispo da cidade de Viena. A terceira justificativa encontra-se na relação entre os monarcas e o bispo. Antes de ser elevado a essa categoria, Desidério era um importante padre no período que compreende o reinado de Teodorico II da Gália, que esteve sob grande influência e poder de sua avó, a rainha Brunhilda, que por sua vez, entrou em choque com Desidério, pois este foi elevado à categoria de bispo contra sua vontade, pois tinha como seu protegido o bispo Syagrius55. E o quarto e último ponto é que a Vita serviu de inspiração para a produção da Vita Sanctorum Patrum Emeretensium, cujo anônimo autor se baseia inteiramente na obra do monarca para compor a vida dos padres emeritenses. A vida de Desidério contada pela ótica de Sisebuto tem seu foco na luta do bispo de Viena contra Teodorico II da Burgúndia e sua avó a rainha Brunhilda. O homem santo é acusado injustamente de um crime de cunho sexual e condenado ao exílio pelos monarcas burgúndios. Porém, como encontramos em alguns topos hagiográficos, o santo rejubila em seu exílio (603), sendo novamente realocado à sua sede como bispo. Diante de seus algozes, ocorre o enfrentamento que acaba 55 MARTYN, J. R. C. King Sisebut and the culture of the Visighotic Spain, with the translations of the Lives of Saint Desiderius of Vienne and Saint Masona of Merida. Lewiston: The Edwin Mellen Press, p. 1. 44 com a morte por apedrejamento do santo, no ano de 607, e com o trágico final dos monarcas, sobretudo o final vexatório de Brunhilda, que acaba arrastada por um terreno pedregoso depois de ser despida de suas vestes. Como assinala Isabel Velázquez56, um grande número de estudiosos concorda que essa obra tem uma clara finalidade política. Sisebuto, claramente, no decorrer dos 22 capítulos que encerram a obra, faz uso de Desidério e dos reis Teodorico II e Brunhilda como uma forma de alavancar seu posto como monarca do reino e como rei católico, em consonância com o renascimento isidoriano. O rei Sisebuto, ao redigir a Vita Desiderii, buscava alavancar ainda mais sua figura de bom monarca, piedoso, justo e cristão. Em direta relação com a figura e com os ensinamentos de Isidoro, Sisebuto expõe-se diretamente no texto, mostrando seus ideais, sua postura com relação aos crimes perpetrados pelos monarcas burgúndios, indo diretamente contra a tirania e os hábitos pecaminosos que descreve em seu relato. Assim, o santo Desidério, que não pertence ao reino visigodo, detalhe que mostra a clara intenção de Sisebuto em procurar um bode expiatório fora dos limites de seu reino, aparece mais como um coadjuvante dentro do relato que leva o seu nome, frente ao papel de protagonistas vividos por Brunhilda e seu neto Teodorico II. Ao mesmo tempo em que Sisebuto aproximava-se da Igreja e do prelado mais influente do período, Isidoro, ele também reforçava ainda mais seu posto de rei cristão, como cabeça de um corpo unitário, como é pensada a sociedade visigoda, tendo na Vita Desiderii um reflexo de sua imagem ou da imagem que queria passar a seus súditos. Bom monarca/mau monarca, tirania/boa governança: ao atacar diretamente os reis burgúndios, Sisebuto estaria apaziguando os ânimos, no âmbito externo, com o reino franco unificado sob o poder de Clotário II, e, no interno, afastando de certa forma aqueles que ainda mantinham alguma proximidade com os dois monarcas protagonistas do relato. Continuando uma política iniciada por Gundemaro e destruindo a imagem dos monarcas burgúndios, Sisebuto parece romper o vínculo da imagem de Brunhilda associada ao reino visigodo e aproximar-se ainda mais de Clotário, o qual, por sua vez, influenciou e difundiu o culto a Desidério no reino franco, marcando, assim, um novo momento na relação entre os reinos. 56 VELÁZQUEZ, Isabel. Hagiografia y culto a los Santos en la Hispania Visigoda: aproximacion a sus manifestaciones literárias. Mérida: Museo Nacional de A