UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUISTA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS EDUARDA CAMARGO SANSÃO GÊNERO E SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL: UMA ANÁLISE DA INTERSECÇÃO ENTRE MULHERES, ALIMENTOS E PANDEMIA FRANCA 2022 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUISTA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS EDUARDA CAMARGO SANSÃO GÊNERO E SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL: UMA ANÁLISE DA INTERSECÇÃO ENTRE MULHERES, ALIMENTOS E PANDEMIA Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Direito da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, campus de Franca, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito. Área de concentração: Sistemas Normativos e Fundamentos da Cidadania Linha de pesquisa: Cidadania Social e Econômica e Sistemas Normativos Orientadora: Profa. Dra. Elisabete Maniglia FRANCA 2022 IMPACTO POTENCIAL DESTA PESQUISA O desenvolvimento da pesquisa “Gênero e Segurança Alimentar e Nutricional: Uma análise da intersecção entre mulheres, alimentos e pandemia” propiciou como resultado um material organizado para Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP/Franca. Ao analisar a trajetória metodológica e científica, verifica-se que o presente material resgatou categorias teóricas intermediada pelos Direitos Humanos e Direito Agrário, com impacto potencial científico no fortalecimento da estruturação política e acadêmica nesta intersecção, de modo amplo, ao possibilitar a compreensão social sobre os conceitos estudados. Concomitantemente, apresentou um sentido analítico das políticas públicas de segurança alimentar no Brasil até o ano de 2022, análise que pode contribuir para redirecionamentos neste campo, ao observar o contexto político e as transições governamentais. Por conseguinte, identifica-se um impacto potencial político, de modo indireto, por possuir conteúdos analíticos que podem fortalecer um quadro de produção de novas políticas públicas. Na centralidade da observação metodológica da realidade das mulheres brasileiras, com destaque das categorias renda e trabalho, indica-se impacto potencial social, sob a possibilidade de aumento do bem-estar social dos sujeitos de pesquisa destacado. Intermedia-se este potencial com as possibilidades políticas provindas em termos de organização jurídica, produção de novos instrumentos legislativos e direcionamentos orçamentários, principalmente ao considerar a análise documental realizada no período entre 2020 e 2022, centralizada nos efeitos da pandemia Covid-19 para a alimentação das mulheres no Brasil. Observa-se que os impactos destacados frente aos resultados de pesquisa produzidos podem ser articulados com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, com atenção para o n. 2 “Fome Zero e Agricultura Sustentável”, n. 5 “Igualdade de Gênero” e n. 10 “Redução das desigualdades”, de modo integrado com diferentes níveis de atuação. POTENTIAL IMPACT OF THIS RESEARCH The development of the research "Gender and Food and Nutrition Security: An analysis of the intersection between women, food, and the pandemic" resulted in a material organized for the Master's Dissertation of the Postgraduate Program in Law of the Faculty of Humanities and Social Sciences of UNESP/Franca. By analyzing the methodological and scientific trajectory, it can be seen that the present material retrieved theoretical categories mediated by Human Rights and Agrarian Law, with potential scientific impact on strengthening the political and academic structure in this intersection, broadly enabling social understanding of the studied concepts. At the same time, it presented an analytical sense of public policies for food security in Brazil up to the year 2022, an analysis that can contribute to redirections in this field, by observing the political context and government transitions. Therefore, a potential political impact is identified, indirectly, for possessing analytical contents that can strengthen a framework for the production of new public policies. In the methodological centrality of the reality observation of Brazilian women, with emphasis on income and work categories, a potential social impact is indicated, under the possibility of increasing the social well-being of the highlighted research subjects. This potential is intermediated with the political possibilities arising in terms of legal organization, production of new legislative instruments, and budgetary directions, mainly when considering the documentary analysis carried out between 2020 and 2022, focused on the effects of the Covid-19 pandemic on women's food in Brazil. It is observed that the impacts highlighted in the produced research results can be articulated with the Sustainable Development Goals, with attention to number 2 "Zero Hunger and Sustainable Agriculture", number 5 "Gender Equality", and number 10 "Reduced Inequalities", integrated with different levels of action. EDUARDA CAMARGO SANSÃO GÊNERO E SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL: UMA ANÁLISE DA INTERSECÇÃO ENTRE MULHERES, ALIMENTOS E PANDEMIA Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, campus de Franca, como requisito para obtenção do título de Mestre em Direito. Área de concentração: Sistemas Normativos e Fundamentos da Cidadania Linha de pesquisa: Cidadania Social e Econômica e Sistemas Normativos BANCA EXAMINADORA ______________________________________________ Orientadora: Profa. Dra. Elisabete Maniglia Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquista Filho” Faculdade de Ciências Humanas e Sociais ______________________________________________ Prof. Dr. Carlos Eduardo de Abreu Boucault Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquista Filho” Faculdade de Ciências Humanas e Sociais ______________________________________________ Prof. Dra. Flávia Trentini Universidade de São Paulo Faculdade de Direito de Ribeirão Preto Franca, 29 de novembro de 2022 Para minha avó Maria Luiza (in memoriam), que partiu deste mundo quando eu iniciava esta pesquisa e foi a representação da mulher brasileira, da classe trabalhadora, que lutou pela alimentação de cinco filhos. AGRADECIMENTOS Existem orientações para a escrita dos agradecimentos de um trabalho científico. Há polidez, coerência e direcionamento aos que contribuíram de alguma forma com o desenvolvimento da pesquisa, de modo direto e indireto. Entre as formalidades necessárias, gostaria de utilizar esse espaço como um mural que expressa o quanto acredito em uma ciência e uma vida construídas coletivamente. Primeiramente, agradeço aos meus pais, Gisa e Daniel. Por tudo. Não existem palavras que possam mensurar o que me deram. Sei que a defesa fiel da educação feita por eles como instrumento de enfrentamento do mundo foi determinante para a construção da minha carreira enquanto pesquisadora. Agradeço à minha irmã e melhor amiga, Dinorah, que divide as angústias dessa vida da forma mais profunda possível. Agradeço à minha orientadora, Elisabete Maniglia, pelo acolhimento e generosidade. Para além dos aspectos formais, sempre manteve uma postura humanizada, o que tornou a caminhada mais leve. Soma-se à fileira de orientadores que tive em minha vida, marcados pela gentileza e sensibilidade acadêmica, fundamentais para minha formação: Edmilson Nogueira, Ana Paula de Fátima Coelho e Frederico Daia. Gostaria de destacar alguns nomes que compartilharam a trajetória comigo no Programa de Pós-Graduação, os quais devo uma gratidão imensurável. Carol, Luiza, Maria Laura, Ingrid, Gil e João enriqueceram meus pensamentos com novos olhares sobre o mundo. Tornaram o cotidiano mais suportável, apesar de toda a virtualidade causada pela pandemia. Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Direito da FCHS/UNESP pela possibilidade das atividades de pesquisa e ensino desenvolvidas. Especialmente, destaco os professores Boucault e Agnaldo, que me acolheram nas disciplinas em que lecionaram e contribuíram com a minha formação docente. Agradeço aos estudantes das turmas 37 e 38 de Direito da UNESP, que me reconheceram enquanto professora e partilharam o espaço da sala de aula. Entre os espaços coletivos, o Instituto Humanidade, Direitos e Democracia representou uma formação determinante para o resultado dessa pesquisa, com reflexões fundamentais durante o período pandêmico. Meus agradecimentos mais sinceros para James, Hugo, Dani, Bia, Dani, Douglas, Greg, Aguilar, Fábio e Sérgio. Destaco a Revista de Estudos Jurídicos, espaço de formação fundamental que pude participar durante minha trajetória no Programa de Pós-Graduação, com agradecimentos específicos ao Victor, que me proporcionou conversas longas e importantes. Agradeço aos meus orientandos, que contribuíram com as minhas discussões sobre gênero e direito: Milena, Bia, Camila, Adneide, Evelyn, Elisângela e Edson. Agradeço à UNIVESP pela oportunidade de formação e atuação, com a oferta de bolsa determinante para meu sustento financeiro durante a realização do mestrado. Não poderia esquecer de todos os que são meus alunos a partir da Proz Educação, que me ensinam sobre ser professora diariamente. Pela acolhida, moradia e amizade, minha gratidão à República Kamikaze e todas as moradoras, responsáveis por expandir minha definição de lar, dando a mim um espaço em Franca que não se restringe às paredes e telhados. Também agradeço minha psicóloga, Renata Farche, figura gigantesca para minha sobrevivência e enfrentamento das questões substanciais dessa vida. Na crença de que a vida não é vivida sozinha, tive a sorte de encontrar gente que faz a vida valer a pena: Luele, Gabriel, Maria Laura, Drielly, Maria Silveira, Lauriane, Luís Felipe, Duda Andrade, Nadine, Letícia Moraes, entre tantos outros que têm me tocado por aí. Ao grupo Jovens pela Educação, nas pessoas de Ana Paula, Milena e Lucas, sou grata pela escuta e troca em tempos tão perversos. Estendo meus agradecimentos a todos e todas que atravessaram a minha trajetória nos últimos dois anos, de múltiplas formas. Cada qual que intermediou minha construção pessoal e científica nessa vida contribuiu para reforçar a certeza de que é impossível sair ileso dos caminhos que escolhemos. Apesar da conjuntura, das inseguranças – alimentares e tantas outras – encerro esse mestrado fortalecida para uma construção coletiva do mundo e todas as tarefas que nos aguardam. Por fim, agradeço a Deus, por me ajudar a sustentar minhas contradições e pelo afeto desmedido. Para mim o mundo em vez de evoluir está retornando a primitividade. Quem não conhece a fome há de dizer: “Quem escreve isto é louco’’. Mas quem passa fome há de dizer: — Muito bem, Carolina. Os generos alimentícios deve ser ao alcance de todos. Como é horrivel ver um filho comer e perguntar: “Tem mais? Esta palavra “tem mais’’ fica oscilando dentro do cerebro de uma mãe que olha as panela e não tem mais. Quarto de despejo. Carolina Maria de Jesus. RESUMO A segurança alimentar e nutricional é uma categoria intermediada entre Direito Agrário e Direitos Humanos, constituída como expressão do acesso à alimentação adequada em quantidade e qualidade adequada. Sob essa conceituação, coloca-se que os níveis de acesso à alimentação são determinados pelos marcadores econômicos e sociais, o que indica uma variação na forma como as mulheres experimentam a segurança alimentar e nutricional. A partir desse escopo, a presente pesquisa tem como objetivo analisar o acesso à alimentação para as mulheres brasileiras durante o período da pandemia Covid-19. Em termos específicos, objetiva-se analisar a estruturação da alimentação enquanto direito social previsto no art. 6º da Constituição Federal; verificar o contexto de estruturação política, jurídica e social da segurança alimentar e nutricional; verificar as particularidades e o cumprimento do direito à alimentação para as mulheres e averiguar os impactos inferidos durante o período da pandemia Covid-19. Em termos metodológicos, essa pesquisa tem sido desenvolvida a partir do método hipotético-dedutivo, com o estabelecimento do problema de pesquisa, a partir da observação da realidade e acúmulos teóricos prévios. Trata-se de uma pesquisa descritiva, visto que objetiva analisar a relação entre as categorias “mulheres” e “segurança alimentar e nutricional” a partir do recorte temporal da pandemia COVID-19. Para os procedimentos técnicos, a metodologia foi centrada na revisão bibliográfica e na análise documental, voltada para a verificação de como os impactos da pandemia Covid-19 têm sido percebidos. Por conseguinte, avaliou-se os aspectos em torno da segurança alimentar e nutricional, sob a consideração da categoria justiça, com formação do contexto brasileiro para o tema, a partir do Direito e das políticas públicas. Isso possibilitou um escopo de análise para verificar um quadro de desigualdades de gênero anterior à ocorrência da Covid-19, que produziu uma intensificação das contradições sociais para as mulheres e implicou em um aumento da insegurança alimentar e nutricional a partir do recorte de gênero, com determinação para a experiência cidadã das mulheres brasileiras. Palavras-chave: Segurança Alimentar e Nutricional. Relações de Gênero. Pandemia Covid-19. Cidadania das mulheres. Direito Humano à Alimentação Adequada. ABSTRACT Food and nutrition security is a category intermediated between Agrarian Law and Human Rights, constituted as an expression of access to adequate food in adequate quantity and quality. Under this concept, the levels of access to food are determined by economic and social markers, which indicates a variation in the way women experience food and nutritional security. From this scope, the present research aims to analyze access to food for Brazilian women during the period of the Covid-19 pandemic. In specific terms, the objective is to analyze the structuring of food as a social right provided for in art. 6 of the Federal Constitution; verify the context of political, legal and social structuring of food and nutrition security; verify the particularities and fulfillment of the right to food for women and investigate the impacts inferred during the period of the Covid-19 pandemic. In methodological terms, this research has been developed from the hypothetical-deductive method, with the establishment of the research problem, from the observation of reality and previous theoretical accumulations. This is a descriptive research, as it aims to analyze the relationship between the categories "women" and "food and nutrition security" from the time frame of the COVID-19 pandemic. For technical procedures, the methodology was centered on bibliographic review and document analysis, aimed at verifying how the impacts of the Covid-19 pandemic have been perceived. Therefore, aspects around food and nutrition security were evaluated, under the consideration of the justice category, with the formation of the Brazilian context for the theme, based on Law and public policies. This allowed a scope of analysis to verify a framework of gender inequalities prior to the occurrence of Covid-19, which produced an intensification of social contradictions for women and implied an increase in food and nutritional insecurity from the gender perspective, with determination for the citizen experience of Brazilian women. Keywords: Food Security and Nutrition. Gender. Covid-19 pandemic. Women's citizenship. Right to food. LISTA DE SIGLAS AE Auxílio Emergencial ANA Articulação Nacional de Agroecologia CAISAN Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional CELAC Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos CEPAL Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe CERESAN Centro de Segurança Alimentar e Nutricional CF Constituição Federal CIMI Conselho Indigenista Missionário CMA Cúpula Mundial da Alimentação CNA Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil CNPDA-SSAN Conferência Nacional Popular, Democrática e Autônoma por Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional CNS Conselho Nacional de Saúde CNSA Conferência Nacional de Segurança Alimentar CONSEA Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional CSA Cúpula dos Sistemas Alimentares DHA Direito Humano à Alimentação DHAA Direito Humano à Alimentação Adequada DIEESE Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos EBIA Escala Brasileira de Insegurança Alimentar EC Emenda Constitucional FAO Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura FBSSAN Fórum Brasileiro para Soberania e Segurança Alimentar FIDA Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada MAPA Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento MMMC Movimento das Mulheres Camponesas MSC Mecanismo da Sociedade Civil OBHA Observatório Brasileiro de Hábitos Alimentares ODS Objetivo de Desenvolvimento Sustentável OIT Organização Internacional do Trabalho ONU Organização das Nações Unidas OPAS Organização Pan-Americana da Saúde PAA Programa de Aquisição de Alimentos PARA Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos PAT Programa de Alimentação do Trabalhador PBF Programa Bolsa Família PGPAF Programa de Garantia de Preços da Agricultura Familiar PIDESC Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais PLANSAN Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional PNAD Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios PNAE Programa Nacional de Alimentação Escolar PNSAN Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional PNUA Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente PRONAF Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar SAN Segurança Alimentar e Nutricional SEAF Seguro da Agricultura Familiar SEBRAE Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas SISAN Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional SISVAN Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional SOFI The State of Food Security and Nutrition in the World SSAN Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional UNICAMP Universidade Estadual de Campinas UNICEF Fundo Internacional de Emergência das Nações Unidas para a Infância WFP World Food Programme SUMÁRIO INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 15 Capítulo 1 Aspectos fundamentais da questão alimentar ............................................. 18 1.1 Direito, Justiça e alimentação ...................................................................................... 19 1.2 O ato de alimentação: aspectos políticos e fundamentações sociológicas .................. 27 1.3 Constituição alimentar para efetivação dos Direitos Humanos ................................... 33 1.4 O conceito de Segurança Alimentar e Nutricional ...................................................... 37 Capítulo 2 Políticas públicas e estruturação do direito à alimentação em plano nacional e internacional ........................................................................................................ 42 2.1 Panorama internacional da questão alimentar ............................................................. 45 2.2 Constituição de programas e políticas públicas brasileiras: ........................................ 49 2.3 Balanço e avaliação na concretização do direito à alimentação a partir das políticas de segurança alimentar e nutricional ........................................................................................... 58 Capítulo 3 Contextualização da questão de gênero para a segurança alimentar e nutricional .............................................................................................................................. 70 3.1 Compreensões fundamentais sobre a questão de gênero e estruturação dos direitos das mulheres .................................................................................................................................. 72 3.2 A questão da renda e autonomia para as mulheres ...................................................... 78 3.3 O aspecto de gênero para a constituição da segurança alimentar ................................ 84 Capítulo 4 Impactos da pandemia COVID-19 para a segurança alimentar das mulheres ................................................................................................................................. 92 4.1 Análise documental ........................................................................................................... 96 4.1.1 Publicação “O Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo” ................. 97 4.1.2 Relatório “Sistemas alimentarios y COVID-19 em América Latina y el Caribe N° 7: el rol de las medidas de protección social” ................................................................... 102 4.1.3 Informe especial n. 1 “América Latina y el Caribe ante la pandemia del COVID-19” .................................................................................................................................... 104 4.1.4 Informe especial n. 9 “La autonomía económica de las mujeres en la recuperación sostenible y con igualdad” ........................................................................................ 106 4.1.5 Relatório “Cuidados na América Latina e no Caribe em tempos de Covid-19: em direção a sistemas integrais para fortalecer a resposta e a recuperação” .................. 108 4.1.6 Informes “Incorporando mulheres e meninas na resposta à pandemia de Covid-19” .................................................................................................................................... 110 4.1.7 Relatório “Os desafios enfrentados por mulheres que são mães e que empreendem em pequenos negócios” ................................................................................................... 114 4.1.8 Pesquisa das Nações Unidas sobre Juventudes da América Latina e do Caribe no Contexto da Pandemia de COVID-19 ....................................................................... 116 4.1.9 Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar em Contexto de Covid-19 no Brasil .................................................................................................................................... 118 4.1.10 Observatório do Direito à alimentação e à nutrição “Esse menu não é nosso: falsas soluções para a fome e a subnutrição” ...................................................................... 120 4.1.11 Relatório “Insegurança alimentar de mulheres e suas famílias no contexto da pandemia no Brasil” .................................................................................................................. 123 4.1.12 Cadernos OBHA ....................................................................................................... 126 4.2 Resultados e discussões .................................................................................................... 128 CONCLUSÕES ................................................................................................................... 136 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 141 15 INTRODUÇÃO A centralidade desta pesquisa está pautada na análise de como a segurança alimentar e nutricional, enquanto categoria intermediada pelo Direito Agrário e pelos Direitos Humanos, pode inferir na constituição da dignidade da pessoa humana das mulheres. Em termos objetivos, realiza-se um estudo para realizar tal análise a partir do recorte temporal da pandemia Covid-19, ao considerar a atualidade do tema no sentido de impactos para a materialidade da vida e concretização de direitos. Por meio da apresentação do tema, justifica-se a construção teórica a partir do objetivo de pesquisa exposto para explorar as necessidades das mulheres frente ao direito à alimentação, para colaborar em ações de efetivação da cidadania social, política e econômica a partir da perspectiva da segurança alimentar e nutricional. Considera-se o contexto jurídico, político e social – em perspectivas práticas e teóricas – para avaliação dos impactos da pandemia Covid-19 ao acesso a alimentos, a partir da renda familiar e distribuição de produtos. Avaliar os efeitos de um processo temporal em curso requer uma atenção metodológica, com cuidado para atualização de informações, novas associações e direcionamentos jurídicos. Entretanto, é necessário ater-se aos percursos de pesquisa estabelecido para que seja possível estabelecer um campo de resultados, passíveis de reavaliações e projeções científicas. Em termos metodológicos, essa pesquisa constrói uma abordagem a partir do método hipotético-dedutivo, com o estabelecimento do problema de pesquisa a partir da observação da realidade e acúmulos teóricos prévios. Trata-se de uma pesquisa descritiva, visto que objetiva analisar a relação entre as categorias “mulheres” e “segurança alimentar e nutricional” a partir do recorte temporal da pandemia COVID-19, entre 2020 e o primeiro semestre de 2022. Para os procedimentos técnicos, a metodologia foi centrada na revisão bibliográfica e na análise documental, com atenção para produções teóricas, materiais legislativos e documentos produzidos por organizações como Organização das Nações Unidas Mulheres (ONU MULHERES), Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (REDE PENSSAN). Ao articular os objetivos de pesquisa e os recursos metodológicos, direciona-se a presente pesquisa para a construção de um trabalho final dividido em quatro capítulos, 16 marcados por meio dos objetivos específicos. Considera-se, respectivamente, aspectos fundamentais da questão alimentar; políticas públicas e estruturação do direito à alimentação em plano nacional e internacional; contextualização da questão de gênero para a segurança alimentar e nutricional; e impactos da pandemia Covid-19 para a segurança alimentar das mulheres. Para o primeiro capítulo, discorre-se sobre as bases jurídicas, políticas e sociais para a questão alimentar, a partir das teorias da justiça, permeado pela perspectiva de John Rawls, Amartya Sen, assim como críticas contra hegemônicas ao sentido de justiça. Há construção de espectros de Direitos Humanos e interdisciplinaridade com outras ciências sociais, para além do Direito. Compreende uma intersecção necessária para analisar o ato da alimentação, permeada por posturas culturais e determinada pelo contexto político, social e econômico. Juridicamente, ressaltou-se a alimentação enquanto direito social previsto no art. 6º da Constituição Federal Brasileira, como expressão das expansões jurídicas a partir da inserção da alimentação na agenda política e social. Para o fundamento do trabalho, considera-se a importância da demarcação de conceitos fundamentais para discutir o direito à alimentação, como segurança alimentar e nutricional. O segundo capítulo conecta-se com os aspectos de políticas públicas, com breve estruturação a partir da forma do Estado e da teorização sobre o tema, sob a perspectiva de que o Direito não se restringe à norma. Seguiu-se para a descrição da trajetória que possibilitou a estruturação da categoria segurança alimentar e nutricional, a partir de discussões e consolidações político-jurídicas. Foi relatado o contexto internacional, as construções nacionais – com destaque para o período pós-2003, com avaliação do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), das Conferências Nacionais sobre Segurança Alimentar e Nutricional (CNSAN) e o contexto atual sobre o tema. Observa-se a estrutura internacional para o estabelecimento da segurança alimentar, com destaque para a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), com análise das implicações para o contexto brasileiro em sentido jurídico. Enquanto instruções jurídicas observadas, destaca-se o art. 11 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ratificado pelo Brasil por meio do Decreto n. 591, de 06 de julho de 1992, assim como a Declaração de Roma, estabelecida a partir da Cúpula Mundial de Alimentação realizada em 1996. Para o terceiro capítulo, ressalta-se o aporte teórico ligado às questões de gênero, com compreensões dos direitos humanos das mulheres, destacando a questão da renda e da autonomia para falar da forma como esse grupo produz relações substanciais com o alimento, 17 a partir de acesso e manipulação no ambiente familiar. Direciona-se para o estabelecimento do contexto que infere a relação das mulheres com a segurança alimentar e nutricional, com atenção para aspectos conjunturais, o que possibilitou a construção do quarto capítulo, voltado para a questão da pandemia Covid-19. Segue-se para análise do período demarcado, no sentido de avaliar os impactos da pandemia para a segurança alimentar e nutricional, para produzir uma verificação de como as categorias estudadas no terceiro capítulo estão relacionadas. Neste capítulo, há determinação de uma série de documentos que devem ser avaliados, com verificação de dados secundários e informações sobre a relação mulheres, alimento e pandemia. A análise documental foi construída a partir de três facetas, com a busca de conteúdo para compreensão dos impactos da pandemia e quais relações foram atribuídas de modo direto e indireto com o aspecto alimentar e a questão de gênero. Ao final, apresentou-se um quadro síntese com a organização das informações colhidas a partir de cada documento, para compreensão dos pontos tangenciais entre os documentos, quais impactos foram mais ressaltados e variações encontradas. Por meio da trajetória teórica produzida, foram apresentadas as conclusões da pesquisa proposta, entre a intermediação da segurança alimentar frente ao recorte de gênero. Verificou- se uma compreensão dos Direitos Humanos, com a localização do direito à alimentação como base da estrutura da constituição cidadã das mulheres. De modo consoante, avaliou-se a dimensão extensiva das particularidades e impactos da forma como se vive a segurança alimentar e nutricional a partir de gênero, visto a responsabilidade com os processos de compra, administração e preparo de alimentos. A partir da relação avaliada, foi observado o recorte temporal marcado pela pandemia Covid-19, no sentido de compreender as diferenciações e as consequências promovidas. Considerou-se a análise documental como elemento metodológico central para compreender as óticas diversas sobre o tema, com consonância para a ideia de que a pandemia foi responsável por aumentar as contradições e intensificar o acesso à segurança alimentar e nutricional para as mulheres. 18 Capítulo 1 Aspectos fundamentais da questão alimentar Ao observar as bases teóricas do Direito, é possível afirmar que a ciência jurídica possui uma preocupação com o “dever-ser” da sociedade. Ao associar essa perspectiva com a alimentação, é possível conceber uma espécie de “dever-ser” para os termos nutricionais que todas as pessoas deveriam alcançar para uma existência baseada na dignidade da pessoa humana. Em termos amplos, o Direito se esmiuça na valoração do direito à vida, sob perspectivas fundamentais. Todavia, considera-se que só é possível constituir vida ao sujeito que mantém as condições de sobrevivência. Ainda é possível ir além, no sentido de que a materialidade da existência não pode ser dada a partir do alimentar de qualquer forma, mas deve ser considerada de forma qualitativa. O direito à alimentação dá subsistência ao direito à vida, assim como promove a possibilidade de constituição de outros direitos fundamentais. Para que seja possível o exercício do trabalho, educação, lazer e demais direitos sociais, o sujeito de direito deve ter a possibilidade de alimentar-se, de forma adequada sob os preceitos de quantidade e qualidade (MANIGLIA, 2009). A proposição central desta dissertação está baseada no estudo da segurança alimentar e nutricional a partir da experiência das mulheres brasileiras durante a pandemia Covid-19. Para análise de tal objeto, existe a necessidade de demarcar os fundamentos teóricos, tanto em termos jurídicos, quanto de modo interdisciplinar. Sob esse espectro, o presente capítulo está voltado para a construção de uma base jurídica para compreender como a questão alimentar é estabelecida enquanto direito. Nesse sentido, o ponto de partida é a categoria justiça, como valor ético-fundante do Direito (FERRAZ JÚNIOR, 2003), desenvolvido por uma perspectiva centralizada pela interpretação rawlsaniana, contraposta por uma crítica que avalia a intermediação entre a ideia do que é justo e a realidade concreta e as limitações do que foi pontuado por John Rawls. De forma subsequente, há uma preocupação em compreender o contexto sócio- histórico, sob as influências econômicas e políticas, por uma via da fundamentação sociológica do ato de se alimentar. Entende-se a necessidade de questionar o que significa a alimentação para a construção do sujeito, contextualizado nas posições ocupadas a partir das relações sociais. Trata-se de um aporte sociológico desenvolvido para a categorização do Direito a partir de Pierre Bourdieu e uma consideração de teóricos como Josué de Castro e István 19 Meszáros. Essa perspectiva de análise teórica é justificada a partir da ideia de que “é basilar a interdisciplinaridade em abordagens que contemplam interseções entre as institucionalidades do mundo sociojurídico e as intersubjetividades das relações cotidianas” (FREITAS; PONZILACQUA, 2020, p. 10). A interlocução de justiça, direito e a análise da materialidade da alimentação para o desenvolvimento do sujeito culmina em uma perspectiva sobre os direitos humanos como uma expressão jurídica, capaz de produzir ações práticas e levantar direcionamentos significativos para instituir políticas públicas. Esse escopo direciona para entender o conceito de segurança alimentar e nutricional e quais considerações podem ser obtidas para análise da estrutura de políticas públicas alimentares no Brasil. 1.1 Direito, Justiça e alimentação Para compreender como a questão da alimentação é associada no estabelecimento de direitos e organização de propósitos jurídicos para a sociedade, parte-se de uma reflexão sobre o sentido do Direito, onde é possível encontrar a justiça como um valor ético-social fundante (FERRAZ JUNIOR, 2003). Tal relação foi alvo de diversos teóricos, a partir de óticas positivistas, jusnaturalistas, pós-positivistas. Ao observar as construções sociais e filosóficas, encontra-se o questionamento do que é justo e como estabelecer um grau de justiça para a sociedade. Falar sobre justiça pressupõe uma análise dos fundamentos da estrutura do Direito formal, mas também sobre uma construção valorativa social. Sabe-se que tal categoria pode ser amplamente observada a partir de autores clássicos e contemporâneos. O trabalho desenvolvido por David Johnston (2018) contempla um quadro sobre o histórico do conceito de Justiça, onde resgata movimentos desde a perspectiva aristotélica, com atenção a Hobbes, direcionado para uma visão contemporânea. É possível encontrar variações entre justiça como defesa dos oprimidos, justiça para a defesa da propriedade, assim como proteção para pessoas de posição social mais elevada (JOHNSTON, 2018). Essa informação deve ser demarcada no sentido de demonstrar o caráter histórico e as múltiplas dimensões de análise, visto que este trabalho não possui a intenção de esgotar a perspectiva da categoria justiça, mas realizar alguns marcos teóricos para reflexão e crítica da questão alimentar para o Direito. Sob esse precedente, constrói-se uma análise da categoria justiça a partir da centralidade rawlsiana, visto que as obras desenvolvidas por John Rawls podem ser 20 consideradas uma divisão significativa para a filosofia política do século XX. Em consonância, considera-se a perspectiva de Ronald Dworkin, o qual desenvolveu alguns pontos semelhantes a Rawls, a partir do liberalismo, mas com a apresentação de discordâncias. Entretanto, apresenta-se a contrapartida teórica a partir da perspectiva de Amartya Sen, sob as ideias de liberdade, justiça e qualidade de vida. Simultaneamente, há uma expansão da crítica com base nas análises contra hegemônicas da teoria da justiça, com autores como Atílio Boron, Roberto Gargarella e Eduardo Novoa Monreal. John Rawls pregava em torno da equidade, sob a pretensão da neutralidade dos elementos sociais, com a ignorância dos aspectos de classe, raça, etnia, gênero, formações físicas e intelectuais. A partir disso, seria possível estabelecer um contrato de Direito para que ocorresse a constituição de uma sociedade justa a partir de atribuição de direitos e deveres (RAWLS, 2003). Parte de dois princípios orientadores os quais estabelece como medida para um consenso sobre justiça: Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras. Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos (RAWLS, 2000, p. 64). Ao discorrer sobre um sistema de liberdades, John Rawls parte da perspectiva das liberdades políticas, de expressão, reunião, pensamento, consciência, além da proteção para a propriedade privada e garantias de proteção da integridade do sujeito. Quanto ao segundo princípio, o que se compreende é uma preocupação além da mera igualdade de oportunidades, onde a igualdade existente só pode ser justificada se as expectativas e as condições dos membros menos favorecidos da sociedade melhorarem. Para o segundo critério, dado a partir da questão das desigualdades sociais, o que precisa ser demarcado é que o teórico não parte de uma suplantação de tal contexto, visto que argumenta que não há necessidade da distribuição de bens e riquezas para que seja estabelecida igualdade. Considera que deve ser apresentado um nível de vantagem coletiva (RALWS, 2000; 2003). Essa contextualização permite a compreensão de que, para o autor, a ideia de justiça não está ligada, necessariamente, com uma constituição de equidade em todos os níveis econômicos, com espaço para diferenciação de classes. Considera justiça como a garantia de distribuição igual de valores sociais, sem uma necessidade absoluta do caráter de igualdade se 21 existir vantagens coletivas, dado que “a concepção geral de justiça não impõe restrições quanto aos tipos de desigualdades permissíveis; apenas exige que a posição de todos seja melhorada” (RAWLS, 2000, p. 67) O teórico apresenta certa expectativa de que um consenso mínimo seja estabelecido, mesmo que de modo rudimentar, para que os cidadãos cooperem entre si. Contudo, o próprio autor admitia que valores políticos podem ser tomados por referência em questões controversas para postar as reivindicações que possuem. Ronald Dworkin (2002) possuía o posicionamento de que John Rawls responsabilizou indivíduos por situações as quais não são capazes de controlar, o que demonstra uma falha em sua teoria da justiça, caracterizada como insuficientemente igualitária. Todavia, apesar do apontamento, o teórico possui uma aproximação significativa com a teoria de Rawls por se posicionar de forma contrária a ideia de bem-estar, tido como um elemento subjetivo, o que encaminhou Dworkin para a defesa de uma perspectiva objetiva do estabelecimento da justiça. Em termos de estrutura social, a compreensão de justiça de Rawls (2003) está alinhada com a garantia de liberdades básicas por meio do estabelecimento de um regime constitucional tido como justo. Nesse contexto, as instituições exerceriam um papel do modo mais apropriado para desempenhar um caractere de justiça social aos cidadãos, de modo que eles pudessem exercer o sistema de liberdades ideal, previsto pelo próprio autor como o mínimo a ser estruturado. Na aplicabilidade de um conceito de justiça que parte de um princípio de equidade, John Rawls questiona: “Como ordenar as instituições da estrutura básica para que um sistema de cooperação equitativo, eficiente e produtivo possa se manter no transcurso do tempo, de uma geração para a outra?” (RALWS, 2003, p. 70). Essa pergunta fornece a constatação teórica da análise que Rawls faz sobre o papel das instituições na formação do contexto de exercício da justiça para a sociedade, se forem capazes de permitir que cada qual viva sua vida com autonomia, independente da circunstância. Considera-se a pontuação inicial de David Johnston, o qual critica esse exercício da justiça legal a partir das instituições. Se há condição ideal na sociedade, até é possível deparar-se com resultados com certo nível de justiça. Entretanto, a verificação dos sistemas legais ao longo dos séculos indica uma dificuldade da justiça estritamente legal (JOHNSTON, 2018). Essa informação é ressaltada na análise da categoria da justiça para possibilitar a verificação de como a própria estrutura constitucional do Direito brasileiro conduz a construção do ideal de justiça para a questão da segurança alimentar e nutricional. 22 De acordo com Rawls, ao priorizar direitos básicos, há a pressuposição de que existe o mínimo de razoabilidade de condições para que as liberdades pensadas sejam exercidas caso haja vontade política. Por exemplo, se um direito básico não é concretizado num contexto favorável, demonstra-se falta de vontade política e de interesses governamentais, não dificuldade de recursos econômicos (RAWLS, 2003). Considera-se, também, a contrapartida da injustiça, sob a ideia de que ela acontece quando há violação de normas fundamentais, com consequências para a experiência de vida concreta (REGO; PINZANI, 2014). Ainda a partir da teoria da justiça rawlsaniana, importa destacar a ideia de bens primários trabalhada pelo teórico, definido como “diferentes condições sociais e meios polivalentes geralmente necessários para que os cidadãos possam desenvolver-se adequadamente” e dá continuidade com a perspectiva de que se trata daquilo que enxerga o sujeito para além de ser humano, mas sua existência política enquanto cidadão, visto que “são coisas que os cidadãos precisam como pessoas livres e iguais numa vida plena” (RAWLS, 2003, p. 81). Apesar dessa definição parecer abarcar a questão alimentar, isso não acontece diretamente. John Rawls (2003) divide em cinco categorias de bens primários necessários para o desenvolvimento humano: direitos e liberdades básicas, com destaque para a liberdade de pensamento; liberdade de escolha; possibilidade de ocupar posições sociais que remetam a responsabilidade e autoridade; renda e riqueza como meio de troca para objetivos a serem atingidos pelo sujeito; finaliza com uma ideia de autoconfiança para que o próprio cidadão tenha capacidade de reconhecer seu valor. Nesse sentido, o que pode ser demarcado é que a teoria do autor parte de justiça de um contexto mais amplo na possibilidade de garantias, principalmente ligado a uma ideia de posição social. Apesar de admitir que as perspectivas de vida podem ser significativamente atravessadas pela dimensão da renda, ainda enxerga a ideia de “menos favorecidos” (RAWLS, 2000; 2003) como aquele que possui menos, apesar de todos os bens primários elencados só serem efetivamente possíveis a partir de uma distribuição equitativa em sociedade. Sob essa argumentação, Atílio Boron (2004) marca a impossibilidade teórica da estruturação do conceito de justiça construído por Rawls, na colocação de que: “El problema de Rawls es su imposibilidad epistemológica, y política, de trascender los 23 contornos de la sociedad burguesa, pese a sus encomiables intenciones de hallar la piedra filosofal que introduzca la justicia en este mundo”1. (BORON, 2004, p. 159). Atilio Boron indica certo ceticismo teórico, com a colocação de que a defesa da justiça feita por John Rawls era barrada pelo caráter hegemônico das relações dadas pela sociedade do capital (BORON, 2004). Ainda segundo Boron (2004), não há como estabelecer justiça em uma sociedade baseada em relações de opressão e exploração. Considera-se as limitações do que se compreende como justo a partir do Direito, constituído a partir das relações do sistema do capital. Simultaneamente, algumas críticas podem ser produzidas ao verificar o contexto das obras escritas por Rawls, com ascensão do neoliberalismo e das reações conservadores nos Estados Unidos na década de 1980. Nesse contexto, Marshall (1963) defendia uma hipótese que articulava os recursos mundiais e a produtividade de modo que se garantisse bases materiais de existência aos homens e mulheres. Dar educação daria condição dos homens se capacitarem, de forma a superar esse limite dado como intransponível para a classe trabalhadora. Defendia uma igualdade humana básica que pode ser exercida a partir de uma participação integral na comunidade, reconhecida como cidadania, apesar das diferenciações econômicas. Entre as relações analisadas, o questionamento do que é dado como justo é capaz de remeter a um ponto teórico que pressupõe uma compreensão do conceito de justiça. Se prover uma alimentação digna pode ser caracterizado como algo justo, há espaços para pensar como estabelecer uma maximização do bem-estar geral, a partir da atuação do próprio Estado. Se para Rawls (2003), a justiça pode ser dada como a primeira virtude das instituições sociais, Roberto Gargarella (2008) ressalta a pluralidade dos sentidos da própria ideia de justiça, sob uma perspectiva de que a justiça pode ser caminho para organização de controvérsias sociais. Na questão alimentar, o que seria justo a ser promovido? A subjetividade do conceito de bem-estar apresenta uma berlinda sobre como normatizar um mínimo existencial alimentar. Por hora, há certa guia social no sentido de direcionar decisões jurídicas e legais para beneficiar uma maioria das pessoas, entretanto com um risco de mero utilitarismo para garantir o alimento de modo mecânico. Segundo Amartya Sen, uma estrutura utilitarista não possui espaço para receber influência de questões como “liberdade substantiva individual, a fruição ou a violação de direitos reconhecidos e aspectos da qualidade de vida” (SEN, 2010, p. 81). 1 O problema de Rawls é a sua impossibilidade epistemológica, e política, de transcender os contornos da sociedade burguesa, apesar de suas louváveis intenções de encontrar pedra filosofal que introduz a justiça nesse mundo (tradução nossa). 24 Sob a perspectiva utilitarista de estabelecer o que é justo, podem ser encontradas críticas por diferentes autores e perspectivas, inclusive de John Rawls. Em consonância, Dworkin (2002) realiza provocações na ideia de que há uma frustração em tentar estabelecer uma igualdade plena a partir de uma posição utilitária. Não existe um interesse na distribuição de direitos ou compreensão das particularidades, mas uma sociedade corporificada, sob uma ideia de utilidade total. Amartya Sen (2010), ao falar de justiça, crítica a perspectiva utilitarista, mas também critica a posição de Rawls e escolhe associar o justo com a perspectiva da qualidade de vida. Ao colocar a ideia de que todos os sujeitos experimentam o mesmo processo social se tiverem igualdade de oportunidades ou forem capazes de usufruir uma série de direito civis, ignora diferenciações importantes. Para Sen (2010), falar de bem-estar e distribuição de garantias pressupõe considerar cinco diferenças: heterogeneidades pessoais, como diferenças físicas, incapacidades, idade; diversidade ambiental, sob a ideia de que as condições climáticas podem determinar o nível de obtenção de renda, o impacto da poluição, de baixas ou altas temperaturas; variações no contexto social, a partir da reflexão de como é feito o acesso a um serviço público ou a um determinado tipo de produto; perspectivas relativas, explicada por uma variação intersocial, a depender do local que o sujeito habita; e a questão das rendas familiares, entre quantas pessoas contribuem e quantas possuem dependência econômica. Esses fatores podem alterar a experimentação dos direitos políticos, mas também sociais. Se for ressaltada a questão da qualidade da vida, o bem-estar pode ser radicalmente afetado a partir de cada diferenciação estabelecida. Nesse espectro, Amartya Sen (2010) contraria a ideia de utilidade, mas também a mera promoção dos bens primários indicado por Rawls, para se dedicar a um estabelecimento de liberdade substantiva. Destaca-se o seguinte exemplo: Uma pessoa abastada que faz jejum pode ter a mesma realização de funcionamento quanto a comer ou nutrir-se que uma pessoa destituída, forçada a passar fome extrema, mas a primeira pessoa possui um “conjunto capacitário” diferente do da segunda (a primeira pode escolher comer bem e ser bem nutrida de um modo impossível para a segunda) (SEN, 2010, p. 105). Nas teorias de Rawls (2000; 2003), discute-se como a imposição de graves sacríficos para alguns setores sociais para melhoria de vida de outros grupos pode ser rejeitada. Na crítica a uma postura utilitária, há certo problema no cálculo da justiça para distribuição de 25 bens primários. Se o conceito de Rawls de bem primário for expandido, pode-se elencar o alimento como algo a ser trocado por meio de renda e riqueza. Em contrapartida, Amartya Sen marca que “a saúde pessoal e a capacidade para ser saudável podem, por exemplo, depender de uma grande variedade de influência” (2010, p. 102), para alçar a pergunta de como as pessoas vivem. Nessa ideia, um sujeito submetido a um estado profundo de desnutrição e fome pode aceitar qualquer tipo de alimento. Isso não garantiria um estabelecimento justo da alimentação. Sob o contexto social, destaca-se a ocorrência de situações como a doação e até comercialização de ossos em mercados e açougues brasileiros. Durante o ano de 2021, conheceu-se o que foi apelidado de “Fila do osso”, que se tratava de uma fila em frente a um açougue que doava ossos para dezenas de moradores da cidade de Cuiabá, Mato Grosso. Em agosto de 2022, o Governador Mauro Mendes rechaçou o posicionamento da imprensa, sob a alegação de que era um osso de qualidade (KRÜGUER, 2021; JÚNIOR, 2021; OHANA, 2022). Simultaneamente, pedaços de ossos têm sido disputados em alguns locais do Brasil. No Rio de Janeiro, passaram a se formar filas em um caminhão que recolhe ossos e peles, imagem estampada em capa divulgada pelo Jornal Extra, sob o título “A dor da fome”, o que ressaltou a crise alimentar vivida no Brasil em cenário internacional (EXTRA, 2021; ISTOÉ, 2021; GOULART, 2021; VIECELI, et al, 2021). A situação se repete em Maceió com mulheres em disputa pelas doações de ossos e peles de frango feita por ONG (MADEIRO, 2021). Denota-se um quadro contraditório e que demonstra a insuficiência da mera normatização do direito à alimentação. Apesar do direcionamento jurídico e político, há certa dificuldade de estabelecer uma medida adequada para compreender o concreto. Nesse sentido, a normatização de uma garantia pode ser considerada como “limites destinados a impedir que alguma minoria sofra desvantagens na distribuição de bens e oportunidade pelo fato de uma maioria de indivíduos pensar que aqueles poucos são merecedores de benefícios menores que os recebidos pela maioria” (GARGARELLA, 2008, p. 10). Para o jurista chileno Eduardo Monreal (1988), a constituição de um direito social não implica em uma transformação social. Na realidade, argumenta que a juridicização é um obstáculo para a mudança pelos aspectos das teorias, regras e a forma de aplicação. É difícil concretizar um direito, dada tendência de perfil dos sujeitos responsáveis pela aplicação, que acabam satisfeitos com as modificações formais. Parte de uma crítica profunda onde que 26 coloca o Direito como um elemento que separa sujeitos e dificulta processos de cooperação, que poderiam intervir nas questões da vida concreta, como a alimentação. Enquanto teóricos como John Rawls e Dworkin propõe uma construção de liberdade a partir das próprias relações de Estado, Eduardo Monreal (1988) questiona inclusive o formato do Estado como provedor do bem-comum, com a demarcação de que é uma fábula que atomiza a sociedade. Nesse contexto, o Direito serve como elemento que mascara as diferenciações sem propor transformações substantivas. Além das observações teóricas sobre a justiça e as expressões do Direito compiladas neste tópico, sabe-se que a teoria da justiça possui grande complexidade, para além dos autores expostos. O que interessa é uma compreensão introdutória que permita marcar duas pontuações determinantes para a organização teórica desta dissertação. O primeiro ponto é a consideração do que é justiça em um sentido teórico. As concepções apresentadas permitem uma compreensão da complexidade da categoria, mas também uma expansão a partir dos autores intermediados. Não é suficiente tratar sobre liberdade como expressão da justiça, mas este trabalho parte da perspectiva de que a garantia de alimentação em níveis adequados – em quantidade e qualidade – é uma faceta do que é justo em sociedade. O segundo ponto é a consideração de um meio alternativo para o significado de Direito. Há uma perspectiva liberal que encontra o caminho para resolução das diferenças a partir do próprio Estado, na contrapartida de uma crítica que não enxerga a resolução das desigualdades a partir do Direito, expresso pela institucionalidade. Para essa relação, considera-se uma mediação que reconhecesse a impotência da estrutura jurídica para a resolução das inseguranças alimentares, mas considera a possibilidade de aproveitá-la para a disputa de normas, projetos e políticas que inferem concretamente no estabelecimento do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA). Promover a alimentação de forma mais adequada é uma tarefa política circundada pela questão do desenvolvimento social, visto que para que as potencialidades humanas – coletivas e individuais – sejam alçadas, é necessário a capacidade de existir e agir, que não pode ser feita se não há alimento. Segundo Amartya Sen (2010), a capacidade de realização humana é atravessada pelas questões econômicas, políticas e sociais, assim como condições que habilitem o sujeito para existir. Discutir a intermediação entre justiça, alimentação e direito significa refletir sobre o que poderia ser dado como justo, o que implica em uma análise teórica das proposições de justiça sob a premissa do que significa oferecer alimentação para as pessoas em nível de 27 dignidade humana, sob o questionamento do que é possível ser feito a partir da ação jurídica, sob a consciências dos limites práticos do Direito. 1.2 O ato de alimentação: aspectos políticos e fundamentações sociológicas Entre as avaliações e as críticas teóricas, algumas mediações precisam ser produzidas, no sentido de que apesar das limitações do próprio Direito, o ato de se alimentar possui fundamento ligado à sobrevivência, prévio a qualquer reconhecimento legal. Não é necessária uma estruturação jurídica para que os sujeitos reconheçam a necessidade de se alimentar para que possam se manter vivo. Entretanto, a validação enquanto direito social permite a organização de políticas e a inserção do tema no campo jurídico. A partir de Pierre Bourdieu, considera-se que as práticas jurídicas são resultadas de determinações implicadas pelas relações de força que determinam o estado da arte do Direito, orientado por lutas concorrenciais, conflitos de competência, estruturação científica de obras. A associação e avaliação de tais relações constitui o que o autor considera como o espaço dos possíveis (BOURDIEU, 1989). Ao falar desta categoria, o que se observa é que a forma como o Direito é disputado a partir do discurso, das relações sociais, das estruturas e da ciência jurídica modela as possibilidades para que uma determinada questão seja tratada juridicamente. Ao situarmos essa consideração para o ato de se alimentar, o reconhecimento jurídico e a colocação do tema nas formações legais permitem uma prática e um discurso voltado para que o direito à alimentação seja alvo de políticas públicas, disputas judiciais e organizações jurídicas. Há de se considerar que os acúmulos do Direito para a questão do alimento foram processados por estímulos que são recentes, ao considerar o desenvolvimento sócio-histórico do Brasil. Apesar do reconhecimento jurídico sobre a alimentação como um direito social ser uma realidade a partir do art. 6º da Constituição Federal de 1988, a inclusão no rol estabelecido constitucionalmente foi possível a partir da Emenda Constitucional 64/2010. Em perspectivas constitucionais, é possível considerar o que é elencado no art. 6º: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (BRASIL, 1988). Há, também, a consideração do art. 227 da CF/88, que prevê a articulação entre família, sociedade e Estado para assegurar para crianças, adolescentes e jovens, direitos fundamentais e sociais, como a própria alimentação, articulada com os direitos à vida e à saúde. 28 Ao contextualizar a alimentação como uma categoria tratada enquanto direito social a partir da Emenda Constitucional indicada, verifica-se uma construção jurídica em torno do tema, tanto em termos positivados quanto para a ciência do Direito. A presença da questão alimentar na estrutura legal é recente, com atenção para a Lei 8.080/1990, que apesar de versar sobre temas amplos ligados à saúde, pontua a alimentação como um determinante e condicionante para o estabelecimento da vida, com a consideração de que “os níveis de saúde expressam a organização social e econômica do País” (BRASIL, 1990). Na observação das tratativas do Estado Brasileiro para a questão estudada, considera- se a aprovação da Política Nacional de Alimentação e Nutrição em 1999, um marco para a proteção de direitos humanos à saúde e à alimentação (MINISTÉRIO DA SAÚDE, et al, 2013). Em 2011, a Portaria n. 2.715/2011, organizada pelo Ministério da Saúde, atualizou a Política Nacional de Alimentação e Nutrição, a partir da necessidade de uma política expressa sobre alimentação e nutrição, voltada para a garantia do direito à alimentação. As informações elencadas compõem um breve destaque no sentido de identificar o caráter recente que a questão da alimentação assume no interior do Direito brasileiro. Todavia, a discussão aprofundada sobre os direcionamentos legais sobre a alimentação será apresentada no segundo capítulo. Sob a perspectiva de Bourdieu (1989), a partir de uma crítica de uma autonomia total do Direito, como se fosse um instrumento regido apenas por dinâmicas internas, considera-se que o quadro jurídico estudado nesta pesquisa sofreu interferências da realidade política, social e econômico do Brasil, nas intermediações com os debates de Direitos Humanos em campo internacional. Neste sentido, é necessário realizar uma análise da alimentação a partir de aspectos políticos e fundamentos interdisciplinares. Para compreender as questões que envolvem a efetivação do direito à alimentação, verifica-se como o ato de se alimentar é transpassado por questões sociais, econômicas, para além da mera subsistência do sujeito. O alimento pode promover o lazer, a conexão com o grupo e a família. Trata-se de um momento que forma o sujeito. Na perspectiva do quão fundamental é a questão alimentar, considera-se que: “sem uma alimentação adequada, em quantidade e qualidade, não há o direito à vida e, consequentemente, aos demais direitos. O ato de se alimentar passa pela cultura de cada povo, pelas formas de acesso para produzir ou adquirir seus alimentos” (MANIGLIA, 2009, p. 115). A fome aparece quando a alimentação não tem bases para ocorrer. A não concretização do direito à alimentação não pode ser lida de forma estritamente jurídica, visto que as condições de classe, raça, gênero, etnia podem determinar o curso do alimento em uma 29 vida. Entre a quantificação nutricional de como um sujeito deveria se alimentar e o que deveria consumir para as condições adequadas de saúde, encontra-se uma série de impedimentos cotidianos, como a má distribuição de produtos, lógicas de exportação voltadas para o lucro, monocultura, falta de interesse político no combate à fome. Destaca-se a consideração de Josué de Castro, ao iniciar a obra A Geografia da Fome, ao considerar que o assunto tratado pode ser considerado perigoso e delicado. Verifica- se a ocorrência de um peso moral em torno da palavra fome, marcada politicamente por escolhas discursivas voltadas para o disfarce das estatísticas que demonstram uma grande massa de mulheres e homens que não se alimentam, dada às subjugações socioeconômicas (CASTRO, 1984). Em torno do discurso produzido, é possível avaliar o estabelecimento de que a fome é algo dado a sociedade, sob uma falsa premissa de naturalização do modo formativo das relações sociais. Veicula-se uma impossibilidade de superação substantiva das inseguranças alimentares, conforme debatido por Mark Fisher: Uma crítica moral ao capitalismo, enfatizando as maneiras pela qual ele gera miséria e dor, apenas reforça o realismo capitalista. Pobreza, fome e guerra podem ser apresentadas como aspectos incontornáveis da realidade, ao passo que a esperança de um dia eliminar tais formas de sofrimento pode ser facilmente representada como um mero utopismo ingênuo (FISHER, 2020, p. 33). Ao escrever a obra "Geografia da Fome", Josué de Castro nos retoma para o contexto de calamidade do período que produziu o livro, durante a década de 1980 (CASTRO, 1984). Na atualidade, há um movimento de retomada dos aspectos da fome e crise política para o quadro brasileiro da atualidade, sob as inferências do contexto vivenciado. Essa é uma avaliação significativa para analisar, por exemplo, a retomada do Brasil para o Mapa da Fome e a intensificação dos níveis de insegurança alimentar.2 Os ciclos de produção capitalista marcam os sistemas de alimentação, de forma que propõe uma grande escala produtiva alimentar, marcado por questões agrícolas, relação das demandas e ofertas, globalização do alimento, aumento da distribuição de alimentos ultraprocessados, o que acaba por caracterizar o ato de se alimentar como um grande negócio (GRACIA-ARNAIZ, 2005). Ao imputar a ideia de lucro ao alimento consumido, há o estabelecimento de uma série de contradições e paradoxos sobre essa questão para o desenvolvimento da sociedade. 2 A trajetória que avalia os movimentos em torno do estabelecimento da segurança alimentar no Brasil, assim como desafios e problemas atuais, será apresentada no Capítulo 2. 30 Meszáros (2011) aponta que “o progresso das forças da produção agrícola não erradicou a fome e a desnutrição” (p. 255), dada a contradição diante dos modos expansionistas do sistema do capital. Dá a continuidade de que há uma imposição de que “não se deve permitir que motivações “sentimentais” relativas à saúde – e até à simples sobrevivência – dos seres humanos perturbem ou interrompam os “processos de tomada realista de decisão” orientados para os mercados” (MESZÁROS, 2011, p. 255). Para compreensão desse quadro, importa observar o nível de produtividade alimentar frente aos níveis de não acessibilidade à alimentação adequada. De acordo com o Relatório Índice de Desperdício de Alimentos, publicado em 2021 pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), cerca de 17% da produção global de alimentos pode ser desperdiçada. Apesar do relatório indicar questões metodológicas que desfavorecem a observação precisa dessa porcentagem, há indicação que o nível de desperdício de alimentos tem crescido e pode dobrar para as próximas análises. Não há um compilado de dados anteriores significativos para uma comparação rígida, visto que a coleta da informação de desperdício alimentar é atravessada por abordagens com alto nível de variabilidade metodológica. Há indicação de apenas dezessete países que apresentam dados significativos em alta qualidade. Entretanto, o relatório conecta esse cenário com a dificuldade da compreensão política de como o desperdício alimentar está atrelado aos níveis de segurança alimentar (PNUMA, 2021). Enquanto há indicativo de desperdício de cerca de 931 milhões de toneladas de alimento desperdiçados, o Relatório Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo lançado em 2022 indicou que cerca de 828 milhões de pessoas foram atravessadas pela fome em todo o mundo durante o ano de 2021, com uma alta significativa. Em questões percentuais, a fome tem afetado cerca de 9,8% em caráter mundial (FAO, et al, 2022). A partir desses números, observa-se uma contradição central para a questão alimentar: um número significativo de sujeitos sem acesso à alimentação enquanto há uma produção massificada, alvo de um percentual significativo de desperdício alimentar. Uma segunda contradição pode ser verificada a partir da exportação de alimentos feita pelo Brasil e as condições de alimentação do povo brasileiro. De acordo com o Boletim do Comércio Exterior do Agronegócio, produzido pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), o agronegócio brasileiro atingiu a marca de US$10,5 bilhões no campo das exportações em fevereiro de 2022, com um crescimento percentual de 203,4% do valor alcançado em fevereiro de 2021 (CNA, 2022). 31 Em contrapartida, a edição publicada em 2022 do Relatório “Insegurança Alimentar e Covid-19 no Brasil” indica que o contexto brasileiro abarca cerca de 125,2 milhões de pessoas tem vivenciado algum nível de insegurança alimentar, enquanto cerca de 33 milhões estão inseridos no nível mais grave de insegurança alimentar, com uma situação de fome explícita (REDE PENSSAN, 2022). Se por um lado as mudanças para a produção de alimentos proporcionaram a possibilidade de maior acessibilidade aos alimentos, com novas tecnologias que aumentaram os tipos de produtos ofertados, com o aumento da diversidade alimentar (ARNAIZ, 2005), os dados expostos acima demonstram uma continuidade da desigualdade alimentar e uma dificuldade de concretização de maiores acessos aos alimentos. A questão da alimentação não é um problema de falta de alimento, mas há um problema político de distribuição, onde o alimento é condicionado ao lucro, o que implica em altas taxas de desperdício alimentar, sob o quadro da política agrícola. Para Mabel Gracia-Arnaiz, “persistem as heterogeneidades intra e interterritorial e socialmente vertical” (2005, p. 149), o que significa que existem condicionantes que determinam como a alimentação se dá. A ocorrência de marcações a partir das condições de classe, raça, gênero, território, renda, junto a outras variáveis sociais são centrais no acesso alimentar. Nesse sentido, a autora continua: Apesar da abundância aparente, os sistemas de produção e distribuição alimentares atuais não asseguram as necessidades básicas das pessoas, nem a repartição equitativa dos alimentos, nem a capacidade de recuperar os recursos utilizados, tampouco a preservação da identidade cultural (GRACIA-ARNAIZ, 2005, p. 160) Esta pesquisa não é a primeira a questionar por que há ocorrência da fome se existe produtividade alimentar suficiente para suprir as necessidades mundiais. Mabel Gracia-Arnaiz perguntava-se “Se a produção alimentar atual é suficiente para alimentar toda a população mundial, por que persistem a fome e a subnutrição? Por que a fome inscreve-se na história da afluência?” (2005, p. 150). Da mesma forma, Elisabete Maniglia também questiona “O cidadão come? Come o quê? De onde vem seu alimento? Qual é a sua qualidade? Foi comprado à custa de seu trabalho degradante? O cidadão trabalha com dignidade? Recebe todos os seus direitos?” (MANIGLIA, 2009, p. 82). Na obra publicada em 1984, Josué de Castro fazia coro às perguntas e já atribuía uma resposta: “existem, no nosso planeta, mais de dois bilhões de seres humanos. Como se alimentam eles? Os primeiros inquéritos realizados nos permitem responder: alimentam-se mal” (CASTRO, 1984, p. 8). 32 Nesse contexto, considera-se o posicionamento desenvolvido por István Meszáros (2011), o qual indica que a forma de produção e distribuição alimentar no interior do sistema do capital, nos moldes atuais, não promete ou garante um futuro adequado, dada a própria degradação do meio ambiente e o modelo de produção alimentar. De modo crítico, aponta: Graças à subserviência alienada da ciência e da tecnologia às estratégias do lucrativo marketing global, hoje as frutas exóticas estão disponíveis durante o ano inteiro em todas as regiões – é claro, para quem tem dinheiro para comprá-las, não para quem as produz sob o domínio de meia dúzia de corporações transnacionais (MESZÁROS, 2011, p. 255). Na atualidade, Frederico Daia Firmiano (2022), alia-se à crítica ao indicar que a questão da fome e a criação de direcionamentos perpassam pelas relações de mercado e a forma de consumo mundial. Por essa via, a estruturação do capital implica em uma perspectiva de acumulação e centralização que afeta o enfrentamento substantivo das inseguranças alimentares. Ao intermediar os questionamentos apresentados por outros teóricos, frente aos dados elencados, a questão da fome no tempo presente parece alcançar maior complexidade do que anteriormente. Isso se dá a partir da intensificação das relações sociais, mediadas pelo sistema do capital (MESZÁROS, 2011). Na associação proposta entre produção de alimentos e lucro, não é toda a necessidade humana que está alinhada com uma perspectiva de vantagem para os grandes produtores de alimento. Entretanto, “o problema é que a frustração da “segurança alimentar” implica diretamente a sobrevivência do conjunto da humanidade” (FIRMIANO, 2022, p. 134). De modo simultâneo, ressalta-se a posição de Meszáros, o qual aponta que “prioridades adotadas no interesse da expansão e da acumulação do capital são fatalmente distorcidas contra os condenados à fome e à desnutrição, principalmente no ‘Terceiro Mundo’” (2011, p. 255). Não é possível separar o problema da fome das relações vivenciadas em um sentido econômico, político, social e jurídico, sob o resgate da posição do Brasil nas relações internacionais, sob a subserviência como país latino-americano, às margens. Ao retomar a perspectiva apresentada no início deste subtópico, considera-se que a análise feita demonstra o local em que a alimentação ocupa na constituição da agenda jurídica brasileira. Se Direito é um espaço de disputa, constituído como campo dos possíveis, assinalado por Pierre Bourdieu (1989), as questões apresentadas sobre a realidade alimentar brasileira estão conectadas com as tentativas de produzir uma intermediação concreta. 33 O estudo entre os aspectos teóricos e a realidade vivenciada possibilita analisar quais campos do Direito podem ser abertos, qual é a constituição de política pública possível, assim como o reconhecimento da alimentação como um direito humano fundamental. Trata-se de avaliar as implicações políticas, sociais, econômicas que perpassam a forma possível de superação da fome, como questão central para a continuidade coletiva e desenvolvimento humano. 1.3 Constituição alimentar para efetivação dos Direitos Humanos Considera-se que uma análise interdisciplinar possibilita melhor compreensão dos fenômenos alimentares. Em consequência, é possível avaliar as estratégias e construções jurídicas para além das normas positivadas, visto que “o método lógico-formal é abstrato demais para a compreensão dos direitos fundamentais no âmbito materialista da práxis” (MACHADO, 2017, p. 160). Na articulação entre a ideia de que a alimentação é um direito social, a partir das diferentes influências que pode gerar para a constituição da vida concreta, o Direito deve se preocupar com a falta de alimento. Na associação do direito à alimentação como uma base para ocorrência de outros direitos, uma violação da segurança alimentar e nutricional pode desencadear uma série de rompimentos de garantias fundamentais. Neste sentido, é cabível a observação da questão alimentar no campo dos Direitos Humanos, como elemento fundamental para uma concretização coletiva de determinações para a dignidade da pessoa humana. Diante do contexto apresentado e da constatação de que a questão alimentar é transpassada pelos aspectos econômicos e sociais, volta-se para as intersecções produzidas pelo Direito para a garantia de uma alimentação em termos adequados. Neste sentido, ressalta-se o caráter fundamental da segurança alimentar e nutricional para que os Direitos Humanos sejam efetivados. A discussão sobre Direitos Humanos implica na necessidade de identificação de qual ponto se parte, em um sentido teórico. Diferentes conceituações podem ser estabelecidas, todavia esta pesquisa parte das orientações produzidas por Machado (2017), o qual aponta para uma compreensão de direitos humanos como um produto para satisfazer as condições materiais do sujeito, gerado a partir de antagonismos políticos e sociais. Também é possível realizar uma associação entre Direitos Humanos e valores significativos para a manutenção da 34 sociedade. Trata-se do reconhecimento do que é fundamental para garantir a ocorrência coletiva da vida (COMPARATO, 2018). A segurança alimentar se desenvolve sob o prisma dos Direitos Humanos e do Direito Agrário, diante diversas áreas do conhecimento. Trata-se de pensar em como a alimentação pode ser efetivada enquanto um direito fundamental da existência humana (MANIGLIA, 2009). O desenvolvimento pleno da vida e da cidadania está associado com o acesso e consumo de alimentos, definido pelas condições socioeconômicas do sujeito. Populações pobres têm uma qualidade da alimentação precária, dado o poder de compra que possuem. Em um sentido utópico, Comparato (2018) pressupõe solidariedades técnica e ética para constituição da cidadania, com, respectivamente, uma padronização da vida e o estabelecimento de uma cidadania mundial, sob a suplantação de relações de dominação. Ressalta-se que a realidade vivenciada por cada comunidade pode alterar a forma como se experimenta a ideia de Direitos Humanos (MANIGLIA, 2009). Há de se considerar a dificuldade em discutir a alimentação a partir de Direitos Humanos, no sentido de que existem discursos produzidos que relegam o debate ao plano político, sob a consideração de que efetivar direitos básicos contraria a estrutura de dominação estabelecido pela sociedade do capital. Esses direitos permitem uma discussão sobre o estabelecimento de tais garantias a partir do Estado Democrático de Direito (RÚBIO, 2015). Simultaneamente, não há como se afastar da prática cotidiana, inferida por diferentes fatores. Consideramos os estudos do Prof. David Sanchéz Rubio, que nos diz: al considerarse como natural, normal e indiscutible la distancia entre lo practicado y lo hablado, se está consolidando y fortaleciendo una forma de entender y practicar la convivencia humana sin más pretensiones de lograr una mayor coherencia en lo universal socio-históricamente producido (RUBIO, 2015, p. 103)3. A normalização dos direitos fundamentais como um campo inatingível na prática jurídica direciona para a manutenção de uma lógica onde não se viabiliza pretensões concretas de garantir tais direitos. As dificuldades de distribuição e regulação de questões como a alimentação não podem ser naturalizadas, sob a falsa premissa de que é impossível efetivar garantias sociais. 3 Ao considerar como natural, normal e indiscutível a distância entre o que é praticado e aquilo que é falado, está se consolidando e fortalecendo uma forma de entender e praticar a convivência humana sem maiores pretensões de alcançar maior coerência no universo socio-historicamente produzido (tradução nossa) 35 Sob a colocação teórica supracitada, direciona-se para a ideia de que discutir o direito à alimentação não deve ter como determinação central a impossibilidade de superar a fome. Ao observar grupos marginalizados a partir da perspectiva da cidadania, depara-se com uma série de contradições que se expressam a partir da busca por direitos mínimos ligados com as condições de existência. Há uma complexidade em discutir cidadania justamente porque existem uma certa limitação do próprio Estado em reconhecer aqueles que se encontram uma posição periférica da sociedade (RUBIO, 2020). Ao considerar que a questão alimentar é determinante para efetivação de outros direitos, há um ponto crucial para construção dessa ideia de cidadania, tanto pela perspectiva estatal, quanto pela capacidade do sujeito de se reconhecer enquanto parte social, alvo de direitos previstos. Neste escopo, é possível resgatar um aspecto teórico desenvolvido por Habermas, ao trabalhar em uma interpretação possível para os direitos humanos fundamentais. Para que seja possível garantir a efetividade do direito, é preciso garantir igual proteção jurídica e igual pretensão jurídica, no interior dos ideais democráticos. Habermas traça uma relação significativa: para compreender uma ideia de democracia é necessário avaliar a conexão entre o princípio do discurso e a forma jurídica. A forma jurídica é sobre garantir a estabilidade das expectativas sociais, garantir um equilíbrio do comportamento de forma coletiva. O princípio do discurso coloca a posição de examinar aquilo que dá legitimidade (ou não) para as normas da ação. Essa relação é chamada de gênese lógica de direitos (HABERMAS, 1997). Na relação entre direito e discurso, nascem os direitos fundamentais ligados com a igualdade de liberdade subjetiva de ação, que se desdobram naqueles que vem de uma autonomia política e naqueles resultantes da possibilidade de postular judicialmente os direitos, com a garantia de uma proteção jurídica individual. Forma-se aí uma relação em que as garantias fundamentais servem para a autonomia privada do sujeito, que vai acontecer somente se o sujeito se entender como destinatário da lei. Essa pretensão de direitos se efetiva quando há reciprocidade, visto que para ser sujeito de direito é necessário assumir um papel de autor da ordem jurídica, o qual é garantido com a participação igualitária na formação da opinião e da vontade política. Essa fundamentação para cidadãos livres iguais que garantirá uma posição material, concreta com o direito. E a partir disso, podemos falar em “direitos fundamentais a condições de vidas garantidas social, técnica e economicamente, na medida em que isso for necessário para um aproveitamento, em igualdade de chances, dos direitos” (HABERMAS, 1997, p. 160). 36 Em uma avaliação sobre as determinações dos direitos fundamentais, Robert Alexy (2008) coloca que a regulação dessa categoria pelo Estado tende a possuir grande abertura, assim como controvérsias, como alvo de disputas, que implicam na forma como a estrutura do Estado intermedia a efetivação desses direitos. Pontua que “a efetividade do direito é objeto da dimensão empírica, ao menos na medida em que tal efetividade for condição para a validade do direito, legislado ou jurisprudencial” (ALEXY, 2008, p. 34). Essas perspectivas teóricas permitem a compreensão de que discutir Direitos Humanos é uma demanda complexa. Considera-se que é uma relação intermediada pela estrutura do Estado, as expressões do Direito, mas também pelo reconhecimento subjetivo como portador de direitos sociais. Há um distanciamento entre a realidade concreta e a aplicabilidade de direitos, assim como a organização de políticas públicas efetivas. No campo da estruturação jurídica, ressalta-se o reconhecimento encontrado na Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948. No artigo 25º da referida Declaração, a alimentação aparece como uma categoria que deve ser garantida para toda pessoa a partir de um nível de vida suficiente que assegure saúde e bem-estar para si e sua família. Esse reconhecimento é significativo para a questão alimentar (ONU, 1948). Entretanto, diversos relatórios produzidos4 pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) indicam a recorrência e continuidade de quadros de insegurança alimentar em diversos locais do mundo. Destaca-se essa informação para uma breve pontuação sobre as contradições entre as garantias previstas e o espaço da realidade. Por conseguinte, a breve pontuação sobre Direitos Humanos tem como objetivo demarcar a fundamentalidade do reconhecimento alimentar para constituição do sujeito, no sentido de que é necessário o acesso à alimentação de forma adequada. Todavia, não se trata de uma observação estéril, com mera afirmação da segurança alimentar como garantia fundamental, mas como um processo submetido a relações sociais complexas, com questionamentos sobre o que interfere na efetividade e quais campos podem ser disputados, a partir da lógica de que “somente a prática é capaz de proporcionar o conhecimento real e fornecer os critérios seguros para aferição do grau de efetividade dos direitos humanos fundamentais” (MACHADO, 2017, p. 156). Em continuidade, direciona-se uma construção para compreender o quadro teórico da segurança alimentar enquanto conceito do campo do Direito Agrário. Compreende-se a necessidade de explicar conceitualmente as perspectivas sobre segurança alimentar e 4 Os dados e relatórios produzidos pela FAO serão observados com maior rigor metodológico no segundo capítulo desta dissertação. 37 nutricional, as formas como a insegurança e a desnutrição pode ocorrer, para que seja possível avaliar a constituição de políticas e os direcionamentos internacionais. 1.4 O conceito de segurança alimentar e nutricional As discussões e categorias teóricas apresentadas até este ponto são fundamentais para a compreensão do processo alimentar enquanto um direito. A partir do escopo desenhado, torna-se necessário uma estruturação do conceito de Segurança Alimentar e Nutricional por meio do Direito Agrário que possibilite analisar o caminho de conexão entre a teoria e a prática alimentar das mulheres brasileiras, grupo observado nesta pesquisa, com a expressão das políticas públicas institucionalizadas internacionalmente e pelo Estado Brasileiro. Não há como tratar a alimentação como um tema simplório, constituído apenas como ato para suprimento nutricional, desconectado da organização social da vida. Essa linha de raciocínio direciona para uma perspectiva de que a mera formalização jurídica sem compreensão do fenômeno alimentar não é capaz de construir intervenções significativas. A alimentação sofre interferências a partir do aspecto cultural, social, econômico, histórico e ambiental. A forma como a vida é constituída em cada núcleo familiar ou comunidade impacta o modo como um alimento é manipulado e como as escolhas alimentares são realizadas. Existem hábitos alimentares mediados pelas formas nutricionais adequadas, mas também pelo prazer, pela socialização, como uma forma digna de existência (MALUF, 2007; MANIGLIA, 2009). Ao discutir a questão da segurança alimentar, Roberto Grassi Neto (2013) indica a importância de um olhar interpretativo, no sentido de compreender que a palavra “segurança” significa garantir certas necessidades ou ainda manter-se afastado de incertezas ou perigos. O autor realiza uma construção teórica que demonstra a trajetória do conceito de segurança alimentar e nutricional a partir das experiências internacionais e jurídicas, para apresentar a seguinte categorização: Segurança alimentar e nutricional como sendo a situação na qual todas as pessoas, regular e permanentemente, têm acesso físico, social e econômico a alimentos suficientes para o atendimento de suas necessidades básicas e que, além de terem sido produzidos de modo sustentável e mediante respeito às restrições dietéticas especiais ou às características culturais de cada povo, apresentem-se saudáveis, nutritivos, e isentos de riscos, assim se preservando até sua ingestão pelo consumidor (GRASSI NETO, 2013, p. 67-68). 38 Para Elisabete Maniglia (2009), a questão da segurança alimentar perpassa por uma garantia de “acesso físico e econômico a alimentos básicos, necessários para uma vida ativa e saudável” a todos os sujeitos (p. 255). Considera, ainda, que a categoria deve ser trabalhada por diferentes frentes, em uma intermediação entre Estado, sociedade, movimentos sociais, para concretização da alimentação como direito, na ideia de que “o Estado deve garantir o acesso à alimentação não só em quantidade suficiente, mas também em qualidade, a fim de se completar a sustentabilidade da vida” (MANIGLIA, 2009, p. 256). Para Mabel Gracia-Arnaiz (2015), segurança alimentar pode ser considerada um termo ambíguo. Associa essa ambiguidade com a dupla associação onde essa segurança pode ser tida como precauções e medidas tomadas para garantir intoxicação, minimizar perigos de contaminação, com devida preservação dos alimentos, mas também com a ideia de disponibilidade e acessibilidade alimentar. Cabe observar que não há diferenciação semântica na língua portuguesa sobre os aspectos de segurança e disponibilidade de alimentos, equivalentes aos respectivos termos na língua inglesa: food safety e food security. A não ocorrência de uma diferença linguística implica na junção dos dois aspectos em uma única expressão. Além desse fator, há um destaque significativo para versão brasileira do conceito por ressaltar a dimensão nutricional (MALUF, 2006). Ao observar a construção do conceito de segurança alimentar e nutricional, é necessário compreender, por uma perspectiva internacional, sobre como a questão alimentar transitava no espaço político, social e jurídico na segunda metade do século XX. Nos primeiros momentos, ocorria uma associação da garantia alimentar com uma política de armazenamento, para promover reservas mundiais sob o sentido do controle econômico (MANIGLIA, 2009; GRASSI NETO, 2013). Reconhece-se a ocorrência da Declaração Universal sobre a Erradicação da Fome e da Má Nutrição, dada a partir da Conferência Mundial sobre a Alimentação, convocada pela Assembleia Geral das Nações Unidas. Datada de 1974, a Declaração fez uma série de reconhecimentos significativos para questão alimentar. Para a categorização de segurança alimentar, contribuiu com a perspectiva de que o termo estaria associado com disponibilidade de alimentos para o desenvolvimento, para além de pressões políticas e econômicas. A referida Declaração indicou que um sistema de segurança alimentar eficaz em nível mundial deveria estar baseado uma perspectiva de abastecimento, como responsabilidade comum internacional, com a ocorrência de reservas adequadas, geradas por uma ação cooperativa (ONU, 1974). 39 Em 1996, a Cúpula Mundial da Alimentação foi responsável pela Declaração de Roma sobre a Segurança Alimentar e fez algumas considerações significativas. O que pode ser percebido no documento é uma perspectiva da segurança alimentar com o acesso a alimentos, em níveis adequados, tanto em segurança quanto em nutrição, sob o direito de não experimentar a fome. Destaca-se a associação da segurança alimentar com as questões de produção, as dificuldades de acesso aos alimentos, problemas de acesso à renda, em uma dimensão mundial, com maior intensidade em determinadas regiões. Indica que a segurança alimentar deve ser prioridade dos Estados, sob a conceituação de que o termo significa “acesso físico e económico a alimentos seguros, nutritivos e suficientes para satisfazer as suas necessidades dietéticas e preferências alimentares, a fim de levarem uma vida ativa e sã” (FAO, 1996, s. p.) A partir da Cúpula Mundial da Alimentação, realizada em 1996, a questão da segurança alimentar passou a ser desenvolvida pelos Estados engajados para ampliar a discussão e estruturação de garantias à alimentação saudável e adequada. Essa mobilização conduziu para a consolidação do conceito de segurança alimentar e nutricional. No Brasil, destaca-se o documento “Princípios e Diretrizes de uma Política de Segurança Alimentar e Nutricional”, organizado pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), no ano de 2004. Neste documento, foi apresentada a seguinte definição para o termo: Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) é a realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam social, econômica e ambientalmente sustentáveis (CONSEA, 2004, p. 4). Além da conceituação, o documento realiza uma conexão significativa. Aponta a necessidade de associar a questão da segurança alimentar e nutricional com o Direito Humano à Alimentação e a Soberania Alimentar. Para o conceito de DHAA, este trabalho realizou a conexão no subtópico anterior. Para o segundo aspecto, da soberania alimentar, segue-se a compreensão de que é uma categoria trabalhada de forma conjunta com a questão da segurança alimentar, mas que amplia as possibilidades, visto que se trata de uma “condição que só existe quando os povos são livres para decidirem o que será produzido, como será a produção e o que consumirão, sempre respeitando a cultura alimentar” (CONSEA, 2004, p. 61). 40 A definição supracitada sobre o conceito de segurança alimentar e nutricional foi demarcada juridicamente pela Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Lei n. 11.346/2006). Na mesma legislação, foi instituída a criação do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), cujo objetivo é assegurar o direito humano à alimentação adequada. Encontra-se ainda o Decreto n. 7.272, de 25 de agosto de 2010 que contribuiu para a institucionalização da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. A continuidade conceitual de segurança alimentar e nutricional entre os materiais apresentados pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) em 2004 e na estruturação da Lei n. 11.346, em 15 de setembro de 2006 demonstram o processo de acúmulo e construção da questão alimentar. Na contextualização cronológica, os pesquisadores Renato Maluf e Elisabete Maniglia apresentaram trabalhos teóricos contemporâneos ao processo de institucionalização da segurança alimentar no Brasil que reforçam as multidimensões do processo de alimentação. Cabe destacar que as discussões em torno do conceito estudado foram permeadas pelas pesquisas científicas, que complexificaram as categorizações. Ressalta-se a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), adaptada por pesquisadores da UNICAMP durante 2003 e 2004 a partir da experiência do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos. Trata-se de um instrumento significativo para analisar a experiência alimentar de diferentes grupos sociais, assim como entender o quão severa a insegurança alimentar pode ser (IBGE, 2014). A EBIA é formada por quatro níveis: segurança alimentar, onde há acesso à alimentação de forma adequada sem comprometimento de outros fatores; insegurança alimentar leve, baseada em preocupações ao futuro da alimentação familiar, assim como uma qualidade inadequada em prol da quantidade de alimento; insegurança alimentar moderada, definida pela redução quantitativa da alimentação, com a falta de alimentos para adultos. Por fim, depara-se com a insegurança alimentar grave, ocorrente quando faltam alimentos para crianças ou quando alguém permanece o dia inteiro sem se alimentar por falta de renda (MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME apud IBGE, 2014). Denota-se que o processo de desenvolvimento e construção das políticas de segurança alimentar e nutricional possuem mais detalhes do que apresentados neste subtópico. Entretanto, considera-se necessário, em um primeiro momento, marcar o conceito de Segurança Alimentar e Nutricional, como categoria orientadora para a compreensão dessa 41 pesquisa. Compreende-se que houve um desenvolvimento internacional da ideia de segurança alimentar de acordo com as experiências vivenciadas, sob os contextos políticos, sociais e econômicos, o que possibilitou que o debate em torno da segurança alimentar fosse observado por uma perspectiva social, como aspecto fundamental para a garantia da vida. Entre as categorias justiça, estabelecimento de direitos humanos e constituição de uma vida digna, coloca-se que o problema central não é a afirmativa de que todos deveriam acessar uma alimentação adequada e saudável, mas sim a construção de políticas públicas efetivas, assim como a disputa da agenda política e do espaço público. Reafirma-se a complexidade do estabelecimento da segurança alimentar e nutricional, como categoria intermediada entre o Direito Agrário e Direitos Humanos. A partir da construção apresentada, analisa-se que o conceito de segurança alimentar e nutricional possui certa estabilidade em um sentido teórico e jurídico, onde a experiência da fome aparece com apenas uma das facetas da insegurança alimentar. Compreende-se que a discussão significativa, em termos científicos, não é produzir um novo conceito, mas analisar a construção das políticas em torno do que foi estabelecido, as mediações com a realidade e os problemas vivenciados no momento atual, com elementos marcadores como a ocorrência da pandemia Covid-19. A partir de tais colocações, segue-se para a análise proposta pelo segundo capítulo desta dissertação, com o estudo da estruturação jurídica do direito à alimentação em plano nacional e internacional, por meio da segurança alimentar e nutricional. De forma consoante, observa-se a constituição de programas e políticas públicas, com observação documental e análise de dados secundários. 42 Capítulo 2 Políticas públicas e estruturação do direito à alimentação em plano nacional e internacional Para o desenvolvimento do segundo capítulo, considera-se a necessidade de investigar políticas, programas e medidas estatais brasileiras, organizados de forma individual ou mediante cooperação internacional, que visem efetivar o direito fundamental de toda pessoa de estar protegida contra a fome, de acordo com Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ratificado pelo Brasil em 1992. Entre as fundamentações jurídicas, o primeiro indicativo é encontrado no art. 6º da Constituição Federal de 1988, o qual indica que a alimentação é um direito social. É possível esstabelecer relações entre trabalho, educação, saúde e responsabilização do Estado pela alimentação a partir dos artigos 7º, IV; 208, VII; 212, § 4º; e art. 227 (BRASIL, 1988). Para analisar a complexidade da implementação de políticas sobre o tema, considera- se que a construção de um plano de atuação “realiza-se por meio de políticas públicas, de colaboração internacional e de participação da sociedade civil. Assume relevância o cumprimento de leis que a ele se refiram. Sua eficácia depende de orçamento público” (MANIGLIA, 2009, p. 174). Nesse sentido, uma política de segurança alimentar e nutricional deve ser construída por diferentes facetas, para que seja possível verificar uma aplicabilidade efetiva. Não se trata de idealizar uma utopia irrealizável, mas pensar em uma constituição de políticas organizadas, com a consideração dos sujeitos que precisam ter a alimentação garantida para um direcionamento de uma atuação prática e concreta dos direitos fundamentais. Inicialmente, é necessário compreender o que é política pública e quais aspectos permeiam sua ocorrência, conteúdo que conecta as avaliações teóricas realizadas no primeiro capítulo e a constituição real das políticas para alimentação e quais expressões existem para efetivar a segurança alimentar e nutricional do sujeito. Considera-se que “em sendo o Direito instituição, a política pública não se confunde com a pura e simples efetividade da norma” (FARRANHA, 2019, p. 71). Trata-se de uma perspectiva para além do Direito restrito a uma dimensão normativa. A categorização da alimentação como um direito social influi na forma como os direcionamentos políticos e jurídicos poderão ser constituídos. Nesse escopo, considera-se que as políticas públicas voltadas para essa questão podem ser consideradas políticas sociais, mediada na relação entre Est